Cap. 9 – O Classicismo de São Tomás de Aquino – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição IX

O CLASSICISMO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO (1)

 O
CLASSICISMO EM FACE DO ROMANTISMO. — 60. SANTO TOMAS E ARISTÓTELES. — 61.
DIFICULDADES DA ONTOLOGIA. — 62. A ANALOGIA DO SER. — 63. O ABGÜMENTO
ONTOLÓGICO. — 64. AS IDÉIAS E AS COISAS. — 65. ESPÍRITO DE OBJETIVIDADE. — 66. RAZÃO
E REVELAÇÃO. — 67. FILOSOFIA E TEOLOGIA.

59.  
O classicismo em face do romantismo.

Santo
Tomás é um grande filósofo, como Platão, Aristóteles, Descartes, Kant. Se por
clássico se entende somente um elogio de grande magnitude, é claro que Santo
Tomás o merece sobejamente. Mas eu entendo o adjetivo "clássico" não
só, nem principalmente, como um elogio vago e geral, mas num sentido muito determinado
e até mesmo concreto. A qualidade do clássico não denota somente bondade e
excelência de um escritor ou pensador; denota, sobretudo, a meu entender, um
modo especial do pensamento e do sentimento, uma determinada e precisa
estrutura na maneira de ser do sistema filosófico de Santo Tomás. Qual é essa
modalidade propriamente clássica? É o que vou tentar explicar nesta lição.

Clássico
costuma, em geral, contrapor-se a romântico, e ambos adjetivos soem aplicar-se
principalmente às obras literárias. É na história da literatura que
encontramos períodos clássicos e românticos, poetas, dramaturgos, novelistas
clássicos e românticos. Todo mundo chama a Espronceda romântico e a Cervantes
clássico. Os historiadores da literatura se esforçam, com diversa fortuna e
variável clareza, para definir o que seja o classicismo e o romantismo. Na
crítica literária os conceitos de clássico e romântico não têm, pois, um
sentido simplesmente ponderativo ou encomiástico, mas encerram uma determinação
mais precisamente fixada e concretizada. Todavia, por desgraça, esse sentido do
termo "clássico" não é ainda, nem sequer na história literária, tão
claro, preciso e definido como seria de desejar, sobretudo para aplicá-lo a
temas de tanta determinação como os filosóficos, dos quais hão de estar
ausentes a imprecisão, a adivinhação sentimental, a infundada qualificação. Se,
pois, queremos ver agora em que consiste o classicismo de Santo Tomás tomos
que começar por definir nitidamente esse termo, tirando-o das imprecisões
literárias para dar-lhe um sentido estrito e inequívoco que possa ser aplicado
como critério às matérias filosóficas diversas em diversos pensadores.

Seria
muito longo e não pouco complicado expor aqui as razões que me levaram à
definição que vou dar do clássico. Deixemo-las de lado, pois, e, abandonando
para outro lugar e oportunidade o esclarecimento das vias que levam a esta
definição, digamos simplesmente que o conceito do clássico pode reduzir-se a
três notas características: primeira, predomínio da atenção ao diverso e
diferencial sôbxe a atenção ao comum e geral; segunda, intuição das hierarquias
dominantes nas distintas formas de realidade; e terceira, respeito à objetividade.

(1)
Esta lição se origina das duas conferências proferidas pelo professor Garcia
Morente, na Universidade de Valladolid, em 7 de março doa anos de 1940 e  1941.

Consideremos
a primeira dessas três notas: predomínio da atenção ao diverso sobre a atenção
ao comum e geral. As múltiplas coisas que constituem a realidade têm entre si
diferenças e semelhanças; parecem-se muito umas com as outras e distinguem-se
também umas das outras. Por isso podemos classificá-las e distribuí-las em
gêneros e espécies. Por isso também podemos fixar nossa atenção no comum a
muitas, no idêntico entre muitas e obter assim conhecimentos gerais. Como
podemos, pelo contrário, fixar a atenção no próprio e peculiar de cada uma e
obter assim conhecimentos particulares e individuais. Pois bem; haverá pessoas
que se inclinem mais a prestar atenção ao que há de comum, de genérico, de
idêntico entre muitas coisas; outras pessoas, pelo contrário, terão mais gosto
e inclinação para o diferencial e próprio e peculiar de cada coisa ou de
pequenos grupos de coisas. As primeiras são românticas; as segundas serão
clássicas. O clássico possui um olhar agudo e penetrante para o ti pico, o
diferencial, o próprio. Ao contrário, o romântico procurará sob as diferenças o
comum, o geral e idêntico. Na crítica literária costuma definir-se o clássico
como a vontade resoluta de manter e marcar as diferenças entre os distintos
gêneros literários; ao contrário, o romantismo mistura os gêneros, funde e
confunde numa mistura indigesta o cômico com o trágico, o sério com o frívolo,
o grave com o ridículo, o grande com o pequeno; afirmando que na realidade da
vida tudo isto está unido, junto, fundido e confundido. O clássico, por sua
vez, sustenta que se na vida tudo está de fato misturado e fundido, todavia
isso é muito diverso entre si, e o cômico não é o trágico, embora às vezes
estejam realmente juntos, e o grave não é o ridículo, embora em ocasiões se
encontrem muito próximos, e assim o clássico, respeitando o diferente mais que
o comum, pretende refletir o que cada coisa é, mais que a vida geral em que
cada coisa e o que é. Dentro de um instante veremos que também na filosofia há
pensadores clássicos que quando contemplam a realidade se detêm no diferencial
dela, nos seres reais mais que na realidade total e
também filósofos românticos que acentuam preferentemente o idêntico e comum a
todos os seres, a unidade absoluta do ser.

