Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares
Lição XIX
O IDEALISMO DEPOIS DE KANT
161.
REALISMO E IDEALISMO. — 162. O «EM SI» COMO ABSOLUTO INCONDI-CIONADO. — 163.
PRIMAZIA DA MORAL. — 104. A FILOSOFIA PÓS-KANTISTA. — 165. FICHTE E O EU
ABSOLUTO. — 166. SCHELLING E A IDENTIDADE ABSOLUTA. — 167. HEGEL E A RAZÃO
ABSOLUTA. — 168. A REAÇÃO POSITIVISTA. — 169. O RETORNO A METAFÍSICA.
161.
Realismo e Idealismo.
Havíamo-nos
proposto o problema fundamental de toda a metafísica: o problema de que é o que
existe? E seguimos as respostas que a esse problema se deram nas duas direções
fundamentais que conhece o pensamento na história filosófica: a direção
realista e a direção idealista.
Vimos,
pois, primeiramente, as tentativas que na Antigüidade grega se fizeram para
responder a essa pergunta, e que conduziram todas elas à forma mais perfeita de
realismo, a qual se encontra; na filosofia de Aristóteles. Depois vimos que
essa mesma pergunta obtém resposta completamente diferente na filosofia moderna
que se inicia com Descartes, e que a propensão idealista, que consiste em
responder à pergunta acerca da existência com uma resposta totalmente
diferente daquela que dá Aristóteles, desenvolve-se na filosofia moderna e
chega à sua máxima realização, à sua máxima explicitação, na filosofia de Kant.
O
realismo, cujo expoente máximo é Aristóteles, deu à nossa pergunta a resposta
espontânea, a resposta ingênua, natural, que o homem costuma dar a essa
pergunta. Porém a deu sustentada em todo um aparelho de distinções e conceitos
filosóficos que se foram formando durante os séculos da filosofia grega.
Aristóteles respondeu à nossa pergunta assinalando as coisas que percebemos em
torno de nós, como sendo aquilo que existe. As coisas existem e o mundo formado
por todas elas é o conjunto das existências reais. A essas existências reais
deu Aristóteles o nome de substância. Substância é cada uma das coisas que
existem. As substâncias não somente são no sentido existencial, mas, ademais,
têm uma consistência, têm uma essência. E, além da essência, ou seja daqueles
caracteres que fazem delas as substâncias que são, têm também acidentes, ou
seja, aqueles outros caracteres que as modificam e finalmente as singularizam
dentro da essência geral. Junto a isto, Aristóteles estuda também o conhecimento.
Nós conhecemos essas substâncias, e o conhecimento consiste em duas operações.
A primeira: formar conceito das essências, quer dizer, reunir em unidades
mentais, chamadas conceitos, os caracteres essenciais de cada substância. A
segunda operação do conhecimento consiste, quando já temos conceitos, em
colocar sob cada conceito todas as percepções sensíveis que temos das coisas.
Conhecer uma coisa significa, pois, encontrar no repertório de conceitos já
formados aquele conceito que possa predicar-se dessa coisa. Se a isto se
acrescentam logo os caracteres acidentais, individuais, da substância, então
chegamos ao conhecimento pleno, total, absoluto da realidade. Em terceiro
lugar, Aristóteles considera o eu que conhece como uma substância dentre as
muitas que há e que existem, só que esta substância é uma substância racional.
Entre seus caracteres essenciais está o pensar, a faculdade de formar conceitos
e de colocar as percepções sob cada um desses conceitos, a faculdade de
conhecer.
Em frente
a esta metafísica realista de Aristóteles conhecemos "agora a nova atitude
idealista, inaugurada por Descartes, e que chega, em Kant, à sua máxima
explicitação.
Para
o idealismo o que existe não são as coisas, mas o pensamento; é este que
existe, visto que é o único de que eu tenho imediatamente uma intuição. Pois
bem; o pensamento tem isto de particular: que se alarga ou se estica, por assim
dizer numa polaridade. O pensamento é, de uma parte, pensamento de um sujeito
que o pensa, e de outra, é pensamento de algo pensado por este sujeito; de modo
que o pensamento é essencialmente uma correlação entre o sujeito pensante e o
objeto pensado. Esse pensamento, assim, nessa forma, por ser precisamente
correlação, relação inquebrantável entre sujeito pensante e objeto pensado,
elimina necessariamente a coisa ou substância "em si mesma". Não há
nem pode haver no pensamento nada que seja "em si mesmo", visto que o
pensamento é essa relação entre um sujeito pensante e um objeto pensado.
