BOÉCIO: O ÚLTIMO ROMANO – História da Filosofia na Idade Média

HISTÓRIA DA FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA


Johannes HIRSCHBERGER

Fonte: Ed. Herder

Trad. Alexandre Correia

4 — BOÉCIO: O    ÚLTIMO    ROMANO

Em importância,  para a Idade Média,  a Agostinho segue-se Boécio.

Vida   e   Obras

MÂNLIO  SEVERINO
BOÉCIO,   da 
velha  estirpe  dos  Anícios, nasceu  em 470.    Sob  Teodorico foi investido
em altas funções administrativas, é cônsul e magister palatii. Dando crédito
a uma intriga política, o rei mandou executá-lo cruelmente em Pavia, em 525,
depois de ter sofrido uma longa prisão. Boécio
queria traduzir em latim todas as obras de Platão e ARISTÓTELES. Apenas
temos as suas traduções das Categorias e do Perihermeneias. (As
traduções dos Analíticos, dos Tópicos e dos Argumentos
Sofísticos,
que andam editadas com as suas, não são autênticas.
Modernamente é contestado, com bons fundamentos, que sejam de Jacó de Veneza), às suas traduções
acrescentou comentários; igualmente ao Isagogo de PORFÍRIO, à tradução por Mario Vitortno e à sua própria
tradução. Segue-se uma pequena série de escritos sobre lógica, sobretudo sobre
o silogismo, também sobre o hipotético, por onde se vê quão familiarizado era
com a filosofia estóica. Além disso, deixou obras sobre música e aritmética.
Sua obra mais conhecida foi escrita na prisão: Da consolação pela filosofia (De
consolatione philosophiae
), em 5 livros. É uma vasta teodicéia, onde
vêm à baila os problemas do mundo, de Deus, da felicidade, da Providência, do
destino, do livre arbítrio e, sobretudo, a questão do mal e da justiça divina.
Edições: G. WeinberGer, vol. 67
do Corp. Script. eccl. lat. (1934). E Gothein, Trost der Philosophie (Consolação pela filosofia) lat. e al.
(1932). A. a Forti Scuto, com comentário latino (1925). A. Bognano, em latim e
francês (1937). Louis Judieis de Mirandol, idem, Paris, Hachete, 1861. Com a.
certeza da sua autenticidade fica resolvida a velha controvérsia de saber-se
se Boécio era pagão ou cristão.

Boécio e a Idade Média.

Boécio transmitiu à Idade Média
um sem-número de idéias e problemas. Tomou a si a tarefa de familiarizar o seu
século com as obras de Platão e Aristóteles, sem desprezar porém a
filosofia estóica.

α) Aristotelismo. — Antes de tudo foi ele
quem introduziu na escolástica os conceitos fundamentais da lógica e da metafísica
aristotélicas. Assim, os termos actus (ενεργéια), potentia (δυναμιζ), species (εíδος,
ιδéα), principium (αρχη), universale (ειδοζ), accidens (συμβεβηχóζ), contingens (ενδεχóμενον), subjectum  (υποχειμενον)
etc.    É quase a fonte exclusiva para o aristotelismo medieval antes do séc.
13.    Sobretudo é ele, até então, o mestre da lógica (dialética).

 β) Platonismo. — Mas também
disseminou filosofemas e conceitos fundamentalmente platônicos. Platônica é a
sua idéia de Deus, sua concepção da felicidade, a idéia da participação, um
certo conceito do universal. E o de Cons. phil. II, 9 contém, além
disso, uma reprodução do Timeu de Platão.

γ) 0 bem estóico. — Mas também muito
material estóico se transmite por ele à escolástica. Assim, as idéias de
natureza, de lei natural, da série causai, a problemática estóica sobre a sorte
e a providência e, em particular, o seu conceito de realidade que contribuiu
essencialmente para, no futuro, se ver a realidade, em primeira linha, no mundo
externo corpóreo. Embora Aristóteles tivesse
introduzido um novo conceito de realidade, diverso do de Platão, ter-se-ia contudo e apesar
disso podido interpretá-lo no sentido da meta- física platônica. Porque, para Aristóteles, o universal e a forma
ficou sempre como tendo a prioridade, por natureza. Foi a interpretação naturalista
posterior do Perípato e o conceito estóico de realidade, que levaram a Idade
Média a entendê-lo de modo diferente, fazendo de Boécio o representante de uma metafísica
"empírica" e adversário de uma metafísica idealista (Hist. Fil.
Antigüidade, p. 260). Mas para isso também contribuiu o próprio Boécio, por falar a linguagem do
Pórtico. Mas ainda, prescindindo do fato de ter ele sugerido soluções
platônicas, foi contudo este mesmo Boécio
quem, convencido da harmonia fundamental entre Platão e Aristóteles,
exarou essa convicção nas suas traduções e comentários. E deu por aí
ocasião a que, no tratado dos problemas do conhecimento e da metafísica,
viessem a valorizar-se também as intenções, muitas vezes inconscientemente,
porém real e ativamente, desse outro Aristóteles,
do qual sabemos, desde Jaeger, que
foi o primeiro grego a nos ensinar a ver o mundo com olhos platônicos. Assim Boécio nos aparece como um espírito
polifacético e aberto a todas as direções. Boécio
é uma das primeiras autoridades da escolástica; mas ele lhe legou pelo
menos tantas concepções e sugestões quantas as vias de orientação que lhe
traçou.