A
segunda nota com que queremos definir o classicismo é a intuição das
hierarquias dominantes nas diversas formas de realidade. Também aqui o
romântico propende a apagar as diferenças de valor hierárquico.

O
romântico considera que tudo tem o mesmo valor — muito ou nenhum; que não há
coisas mais perfeitas e valiosas que outras; que não há valores superiores a
outros, nem valores — nem valor — supremos; que tanto faz estar acima como
abaixo, tanto faz mandar como obedecer; que todos somos iguais; que todos os
seres valem o mesmo. Mas diante desta negação romântica das hierarquias entre
coisas e valores, o clássico afirma, pelo contrário, a variedade de valor entre
os seres; o clássico possui uma intuição muito aguda das diferenças
hierárquicas, da distinta perfeição que as coisas têm, de seus distintos
valores; o clássico reconhece que certos valores, por exemplo, os valores da
utilidade, são inferiores aos da beleza, que estes por sua vez são inferiores
aos da moralidade, e que todos se subordinam à supremacia dos valores
religiosos, visto que Deus é o supremo valor.

A
terceira nota característica no classicismo não é senão a conseqüência das
duas anteriores. Chamá-la-íamos respeito à objetividade O clássico é homem de
pensamento e sentimento objetivos’; não finge, não inventa a realidade, mas a
acata e recebe respeitosamente; o clássico não projeta na realidade seus
próprios gostos, seus próprios desejos, suas próprias vontades, sua própria
fantasia, mas antes, respeitando a realidade, inclina-se diante dela,
justamente porque percebe muito bem o peculiar e próprio de cada coisa e as
diferenças hierárquicas entre os valores próprios de cada coisa. Melhor que
respeito chamaríamos humildade a essa atitude do clássico, que se rende e se
entrega ante a objetividade do real. O clássico é pensador humilde, O
romântico, pelo contrário, é pensador soberbo, que julga que o mundo é sua
obra, obra do seu próprio pensamento, produto das leis íntimas do pensar humano,
mundo racional, submetido ao eu pensante, que é como que o administrador
supremo da razão A humildade do clássico, pelo contrário, se afiança no seu
objetivismo, na sua atitude reverente ante a realidade, tomando nota dela,
conhecendo-a e descobrindo-a tal e como ela é, às vezes racional e inteligível,
às vezes irracional e acessível tão-somente por vias que não são as do estrito
pensamento científico.

60.  
Santo Tomás e Aristóteles.

Eis
aqui, pois, as três notas principais que caracterizam o conceito do clássico.
Quando digo, pois, que Santo Tomás de Aquino é filósofo clássico, não quero
dizer que é um grande filósofo — isso já o sabemos — e a voz
"clássico" não faz referência essencialmente è ponderação
encomiástica. Quero dizer que é um pensador no qual as três notas
características que acabo de assinalar como definidoras do classicismo se dão
com plena realidade pessoal e mental e até de maneira verdadeiramente eminente.
Tanto, que se poderia muito bem dizer de Santo Tomás que é o filósofo clássico
por excelência.

Talvez
Aristóteles pudesse aspirar a disputar-lhe nisso a primazia, porque também
Aristóteles possui todas ou quase todas as virtudes do filósofo clássico. Mas
há um ponto em que Santo Tomás leva vantagem a Aristóteles em classicismo. Porque no cume da concepção que Aristóteles desenvolve acerca da realidade total
há uma espécie de vácuo ou deficiência; o conceito de Deus não é tão completo,
tão perfeitamente desenhado e traçado como o conceito de Deus em Santo Tomás. É que Santo Tomás recebe e admite com clássica humildade o auxílio sobrenatural
de uma fonte de conhecimento que Aristóteles necessariamente desconhecia, o
auxílio sobrenatural da revelação. Esta falta, esta deficiência que há em
Aristóteles no último ápice em que deveria rematar em perfeição seu
conhecimento da realidade, foi remediado pela revelação cristã, que se
manifesta nesse sentido como fonte de conhecimento objetivo e complemento
decisivo das informações que o homem por si mesmo e naturalmente é capaz de
obter acerca das coisas. O cristianismo de Santo Tomás é, pois, o que eleva até
o máximo seu classicismo fundamental.