Esta
posição custou dois séculos de meditações filosóficas, a partir de Descartes,
até chegar a uma plena clareza sobre ela. Porque em Descartes, nos ingleses
sucessores de Descartes, em Leibniz, durante todo o século XVII e grande parte
do XVIII, continua palpitante, inextinguível a idéia da coisa em si, ou seja a
idéia da existência de algo que existe e que é, independentemente de todo
pensamento e independentemente de toda relação. Assim é que a grande
dificuldade com que tropeçaram os primeiros leitores de Kant foi compreender
sua posição de que o pensamento é, ele próprio, uma correlação entre sujeito
pensante e objeto pensado. E a dificuldade estava em que subsistia ainda neles
esta propensão realista que consiste em querer que o objeto pensado seja
primeiro objeto e depois pensado. E para Kant não é assim, antes o objeto
pensado é objeto quando e porque é pensado; o ser pensado é aquilo que o
constitui como objeto. Isso é o que significa todo o sistema kantiano das
formas de espaço, tempo e categorias que registramos. A atividade do pensar é a
que cria o objeto como o objeto pensado. Não é, pois, que o objeto seja,
exista, e depois chegue a ser pensado (que isto seria o resíduo de realismo
ainda palpitante em Descartes, nos ingleses e em Leibniz) mas antes a tese
fundamental de Kant estriba-se nisto: em que objeto pensado não significa
objeto que primeiro é e que depois é pensado, mas objeto que é objeto porque é pensado,
e o ato de pensá-lo é ao mesmo tempo o ato de objetivá-lo, de concebê-lo como
objeto e dar—lhe a qualidade de objeto. E do mesmo modo no outro extremo da polaridade
do pensamento, no extremo do sujeito; não é que o sujeito seja primeiro e por
ser seja sujeito pensante. Tal foi o juízo de Descartes. Descartes crê que tem
de si mesmo uma intuição, a intuição de uma substância, um de cujos atributos é
o pensar. Para Kant, pelo contrário, o sujeito, a substância é também um
produto do pensamento. De modo que o sujeito pensante não é primeiro sujeito e
depois pensante, mas é sujeito na correlação do conhecimento porque pensa e em
tanto e quanto que pensa. Desta maneira Kant elimina totalmente o último
vestígio de "coisa em si", vestígio de realismo que ainda perdurava
nas tentativas da metafísica idealista do século XVII e XVIII.
162.
O "em si" como absoluto incondicionado.
Mas
ao mesmo tempo que Kant remata e aperfeiçoa o pensamento idealista, introduz
nesse pensamento alguns germes que vamos ver desenvolver-se e dilatar-se na
filosofia que sucede a Kant. Esses germes são principalmente dois: primeiro,
essa "coisa em si" que Kant elimina na relação de conhecimento, essa
coisa "em si", se olhamos bem o que significa, verificamos que seu
sentido é o de satisfazer o afã de unidade, o afã de incondicionalidade que o
homem, que a razão humana sente. Se, com efeito, o ato de conhecer consiste em
pôr uma relação, uma correlação entre o sujeito pensante’ e o objeto pensado,
resulta que todo ato autêntico de conhecer está irremediavelmente condenado a
estar submetido a condições; quer dizer que todo ato do conhecimento, conhece,
com efeito, uma relação; mas essa relação, visto que o é, visto que é relação,
levanta imediatamente novos problemas que se resolvem imediatamente também
mediante o estabelecimento de uma nova relação; e nisto de atar relações, de determinar
causas e efeitos, que por sua vez são causas de outros efeitos e que por sua
vez são efeitos de outras causas; nessa determinação de uma rede de relações,
não descansa o afã cognoscitivo do homem. E por que não descansa? Porque não se
encontrará satisfeito senão quando consiga um objeto pensado, um objeto que,
logo depois de conhecido, não lhe levante novos problemas, antes tenha em si a
razão Integral de seu próprio ser e a essência de tudo quanto dele se derive.
Este afã de incondicionalidade ou afã de "absoluto" não se satisfaz
com a ciência positiva, a qual não nos dá mais do que respostas parciais,
fragmentárias ou relativas, enquanto que o que almejamos é um conhecimento
absoluto, esta "coisa em si", que ingênuamente acreditam captar os
realistas por meio do conceito aplicado à substância.
