cap. 1 – O Conjunto da Filosofia – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição I

O CONJUNTO DA FILOSOFIA

1. A FILOSOFIA E SUA VIVÊNCIA. —
2. DEFINIÇÕES FILOSÓFICAS E VIVÊNCIAS FILOSÓFICAS. — 3. SENTIDO DA PALAVRA
«FILOSOFIA». — 4. A FILOSOFIA ANTIGA. — 5. A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA. — 6. A FILOSOFIA NA IDADE MODERNA. — 7. AS DISCIPLINAS FILOSÓFICAS. —   8.    AS  
CIÊNCIAS   E   A   FILOSOFIA.   —   9.    AS   PARTES   DA   FILOSOFIA.

 

1.  
A filosofia e sua vivência.

 

Vamos
iniciar o curso de Fundamentos da Filosofia propondo e tentando resolver
algumas das questões principais desta disciplina.

A
filosofia é, de imediato, algo que o homem faz, que o homem tem feito, o que
primeiro devemos tentar, pois, é definir esse "fazer" que chamamos
filosofia. Deveremos, pelo menos, dar um conceito geral da filosofia, e talvez
fosse a incumbência desta primeira lição explicar e expor o que é a filosofia.
Mas isto é impossível. É absolutamente impossível dizer de antemão o que é
filosofia. Não se pode definir a filosofia antes de fazê-la; como não se pode
definir em gerai nenhuma ciência, nenhuma disciplina, antes de entrar
diretamente no trabalho de fazê-la.

Uma
ciência, uma disciplina, um "fazer" humano qualquer, recebe seu
conceito claro, sua noção precisa, quando já o homem domina este fazer. Só se
sabe o que é filosofia quando se é realmente filósofo. Que quer dizer isto?
Isto quer dizer que a filosofia, mais do que qualquer outra disciplina,
necessita ser vivida. Necessitamos ter dela uma "vivência". A palavra
"vivência" foi introduzida no vocabulário espanhol pelos
colaboradores da Revista de Ocidente, como tradução da palavra alemã Erlebnis.
Vivência significa o que temos realmente em nosso ser psíquico; o que real e
verdadeiramente estamos sentindo, tendo, na plenitude da palavra
"ter".

Vou dar um exemplo para que se compreenda
bem o que é "vivência". O exemplo não é meu, é de Bergson.

Uma
pessoa pode estudar minuciosamente o mapa de Paris; estudá-lo muito bem;
observar um por um os diferentes nomes das ruas; estudar suas direções; depois
pode estudar os monumentos que há em cada rua; pode estudar os planos desses
monumentos; pode revistar as séries das fotografias do Museu do Louvre, uma por
uma. Depois de ter estudado o mapa e os monumentos pode este homem procurar
para si uma visão das perspectivas de Paris mediante uma série de fotografias
tomadas de múltiplos pontos. Pode chegar dessa maneira a ter uma idéia bastante
clara, muito clara, claríssima, pormenorizadíssima, de Paris. Semelhante idéia
poderá ir aperfeiçoando-se cada vez mais, à medida que os estudos deste homem
forem cada vez mais minuciosos; mas sempre será uma simples idéia. Ao
contrário, vinte minutos de passeio a pé por Paris são uma vivência.

 

Entre
vinte minutos de passeio a pé por uma rua de Paris e a mais vasta e minuciosa
coleção de fotografias, há um abismo. Isto é uma simples idéia, uma
representação, um conceito, uma elaboração intelectual; enquanto que aquilo é
colocar-se realmente em presença do objeto, isto é, vivê-lo, viver com ele;
tê-lo própria e realmente na vida; não o conceito, que o substitua; não a fotografia,
que o substitua; não o mapa, não o esquema, que o substitua, mas ele próprio.
Pois o que-nós vamos fazer é viver a filosofia.

Para
vivê-la é indispensável entrar nela como se entra numa selva,  entrar nela
para explorá-la.

Nesta
primeira exploração, evidentemente, não viveremos a totalidade deste
território que se chama filosofia, passearemos por algumas de suas avenidas;
penetraremos em alguns de seus jardins e de suas matas; viveremos realmente
algumas de suas questões; porém outras talvez nem sequer saberemos que existem.
Poderemos dessas outras ou da totalidade do território filosófico ter alguma
idéia, algum esquema, como quando preparamos uma viagem temos de antemão uma
idéia ou um esquema lendo previamente o guia Baedeker. Porém, viver, viver a
realidade filosófica, é algo que não poderemos fazer senão em certo número de
questões e de certos pontos de vista.

