cap. 15 – O Racionalismo – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição XV

O
RACIONALISMO

115. 
BALANÇO  DO  EMPIRISMO  INGLÊS.   —  116.   CRÍTICA  DO   EMPIRISMO INGLÊS:
A VIVÊNCIA COMO VEICULO DO PENSAMENTO.  — 117.  LEIBNIZ. — 118.
VERDADES DE PATO E VERDADES DE RAZÃO. — 119. GÊNESE DAS VERDADES.
— 120. RACIONALIDADE DA REALIDADE.

115.   
Balanço do empirismo inglês.

Na
lição anterior chegamos a fazer o balanço geral do empirismo inglês. Não
chegamos a tirar as conclusões que desta magna especulação psicológica, prolongada
durante mais de século e meio, podem extrair-se para nosso problema de teoria
do conhecimento e de metafísica, que são problemas indissolüvelmente unidos. É,
pois, necessário que tentemos agora, de início, esse balanço, essa liquidação
geral do empirismo inglês; ver que é aquilo com que o empirismo inglês
contribui positivamente ao problema metafísico, ao problema do conhecimento, e,
de outra parte, em que atrapalham os ingleses o reto caminhar para uma solução
desses problemas.

Se
quiséssemos resumir numa só expressão breve o mais essencial no ponto de vista
adotado pelo empirismo, teríamos que dizer que o empirismo é o esforço maior
que se conhece na história do pensamento humano para reduzir o pensamento a
pura vivência. Dito assim, parece que não se faz senão a comprovação de um fato
histórico; porém não é difícil advertir o que tal fato significa. Significa
em primeiro lugar o desconjuntamento que a filosofia inglesa leva a efeito dos
elementos articulados na unidade cio conhecimento.

A
descrição fenomenológica que fizemos do conhecimento nos revela que o
conhecimento é uma correlação entre um sujeito e um objeto mediante um
pensamento. Os elementos essenciais do conhecimento são o sujeito cognoscente
e o objeto conhecido; ambos em relação indissolúvel, e essa correlação se
sustenta sobre o gonzo do pensamento. Pois bem: o que faz o empirismo inglês é,
em primeiro lugar, desarticular entre si esses três elementos; tomar o elemento
pensamento e despojá-lo de toda relação com os outros dois. Essa relação com os
outros dois consiste principalmente em que o sujeito dá ao pensamento um
sentido; enuncia, acerca do objeto, uma tese.

O
caráter enunciativo, o caráter de menção, plena de sentido, que tem o
pensamento, desaparece para os ingleses, e resta o pensamento somente como pura
vivência. Esta é, a meu entender, a mais exata e mais profunda operação que os
ingleses levaram a efeito numa análise do conhecimento. Mas ao desarticular
desta forma o pensamento, do sujeito por um lado e do objeto pelo outro; ao
prescindir daquilo que todo pensamento tem de enunciativo, de tático, de tese
(afirmação ou negação acerca de algo); ao prescindir, pois, do caráter lógico e
da referência ontológica ao objeto, os ingleses tomam o pensamento como um puro
fato; como um puro fato da consciência; como algo dado aí; como um fato que
está aí. E se propõem, ao modo dos naturalistas, explicar como esse fato advém
e se produz em virtude de outros fatos anteriores.

Em
suma, se se me permitir o emprego de um neologismo que cada dia vai-se tornando
mais indispensável na filosofia atual, direi que os ingleses, convertendo o
pensamento em pura vivência, o tomam com seu caráter puramente
"fático", fazem dele um puro fato. A conseqüência$desta atitude — que
é clara desde Locke, embora este não a leve a suas últimas conseqüências, mas
Hume, sim — é primeiramente, a eliminação do objeto como coisa. Esta
eliminação do objeto como coisa leva-a a efeito Berkeley. Em segundo lugar a
eliminação do próprio sujeito como coisa. Esta eliminação leva-a a efeito Hume.
De modo que, de um lado, a noção de objeto se desvanece visto que o pensamento
é uma pura vivência, é um fato, e esse fato não é mais referido a nenhum objeto
fora dele, nem a nenhum sujeito que o forje ou que o crie. Apresenta-se o
pensamento como um puro fato psicológico.