Mas
esse afã de "absoluto", embora não possa ser satisfeito pela
progressividade relativizante do conhecimento humano, representa, todavia, uma
necessidade do conhecimento. O conhecimento aspira a ele, e então esse absoluto
incondicionado se torna para Kant o ideal do conhecimento, o término ao qual
propende o conhecimento, para o qual se dirige, ou como dizia também Kant: o
ideal regulador do conhecimento, que imprime ao conhecimento um movimento
sempre para diante. Esse ideal do conhecimento, o conhecimento não pode
alcançá-lo. Acontece que cada vez que o homem aumenta seu conhecimento e
acredita que vai chegar ao conhecimento absoluto, defronta-se com novos
problemas e não chega nunca a esse absoluto. Porém esse absoluto, como um ideal
ao qual se aspira, é o que dá coluna vertebral e estrutura formal a todo o ato
contínuo do conhecimento. Esta idéia novíssima na filosofia (que poderíamos
expressar dizendo que o absoluto em Kant deixa de ser atual para tornar-se potencial)
é a que muda por completo a face do conhecimento científico humano, porque
então o conhecimento científico resulta agora não , um ato utópico, mas uma
série escalonada e concatenada de atos susceptíveis de completar-se uns aos
outros e, por conseguinte, susceptíveis de progredir, de progresso. Esta
primeira idéia é, pois, em Kant, fundamental, muito importante.
163.
A primazia da moral.
A segunda idéia é que a consideração
desse mesmo absoluto, desse mesmo incondicionado (que o conhecimento aspira a
captar e que não pode captar, mas cuja aspiração constitui o progresso
do conhecimento) esse mesmo absoluto aparece, de outro ponto de vista, como a
condição da possibilidade da consciência moral. A consciência moral, que é um
fato, não poderia ser aquilo que é se não postulasse esse absoluto, se não postulasse
a liberdade absoluta, a imortalidade da alma e a existência de Deus. E essa
primazia da razão prática ou da consciência moral é a segunda das características
do sistema kantiano, que o diferencia dos seus predecessores, e toda a
filosofia que vai suceder a Kant parte precisamente dessas duas características
de Kant. A filosofia que sucede a Kant toma seu ponto de partida desse absoluto,
que para Kant é o ideal do conhecimento, de uma parte, e, de outra, o conjunto
das condições a priori da possibilidade da consciência moral.
E
assim, os filósofos que sucedem a Kant se diferenciam de Kant de uma maneira
radical e se assemelham a ele de uma maneira perfeita. Diferenciam-se
radicalmente dele no seu ponto de partida. Kant tomara como ponto de partida da
filosofia a meditação sobre a ciência físico-matemática aí existente como um
fato, e também a meditação sobre a consciência moral, que também é outro fato,
e, como diz Kant, factum, fato da razão prática. Mas os filósofos que vêm
depois de Kant abandonam esse ponto de partida de Kant; já não tomam como ponto
de partida o conhecimento e a moral, mas tomam como ponto de partida o
"absoluto". Esse algo absoluto e incondicionado é o que dá sentido e
progressividade ao conhecimento e o que fundamenta a validez dos juízos morais.
Mas ao mesmo tempo digo que se assemelham a Kant, porque de Kant tomaram esse
novo ponto de partida. Aquilo que para Kant era uma transformação da metafísica
antiga numa metafísica do ideal, é para eles agora, propriamente, a primeira
pedra sobre a qual tem que se edificar o sistema. E, se assim mo permitisse o
esforço arriscadíssimo, aventuradíssimo, de reduzir a um esquema claro aquilo
que há de comum nos três grandes filósofos que sucedem a Kant, — Fichte,
Schelling, Hegel — eu me atreveria ousadamente a esboçar o seguinte.
164.
A filosofia pós-kantista.
Primeiro,
esses filósofos, os três, partem da existência do absoluto. A pergunta
metafísica fundamental que nós desde o começo deste curso levantamos (que é o
que existe?) respondem: existe o Absoluto, o incondicionado. Existe algo cuja
existência não está sujeita a condição alguma. Este é para eles o ponto de
partida. Algum perito em filosofia pode descobrir aqui a influência que sobre
esses pensadores exerce Espinosa, que foi descoberto na Alemanha, precisamente
neste momento, na época da morte de Kant. Foi, pois, para eles o absoluto o
ponto de partida.