De
vez em quando, nestas nossas viagens, nessa nossa peregrinação pelo território
da filosofia, poderemos deter-nos a fazer balanço, fazer levantamento do
conjunto das experiências, das vivências que tenhamos tido; e então poderemos
formular alguma definição geral da filosofia, baseada nessas autênticas
vivências que tenhamos tido até então.

Esta
definição terá então sentido, estará cheia de sentido, porque haverá dentro
dela vivências nossas, pessoais. Pelo contrário, uma definição de filosofia,
que se dê antes de tê-la vivido, não pode ter sentido, resultará ininteligível.
Parecerá talvez inteligível nos seus termos; será composta de palavras que
oferecem sentido; mas este sentido não estará cheio da vivência real. Não terá
para nós essas amplas ressonâncias de algo que por longo tempo estivemos
vivendo.

 

2.  
Definições filosóficas e vivências filosóficas.

 

Assim,
por exemplo, é possível reduzir os sistemas filosóficos de alguns grandes
filósofos a uma ou duas fórmulas muito densas, muito bem elaboradas. Mas, que
dizem essas fórmulas para quem não caminhou ao longo das páginas dos livros
desses filósofos? Assim dizemos, por exemplo, que o sistema de Hegel pode ser
resumido na fórmula de que "todo o racional é real e todo o real é
racional", e está certo que o sistema de Hegel pode resumir-se nessa
fórmula. Está certo também que essa fórmula apresenta um sentido imediato, inteligível,
que é a identificação do racional com o real, tanto colocando como sujeito o
racional e como objeto o real, como invertendo os termos da proposição e
colocando o real por sujeito e o racional por predicado.

Mas,
apesar desse sentido aparente e imediato que tem esta fórmula, e apesar de ser
realmente uma fórmula que expressa em conjunto bastante bem o conteúdo do
sistema hegeliano, que nos diz? Não nos diz nada. Não nos diz nem mais nem
menos que o nome de uma cidade que não vimos, o nome de uma rua pela qual não
passamos nunca. Se eu digo que a Avenida dos Campos Elíseos está entre a praça
da Concórdia e a praça da Estrela, faço uma frase com sentido; mas dentro desse
sentido pode-se colocar uma realidade autenticamente vivida.

Pelo
contrário, se nos pomos a ler, a meditar, os difíceis livros de Hegel; se
mergulhamos e bracejamos no mar sem fundo da Lógica, da Fenomenologia do
Espírito ou da Filosofia da História Universal, no cabo de algum tempo de
conviver, pela leitura, com estes livros de Hegel, viveremos essa filosofia;
estes secretos caminhos nos serão conhecidos, familiares; as diferentes
deduções, os raciocínios por onde Hegel vai passando duma afirmação a outra,
duma tese a outra, os teremos percorrido guiados pelo grande filósofo. E então,
depois de vivê-los durante algum tempo, ao ouvirmos enunciar a fórmula de
"todo o racional é real e todo o real é racional", encheremos esta
fórmula de um conteúdo vital, de algo que vivemos realmente, e adquirirá esta
fórmula uma quantidade de sentidos e de ressonâncias infinitas que antes não
tinha.

Pois
bem: se eu agora desse alguma definição da filosofia, ou se me pusesse a
discutir várias definições da filosofia, seria exatamente o mesmo que oferecer
a fórmula do sistema hegeliano. Não poria o leitor dentro dessa definição
nenhuma vivência pessoal. Por isso me abstenho de dar uma definição da
filosofia. Somente, repito, quando tivermos percorrido algum caminho, por
pequeno que seja, dentro da própria filosofia, então poderemos, de vez em
quando, fazer alto, voltar atrás, recapitular as vivências tidas e tentar
alguma fórmula geral que recolha, palpitante de vida, essas representações
experimentadas realmente por nós mesmos.