Que
se propõem com isto os ingleses? Propõem-se algo de suma importância:
propõem-se a acabar com a noção de coisa em si mesma Com efeito, a raiz
profunda do idealismo, desde o próprio Descartes, é eliminar do tabuleiro
filosófico essa noção de coisa em si mesma. Não há coisas em si mesmas. Aquilo
que chamamos as coisas são os termos de nossas vivências, são os objetos
intencionais de nossas vivências. Assim é que nisto os ingleses deram um passo
de extraordinária importância para toda a história do pensamento moderno
insistindo sobre a impossibilidade, sobre o absurdo de pensar uma coisa em si
mesma. O absurdo o expõe em duas palavras e com uma precisão matemática
Berkeley quando adverte que pensar uma coisa em si mesma é uma contradição,
porque é pensar uma coisa enquanto que não é pensada. Segundo os idealistas,
coisa em si é coisa não pensada por ninguém; e pensar a coisa não pensada por
ninguém é uma contradição.

Por
conseguinte, o empirismo inglês chega a ser a forma mais plena, mais completa
do idealismo psicológico. Este idealismo psicológico consiste: primeiro, em
desconjuntar o ato do conhecimento que compreende estes três termos: sujeito,
pensamento, objeto, e não tomar como termo de pesquisa filosófica mais que o
pensamento mesmo; segundo, em negar toda realidade "em si" ao objeto
e no sujeito. Não resta, pois, como realidade "em si" nada mais que o
pensamento, nada mais que a idéia, nada mais que a impressão, segundo a
terminologia de Hume. E daqui a resposta à pergunta metafísica: quem existe?
Se não existe o sujeito, se não existe o objeto, não existe mais que o
pensamento como vivência; o pensamento desligado daquilo a que se refere e
daquele que o refere a isso. Por conseguinte, o que chamamos "realidade"
é uma mera crença, forjada pela combinação ou associação dos pensamentos, das
idéias: é outro fato que se deduz dos fatos chamados pensamentos. E aquilo que
chamamos o eu ou a alma é também uma mera hipótese, na qual acreditamos pelas
mesmas razões de hábito e de costume pelas quais acreditamos na existência do
mundo exterior. Resta somente como última realidade, a resposta suprema à
pergunta metafísica: quem existe? seria, pois, esta: as vivências e mais nada.

Encontramo-nos
aqui com um positivismo, com um fenomenalismo, com um sensualismo — como queira
chamar-se — que ao que mais se parece é a posição positivista de alguns
filósofos alemães moderações. Esses objetos são as realidades físicas. Com
essas sensações mais nada. Segundo isto, há somente duas ciências universais:
uma ciência das sensações para cá (a psicologia); outra ciência das sensações
para lá (a física). Com as sensações, aliando-se umas às outras, em
combinações e associações sintéticas várias, compomos isso que chamamos os
objetos que não são mais do que sínteses de sensações. Esses objetos são as
realidades físicas. Com essas sensações fazemos ao mesmo tempo o sujeito; e
essas sensações, olhando para a composição sintética que chamamos sujeito,
produzem a psicologia. A psicologia é, pois, (como o é, com efeito, para
Ernestc Mach), a face que olha para cá desta realidade que são as verdade?
puras; enquanto que a face que olha para lá é a composição objetivadora disso
que se chama a física.