Segundo,
também é comum aos três pensadores, que vêm depois de Kant, a idéia de que esse
absoluto, esse ser absoluto que tomaram como ponto de partida, é de índole
espiritual. Quer dizer, que esses três pensadores consideram e concebem esse
absoluto sob uma ou outra espécie, mas sempre sob uma espécie espiritual;
nenhum deles o concebe sob uma espécie material, nenhum deles o concebe materialisticamente.
Em
terceiro lugar, os três consideram também que esse absoluto, que é de caráter e
de consistência espiritual, manifeste-se, fenomenaliza-se, expande-se no tempo
e no espaço, explicita-se pouco a pouco numa série de trâmites sistematicamente
enlaçados; de modo que esse absoluto que, tomado na sua totalidade, é eterno,
fora do tempo, fora do espaço, constitui a essência mesma do ser, alarga-se,
por assim dizer, no tempo e no espaço. Sua manifestação produz de si, do seu
seio, formas que manifestam a sua própria essência; e todas essas formas que
manifestam sua própria essência fundamental constituem aquilo que nós chamamos
o mundo, a história, os produtos da humanidade, o homem mesmo.
Por
último, em quarto lugar, também é comum a esses filósofos e sucessores de Kant
o método filosófico que vão seguir e que vai consistir para os três numa
primeira operação filosófica que eles chamam intuição intelectual, a qual está
encaminhada a apreender diretamente a essência desse absoluto sem tempo, a
essência dessa incondicionalidade; e depois dessa operação de intuição
intelectual, que capta e apreende aquilo que o absoluto é, vem uma operação
discursiva, sistemática e dedutiva, que consiste em aplicar aos olhos do leitor
os diferentes trâmites mediante os quais esse absoluto sem tempo e eterno se
manifesta sucessivamente em formas várias e diversas no mundo, na natureza, na
história.
Por
conseguinte, todos estes filósofos serão essencialmente sistemáticos e
construtivos. A operação primeira da intuição intelectual lhes dá, por assim
dizer, o germe radical do sistema. A operação seguinte, da construção ou da
dedução transcendental, dá-lhes a série dos trâmites e a conexão de formas que
se manifestam no espaço e no tempo em que essa essência absoluta e
incondicionada se explicita e se faz patente.
Todos
esses caracteres, que, digo, são comuns aos três filósofos que sucedem a Kant,
mostram-se influenciados ou derivados por essa transformação que Kant fez no
problema da metafísica. Kant deu ao problema da metafísica a transformação
seguinte: a metafísica procurava aquilo que é e existe "em si". Pois
bem, para o pensamento científico nada é ou existe em si, porque tudo é objeto
de conhecimento, objeto pensado para um sujeito pensante. Porém isto que
procurava a metafísica, e que não é "em si" nem existe "em
si", é, todavia, uma idéia reguladora para o conhecimento discursivo do
homem: as matemáticas, a física, a química, a história natural. E essa idéia
reguladora representa o contrário dos objetos do conhecimento concreto. Se os
objetos do conhecimento concreto são relativos, correlativos ao sujeito, essa
outra idéia reguladora representa o absoluto, o completo, o total, o que não
tem condição alguma, o que não necessita condição. Daqui partem então os
sucessores de Kant. E esse absoluto é, para eles, o ponto de partida, em vez de
ser, como em Kant, o ponto de chegada.
Tentemos
agora esquematizar o pensamento de cada um desses três filósofos em relação aos
quatro pontos que assinalávamos há pouco.
165.
Fichte e o eu absoluto.
Fichte
parte do absoluto e realiza a intuição intelectual do absoluto, e então, mercê
dessa intuição intelectual do absoluto, intui o absoluto sob a espécie do eu,
sob a espécie do eu absoluto, não do eu empírico, mas do eu em geral, da
subjetividade geral. Mas o eu absoluto, .que é aquilo que o absoluto é (o
absoluto é o eu), não consiste em pensar, pois o pensar vem depois. Consiste em
fazer, consiste numa atividade. A essência do absoluto, do eu absoluto, é para
Fichte a ação, a atividade. E o eu absoluto, mediante sua ação, sua atividade,
necessita para essa ação, para essa atividade, um objeto sobre o qual recaia
essa atividade; e então, no ato primeiro de afirmar-se a si mesmo como
atividade, necessariamente tem que afirmar também o "não-eu", o
objeto, aquilo que não é o eu, como fim dessa atividade E deste dualismo, desta
contraposição entre a afirmação que o eu absoluto faz de si mesmo como atividade
e a afirmação conexa e paralela que faz também do "não-eu", do objeto
como objeto da atividade, nasce o primeiro trâmite de explicitação do
absoluto. O absoluto se explicita em sujeitos ativos e em objetos da ação.