61.  
Dificuldades da ontologia.

Mas
quisera eu chegar a termos de maior precisão ainda em todas essas definições.
Vou tentá-lo, e mesmo a troco de pedir agora um pouco desse esforço a que me
referia no começo, vou levantar uns pequenos problemas que não são inteiramente
fáceis, mas que vou procurar tornar o menos difíceis que me seja possível.
Direi primeiramente que na filosofia, mais ainda que na literatura, é que
deveriam ter aplicação imediata e bem fecunda, sem dúvida, os conceitos de
clássico e romântico. Não se fez ainda no mundo — pelo menos eu não a conheço —
nenhuma história da filosofia em que se tome em consideração esta distinção entre
pensar romântico e pensar clássico para classificar e caracterizar os grandes
pensadores. Mas poderia e até deveria fazer-se, porque romantismo e classicismo
são modalidades de pensamento que nos problemas filosóficos se revelam com
tanta e até com mais relevante forma que nas produções literárias ou
artísticas. A objetividade do pensamento, a atenção às diferenças reais e às
distintas hierarquias estimativas ou valorativas entre os seres, tocam, com
efeito, em alguns problemas tão centrais e profundos da filosofia, que a
atitude que se assuma nelas e acerca das mesmas imprime caráter indelével a
todo o resto do sistema e marca com sinal inequívoco todos os demais
pensamentos e conceitos. Estes problemas centrais de toda filosofia são os
problemas ontológicos, ou seja os problemas que se referem ao ser. E é por
serem problemas centrais e básicos que a posição e a atitude que cada filósofo
adotar sobre eles terá necessariamente de repercutir em todo o resto do
sistema. Pois bem; o problema do ser oferece uma dificuldade muito especial que
consiste em que ser é o termo ou palavra que se refere a mais coisas. Porque é
claro que se dizemos "homem", este termo se refere a muitos seres,
mas deixa fora muitos outros seres que não são homens. Se dizemos
"corpo", também esta palavra se refere a muitos objetos, mas deixa
fora também muitos outros; por exemplo, os objetos ideais e espirituais. Porém,
se dizemos ser, este termo se refere a tudo absolutamente, sem deixar fora do
seu âmbito de significação nada em absoluto; refere-se inclusive a Deus, que é
ser, sem dúvida alguma. Pois bem; este termo "ser", tão amplo que não
cabe imaginá-lo mais amplo, resulta extraordinariamente difícil de definir, de
fixar, de determinar. Onde encontrará o filósofo as pinças adequadas para
capturar e reter esse ser em geral? Porque essas pinças, esses conceitos
instrumentais com que o filósofo pode ria talvez definir o ser, seriam também
eles seres, e o filósofo muito dificilmente evitaria o perigo do círculo
vicioso, ou seja de cair no erro consistente em supor já dentro da definição
mesma aquilo que se trata de definir. Por isso dizia que o problema do ser é
enorme-mente difícil. Mas a dificuldade se eleva — se ó possível — e se faz
vertiginosa considerando que entre os seres figuram também as características
diferenciais que os separam. Não somente os seres são seres, mas também são
seres as diferenças entre os distintos seres, as notas próprias de cada ser. O
problema ontológico deverá pois, tomar em conta tão graves e intricadas dificuldades
que quase parecem desafiar a capacidade intelectiva do entendimento humano.

62.  
A analogia do ser.

Santo
Tomás adverte e sublinha esta especialíssima dificuldade do problema do ser, e
nos diz: o ser é um termo análogo, quer dizer, nem unívoco nem equívoco.
"Unívocos" chamam os lógicos aos termos que designam sempre uma e a
mesma coisa. São termos que, por assim dizer, não têm perda; significam sempre
o mesmo e não há possibilidade de enganar-se, conhecendo-se o único significado
que possuem. A palavra "homem", por exemplo, é termo unívoco, que
designa sempre o mesmo ser, o mesmo objeto. "Equívocos" chamam em
troca, os lógicos aos termos ou conceitos que têm duas ou mais significações
completamente diversas, quer dizer, que se referem a dois ou mais objetos
totalmente distintos entre si e heterogêneos. A palavra "gato", em
espanhol, por exemplo, significa umas vezes o conhecido animal doméstico e
outras vezes o aparelho mecânico que serve para levantar peças grandes e
pesadas (1). Entre "gato" no primeiro significado e "gato"
no segundo não existe a menor semelhança, a menor relação, e embora a palavra
que designa essas duas coisas heterogêneas seja a mesma fonética e
ortogràficamente falando, há na realidade como que duas palavras e dois conceitos
distintos. "Análogos" chamam, por último, os lógicos aos termos ou
conceitos que designam — como os equívocos — objetos distintos, mas não
inteiramente diferentes, antes em parte semelhantes e em parte diferentes, ou
seja termos cuja significação não varia senão em parte ao designar ora uns, ora
outros objetos. A palavra "sano", em espanhol, não significa
exatamente o mesmo dita do animal e dita do alimento, mas seu significado
também não é inteiramente diferente; a "sanidad", em espanhol,  de 
tal ou  qual  alimento não é objeto

idêntico
à "sanidad" de tal ou qual animal, mas também não é objeto totalmente
diverso.

(1)   
Este  aparelho  é  o  que  em  português  chamamos  «macaco» N.   T.