116.  
Crítica do empirismo inglês; a vivência como veículo do pensamento.

 Este
é o balanço que podemos fazer em linhas gerais do empirismo inglês. Que juízo
podemos nós agora emitir sobre esta teoria? Que devemos pensar sobre esta
teoria do empirismo inglês? Adverte-se de início que o empirismo inglês
arruina por completo o essencial do conhecimento. O empirismo inglês priva ao
conhecimento de base e de sentido. Com efeito, o empirismo elimina do pensamento
aquilo que tem de lógico. E que é aquilo que o pensamento tem de lógico? Aquilo
que o pensamento tem de lógico é o que tem de enunciativo, ou, como se pode
dizer também, de tético, de tese, de afirmação ou negação de algo. Todo
pensamento é, com efeito, uma vivência; mas, além de uma vivência, todo
pensamento é uma vivência que diz, que põe, que afirma ou que nega algo do
objeto; e o afirma ou o nega do objeto com sentido. Que significa "com
sentido"? Significa que esta enunciação, esta tese, esta afirmação que faz
o pensamento, tem um valor objetivo; quer dizer, que aquilo de que o diz, tem
um ser; que esse ser "é", e que esse ser constitui o termo natural do
conhecimento. Os ingleses acham que o pensamento tem duas faces, dois rostos:
uma que é a da vivência pura e outra que é a enunciativa de algo; uma em que o
pensamento é modificação puramente psicológica na consciência; a outra em que o
pensamento assinala e afirma ou nega algo de algo, a parte enunciativa. E por
que prescindem da parte enunciativa? Porque os cega o caráter vivencial do
pensamento e não percebem que no conhecimento a vivência não é, para o sujeito,
senão um trampolim, uma espécie de base, por meio da qual o sujeito,
apoiando-se na vivência, quer enunciar algo acerca de algo. Tomemos, por
exemplo, a crítica clássica que Berkeley faz do conceito geral, Berkeley diz:
os conceitos gerais não existem; o triângulo não existe; o triângulo é
unicamente um nome, fia-lus voeis; com o qual o empirismo renova o nominalismo
da Idade Média. Pois bem; como mostra, como demonstra, como explica Berkeley o
que ele quer dizer? Demonstra-o com uma argumentação que parece muito
convincente. Diz: "A prova de que o triângulo não existe é esta: tentem —
convida aos leitores — realizar a idéia do triângulo; tentem imaginar esse
triângulo e não poderão, porque imaginarão um triângulo que será isósceles ou
escaleno necessariamente; porque ao mesmo tempo não pode ser ambas as coisas;
e todavia, a palavra, o nome, o nome de triângulo refere-se a algo que teria
que ser ao mesmo tempo isósceles e escaleno. Pois bem: não o podem realizar,
não o podem imaginar, não o podem desenhar; não é possível que se dê na
natureza nenhum triângulo ao mesmo tempo isósceles e escaleno. Logo triângulo é
um simples nome."

Que
acontece aqui? Simplesmente que, hipnotizado pela vivência pura, esqueceu
Berkeley que essa imagem que nos convida a realizar não é o pensamento mas a
vivência, e que por cima dessa vivência, o que realmente chamamos pensamento é
aquilo que a vivência enuncia. É claro que não podemos imaginar um triângulo
que não seja nem escaleno nem isósceles; terá que ser uma das duas coisas. Mas
é que o triângulo que imaginamos não é o triângulo que pensamos, antes o
triângulo que imaginamos serve-nos de trampolim sobre o qual necessariamente
fazemos a enunciação lógica, a enunciação racional. O pensamento racional não é
a imagem com a qual pensamos racionalmente. A imagem ou a vivência com a qual
pensamos, ou seja enunciamos, não pode confundir-se de modo algum com a
própria enunciação. A imagem ou a vivência é uma coisa, e o mencionado, o
indicado, o aludido pela imagem ou vivência é outra muito distinta. O
pensamento é o aludido, o mencionado pela imagem e a vivência; aquilo, para
exprimir o qual, a imagem e a vivência necessariamente servem. Isto que a
imagem e a vivência querem dizer é o aspecto enunciativo, racional, lógico,
puro, do pensamento, que os ingleses não viam porque estavam hipnotizados pelo
caráter vivencial mesmo. O caráter vivencial mesmo é um fato psicológico, concreto,
determinado. Eu, com efeito, se me proponho realizar imaginativamente o
triângulo, não posso realizá-lo mais que ou isósceles ou escaleno. Mas é que
aquilo que eu chamo pensamento não é somente a vivência, mas a vivência
enquanto que serve de sinal para designar além dela mesma uma enunciação
intelectual, que não poderia ser designada mais que pelos meios limitados,
psicológicos, de uma vivência. Porém a vivência não está aí mais que como
representante daquilo a que se refere: a enunciação pura.