Já
temos aqui derivado, dedutiva e construtivamente, do absoluto, o primeiro
momento dessa manifestação no tempo e no espaço. De um lado, teremos os
"eus" empíricos. Mas, do outro lado, teremos o mundo das coisas.
Porém, como o eu do homem empírico é fundamentalmente ação, o conhecimento tem
que vir como preparação para a ação. Em Fichte se reconhece a primazia da consciência
moral de Kant. O conhecimento é uma atividade subordinada que tem por objeto
permitir a ação, propor ao homem ação. O eu é plenamente aquilo que é quando
atua moralmente. Para atuar moralmente o eu necessita: primeiro, que haja um
"não-eu"; segundo, conhecê-lo. E aqui se vê como em trâmites
minuciosos, sucessivos, vai tirando Fichte, dedutiva e construtivamente, do
absoluto toda sua explicitação. sua manifestação, sua fenomenalização no mundo
das coisas, no espaço, no tempo e na história.
166.
Schelling e a identidade absoluta.
Temos
agora Schelling. Schelling é uma personalidade intelectual de tipo
completamente diferente de Fichte. Fichte é um apóstolo da consciência moral, é
um apóstolo da educação popular. Fichte é um homem para quem todo conhecimento
e toda ciência tem que estar submetida ao serviço da ação moral. Ao contrário,
Schelling é um artista; a personalidade de Schelling é a personalidade de um
esteta, de um contemplativo. Por isso, a filosofia de um e de outro são
completamente diferentes dentro desse mesmo esquema geral que expúnhamos antes.
Também
Schelling parte do absoluto, como Fichte; porém se o absoluto para Fichte era o
eu ativo, para Schelling o absoluto é a harmonia, a identidade, a unidade
sintética dos contrários, aquela unidade total que identifica num seio
materno, naquilo que Goethe chamava as protoformas, ou, na tradução de uma
palavra grega, "as mães" (conceitos mães). O absoluto para Schelling
é a unidade vi-vente, espiritual, dentro da qual estão como em germes todas as
diversidades que conhecemos no mundo. E assim essa unidade vivente se põe
primeiro, afirma-se primeiro como identidade. Em [tudo quanto é e quanto
existe, há para Schelling uma fundamental identidade; tudo é uma e a mesma
coisa; todas as coisas, por diferentes que pareçam, vistas de um certo ponto,
vêm fundir-se na matriz idêntica de todo ser que é o absoluto.
O
primeiro trâmite de diversificação desse absoluto é o que distingue, de um
lado, a natureza, e, do outro, o espírito. Essa distinção estabelece os dois
primeiros ramos do tronco comum (de um lado, as coisas naturais, e, do outro,
os espíritos, os pensamentos, as almas). Mas a distinção nunca é abolição da
identidade. A natureza está cumulada de espíritos, como o espírito é a seu modo
também natureza.
Schelling
tem uma visão extraordinariamente aguda para todos aqueles fenômenos naturais,
como são os fenômenos da vida, dos animais, das plantas, que patentemente são
fenômenos em que a natureza está maridada, casada, unida com algum elemento vivente,
trepidante e espiritual. Porém também fora da natureza viva, na natureza
-inerte, inorgânica, encontra Schelling os vestígios do espírito como nessas
sutis reflexões que faz sobre a cristalização dos corpos, em que mostra que um
corpo, por pequeno que seja, que se cristaliza, por exemplo, em hexaedro, leva
dentro de si a forma hexaedro. Por pequeno que seja, um átomo de corpo que
cristalize em hexaedro, se se esmaga e se toma a menor partícula, é
também um hexaedro. Tem, pois, alma de hexaedro. Há um espírito hexaédrico
dentro dele. Essa fusão ou identificação está em todas as diversificações da natureza
e do espírito. E em qualquer uma das formas, e em qualquer um dos objetos, e em
qualquer uma das coisas concretas que tomamos, vemos e encontramos a
identidade profunda do absoluto.
167.
Hegel e a razão absoluta.
Pois se considerarmos agora Hegel,
encontramo-nos com um terceiro tipo humano completamente distinto dos dois
anteriores. Se Fichte foi um homem da ação moral, se Schelling foi um delicado
artista, Hegel é o protótipo do intelectual puro, o protótipo do homem lógico,
do pensador racional, frio. Quando era estudante, seus colegas o chamavam
"o velho". Porque realmente era velho antes do tempo e toda sua vida
foi "o velho".