a)    Deus

Um dos problemas centrais para Boécio é a idéia de Deus. Mas, não
obstante, na sua teodicéia, ter transformado muitas concepções antigas, vê-se
logo que Deus é para ele e antes de tudo um ser pessoal.

α) Deus pessoal. — Com este teísmo o
pensador cristão separa-se radicalmente de tudo o que pudesse ter tirado de Platão, Aristóteles e Plotino. A continuidade do patrimônio
de idéias agostiniano já é uma grande realidade histórica, e Boécio escreve também uma obra, De
saneta Trinitale,
mas pensa como  teólogo cristão.

 β) Deus como o Ser. — Mas quando
indaga, como filósofo, da essência de Deus, a sua resposta primeira é que Deus
é o ser em si (ipsum esse). Ou, Deus é a forma: "A substância
divina é forma totalmente sem matéria; é, assim, unidade e o ser mesmo que é;
tudo o mais não é o que é" (De Trin. c. 2; Migne lat. 64, 1250).
Esta distinção exerceu na Idade Média um influxo incalculável. Havemos de entendê-la
se tivermos diante dos olhos o subseqüente ensinamento filosófico sobre a
essência de Deus, a saber, que Deus é o bem.

γ) Deus como Bem. — Deus é o supremo bem
que encerra absolutamente em si todos os outros bens: Omnium summum bonorum
cunctaque intra se bona continens (De cons. phil.
III, 2). E como não
podemos conceber nada melhor que ele, resulta que Deus se identifica com o bem: Cum nihil Deo melius excogitari queat, id, quo melius nihil est, bonum esse,
quis dubiiet?
(1. c. III, 10). Isto não deve entender-se em sentido
neoplatônico, embora a terminologia soe nesse sentido; pois Boécio é adversário de qualquer emanatismo
(1. c. III, 12). Mas o platonismo que aí está em jogo é o que já’ encontramos
em Agostinho e que ainda havemos
de encontrar no argumento ontológico de Anselmo
de Cantuária. Como para Platão o bem-em-si
é ao mesmo tempo o fundamento último e a plenitude do ser, de modo que dele
podemos fazer derivar tudo dialèticamente, aqui, no caso vertente, tudo está
incluído em Deus. Como em Platão, a
Idéia em si mesma já é realidade, assim também para Boécio a idéia de Deus já implica em realidade.   Por isso mesmo Deus é o ser, ao passo que tudo o mais não é o seu ser; i. é.,
tudo o mais deve ser derivado, fundado e, portanto, recebe o seu ser. Deus
porém já o é, desde sempre; ele é o fundamento e este é o ser. A afirmação que
Deus é ipsum  esse só do platonismo pode receber o seu sentido
pleno. E não há nisto nenhuma passagem injustificada do lógico para o ontológico.
Pois, e aqui ainda mais assinalado é o platonismo, todo imperfeito vive do perfeito,
"porque o processo cósmico não procede do mesquinho e do imperfeito, mas
do perfeito." De modo que "todo imperfeito é uma diminuição do
perfeito", e "evidentemente todo perfeito tem prioridade
relativamente ao imperfeito" (De cons. phil. III, 10). Não é
portanto possível pensarmos no imperfeito se não pressupondo-lhe o perfeito
como fundamento (1. a) Mas como o imperfeito é uma realidade, com maioria de
razão é também o perfeito, como o pressuposto que torna o imperfeito possível,
uma realidade. B portanto não se trata aqui de nenhuma μεταββασιζ
ειζ αλλο γενοζ. O nervo
de todo o desenvolvimento da prova, fundada nos graus de perfeição, está antes
naquela doutrina platônica fundamental, que a idéia do imperfeito tem como
pressuposto a do perfeito.

b)    O   Universal

De novo aqui nos encontramos com o problema dos
universais. Nos seus comentários ao Isagogo de Porfírio, Boécio fez sua a solução de Alexandre de Afrodisias, que é a seguinte.