Assim,
pois, estas lições de FUNDAMENTOS DE FILOSOFIA vão ser como umas viagens de
exploração dentro do continente filosófico. Cada uma dessas viagens seguirá
uma senda e irá explorar uma província. As demais serão objeto de outras
viagens, de outras explorações, e pouco a pouco iremos sentindo como o círculo
de problemas, o círculo de reflexões e meditações, umas de grande vôo, outras
minuciosas e, por assim dizer, como que microscópicas, constituem o corpo
palpitante disso que chamamos a filosofia.

É a
primeira viagem que vamos fazer, por assim dizer, em aeroplano: uma exploração panorâmica.
Vamos perguntar-nos, desde já, que designa a palavra "filosofia".

 

3.  
Sentido da palavra "filosofia".

 

A
palavra "filosofia" tem que designar algo. Não vamos ver o que é esse
algo que a palavra designa, mas simplesmente assinalá-lo, dizer: está aí.

Evidentemente,
todos sabemos o que a palavra "filosofia", na sua estrutura verbal,
significa. É formada pelas palavras gregas philos e sophia, que significam
"amor à sabedoria". Filósofo é o amante da sabedoria. Porém este
significado dura na história pouco tempo. Em Heródoto, em Tucídides, talvez nos
pré-socráticos, uma ou outra vez, durante pouco tempo, tem este significado
primitivo de amor à sabedoria. Imediatamente passa a ter outro significado:
significa .a própria sabedoria. De modo que, já nos primeiros tempos da
autêntica cultura grega, filosofia significa, não o simples afã ou o simples
amor à sabedoria, mas a própria sabedoria.

E
aqui nos encontramos já com o primeiro problema: se a filosofia é o saber. Que
classe de saber é o saber filosófico? Porque há muitas classes de saber: há o
saber que todos temos sem ter aprendido nem refletido sobre nada; e há outro
saber, que é o que adquirimos quando o procuramos. Há um saber, pois, que
temos sem tê-lo procurado, que encontramos sem tê-lo procurado, como Pascal
encontrava a Deus sem procurá-lo; mas há outro saber que não temos senão quando
o procuramos, e que, se não o procuramos, não o temos.

 

4.  
A filosofia antiga.

 

Esta
duplicidade na palavra "saber" corresponde à distinção entre a simples
opinião e o conhecimento racionalmente bem fundado, com esta distinção entre a
opinião e o conhecimento fundamentado inicia Platão a sua filosofia. Distingue
o que ele chama doxa, opinião (a palavra doxa encontramo-la na bem conhecida
paradoxa, paradoxo, que é a opinião que se afasta da opinião corrente), e
frente à opinião, que é o saber que temos sem tê-lo procurado, coloca Platão a
episteme, a ciência, que é o saber que temos porque o procuramos. E então, a
filosofia já não significa "amor à sabedoria", nem tampouco significa
o saber em geral, qualquer saber; senão que significa esse saber especial que
temos, que adquirimos depois de tê-lo procurado e de tê-lo procurado
metòdicamente, por meio de um método, ou seja, seguindo determinados caminhos,
aplicando determinadas funções mentais à pesquisa. Para Platão o método da
filosofia, no sentido do saber reflexivo que encontramos depois de tê-lo
procurado propositalmente, é a dialética. Quer dizer, que quando não sabemos
nada, ou o que sabemos, o sabemos sem tê-lo procurado, como a opinião, é um
saber que não vale nada; quando nada sabemos mas queremos saber; quando
queremos aproximar-nos ou chegar a essa episteme, a este saber racional e
reflexivo, temos que aplicar um método para encontrá-lo, e esse método Platão o
chama dialética. A dialética consiste em supor que o que queremos averiguar é
tal coisa ou tal outra; isto é, antecipar o saber que procuramos, mas logo
depois negar e discutir essa tese ou essa afirmação que fizemos e depurá-la em
discussão.

Ele
chama, pois, dialética a esse método da autodiscussão, porque é uma espécie de
diálogo consigo mesmo. E assim, supondo que as coisas são isto ou aquilo, e
logo discutindo essa suposição para substituí-la por outra melhor, acabamos
pouco a pouco chegando ao conhecimento que resiste a todas as críticas e a
todas as discussões; e quando chegamos a uma conhecimento que resiste às
discussões dialogadas ou dialéticas, então temos o saber filosófico, a
sabedoria autêntica, a epistéme, como a chama Platão, a ciência.