Vamos
ver impor-se na sua filosofia esse sentido absolutamente racional, porque, para
Hegel, o absoluto — que é sempre o ponto de partida — é a razão. Isso é o
absoluto. À pergunta metafísica: que é o que existe? responde: existe a
razão. Tudo o mais são fenômenos da razão, manifestações da razão. Mas, que
razão? Sem dúvida, não a razão estática, a, razão inerte, a razão como uma
espécie de faculdade captadora de conceitos, sempre igual em si mesma, dentro
de nós. Nada disto. Ao contrário, a razão é concebida por Hegel como uma potência
dinâmica cheia de possibilidades que se vão desenvolvendo no tempo; a razão é
concebida como um movimento; a razão é concebida não tanto como razão quanto
como raciocínio.
Pensemos
um momento no que significa "raciocinar", no que quer dizer
"pensar". Raciocinar, pensar, consiste em propor uma explicação, em
excogitar um conceito, em formular mentalmente uma tese, uma afirmação; mas, a
partir deste instante, começa-se a encontrar defeitos nessa afirmação, a
pôr-lhe objeções, a opor-se a ela. Mediante o quê? Mediante outra afirmação
igualmente racional, porém antitética da anterior, contraditória da anterior.
Essa
antítese da primeira tese apresenta à razão um problema insuportável; é mister
que a razão faça um esforço para achar um terceiro ponto de vista dentro do
qual esta tese e aquela antítese caibam em unidade, e assim, continuamente, vai
tirando de si a razão, por meio do raciocínio, um número infinitamente vasto de
possibilidades racionais insuspeitadas. A razão, pois, é o germe da realidade.
O real é racional e o racional é real, porque não há posição real que não tenha
sua justificação racional, como não há também posição racional que não esteja,
ou haja estado, ou haja de estar no futuro, realizada.
Por
conseguinte, dessa razão que é o absoluto, mediante um estudo de seus trâmites
internos — que Hegel chama lógica, dando à palavra um sentido até então não
habitual — mediante o estudo da lógica, ou seja dos trâmites que a razão requer
ao desenvolver-se, ao explicitar-se ela mesma, a razão vai realizando suas
razões, vai realizando suas teses, logo as antíteses, logo outra tese superior,
e assim a razão mesma vai criando seu próprio fenômeno, vai-se manifestando nas
formas materiais, nas formas matemáticas, que são o mais elementar da razão;
nas formas causais, que são o mais elementar da física; nas formas finais, que
são as formas dos seres viventes, e logo nas formas intelectuais, psicológicas,
no homem, na história.
Assim,
tudo quanto é, tudo quanto foi, tudo quanto será, não é senão a
fenomenalização, a realização sucessiva e progressiva dos germes racionais, que
estão todos na razão absoluta.
Como
se vê, esses filósofos não fizeram mais que realizar, cada um a seu modo e em
formas completamente distintas, o esquema geral que esboçamos no princípio.
Todos partiram do absoluto. Não partiram de dados concretos da experiência,
nem tampouco do fato da ciência físico-matemática, nem do fato da consciência
moral; mas partiram do absoluto, intuído intelectualmente e desenvolvido
depois sistemática e construtivamente nesses fantásticos leques dos sistemas
que se abrem ante o leitor, deslumbrando-o com a beleza extraordinária de sua
dedução transcendental.
168.
A reação positivista.
Estes
homens preencheram a filosofia da primeira metade do século XIX. Mas estes
homens que preencheram a filosofia na primeira metade do século XIX exageram e
não pouco. Afastaram-se demais das vias que seguia o conhecimento científico.
Apartaram-se demais delas; não as tiveram em conta nem como ponto de partida
nem como ponto de chegada. Empenharam-se em que sua dedução transcendental,
essa construção sistemática que partia do absoluto, compreendesse também no seu
seio a ciência do seu tempo. Assim foi-se cavando pouco a pouco um abismo entre
a filosofia e a ciência. A filosofia, afastando-se da ciência, e a ciência,
deSviando-se, afastando-se também da filosofia. Que resultou de tudo isto? Que
a meados do século XIX esse rompimento, esse abismo entre a ciência e a
filosofia era tão grande que trouxe consigo um espírito de hostilidade, de
receio e de amargo afastamento com respeito à filosofia. Sobreveio o espírito
que chamaríamos positivista. O positivismo está estruturado por um certo número
de preferências e de desvios intelectuais que vou enumerar.