Agora,
sabendo já o que são termos unívocos, equívocos e análogos, perguntemo-nos com
toda clareza: o ser é um termo unívoco, equívoco ou análogo? E a solução que
radical e profundamente se der a este problema representará uma atitude ou
posição tão fundamental, tão central na filosofia, que necessariamente terá que
imprimir cará ter em todo o resto do sistema filosófico, até nas suas menores e
mais longínquas ramificações. A atitude ante este problema do ser definirá,
pois, todo o pensamento, toda a personalidade, todo o estilo de um filósofo.
Com efeito: suponhamos que se adote a solução da univocidade do ser. Que
quererá dizer então isso de que o ser é unívoco? Quererá dizer — relembremos
nossa definição do termo "unívoco" — que o ser é conceito que designa
sempre um e o mesmo objeto; quererá dizer que não existe mais que um ser e que
todos os distintos seres são distintos somente em aparência, mas na realidade
idênticos; quererá dizer que todas as diversidades da realidade são redutíveis
a um só e único ser. A conseqüência imediata de tudo isto será o que costuma0chamar-se
monismo (do grego monos = um, único), que poderá ser monismo materialista, ou
monismo idealista, ou panteismo; em suma a teoria filosófica segundo a qual os
seres múltiplos e aparentemente distintos são no fundo e na verdade aspectos
de um e mesmo ser idêntico. Mas suponhamos, pelo contrário, que se tome o
conceito do ser como equívoco. Que quererá dizer então isto de que o ser é
equívoco? Quererá dizer, segundo nossa definição, que o ser é conceito que
designa objetos totalmente diversos uns dos outros; quererá dizer que o ser em
cada caso tem uma significação completamente diferente daquela que tem noutro
caso. Mas esta posição inicial aonde levará? Levará evidentemente a reconhecer
na realidade a multiplicidade variada de todos os seres; levará a distinguir
positivamente todos os seres que há ou que existem, que são reais ou que são a
realidade. Mas também levará diretamente ao cepticismo. Porque não havendo nada
de comum entre os diversos seres da realidade, fica abolida a possibilidade do conhecimento,
o qual sempre e necessariamente tem que recair — direta ou indiretamente —
sobre o comum, o genérico, o idêntico de muitos seres.

Com
efeito, a história da filosofia nos mostra notórios exemplares de sistemas nos
quais essas duas posições com suas principais conseqüências estão
perfeitamente realizadas. Temos a atitude dos monistas, idealistas ou
materialistas, que sustentam a univocidade do ser. São os românticos da
filosofia, os que somente têm olhos para o comum e idêntico dos seres e não percebem,
não reconhecem o diferencial e diverso. Na antigüidade, por exemplo,
Parmênides, Demócrito, na Idade Moderna, os idealistas ou panteístas,
Descartes, Espinosa, Kant, Hegel. Diante dessa estirpe de pensadores românticos
encontramos o grupinho reduzido daqueles que se aferram à equivocidade do ser;
para estes a palavra ou conceito de "ser", sendo equívoca,
refere-se, cada vez que se pronuncia, a algo totalmente distinto, e muda
inteiramente de sentido cada vez que se emprega. Para estes principalmente 
não  pode  haver   conhecimento   da   ciência   alguma.

São
estes na Antigüidade Heráclito, os cépticos; na Idade Moderna Hume, e em certo
sentido o filósofo francês, tão respeitável por outras razões, Bergson.

Já a
filosofia antiga anterior a Aristóteles percebera com plena clareza as
dificuldades inexplicáveis em que se enreda o pensamento se adota a atitude
monista e romântica ou a atitude céptica de um pluralismo irracional. O esforço
para achar uma nova atitude foi na realidade o que gerou na Grécia o pensamento
filosófico clássico. Nem Parmênides, nem Heráclito, nem panteísmo, nem
cepticismo. Sócrates inaugura um novo modo de pensar, que Platão aperfeiçoa e
que Aristóteles leva à sua mais alta forma. O ser não é nem unívoco nem
equívoco, é análogo. Que quer dizer, pois, analogia do ser? Quer dizer que o
ser tem distintas significações; porém que são distintas não inteiramente, mas
só em parte. O ser, diz Aristóteles, se diz de muitas maneiras; existem
diversas modalidades de ser, embora sob todas elas permaneça a unidade do ser
enquanto tal. Esta unidade do ser, isso que há de comum entre todos os seres,
não os torna um só ser até o ponto de tornar unívoco o conceito de ser; mas
também não torna cada um deles um objeto totalmente distinto dos demais até o
ponto de estabelecer entre eles uma diferença total que conduziria à
impossibilidade do conhecimento. Aristóteles fixou na Grécia as bases
fundamentais de uma teoria da analogia do ser.

Foi,
porém, Santo Tomás quem levou essa teoria à sua forma mais profunda e perfeita.
Em Santo Tomás a noção de analogia do ser está elaborada com tanta
profundidade e exatidão que ao cardeal Caietano, intérprete e comentador do
Doutor Angélico, não resta outra tarefa que a de reduzir a terminologia
ordenada, simples e breve, a teoria que desde então circula por todos os
manuais de filosofia. E nessa posição tão nítida e precisa se documenta de modo
exemplar o classicismo de Santo Tomás. O primeiro dos caracteres que enumerávamos
de um escritor clássico, encontramo-lo em Santo Tomás levado a seu mais alto grau. A realidade, para ele, não é nem uma única estrutura
ôntica nem uma infinita diversidade de objetos incognoscíveis, mas um sistema
de modos de ser, que permitem ao intelecto chegar ao conhecimento do próprio individual
na base do comum específico e genérico. O olhar de Santo Tomás, passando sobre
o estritamente individual nas coisas, busca o típico e comum a grandes grupos
de seres, mas sem perder-se, como o romantismo filosófico, na infinita
distância de uma intuição idealista que põe uma identidade absoluta em lugar da
diversidade ordenada e inteligível.