Com
Platão, pois, a palavra "filosofia" adquire o sentido de saber
racional, saber reflexivo, saber adquirido mediante o método dialético.

Esse
mesmo sentido tem a palavra "filosofia" no sucessor de Platão,
Aristóteles. O que acontece é que Aristóteles é um grande espírito que faz
avançar extraordinariamente o cabedal dos conhecimentos adquiridos
reflexivamente. E então a palavra "filosofia" tem ja em Aristóteles o
volume enorme de compreender dentro do seu seio e de designar a totalidade dos
conhecimentos humanos. O homem conhece reflexivamente certas coisas depois de
tê-las estudado e pesquisado. Todas as coisas que o homem conhece e o
conhecimento dessas coisas, todo esse conjunto do saber humano, designa-o Aristóteles
com a palavra "filosofia". E desde Aristóteles continua
empre-gando-se a palavra "filosofia" na história da cultura humana
com o sentido da totalidade do conhecimento humano.                  .

Na
filosofia, então, distinguem-se diferentes partes. Na| época de Aristóteles a
distinção ou distribuição corrente das partes dá filosofia era: lógica, física,
metafísica e ética.

A
lógica, na época de Aristóteles, era a parte da filosofia que estudava os meios
de adquirir o conhecimento, os métodos do pensamento humano para chegar a conhecer
ou as diversas maneiras de que se vale para alcançar conhecimento do ser das
coisas.

A
palavra "física" designava a segunda parte da filosofia. A física era
o conjunto de nosso saber acerca de todas as coisas, fossem quais fossem. Todas
as coisas, e a alma humana entre elas, estavam dentro da física, por isso a
psicologia, para Aristóteles, formava parte da física, e a física, por sua vez,
era a segunda parte da filosofia.

A
ética era o nome geral com que se designava na Grécia, na época de Aristóteles,
todos os nossos conhecimentos acerca das atividades do homem; o que o homem é;
o que o homem produz, que não está na natureza, que não forma parte da física,
mas antes é feito pelo homem. O homem, por exemplo, faz o Estado, vai â guerra,
tem família, é músico, poeta, pintor, escultor; sobretudo é escultor para os
gregos. Pois tudo isto compreendia Aristóteles sob o nome de ética, uma de
cujas subpartes era a política.

 

Todavia
a palavra "filosofia" abrangia, repito, todo o conjunto dos
conhecimentos que o homem podia alcançar. Valia tanto como saber racional.

 

5.  
A filosofia da Idade Média,

 

Este
sentido da palavra "filosofia" continua através da Idade Média; mas
já no começo desta desprende-se desse totum revolutum, que é a filosofia de
então, uma série de pesquisas, de questões, de pensamentos, que ao separar-se
do tronco da filosofia, constituem uma disciplina à parte. São todos os
pensamentos, todos os conhecimentos que temos acerca de Deus, já os obtidos
pela luz natural, já os recebidos por divina revelação. Os nossos conhecimentos
acerca de Deus, e sobretudo os de origem revelada, se separam do resto dos
conhecimentos e constituem então a teologia.

Pode-se
dizer assim que o saber humano durante a Idade Média dividiu-se em doi| grandes
setores: teologia e filosofia. A teologia são os conhecimentos acerca de Deus,
e a filosofia os conhecimentos humanos acerca das coisas da Natureza e até
mesmo de Deus por via racional.

Nesta
situação a palavra "filosofia" continua designando todo conhecimento,
menos o de Deus. E assim adentrou muito o século XVII. E ainda existem no mundo
moderno alguns resíduos desse sentido totalitário da palavra
"filosofia". Por exemplo, no século XVII, o livro em que Isaac Newton expõe a teoria da gravitação universal, que é um livro de física, diríamos
hoje, leva por título Philosophiae, Naturalis Principia Mathematica, ou seja
"Princípios matemáticos da filosofia natural". Quer dizer, que na
época de Newton a palavra "filosofia" significava ainda o mesmo que
na Idade Média ou na época de Aristóteles: a ciência total das coisas.