Havendo
eliminado, pois, o empirismo este caráter enunciativo, lógico, do pensamento,
suprimiu a objetividade do conhecimento. Suprimiu de um golpe a objetividade
do conhecimento porque suprimiu toda referência ao objeto. Aqui os empiristas
cometem exatamente o mesmo erro, porém em outro plano. Eles querem anular o ser
em si, anular a coisa em si, e com isso a pretensão de que as coisas existem
independentemente de que sejam ou possam ser conhecidas por ninguém, pretensão
sem sentido se tratasse de instalar como tal coisa em si um objeto impensável,
visto como, somente dizer objeto impensável é já pensá-lo de certo modo. Porém
ao querer anular o ser em si das coisas, resulta que anulam todo o ser das
coisas; como se não houvesse entre ser em si e não ser um termo médio. Eles
acreditam que ou a coisa é em si ou não ó em absoluto. Porém há um modo de ser que não é o ser somente em si. O "em si" ó aqui o importante. Há um modo de ser que precisamente é o ser no conhecimento e para o
conhecimento, na correlação do conhecimento; um ser que não é o ser somente em
si, mas que não é zero de ser, antes é um ser posto, proposto; melhor dito, o
ser do conhecimento.

Os
ingleses cometem este erro e se não o reconhecem é porque no fundo conservam um
resíduo de realismo. No fundo não conseguiram afastar-se por completo do
realismo aristotélico. E qual ó esse resíduo de realismo que levam dentro do
corpo sem perceber que o levam? Pois muito simplesmente: acreditar que não há
mais do que o ser em si. Mas então, como continuam pensando o ser sob a espécie
realista do ser em si; como continuam’ conservando, como resíduo do realismo,
o "em si", não encontram, no objeto, naturalmente, nenhum "em
si"; e então tiram-lhe todo ser, sem compreender que isto não é possível.
O mesmo se passa no sujeito. Hume faz análise; encontra que não há impressão
que corresponda ao eu e que não há eu "em si", e tira a conclusão:
então não o há em absoluto. E agora, que fazem? Conservam o "em si"
no pensamento, nas vivências. As vivências são para eles coisas em si mesmas.
Por isso Berkeley e Hume dizem: nós não estamos em contradição com o ponto de
vista ingênuo de todo mundo; dizemos que esta lâmpada existe, dizemos que este
papel existe, porque existir é ser percebido. E é que injetaram na vivência o
caráter da coisa realista que tem em Aristóteles a coisa. Em Aristóteles o
"em si" tínham-no as coisas, e eles puseram-no na vivência e
tiraram-no do objeto e do sujeito. Porém isto é um resíduo de realismo.

Então,
que vai acontecer aqui? Pois acontece que vai ser preciso que venha_ alguém que
advirta, que veja que há uma modalidade do ser que não é nem o ser em si nem o
nada, mas uma modalidade do ser que consiste em ser objeto para um sujeito. Na
correlação irrompível do conhecimento o ser do objeto não ó um ser em si. Mas uma coisa é que não seja um puro ser em si e outra coisa é que não seja. Qual será
este ser? Será um ser lógico, um ser posto para ser conhecido, um ser proposto,
um ser problema. Por isso podemos acentuar o dito de Berkeley, de que ser é ser
percebido. Mas uma vez que o ser é percebido, uma vez que esta lâmpada é o
termo de minha percepção desta lâmpada, que é esta lâmpada como objeto de
conhecimento? Está aqui como ser percebido, mas ser conhecido é outra coisa; e
o ser do conhecido é um ser conhecido. Esse ser conhecido, que não é em si,
mas que é mais e distinto do ser percebido, isso é o que haverá que esperar que
chegue Kant para que nos explique bem o que é.