Em
primeiro lugar, a hostilidade radical a toda construção. Chama-se construção
ao empenho desses filósofos românticos alemães de deduzir do absoluto,
construtivamente, todo o pormenor do universo.
Em
tom de brincadeira (sempre falava em tom jocoso, porém muitas vezes com grande
profundidade) dizia Heine que Hegel era capaz de deduzir a racionalidade do
lápis com que escrevia, partindo do absoluto, sem solução de continuidade.
Pois o espírito positivista de hostilidade à construção consiste nessa
hostilidade a toda dedução que não esteja baseada em dados imediatos dá
experiência. Esses filósofos não tiveram a precaução de Kant; Kant partira da
física de Newton e da consciência moral como um fato. Sua filosofia estava
vinculada às articulações da ciência. Mas estes filósofos partem dos resultados
da filosofia de Kant; e então se distanciaram extraordinariamente dos dados
mesmos da observação e das experimentações científicas.
O
segundo ponto do positivismo é a hostilidade ao sistema. O positivismo diz: a
realidade será ou não será sistemática. Isso não sabemos a priori. Em troca,
esses filósofos constróem sua realidade sistematicamente, como se a priori
soubessem que a realidade é sistemática. Se a realidade for sistemática,
haveremos de sabê-lo quando a conheçamos; o primeiro é conhecê-la tal como é.
Terceiro
ponto essencial do positivismo: dos dois pontos anteriores se deriva a redução
da filosofia a puros resultados da ciência. A filosofia não pode ser outra
coisa que a generalização dos mais importantes e vultosos resultados da
física, da química, da história natural. Não se pode fazer outra coisa. O
pensamento humano não pode sair do círculo em que está fechado o conhecimento.
Por conseguinte, o mais que pode pretender o pensamento filosófico é tomar
esses resultados gerais a que chega a ciência e esticá-los e dar-lhes as formas
mais ou menos sistemáticas possíveis.
Por
último, o traço essencial do positivismo é o naturalismo. Que é naturalismo?
Algo muito simples. Existem umas ciências que estudam a natureza. Essas
ciências são: a astronomia, a física, a química, a biologia, a história
natural. Nessas ciências os métodos que elas empregam deram resultados magníficos.
Durante séculos, os métodos experimentais, de observação de redução das formas
a leis ou seqüências, deram resultados excelentes. Então o naturalismo
consiste em dizer: todas as demais ciências, a psicologia, a ciência da
história, a ciência do direito e do espírito, devem seguir os mesmos métodos.
Visto que naquelas foram tão bons esses métodos, que estas sigam também os
mesmos. Isso é naturalismo. E isso está implícito no pensamento positivista.
Mas, além disso, esse naturalismo nos leva a outra conclusão ou conseqüência:
que os objetos da ciência do espírito, a psicologia, a história, o direito, os
costumes, a moral, a economia política etc. são objetos que devem poder
reduzir-se à natureza. Cremos que são de essência e de índole diferentes; cremos
que entre o espírito, o pensamento e a matéria cerebral há um abismo. Não é
assim, dizem eles; forçosamente, quando chegar com o progresso seu dia,
descobrir-se-á como um se vincula ao outro e como o espírito pode reduzir-se
aos fenômenos materiais.
O
naturalismo tem, pois, dois sentidos: primeiro, a necessidade de estender os
métodos das ciências naturais a toda a ciência, e segundo, reduzir à natureza
os objetos que parecem irredutíveis à natureza, O caso mais impressionante do
naturalismo o encontramos no livro de Spengler A decadência do Ocidente, em que
se considera que a cultura é o mesmo que um tigre ou um rinoceronte, um ser
vivente que tem seu nascer, seu desenvolvimento, sua proliferação, sua morte,
suas leis biológicas, às quais está sujeito.
Este
ponto de vista positivista teve que ter uma conseqüência forçosa: a depressão
da filosofia. A filosofia ficou deprimida. Durante a segunda metade do século
XIX a filosofia caminhou miserável, pedindo perdão pela sua existência, como
dizendo aos cientistas: desculpem, eu não tenho culpa; farei o que puder.
Pedia perdão pela sua existência, renunciando aos seus próprios problemas. De
vez em quando algum atrevido que se aventurava a pôr em dúvida as grandes
generalizações de Haeckel, de Ostwald ou de Spencer, recebia imediatamente um
golpe de férula nos dedos: "O senhor é metafísico!" E ele dizia:
"Coitado de mim! Sou um metafísico!" E então sentia-se acabrunhado e
desesperado.