Mas
ainda hoje em dia há um país, que é a Alemanha, onde as Faculdades
universitárias são as seguintes: a Faculdade de Direito, a Faculdade de
Medicina, a Faculdade de Teologia e a Faculdade de Filosofia. Que se estuda,
então, só com o nome de Faculdade de Filosofia? Tudo o que não é nem direito,
nem medicina, nem teologia, ou seja, todo o saber humano em geral. Numa mesma Faculdade se estuda, pois, na Alemanha, a química, a física, as
matemáticas, a ética, a psicologia, a metafísica, a ontologia. De sorte que
aqui fica ainda um resíduo do velho sentido da palavra "filosofia" na
distribuição das Faculdades alemãs.

 

6.  
A filosofia na Idade Moderna.

 

Mas
na realidade, a partir do século XVII, o campo imenso da filosofia começa a
partir-se. Começam a sair do seio da filosofia as ciências particulares, não
somente porque essas ciências vão se constituindo com seu objeto próprio, seus
métodos próprios e seus progressos próprios, como também porque pouco a pouco
os cultivadores vão igualmente se especializando.

Ainda
Descartes é ao mesmo tempo filósofo, matemático e físico. Ainda Leibniz é ao
mesmo tempo matemático, filósofo e físico. Ainda são espíritos enciclopédicos.
Ainda pode-se dizer de Descartes e de Leibniz, como se diz de Aristóteles,
"o filósofo", no sentido de que abrange a ciência toda de tudo quanto
pode ser conhecido. Talvez ainda de Kant possa se dizer algo parecido, embora
Kant já não soubesse toda a matemática que havia em seu tempo; Kant já não
sabia toda a física que havia em seu tempo; não sabia toda a biologia que havia
em seu tempo. Kant já não descobre nada em matemática, nem em física, nem em
biologia, enquanto que Descartes e Leibniz ainda descobrem teoremas novos em
física e em matemática.

Mas
a partir do século XVIII não resta nenhum espírito humano capaz de conter numa
só unidade a enciclopédia do saber humano; e então a palavra
"filosofia" não designa a enciclopédia do saber; desse total foram
desprendendo-se as matemáticas por um lado, a física por outro, a química, a
astronomia etc.

E
então que é a filosofia? Pois então a filosofia vem circunscrevendo-se ao que
resta depois de se ter tirado tudo isto. Se a todo o saber humano lhe tiram as
matemáticas, a astronomia, a física, a química etc. o que resta, isso é a
filosofia.

 

7.  
As disciplinas filosóficas.

 

De
modo que há um processo de desprendimento. As ciências particulares vão se
constituindo com autonomia própria e diminuindo a extensão designada pela
palavra "filosofia". Vão outras ciências saindo, e então, que resta?
Atualmente, de modo provisório e muito flutuante, poderemos enumerar do
seguinte modo. as disciplinas compreendidas dentro da palavra
"filosofia". Diremos que a filosofia compreende a ontologia, ou seja
a reflexão sobre os objetos em geral; e como uma das partes da ontologia, a
metafísica. Compreende também a lógica, a teoria do conhecimento, a ética, a
estética, a filosofia da religião, e compreende ou não compreende — não sabemos
— a psicologia e sociologia; porque justamente a psicologia e a sociologia
estão neste momento na alternativa de se separarem ou não da filosofia. Ainda
há psicólogos que querem conservar a psicologia dentro da filosofia; mas já há
muitos outros, e não dos piores, que querem constituí-la em ciência à parte,
independente. Pois o mesmo acontece com a sociologia. Augusto Comte, que foi
quem deu nome a esta ciência (e ao fazê-lo, como diz Fausto, deu-lhe vida),
ainda considera a sociologia como o conteúdo mais importante e seleto da filosofia
positiva. Mas outros sociólogos a constituem já em ciência à parte. Há
discussão. Não vamos nós resolver por enquanto esta discussão o assim diremos
que em geral todas as disciplinas e estudos que enumerei: a ontologia, a
metafísica, a lógica, a teoria do conhecimento, a ética, a estética, a
filosofia da religião, a psicologia e a sociologia, formam parte e constituem
as diversas províncias do território filosófico.

Podemos
perguntar-nos o que há de comum nessas disciplinas que acabo de enumerar; que é
o comum nelas que as faz incluir dentro do âmbito designado pela palavra
"filosofia"; que têm de comum para ser todas parte da filosofia. O
primeiro e muito importante que têm de comum é que todas são o resíduo desse
processo histórico de desintegração.