α) Objeto do Pensamento. — O
universal — o homem, a virtude, o bem, sob esta forma de universalidade não são
realidades, mas objetos do pensamento que, certo, se fundem com a realidade. O
verdadeiro real e existente por uma prioridade de natureza é o indivíduo. Dele
o nosso pensamento abstrai o universal, conservando as notas comuns na certeza
de. assim, atingir a essência.

β) Natureza incorpórea. — Esta
essência universal chama-lhe Boécio forma,
imagem do pensamento (species intelligibilis), natureza incorpórea (natura
incorporea).
E pensa que nesses dados mentais se aninham as idéias que se
haviam concretizado nas cousas corpóreas. O que vem de novo a significar que o
universal existe, por prioridade de natureza,  pois  assume  uma  forma
concreta.    De  cons.  phil.  V. 4, donde se confirma esta conjetura).
Aí se declara que as formas universais não se abstraem das cousas particulares,
mas que o nosso espírito se lembra de formas apriori, tendo o
conhecimento sensível apenas a função de despertar essa relembrança. Por onde e
claramente, os universais existem, ainda uma vez, com prioridade de natureza,
para falar como Aristóteles.

γ) Boécio contra Boécio? t Boécio assumiu assim duas posições
diferentes’? Por um momento aderiu ele à interpretação empírico-naturalista
que deu Alexandre ao pensamento
de Aristóteles, de cuja linguagem
se serviu. Mas, na verdade, conservou o pensamento exato do genuíno Aristóteles que, na verdade, na sua
polêmica com Platão, parece colocar-se
na posição de Alexandre. Mas, nos
passos decisivos da sua Metafísica, tal como a possuímos hoje, de
ordinário platoniza. Assim também Boécio.
Por aí ele não somente indicou à Idade Média o caminho para o fecundo
campo espiritual de Aristóteles, mas
antes de tudo lhe abriu a possibilidade de uma síntese entre a filosofia
aristotélica e a augustiniano-platônica. Mas também, e em particular nos seus
comentários ao Isagogo, sugeriu aos espíritos, mais presos às palavras
que à realidade, as tentativas de Alexandre.

c)    O    individual

Real é também para ele o individual, o que é
naturalmente levar água ao moinho da concepção aristotélica. Reconhece-se
essa exaltação do individual em lugares como este: Diversum est esse et id
quod est; omiti composito aliud est esse, aliud ipsum esse; omne quod est
participait eo quod est esse; ipsum esse nondum est, at vero quod est, accepia
essendi forma est atque consistit (Quomodo subst.
c. 1311 b c). É verdade
que aqui não se considera, como no puro platonismo, somente o universal como o
realmente existente, mas Boécio paga
o seu tributo ao novo conceito aristotélico do real. Contudo, exatamente na
distinção entre o concreto (id quod est) e a essência {esse, forma), reconhecemos
a reaparição da Idéia (participação!) e a sua importância fundamental
para explicar o existente concreto e que portanto significa   algo  mais   que 
um  produto  da   abstração.    Nesses passos cit. está toda a Idade Média com
a sua problemática sobre o universal e o individual, a essência e a existência,
o idealismo e o realismo, o aristotelismo e o augustinismo. Boécio é
aristotélico; mas se reproduz a metafísica aristotélica da forma, isso SÓ lhe é
possível porque platoniza e vê no universal uma realidade existente por
prioridade de natureza, exatamente como Aristóteles,
quando explica a substância primeira pela segunda. E assim deve fazer
todo aquele que agita no espírito problemas metafísicos e quer ver na forma
algo mais que um produto da abstração.