169.
O retorno à metafísica.
Este
ponto de vista não podia subsistir muito tempo. O espírito humano não podia
subsistir dessa maneira. O positivismo é o suicídio da filosofia; é a proibição
de tocar naqueles problemas que incessantemente perseguem o coração e a mente
humana. Não podia persistir muito tempo esta proibição de entrar nesse recinto
quando o homem, desde que é homem, não tem outro anelo senão esse. Por
conseguinte, tinha que vir muito cedo uma reação contra o positivismo e uma
renovação da filosofia. Esta reação contra o positivismo e renovação da
filosofia tem em cada país suas formas um pouco diferentes.
Na
Europa estas formas foram principalmente oriundas da reação antipositivista
que se produziu na Alemanha, c- essa reação antipositivista se produziu em
virtude de alguns fenômenos históricos concomitantes. Em torno ao ano de 1870
começaram alguns fenômenos de reação contra o positivismo. Um deles, o mais
notável, foi o belo livro que publicou em 1865 Otto Liebmann e que se chama
Kant e os epígonos. Nesse livro sustenta Liebmann que a filosofia tem que
voltar a Kant e que os culpados da decadência e miséria da filosofia foram os
filósofos românticos alemães que se desligaram da sistematização construtiva e
fantástica, que era os que ele chamava epígonos. Dizia que era preciso retornar
a Kant, retornar ao sadio filosofar kantiano, que sem ser, naturalmente, em
nada positivista, todavia tem em conta constantemente os objetos e os dados
científicos para sobre eles e com eles fazer a filosofia.
Este
livro teve um grande êxito, e como resultado, a mocidade estudiosa filosófica
alemã se pôs a ler Kant e trabalhar sobre Kant. E disto, unido à influência que
teve o livro de Frederico Alberto Lange sobre o materialismo, surgiram as
escolas filosóficas neokantistas, que até faz poucos anos dominaram na escola
da filosofia oficial alemã: as escolas de Mar burgo e Baden, que foram as duas
escolas kantistas dirigidas por Cohen e Natorp e por Windelband e Rickert.
Este foi um dos motores da reação antipositivista.
O
segundo motor, é tão importante quanto o primeiro, embora menos conhecido, foi
a influência de Brentano e dos discípulos de Bren-tano sobre a filosofia alemã.
Brentano ensina a seus alunos que o autêntico filosofar não consiste nas
grandes generalizações de Fichte, Schelling e Hegel, mas consiste na minuciosa
e rigorosa elucidação dos pontos, dos acentos, dos conceitos filosóficos. Esta
disciplina rigorosa, de herança nitidamente aristotélica e escolástica, que
Brentano impôs a seus discípulos, deu à filosofia uma .solidez e textura de
raciocínio e demonstração extraordinárias. E discípulos de Brentano são os filósofos
que na Alemanha têm e tiveram a maior influência: Husserl, com a sua
fenomenologia, Meinong, com a sua teoria dos objetos etc.
Em
França, a reação antipositivista foi iniciada pela filosofia criticista de
Renouvier, Ravaisson, Lachelier, um de cujos discípulos mais notáveis foi
Bergson. Bergson foi um dos grandes lutadores contra a tendência positivista.
Em
suma: passado o mau transe do positivismo, a filosofia atual volta outra vez a
recuperar seus temas eternos: o tema da metafísica, o tema da ontologia, o
tema da gnoseologia, da teoria do conhecimento, da lógica, da ética etc.
E a
filosofia atual encontra-se num momento de renovação extraordinária; não
certamente para tornar a fazer grandes sistemas como os de Fichte, Schelling e
Hegel, edificados sobre a areia do absoluto. Não. Mas sim para voltar novamente
a apresentar as grandes teses e os grandes ternas da autêntica filosofia,
favorecida, ademais, nesses últimos tempos, por um caso muito curioso e
estranho, a saber: que os cientistas, os físicos principalmente, estão aderindo
à filosofia, estão se introduzindo no campo filosófico; e a filosofia os acolhe
com muito prazer, enquanto não atirem os pés para o alto fazendo estragos em
nosso domicílio particular.
Assim,
eu vou aproveitar as lições restantes para referir-me a certos problemas
tipicamente filosóficos que se debatem na filosofia atual e que em linhas
gerais podemos compreender sob o nome de ontologia.
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