117.      Leibniz.

     

Mas
antes que chegue Kant tem que se lhe abrir, tem que se lhe preparar o caminho,
tem que se lhe dar os elementos para solução deste problema difícil. Estes
elementos para a solução estão em parte aí: as análises destrutivas de Hume.
Mas faltam outros elementos; falta uma acentuação nova, uma explicação clara
dos elementos racionais puros, puramente intelectuais que há no pensamento e
no conhecimento. Essa explicitação, essa "elaboração do racional no
pensamento será necessária para que Kant possa trabalhar; e vai ser
Leibniz quem vai proporcionar as bases para Kant.

Leibniz
é um grande espírito. É um dos filósofos mais consideráveis que conheceu a
humanidade. É um dos homens de quem com maior razão se pode dizer que são
cabeças enciclopédicas. Está realmente à altura de um Aristóteles ou de um
Descartes. No seu tempo teve uma autoridade científica indiscutida, não somente em filosofia, mas também em física, em matemática, em jurisprudência em teologia. Em tudo aquilo em que ele pôs a mão alcançou os mais altos cumes do saber, da
meditação, da percepção lógica no desenvolvimento do seu pensamento.

Pois
bem: Leibniz, que viveu na segunda metade do século XVII, teve a percepção
claríssima de onde se encontrava a falha, ou defeito, o ponto fraco do
empirismo inglês; e isso apesar de não conhecer do empirismo inglês nada mais
que a obra de Locke. Todavia, bastou-lhe o conhecimento da obra de Locke para
chegar logo logo ao ponto central onde estava a originalidade, mas ao mesmo
tempo a falha, o perigo do empirismo inglês. Viu imediatamente que o erro do
empirismo consistia no seu intento de reduzir o racional a fático; a razão a
puro fato. Porque há uma contradição fundamental nisso: se a razão se
reduz a puro fato, deixa de ser razão; se o racional se converte em
fático, deixa de ser racional, porque o fático é aquilo que é sem razão de ser,
enquanto que o racional é aquilo que é razoavelmente; quer dizer, não podendo
ser de outra maneira. Por conseguinte, viu imediatamente, com uma grande
clareza, que o defeito fundamental de todo psicologismo, ao considerar o
pensamento como vivência pura, é que o racional se convertia em puro fato, quer
dizer, deixava cair sua racionalidade como um adminículo inútil. Porém
não existe nada mais contraditório que isso: que o racional deixe cair sua
racionalidade, porque então o que resta é o irracional.

118.      Verdades de fato e verdades
de razão.

Assim,
pois, o ponto de partida de Leibniz é este ponto central, desde as primeiras
linhas do livro que consagra a refutar a Locke. Locke tinha escrito Ensaios
sobre o entendimento humano; Leibniz leu esse livro, estudou-o a fundo e depois
redigiu umas notas que se publicaram com o título de Novos ensaios sobre o
entendimento humano, após a morte de Locke. As primeiras linhas deste livro
começam, desde logo, levantando o problema no seu ponto central: distinguindo
verdades de razão e verdades de fato. O conhecimento humano compõe-se de umas
verdades que chamamos "de razão" e de outras verdades que chamamos
"de fato", vérités de fait; vérités de raison. Em que se distinguem
umas das outras? As verdades de razão são aquelas que enunciam que algo é de
tal modo, que não pode ser mais que desse modo; ao contrário, as verdades de
fato são aquelas que enunciam que algo é de certa maneira, mas que poderiam ser
de outra. Em suma: as verdades de razão são aquelas verdades que enunciam um
ser ou um consistir necessário, enquanto que as verdades de fato são aquelas
verdades que enunciam um ser ou um consistir contingente. O ser ou o consistir
necessário é aquele ser que é aquilo que é, sem que seja possível conceber-se
sequer que seja de outro modo. Assim o triângulo tem três ângulos e é
impossível conceber que não os tenha; assim todos os pontos da circunferência
estão igualmente afastados do centro e é impossível conceber que seja de outro
modo. Pelo contrário, se dizemos que o calor dilata os corpos, é assim: o calor
dilata os corpos; mas poderia ocorrer que o calor não dilatasse os corpos. As
verdades matemáticas, as verdades de lógica pura, são verdades de razão; as
verdades da experiência física são verdades de fato; as verdades históricas são
verdades de fato.