d)    Providência, Fatum, Liberdade

Encontramo-nos de novo com o nosso problema no
domínio da agência humana. As formas eternas predeterminam absolutamente todo
devir no mundo ou em a "natureza", como se exprime de preferência. Boécio, seguindo a terminologia estóica.
As propriedades das cousas, que lhes imprime o agir (agere), não lhes
vêm da matéria. A forma é, pois, o que determina o lugar natural (De Trin. c.
2; Migne lat. 64, 1250). Também a terra, p. ex., recebe as suas propriedades de
secura e peso, da forma e não da matéria. Há um plano eterno, que se estende
até às particularidades e domina assim totalmente o ser — a Providência de
Deus, de que as formas não são mais que as idéias existentes na mente divina,
de que sempre falou Agostinho. "A
Providência é aquele plano divino, existente na mente do Senhor do Mundo, que
tudo ordena" (De cons. phil. IV, 6). E aqui devemos também perguntar,
como quando tratávamos de Agostinho: mas
há ainda liberdade para os homens? Boécio dá-lhe lugar distinguindo duas
ordens de seres: o mundo irracional e o dos seres dotados de razão. No primeiro
tudo se dá necessariamente pela determinação categorial causai, por via da
forma. No domínio do inundo espácio-temporal Boécio
determina limites ao nexo causai e só este se chama fatum, ao
passo que para os estóicos o fatum ou sorte domina absolutamente tudo.
No mundo do espírito e da razão, ao contrário, e também no mundo humano, as
formas eternas atuam apenas como ideais, que devemos ter em mira, mas a que
também podemos renunciar. Sobretudo, e aqui se faz sentir o neoplatonismo,
quanto mais espírito, tanto mais liberdade. A liberdade da vontade é  encarada
em dependência da razão,  e prOximamente da razão judicativa. O espírito humano
em particular, e nisso diferente do animal, fundado no seu conhecimento do
universal, pode escolher entre uma pluralidade de possibilidades que tem em
vista, julgando, por um ato de reflexão, sobre a sua vontade. "Não é na
vontade, mas no juízo da vontade, que consiste a liberdade" (Migne lat.
64, c. 493 a). Ao passo que a liberdade de eleição aristotélica — electio, como
lhe chamam os latinos — é objeto da vontade, Boécio concebe a liberdade da
vontade — chama-lhe liberam arbitrium — intelectualisticamente,
diferentemente de Agostinho, e
aqui claramente influenciado pelo Pórtico e por Alexandre DE Afrodísias.

e)   Tempo   e  Eternidade

Mas se o homem é livre, a Providência não ê,
ilusória? Uma ação livre deve estar acima de qualquer cálculo e não pode por consequência
ser conhecida previamente. Esta questão se desata considerando-se. a
eternidade de Deus (De cons. phil. V, 6). O tempo não se apresenta para
Deus como para o homem, ensina BOÉCIO na peugada de Agostinho. Para nós o tempo está ligado à sucessão — passado,
presente, futuro. O ser criado não pode abranger de um golpe a plenitude do ser
e percorre por isso, como o pensava Aristóteles,
um caminho indefinido — o tempo. Deus porém abarca a totalidade do ser
num agora único. atemporal, simultâneo. E nisso consiste a sua
eternidade. "A eternidade é a posse totalmente simultânea de uma vida
interminável" (1. c). O momento humano, com a sua
imperceptibilídade e fugacidade, e apenas imagem e fraca imitação daquele
eterno e atemporal agora. E ele proporciona ao homem, que o vive, o
suficiente para ter a ilusão da vida. Por onde, é mister fundamentalmente
distinguisse entre a pura eternidade, no sentido de ausência de tempo (aeternum); e uma eternidade impropriamente dita, no sentido de um fluxo indefinido do
tempo (perpetuum), que talvez pode convir ao mundo. Por isso não há
para Deus nenhuma "pre" vidência, pois tudo o que para o homem é
futuro é para ele presente. E mesmo que mudássemos de repente os nossos planos,
para manifestar a nossa liberdade e pregar uma peça à Providência, tudo isso se
passaria, para Deus, num mesmo e eterno agora, e o que nós planejamos já
se acha realizado na sua intuitiva e simultânea ciência. Donde vem o conhecer
Deus também as ações livres, com segura necessidade. Não por deverem elas se
realizar necessariamente, mas porque o acontecido de fato e livremente, a bem
considerarmos as cousas, mesmo na sua contingência, no momento da sua
realização, pode ser conhecido como se tendo realizado necessariamente do modo
pelo qual se realizou e não de modo diferente.