63.   
O argumento ontológico.

Mas
convirá muito a nosso propósito não permanecer neste plano de teses gerais.
Vamos descer a algumas aplicações diretas do espírito clássico na filosofia de
Santo Tomás. Desde já vamos vê-lo manter-se na perfeita medida e mesura
clássica ao ocupar-se do problema ‘fundamental de Deus. Santo Tomás aborda
esse problema com uma coragem, que não tiveram seus antecessores, nem talvez
seus sucessores, em toda a história do pensamento moderno. A coragem, a audácia
inte1ectual — quando convém — é também um traço característico do espírito
clássico em filosofia. Santo Tomás levanta corajosamente o problema de Deus
desde as primeiras passagens da Summa Theologica. E verifica que, no seu tempo
e até desde muito antes de seu tempo, existe nas mentes dos filósofos e nos
livros de filosofia uma tese segundo a qual nós conhecemos a Deus
imediatamente. Que significa isto de conhecer algo imediatamente? A palavra
"imediato" tem em filosofia um sentido exato. Não ê uma palavra vaga.
Significa rigorosamente ausência de todo meio ou intermediário entre quem
conhece e o conhecido. Conhecimento imediato é, pois, o conhecimento intuitivo;
por exemplo, conhecimento no qual entre o sujeito cognoscente e a coisa
conhecida não se interpõe o veículo ou meio de nenhum conceito geral, de nenhuma
demonstração discursiva, de nenhum processo de prova ou de descoberta. Pois
bem; repito que Santo Tomás se defronta com uma opinião bastante difundida no
seu tempo e segundo a qual a Deus se conhece imediatamente. O argumento de
Santo Anselmo é um bom exemplo dessa opinião. Consiste em partir da idéia de
Deus, que eu — cada 0,um de nós — tenho dentro de mim. Esse Deus em que agora
penso, penso-o como um ser infinito, quer dizer, tão grande que não pode haver
maior. Pois bem; esse ser por mim pensado tem que existir necessariamente, diz
Santo Anselmo, porque é evidente que estar na realidade e na idéia é mais do
que estar somente na idéia; logo Deus existente na realidade é mais que Deus
não existente ou existente somente na idéia. Este argumento que desde Santo
Anselmo vem ressurgindo por toda a filosofia moderna, toma-o em conta Santo Tomás e o Crítica acerbamente, demonstrando sua invalidade. Por que carece de
força probatória o argumento de Santo Anselmo? Santo Tomás coloca
imediatamente o dedo na chaga. Carece de torça probatória porque supõe que o
ser idéia e o ser existência são seres iguais, de idêntica estrutura;
quantidades, em suma, que podem somar-se ou subtrair-se sem dificuldades. Mas
somente as quantidades homogêneas podem somar-se ou subtrair-se- O argumento
supõe, pois que a idéia de Deus e Deus realmente existente são quantidades homogêneas,
adicionáveis. Pois bem; nessa suposição encontra-se — germinalmente — a
hipótese primordial de que todo ser é igual a todo ser, quer dizer, a hipótese
romântica da univocidade do ser. Mas esta hipótese é falsa e conduz ao
idealismo e ao panteísmo. Supõe que nossas idéias e as coisas reais
correspondentes às nossas idéias são seres de idêntica estrutura ôntica, e,
portanto, permutáveis. Porém isto é — repitamo-lo — o erro fundamental do
romantismo filosófico. Na realidade, uma coisa é a idéia e outra, perfeitamente
distinta, a existência do objeto da idéia; uma coisa é aquilo que algo é e
outra coisa é que esse algo exista. Eu posso dizer, por exemplo, aquilo que Rocinante
é, embora Rocinante nem exista nem tenha existido. Confundir uma idéia com a
existência do objeto correspondente a essa idéia, supõe naquele que faz isso a
convicção de que entre a idéia e a coisa há perfeita homogeneidade de ser, de
que o ser é unívoco. O idealismo é precisamente um modo romântico de filosofar,
que identifica o ser da idéia com o ser da realidade existente e nega toda e
qualquer diferença entre as estruturas primordiais do ser.

Exemplo
típico de classicismo em filosofia é esta atitude de Santo Tomás diante do
argumento de Santo Anselmo. Mas o espírito clássico do Doutor Angélico chega
ainda a mais alto nível quando, inclinando-se sobre o argumento anselmiano, que
acaba de refutar, esquadrinha aquilo que ainda pode haver nele de verdadeiro e
aproveitável. O profundo respeito de Santo Tomás à realidade — espiritual,
ideal ou material —, aos mínimos e mais leves matizes da realidade, é tão
diligente, que tudo quanto é, inclusive as idéias falsas, têm para ele um
sentido. De algum ponto de vista, sem dúvida, pensa Santo Tomás, terá que ser
aproveitável o argumento de Santo Anselmo. Algum ângulo visual haverá, sem
dúvida, visto do qual o argumento de Santo Anselmo mostre alguma parcela de
verdade. Não existe ocorrência ou pensamento humano que, em algum sentido, não
seja verdadeiro. Santo Tomás é eclético, justamente porque seu filosofar é
clássico. Urge reabilitar o ecletismo, do qual se burlam, com graça demasiado
fácil, os românticos da filosofia, cegos para as infinitas variantes e nuanças
do real. Tem que se reabilitar o ecletismo pela simples razão de que a própria
realidade é eclética. Se o argumento de Santo Anselmo é mau para estabelecer a
existência de Deus, em compensação, é excelente e muito verdadeiro para
estabelecer a natureza de Deus. Se já sabemos por alguma outra via que Deus
existe e queremos conhecer sua natureza, então o argumento de Santo Anselmo nos
ajuda poderosamente nisto. Porque então nos permite dizer de Deus que nele a
essência e a existência se confundem, que seu ser consiste perfeitamente em
existir, ou seja, que a existência em Deus não necessita uma causa própria e
peculiar distinta da essência mesma de Deus. Eis como Santo Tomás, com
admirável espírito de clássica ponderação e ecletismo, sabe aproveitar e
incorporar tudo aquilo que há de bom e verdadeiro mesmo nas teses errôneas.