Corresponde
nitidamente esta divisão à divisão que fazem os lógicos entre os juízos
apodícticos e os juízos assertórios. Juízos apodícticos são aqueles juízos em
que o predicado não pode ser outra coisa que predicado do sujeito; ou, dito de
outro modo, em que o predicado pertence necessariamente ao sujeito, como
quando dizemos que o quadrado tem quatro lados. Todas as proposições
matemáticas são deste tipo. Juízos assertórios, ao contrário, são aqueles
juízos em que o predicado pertence ao sujeito; porém o pertencer ao sujeito não
é de direito, mas de fato. Pertence ao sujeito, com efeito, mas poderia não
pertencer, como quando dizemos que esta lâmpada é verde. Que esta lâmpada é
verde, é algo que está certo; porém é uma verdade de fato, porque poderia ser
igualmente rosa.

O
problema que se propusera Locke era o problema da .origem das idéias, da origem
das vivências complexas. Esse problema se propõe também Leibniz, mas partindo
desta distinção: verdades de fato, verdades de razão. E em primeiro lugar as
verdades de razão. As verdades de razão, podem ser oriundas da experiência? De
maneira nenhuma. Como vão ser as verdades de razão oriundas da experiência! Se
as verdades de razão fossem oriundas da experiência, seriam oriundas de fatos,
porque a experiência são fatos. E se fossem oriundas de fatos, as verdades de
razão seriam verdades de fato; quer dizer, não seriam razão, não seriam
verdades de razão, seriam tão contingentes, tão casuais, tão acidentais como
são as mesmas verdades de fato. Por conseguinte, é inútil pensar-se que as
verdades de razão possam origínar-se na experiência.

119.  
Gênese das verdades.

Então
conclui-se que são inatas. Inatas? Por que não? Explicaremos o que queremos
dizer quando dizemos que as verdades de razão são inatas. Por inatas não queremos
dizer que as crianças nascem no mundo sabendo geometria analítica. Não; isto
não. Inato não quer dizer que estejam totalmente impressas no nosso intelecto,
no nosso , espírito, na nossa alma, estas verdades; quer dizer que estão
virtualmente impressas. Inato quer dizer, pois, germinativamente,
seminalmente; como numa semente ou num germe encontram-se estas idéias no
espírito, constituem o próprio espírito. No curso da vida, do espírito, essas
idéias se desenvolvem, se explicitam, se formulam, se separam umas das outras;
estabelecem-se e formam-se em sua relação. A matemática surge, a matemática se
aprende. Mas, que é aprender matemática? Aprender matemática não é algo que se
pareça em nada à comunicação que um homem possa fazer a outro de uma verdade de
fato. Se alguém vem e me diz: "O roseiral do seu jardim floresceu",
este é um novo conhecimento de fato que entra em mim. Porém, não se aprende assim matemáticas. Aprender matemáticas consiste em que as
matemáticas latentes que estão em cada um saiam à superfície, que cada um
descubra as matemáticas. E o próprio Leibniz, nos seus Novos ensaios, lembra a
teoria da reminiscência, de Platão, aquele diálogo em que Sócrates chama a um escravo jovem, Mênon, para demonstrar a seus ouvintes que esse rapaz
também sabia matemáticas sem as ter aprendido, porque as matemáticas surgem,
nascem no espírito por puro desenvolvimento dos germes racionais que estão
nele.