f)     O    Mal

a) Teoria de Boécio. — O que, em face da
Providência, sempre oferece dificuldades é o fato do mal no mundo. Que em geral
o mal existe e talvez fica impune; que o vício triunfa e a virtude não somente
fica sem recompensa, mas pode mesmo ser suplantada pelo crime; e que, de outro
lado, haja um Deus junto, pergunta Boécio, na prisão, como é possível. E
compreende-se facilmente com quanto mais intensidade o indaga, na sua
situação, do que se estivesse livre. A sua resposta é: o poder dos maus é
apenas aparente, os bons são em verdade sempre os mais fortes. A felicidade dos
maus é também apenas um arremedo de felicidade, ao passo que é sem mescla a
felicidade dos virtuosos. Estes estão para aqueles como os que marcham com os
pés em relação aos que tentam caminhar com as mãos. E a Providência permanece
um fato inabalável. Todo acontecimento, dentro da série causai que rege toda a
natureza, é ordenado pela ciência divina. E "daí vem o serem todas as
cousas determinadas e dirigidas, pela sua própria natureza, para o melhor,
embora tudo nos pareça irregularidade e desordem, pois não podemos de modo
nenhum conhecer essa ordem na sua plenitude. Mas nada é feito, por certo, em
vista do mal e, muito menos, pelo mar’ (De com. phil. IV, 6). Assim, é
só a nossa incapacidade de abarcar o conjunto, que nos faz duvidar. Na realidade
porém tudo é feito para obviar às necessidades de cada ser, e isso sempre
sucede; e só por ignorância desejamos às vezes o doce, quando o médico sabe ser
o amargo o conveniente. "O que tu teus pelo mais justo e pelo mais sábio,
a Providência onisciente o vê a uma outra luz… A uns a Providência,
conforme à tempera das suas almas, envia uma sorte mesclada de alegrias e de
sofrimentos; a outros, sofrimentos, a fim de, como conseqüência de uma
prolongada felicidade, não se entregarem a uma vida de prazeres.    A outros
ainda deixa-os serem sacudidos pelos golpes de uma dura sorte, para, através da
paciência e do exercício, se lhes fortalecerem as virtudes… Não padece isto
nenhuma dúvida, que tudo sucede segundo a lei e a regra, e para vantagem dos
interessados". Em suma: "O poder divino pode fazer sair o bem do
mal"  (op. cit.).

β) Seus pressupostos. — Tudo isso é uma
variação do tema já versado por Agostinho,
quando diz (In Ps. 54, 1), que o mal existe no mundo para castigar os
maus e melhorá-los; e para provar os bons — pensamento a que também Boécio se reporta (op. cit. IV, 7). Mas
no fundo disso tudo está a reflexão estóica e neoplatônica sobre o nosso tema,
com a sua afirmação que só a virtude torna feliz e que só o bem é propriamente
ser, sendo o mal uma deficiência, um não-ser (privatio). Pressupondo-se
esses conceitos da felicidade, do valor e do ser, todas essas reflexões
assumem um sentido; esse sentido desaparece se se perde de vista o total dessa
concepção idealista. Boécio repercute
sempre as mais elevadas tradições filosóficas. Vemo-lo por aqui ligar os elos
desde Platão até Leibniz, no concernente às
transcendentais discussões atinentes à teodicéia.

g)    Responsabilidade Individual

Nem o mal nem o fatum conseguem escapar
ao império do bem. Deus é bom e o homem pode sê-lo. Isto dá sentido à nossa
vida. Por essa tarefa, que nos é imposta, somos responsáveis, cada qual
conforme à sua própria individualidade. Pois, apesar de toda a valorização do
universal na ordem do mundo, Boécio reconhece
também a posição do individual, como vimos. Não foi em vão que nos deu a
célebre definição da individualidade humana: Persona est rationalis naturae
individua substantia (De pers. et áuab. nat.
c. 8). Perante Deus e o Bem o
homem é livre e responsável. E esta é a última palavra, que o filósofo, em face
da morre, ainda pôde dirigir aos homens, dos quais experimentou como se
transformam em brutos, quando abandonaram a probidade (De cons. phil. IV,
3). Com inabalável segurança e bela clareza clássica, se expressa nestes
termos: "Os homens conservam inteiro o seu livre arbítrio; e desde que a
vontade está livre de toda coação, não são iníquas as leis que prometem prêmios
e penas. Pois há um Deus imutável que, do alto da sua sabedoria, assiste a tudo;
seu olhar eterno e onipresente concorre sempre com as nossas ações futuras,
distribuindo recompensas aos bons e castigos aos maus, segundo os seus
méritos. Não é em vão que pomos em Deus as nossas esperanças e Lhe dirigimos as
nossas preces; se forem retas, não podem ser ineficazes. Desviai-vos portanto
dos vícios, cultivai as virtudes; elevai a vossa alma com a retidão das vossas
esperanças; que a humildade das vossas orações as faça subir até Deus. Premente
é, se não o quereis dissimular, a obrigação de viver honestamente,
porque todas as vossas ações se cumprem sob os olhares de um juiz a que nada escapa"   (De cons.  phil.  V,  6).


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