64.  
As idéias e as coisas.

É
também o espírito do classicismo que inspira Santo Tomás em o Litro problema muito grave que a filosofia grega propôs e agitou, oferecendo ao pensamento
humano os tipos de solução exemplares: o problema das relações entre as idéias
e as coisas. Com efeito, o mundo se compõe de coisas, de objetos reais. Mas nós
podemos até certo ponto conhecer estas coisas. Como? Pensando-as, pesquisando
aquilo que são, determinando as essências delas, descobrindo as idéias delas.
Depois de ter descoberto a idéia de uma coisa, de ter sua essência, de saber
aquilo que essa coisa é, dizemos que conhecemos essa coisa. Mas levanta-se
então ante o filósofo o gravíssimo problema seguinte: essas idéias das coisas
onde estão? Não se diga que essas idéias estão em mim, porque é bem evidente
que, antes de adquirir eu ou descobrir eu a idéia de tal ou qual coisa, essa
coisa era já o que é; existia já sua essência ou idéia, embora eu
não a conhecesse. Das idéias eu me aposso no ato de conhecer. Mas onde estão,
se as considero independentemente do ato de conhecer?


duas soluções são possíveis a este problema. Uma: dizer que as idéias estão nas
próprias coisas. Outra: que as idéias estão fora das coisas. Neste segundo caso
as idéias podem situar-se: ou em nenhuma parte — e esta é a solução de Platão,
que nega localização às idéias no espaço e no tempo e as faz eternas realidades
transcendentes — ou em alguma mente que, não podendo ser humana, teria que ser
necessariamente a- divina — e esta é a solução dada por Santo Agostinho, que,
como é bem sabido, sofreu profundamente a influência da filosofia platônica. A
solução que considera as idéias como residentes nas coisas mesmas, foi a que
descobriu Aristóteles; segundo ele, nós conhecemos partindo da percepção
sensível das coisas, sobre a qual realizamos um trabalho de abstração,
prescindindo do estritamente individual em cada coisa, para chegar, por
depurações e por destilações sucessivas, até o conjunto das notas ou caracteres
essenciais, até a essência, até aquilo que a coisa é, até a idéia.

Entre
as duas soluções, a aristotélica de uma parte e a platônico-agostiniana de
outra, abre-se um verdadeiro abismo que parece impossível preencher. A
contradição das duas soluções chegou na época de Santo Tomás a apresentar
caracteres de extraordinária agudeza e mesmo violência. Na época de Santo Tomás
discutiam e combatiam os aristotélicos contra os platônico-agostinianos. E
Santo Tomás viu-se desde logo na necessidade de tomar em conta o problema e
escolher entre a solução aristotélica ou a solução platônico-agostiniana. Nesse
transe, que fará o Santo Doutor? Em muitos casos, em quase todos os livros de
história da filosofia, lê-se que Santo Tomás escolhe a solução aristotélica.
Mas eu digo que isto é falso. Santo Tomás não escolhe a solução aristotélica.
Então, a platônico-agostiniana? Tampouco escolhe a platônico-agostiniana.
Neste ponto Santo Tomás se conduz também como autêntico pensador clássico e
rejeita o dilema: ou Aristóteles ou Platão-Santo Agostinho. Converte
simplesmente a conjunção ou em e; e escolhe Aristóteles e Santo Agostinho. Toma
as duas soluções; não uma das duas; porque não crê que em definitivo duas
soluções sejam incompatíveis uma com a outra, mas que ambas têm seu fundamento,
sua realidade, e sua verdade. As idéias estão nas coisas como diz Aristóteles.
Mas também estão na mente de Deus, como diz Santo Agostinho. Não está a idéia
da estátua na mente do escultor e também na própria estátua? Ou por acaso a
estátua é informe? Não; a estátua não é informe. Toda realidade, toda coisa
real é uma matéria que possui certa forma. Aristóteles colocou a idéia da
coisa, como forma da coisa. Mas essa idéia que é forma da coisa, não está
também, prévia e exemplarmente, na mente de Deus? Aristóteles, para explicar em
que sentido a realidade da coisa contém a idéia da coisa, descobriu esta
teoria da matéria e da forma como constituintes de toda realidade substancial.
Mas esta teoria aristotélica não é nem de longe incompatível com a de
Santo Agostinho, que coloca as idéias na mente de Deus. Não se pode ser em
filosofia exclusivista e parcial. Não é possível deixar de aceitar a
alternativa. Nosso pensamento deve ser amplo, complexo, matizado, eclético; em
suma, clássico; porque assim é a própria realidade eclética,  matizada,  complexa 
e  vasta.  O   ser  não   é  unívoco,  nem equívoco; o ser é análogo, quer
dizer, diverso e, todavia, uno.