A História
pulverizou o velho sentido da palavra "filosofia". A História
eliminou do continente filosófico as ciências particulares. O que restou é a
filosofia. Esse fato histórico, apesar de ser somente um fato, é muito
importante. É já uma afinidade extraordinária a que mantém entre si essas
disciplinas, só pelo fato de serem os resíduos desse processo de desintegração
do velho sentido da palavra "filosofia".

Mas aprofundemos-nos
mais no problema. Por que ficaram dentro da filosofia essas disciplinas? Vou
responder a esta pergunta de uma maneira muito filosófica, que consiste em
inverter a pergunta. Como disse muitas vezes Bergson, uma das técnicas para
definir o caráter de uma pessoa consiste não somente em enumerar o que prefere,
mas também, e sobretudo, em enumerar o que não prefere; do mesmo modo, em vez
de perguntarmos por que sobreviveram filosoficamente estas disciplinas, vamos
perguntar-nos por que foram embora as matemáticas, a física, a química e as
demais. E se nos perguntarmos por que se desprenderam, encontramos o seguinte:
que uma ciência se desprendeu do velho tronco da filosofia quando conseguiu
circunscrever um pedaço no imenso âmbito da realidade, defini-lo perfeitamente
e dedicar exclusivamente sua atenção a essa parte, a esse aspecto da realidade.

 

8.  
As ciências e a filosofia.

 

Assim,
por exemplo, pertencem à realidade o número e a figura. As coisas são duas,
três, quatro, cinco, seis, mil ou duas mil; coisas são triângulos, quadrados,
esferas. Mas desde o momento em que se separa o "ser número", ou o
"ser figura", dos objetos que o são, e se convertem a numerosidade e
a figura (independentemente do objeto em questão) em termos do pensamento;
quando se circunscreve este pedaço de realidade e se consagra atenção especial
a ela, ficam constituídas as matemáticas como uma ciência independente e se
separam da filosofia.

Se
depois outro pedaço da realidade, como são, por exemplo, todos os corpos
materiais em suas relações recíprocas, se destacam como um objeto preciso de
pesquisa, então se constitui a ciência física.

Quando
os corpos, em sua constituição íntima, em sua síntese de elementos, se destacam
também como objetos de pesquisa, constitui-se a química.

Quando
a vida dos seres viventes, animais e plantas, se circunscreve e se separa do
resto das coisas que são, e sobre ela se lança o estudo e o olhar, então se
constitui a biologia.

O
que aconteceu? Pois aconteceu que grandes setores do ser em geral, grandes
setores da realidade, constituíram-se em províncias. E por que se constituíram em províncias? Pois precisamente porque prescindiram do
resto;   porque   deliberadamente   se   especializaram; porque deliberadamente
renunciaram a ter o caráter de objetos totais, isto é, que uma ciência deixa a
filosofia quando renuncia a considerar seu objeto de um ponto de vista
universal e totalitário.

A
ontologia não recorta na realidade um pedaço para estudá-lo, ela sozinha,
esquecendo o demais, mas antes tem por objeto a totalidade do ser. A
metafísica forma também parte da ontologia. A teoria do conhecimento refere-se
a todo conhecimento de todo ser.

Assim,
pois se agora fazemos uma pequena pausa, nos detemos em nosso caminho e
realizamos o que dizia no começo, ou seja uma tentativa de definição, embora
rápida, da filosofia, poderíamos dizer o seguinte, (e agora o diremos com plena
vivência): a filosofia é a ciência dos objetos do ponto de vista da totalidade,
enquanto que as ciências particulares são os setores parciais do ser,
províncias recortadas dentro do continente total do ser. A filosofia será,
pois, nesse primeiro esboço de definição — seguramente falso, seguramente esquemático,
mas que para nós agora tem sentido — a disciplina que considera o seu objeto
sempre do ponto de vista universal e totalitário. Enquanto que qualquer outra
disciplina, que não seja a filosofia, o considera de um ponto de vista parcial
e derivado.

 

9.  
As partes da filosofia.

 

Então
poderemos tirar desta pequena verificação, a que chegamos na nossa primeira
exploração panorâmica, uma divisão da filosofia que nos sirva de guia para
nossas viagens sucessivas.