Neste
sentido seminal, genético, germinativo, pode dizer-se que as verdades de razão
são inatas. Mas, naturalmente, não no sentido ridículo de pensar que um
ignorante, que um menino já sabe geometria. Porém, qualquer homem pode vir a
conhecê-la e não precisa para isso da experiência, mas somente do
desenvolvimento desses germes já exi:i tentes. Expressa isto Leibniz de uma
maneira perfeita, clara, quando propõe que ao lema fundamental dos empiristas,
ao velho adágio latino, aristotélico de Nihil est in intellectu quod non prius
fuerit in sensu (ou seja: "nada há no entendimento que não tenha estado
antort nos sentidos"), se acrescente: Nisi inteilectus ipse. Nada há no
intelecto que não tenha estado antes nos sentidos, a não ser o próprio intelecto
com suas leis, com seus germes, com todas essas possibilidades de
desenvolvimento que não necessitam mais que desenvolver-se no contacto com a
experiência.

Em
suma: a teoria de Leibniz sobre a origem da verdade de razão descobre aquilo
que, a partir dele, e sobretudo em Kant, vamos chamar a priori. A priori é um
termo latino que quer dizer, nesses arrazoados filosóficos, independente da
experiência. Diremos, pois, que as verdades de razão são a priori,
independentes da experiência, são prévias à experiência, ou, melhor dito,
alheias a elas, se desenvolvem florescendo dos germes que há em nosso
espírito, sem necessidade de ter sido impressas em nós pela experiência, a
qual não poderia imprimi-las, porque aquilo que imprime em nós são os fatos, e
os fatos são sempre contingentes, nunca necessários.

Depois
das verdades de razão vem o estudo das verdades de fato. As verdades de fato
sim, são oriundas da experiência; não têm outra origem; são, com efeito,
produzidas pelas experiências; estão impressas em nós por meio da percepção
sensível. São verdades como essas que dizíamos antes: essa lâmpada é verde.
Essas verdades, porém, que são, com efeito, contingentes, que não são
necessárias, nem por isso carecem de certa objetividade; são objetivas,
enunciam também aquilo que o objeto é, dizem-nos a consistência do objeto.
Porém isso que o objeto é, essa consistência do objeto, que é, com efeito, o
conteúdo das verdades de fato, constitui um conhecimento de segunda ordem, um
conhecimento inferior. O ideal do conhecimento é o conhecimento necessário, o
conhecimento que nos fornecem as verdades de razão. Mas as de fato não deixam
de ter certa objetividade, porque, com efeito, assim são as coisas. Esta
lâmpada é com efeito, verde; há, pois, certa objetividade nesse conhecimento.
Donde vem a objetividade a este conhecimento das verdades de fato? Vem-lhe de
que todas as verdades de fato se sustentam em um princípio de razão. As
verdades de fato têm uma base no princípio de razão suficiente. Uma verdade de
fato está fundada enquanto podemos procurar e dar razão de por que é assim.
Esta lâmpada é verde, mas poderia ser rosa. Se é verde, é por algo; é porque
quem a fez, a fez verde; e a fez verde por algo: porque lho mandaram; e lho
mandaram por algo: porque o freguês o pedira; e o freguês o pedira por algo, e
assim sucessivamente. De modo que se considerarmos que cada uma das verdades
de fato está fundada em um princípio de razão suficiente, e se prolongarmos a
série de razões suficientes a cada uma das causas das verdades de fato até
bastante longe, cada prolongamento será mais uma garantia da objetividade
dessas verdades de fato. O ideal seria chegar a uma causa que não necessitasse
por seu turno da aplicação do princípio de razão suficiente, mas que fosse uma
causa que constituísse já, dentro de si, a necessidade; quer dizer^ que fosse
ao mesmo tempo um fato e uma verdade de razão. Tal causa é Deus. Por conseguinte,
em Deus não há verdades de razão e verdades de fato: todas são verdades de
razão. Em Deus desapareceria a distinção entre verdades de fato e verdades de
razão, porque como Deus conhece atualmente toda a série infinita de razões
suficientes que fizeram que cada coisa seja aquilo que é, como Deus conhece
toda essa série de razões de ser como são as coisas, nenhum juízo é nele
assertórico e puramente contingente, mas é necessário. Como ele conhece toda a
série infinita atualmente, para ele o contingente deixa de sê-lo e se
transforma em necessário. A verdade de fato deixa de ser verdade de fato e se
transforma em verdade de razão. Então surge diante de nós um conhecimento real,
puro, um ideal de conhecimento, que consiste em aproximar-nos o mais possível
desse conhecimento divino, que consiste em cumular tal quantidade de séries de
conhecimentos nos princípios de razão suficiente de cada coisa, que a coisa
esteja apoiada cada vez mais em razões suficientes e vá devindo cada vez mais
uma verdade necessária, uma verdade de razão, em lugar de ser uma verdade de
fato.