65.  
Espírito de objetividade.

O
traço de espírito clássico, que informa com estilo peculiar toda a filosofia de
Santo Tomás, poderia ser encontrado também em muitas outras teorias do sistema
elaborado pelo Santo Doutor. Constantemente ao estudá-lo perceberíamos o
inalterável respeito às hierarquias do real, a inalterável submissão à
objetividade mais estrita; todos os caracteres, em suma, que qualificam de
clássica uma filosofia e a mantêm sempre aberta a todos os ensinamentos que
Deus e as coisas nos enviam. Porque dois caminhos se oferecem agora ante o
filósofo: ou considerar que na verdade o pensamento se ajusta ao objeto, ou
considerar que o objeto se ajusta ao pensamento. No primeiro caso temos esse
tipo de filosofia que poderíamos chamar aberta. Aristóteles e Santo Tomás são,
sem dúvida, os representantes mais perfeitos desta maneira de filosofar. No
segundo caso temos o tipo de filosofia que cabe chamar fechada, e cujos
expoentes mais ilustres são talvez Descartes e Kant. A filosofia aberta começa
pela realidade, pelo ser, e trata de fixar em conhecimentos verdadeiros a
estrutura própria da realidade, destas e aquelas realidades, de toda a
realidade em geral e daquela realidade que é fonte e origem de toda realidade.
A filosofia aberta é, pois, em termos gerais realista; procura ajustar o
pensamento ao ser; está sempre atenta a submeter a razão às exigências do
objeto. É objetiva no amplo sentido da palavra; quer dizer, submissa
humildemente às modalidades do objeto puro. Pelo contrário, as filosofias
fechadas seguem o caminho diametralmente oposto. Começam pelo eu cognoscente;
analisam depois o ato racional de conhecer; fixam as estruturas próprias do
pensamento e logo depois transferem ao objeto essas estruturas do sujeito e
reduzem o ser que é a simples termo do eu que conhece. Para essas filosofias
fechadas o objeto não é mais que um produto, por assim dizer, do sujeito; de
sorte que tudo isto que chamamos a realidade fica aprisionado dentro das
modalidades e condições em que funciona o pensamento racional puro. O nome de
idealismo não encaixa mal nessa maneira de filosofar, na qual a realidade se
reduz à condição de simples idéia.

Das
filosofias abertas, objetivas, sem preconceitos, o exemplo melhor sucedido é
sem dúvida a filosofia de Santo Tomás. Pela sua própria índole e essência, o
realismo do Doutor Angélico oferece entrada franca no seu vasto seio a todos
os modos de saber que sejam exigidos pela estrutura própria do objeto
conhecido. Será experimental nas ciências positivas da natureza material;
analítico nas ciências matemáticas dos objetos ideais; racional na pesquisa
ontológica do ser puro; crítico e psicológico na história dos acontecimentos
humanos; de autoridade na ciência teológica da revelação divina. No realismo, a
fé, a razão, a crítica, a análise, a observação, a experimentação, são vias e
métodos igualmente legítimos que nos proporcionam conhecimentos verdadeiros da
realidade quando se adaptam convenientemente às estruturas ônticas do objeto
estudado. A unidade da verdade.

Firmada
sobre a unidade do ser, não somente não sofre detrimento, mas ao contrário se
afirma e enaltece com a diversidade harmônica dos modos humanos de conhecer. A
filosofia de Santo Tomás aceita todas essas modalidades de conhecimento e as
faz convergir todas na síntese total do saber.

66.   
Razão e Revelação.

Agora
se apresenta, porém, com singular agudeza o problema final de toda a filosofia.
Como alcançar esse conhecimento da verdade primeira ou ser primeiro? Que meios
temos para chegar a essa sabedoria suprema ou esse conhecimento de Deus?

Resposta
de Santo Tomás: temos antes de mais nada a razão. Com a razão podemos, sem
dúvida, avançar muito na sabedoria metafísica acerca de Deus. Podemos, por
exemplo, conhecer que Deus existe, que Deus é um, simples, infinito, e outras
verdades semelhantes. Pois bem: nem tudo o que sabemos acerca de Deus o
sabemos pela via da razão natural. Também temos sobre Deus conhecimentos
"que excedem toda faculdade de razão humana". São os conhecimentos
que Deus mesmo nos deu de si próprio na sua revelação. A situação de fato é,
pois, a seguinte: "conhecemos algo" de Deus por razão natural;
"não conhecemos tudo" de Deus por razão natural; "conhecemos
algo" de Deus por revelação.

Que
a razão natural seja insuficiente para nos proporcionar um conhecimento
completo e perfeito de Deus, é coisa que resulta clara e patente se
consideramos o mecanismo dos conhecimentos humanos. Com efeito, o intelecto
humano está unido à matéria; para conhecer necessita tomar como ponto de
partida a realidade sensível, e, sobre os dados dos sentidos realizar a
intelecção da forma essencial. Sem dúvida nosso intelecto, baseando-se nos
dados da experiência sensível, pode inferir que Deus existe; mas não pode
inferir o que Deus é. Sem dúvida, uma vez estabelecida a existência de Deus,
nossa razão pode formar algum conceito dele; mas necessariamente há de ser um
conceito negativo e "analógico", obtido estendendo à essência de Deus
negativa e analògicamente os conceitos das essências das coisas sensíveis. De
maneira alguma está o intelecto humano capacitado para contemplar diretamente a
essência mesma de Deus, já que Deus, substância totalmente espiritual, não
oferece aos nossos sentidos base alguma sensível da qual o intelecto possa
extrair a essência inteligível. O que ulteriormente sabemos de Deus, sabemo-lo,
pois, por outra via que não é a razão natural. Sabemo-lo por revelação, sabemo-lo
pela fé.