Desde
já dizemos que a filosofia é o estudo de tudo aquilo que ó objeto de
conhecimento universal e totalitário. Pois bem: de conformidade com isto, a
filosofia poderá dividir-se em dois grandes capítulos, em duas grandes
ciências: um primeiro capítulo ou zona que chamaremos ontologia, na qual a
filosofia será o estudo dos objetos, todos os objetos, qualquer objeto, seja
qual for; e outro segundo capítulo no qual a filosofia será o estudo do
conhecimento dos objetos. De que conhecimento? De todo o conhecimento, de
qualquer conhecimento.

Teremos
assim uma divisão da filosofia em duas partes: primeiro, ontologia ou teoria
dos objetos conhecidos e cognoscíveis; segundo, a gnosiologia (palavra grega
que vem de gnósis, que significa sapiência, saber), que será o estudo do
conhecimento dos objetos. Distinguindo entre o objeto e o conhecimento dele,
teremos estes dois grandes capítulos da filosofia.

Dir-se-me-á:
vimos antes algo sobre disciplinas filosóficas que agora de repente estão
silenciadas. Falamos de ética, de estética, de filosofia da religião, de
psicologia, de sociologia. Será que essas disciplinas saíram já do tronco da
filosofia? Por que não as mencionamos? Com efeito, dentro do tronco da
filosofia ocupam-se ainda os filósofos atuais dessas disciplinas; mas
comparadas com as duas fundamentais que acabo de indicar — ontologia e
gnosiologia — advertimos já que nessas disciplinas existe uma certa tendência
a particularizar o objeto.

A
ética não trata de todo o objeto cogitável em geral, mas somente da ação
humana ou dos valores éticos.

A
estética não trata de todo o objeto cogitável em geral. Trata da atividade produtora da arte, da beleza e dos valores estéticos.

A
filosofia da religião também circunscreve o seu objeto. A psicologia e a
sociologia, mais ainda.

Por
isso é que estas ciências estão já saindo da filosofia. Por que não saíram
ainda da filosofia? Porque os objetos a que se referem são objetos que não são
fáceis de recortar dentro do âmbito da realidade. Não são fáceis de recortar
porque estão intimamente enlaçados com o que os objetos são em geral e
totalitàriamente; e estando enlaçados com esses objetos, as soluções que se
apresentam aos problemas propriamente filosóficos da ontologia e da gnosiologia
repercutem nessa lucubrações que chamamos ética, estética, filosofia da religião,
psicologia e sociologia. E como repercutem nelas, a estrutura dessas
disciplinas depende intimamente da posição que adotemos com respeito aos
grandes problemas fundamentais da totalidade do ser. Por isso estão ainda
incluídas na filosofia; mas já estão na periferia.


se discute, repito, se a psicologia é ou não uma disciplina filosófica. Já se
discute se o é a sociologia; em pouco se discutirá se a ética o é, e amanhã…
ou melhor, já hoje, há estetas que discutem se a estética é filosofia, e
pretendem convertê-la numa teoria da arte independente da filosofia.

Como
se vê, com essa primeira exploração pelo continente filosófico, conseguimos uma
visão histórica geral. "Vimos como a filosofia começa designando a
totalidade do saber humano e como dela se separam e desprendem ciências
particulares que saem do tronco comum porque aspiram à particularidade, ã
especialidade, a recortar um pedaço de ser dentro do âmbito da realidade. Então
restam no tronco da filosofia essa disciplina do ser em geral que chamamos
ontologia e a do conhecimento em geral que chamamos gnosiologia.

Nosso
curso, assim, vai ter um caminho muito natural. Nossas viagens vão constar duma
excursão pela ontologia, para ver o que é isso, em que consiste isso, como pode
falar-se do ser em geral; uma excursão pela gnosiologia, para ver que é isso de
teoria do conhecimento em geral; e depois algumas pequenas excursões por essas
ciências que se vão distanciando de nós: a ética, a estética, a psicologia e a
sociologia.

Antes,
porém, de entrar no primeiro estudo que vamos fazer da ontologia ou metafísica,
trataremos, logo a seguir de como nos orientar para filosofar, ou seja, do
método da filosofia.

 

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