120.  
Racionalidade da realidade.

Há,
pois, para Leibniz um, ideal de conhecimento que é o ideal da pura
racionalidade; e entre esse ideal de conhecimento plenamente realizado na
lógica e nas matemáticas e o conhecimento um pouco inferior das verdades de
fato que estão na física; entre esse ideal e essa inferior realidade do
conhecimento humano, não há um abismo, mas, pelo contrário, uma série de
transições contínuas, uma continuidade de transições de tal sorte que o esforço
do conhecimento há de consistir em tornar cada vez mais vastos territórios de
verdades de fato em verdades de razão. Como? Introduzindo as matemáticas na
realidade. O conhecimento será cada vez mais profundamente racional quanto mais
for matemático. E Leibniz o comprova inventando o cálculo infinitesimal, que
faz dar um salto formidável ao conhecimento de fato da natureza e converte
grandes setores da física em conhecimento racional puro. Leibniz descobre
precisamente o cálculo infinitesimal por aplicação desse princípio da
continuidade entre o real e o ideal; da continuidade entre a verdade de fato,
levada uma atrás da outra, e a verdade de razão. A relação que existe entre a
verdade de fato, com todos os antecedentes de razão suficiente que a sustentam,
e a verdade d;> razão, é exatamente a mesma que há entre uma reta e a curva.
Não existe tampouco um abismo entre a reta e a curva, porque, que é uma reta
senão uma curva de raio infinito? E que é um ponto, senão uma circunferência de
raio infinitamente pequeno? Vemos como entre o ponto, a curva e a reta não
existem abismos de diferença, mas, de um certo ponto de vista especial, que
consiste em considerar tudo como gerado, como gerando-se na pura racionalidade
dos germes lógicos que há em nosso espírito, existo um trânsito contínuo entre
o ponto, a curva e a reta. Daí que possa esse trânsito escrever-se numa função
matemática; numa função de cálculo integral e diferencial, de cálculo infinitesimal,
sendo o ponto simplesmente uma circunferência de raio mínimo, tão pequeno
quanto se queira, de raio infinitamente pequeno; sendo a curva um pedaço de
circunferência de raio finito, constante, e sendo a reta um pedaço de
circunferência de raio infinitamente longo, infinitamente extenso.

Estas
considerações foram as que levaram Leibniz a pensar que um mesmo ponto, quer se
considere pertencente à curva, quer se considere pertencente à tangente dessa
curva, esse ponto, um e o mesmo ponto, tem definições geométricas diferentes
segundo seja considerado como ponto da curva ou como ponto da tangente à curva.
E então só faltará encontrar a fórmula que defina cada ponto em função do todo.
E foi precisamente a procura dessa fórmula que levou Leibniz à descoberta do
cálculo infinitesimal, com o qual uma enorme zona de verdades físicas, de fato,
ingressam de pronto no corpo das verdades matemáticas, de razão.

Veja-se
como ele próprio aplica aqui as conseqüências de suas convicções e mostra,
pelo fato, que, com efeito, o ideal da racionalidade do conhecimento é um ideal
do qual vai-se aproximando a ciência concreta dos fatos físicos, cuja assíntota
mais ou menos longínqua é converter-se em ciência racional pura. Pois bem: esta
realidade deste conhecimento racional, o objeto deste pensamento racional, a
realidade pensada racionalmente por Leibniz, qual é? Depois da teoria do
conhecimento que acabamos de examinar, qual é a metafísica que Leibniz tira
desta teoria do conhecimento? É a resposta que Leibniz dá à nossa pergunta
metafísica primordial: quem. existe? resposta que examinaremos na lição
seguinte.

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