A
conveniência de que as verdades da fé venham complementar as aquisições da
razão natural não se baseia, todavia, somente na maior riqueza de conhecimentos
que este divino auxílio nos outorga. Há outros dois fundamentos, segundo Santo
Tomás, que abonam também a conveniência da revelação e, portanto, da fé. O
primeiro se encontra no fim supremo da salvação do homem. Para salvar-se
necessita o homem conhecer seu fim e condicionar a ele seu comportamento.
Era,   pois,   conveniente    que    Deus    revelasse    ao    homem    certas
verdades superiores à razão para que o homem, conhecendo-as, pudesse organizar
e orientar convenientemente sua vida para a eterna salvação. O segundo
fundamento que justifica a revelação é: que o exercício mesmo da fé reage sobre
a razão aperfeiçoando-a e dando o remate mais adequado à atividade humana.
Convém ao homem saber que há, acima da sua razão limitada, essências que a
razão sozinha não pode conhecer. Convém ao latente orgulho da alma racional o
perpétuo exercício de humildade a que o obriga a fé. Convém que o homem não
caia na tentação de medir a grandeza de Deus pelo nível raso de sua pobre
razão.

Assim,
pois, a fé é o complemento, o aperfeiçoamento da razão. Em rigor, a razão e a
fé não deveriam se sobrepor nunca. Porque de um e mesmo objeto não podemos ter
ao mesmo tempo conhecimento de fé e conhecimento de razão. Se sabemos algo por
fé, não p sabemos por razão. Se
sabemos algo por razão, não o sabemos por fé. A razão demonstrativa e a ciência
certa de algo exclui a fé. E, reciprocamente, quando de algo temos crença por
fé é que não podemos prová-lo nem demonstrá-lo. "É impossível — diz Santo
Tomás — que de uma e mesma coisa haja fé e ciência." Justamente porque a
razão e a fé são complementares é que se excluem em um e mesmo objeto. Mas o
rigor desse princípio recebe na aplicação prática paliativos e emendas
oportunas. De fato, muitas verdades que em si mesmas são de razão encontram-se
em nós como de fé e são por nós cridas mais do que conhecidas demonstrativamente.
Assim acontece quando damos crédito cego aos cientistas nas disciplinas que
ignoramos. De outra parte, existem demonstrações racionais que são difíceis de
estabelecer e em cujo transcurso pode de fato fraquejar a inteligência, dando
entrada sub-repticiamente ao erro. Que isto aconteça com efeito muitas vezes,
demonstram-no as disputas e as discussões entre os sábios. É, pois, impossível
e seria demais inconveniente levar ao extremo rigor o princípio da exclusão’
recíproca da razão e da fé. Sem dúvida a razão e a fé se completam, e,
portanto, não devem se sobrepor. Mas em muitos casos — por exemplo, em todos os
casos de ignorância ou de incapacidade pessoal — a fé substitui com vantagem à
razão; e a Providência age sabiamente propondo à fé das multidões humanas
certas verdades que em si mesmas, e talvez para algumas inteligências mais
sutis, poderiam ser acessíveis à demonstração racional.

67.  
Filosofia e Teologia.

Sem
confundir-se nunca, a razão e a fé podem compenetrar-se e ajustar-se mutuamente.
A filosofia e a teologia de Santo Tomás são exemplos admiráveis desta mútua
compenetração e ajuda, que jamais degenera em confusão das duas ordens. A
filosofia pode muito bem desempenhar sua função própria na teologia. As
verdades da fé ser vem, de sua parte, para iluminar os caminhos do pensar
filosófico Mas sempre a fé e a razão procedem segundo sua própria e peculiar
modalidade.

Na
teologia, a filosofia não se excederá tentando a demonstração das verdades
reveladas, que ultrapassam todo o poder da razão humana. Isso seria contrário
ao bom método e ademais constituiria uma imprudência notória, gravemente
prejudicial para a própria fé. Mas a filosofia poderá e deverá
"declarar" a fé, explicá-la, rodeá-la de comparações e preparações
racionais. Elaborará os conceitos necessários que, a modo de instrumentos
mentais, sirvam para captar e reter melhor no espírito as verdades da fé. Mais
ainda: visto que entre a fé do teólogo e a razão do filósofo não pode haver
discrepância, a filosofia deverá ter por axioma certo que toda suposta
demonstração racional da falsidade de um artigo de fé há de ser necessariamente
falsa e sofistica; e ao filósofo tocará demonstrá-lo, abrindo assim campo livre
para a vigência indiscutível do dogma.

De
sua parte a filosofia não pode senão lucrar no contacto e fraternidade com a
teologia. Da teologia tirará a filosofia indicações preciosas para seu
propósito. Por exemplo: de antemão saberá o filósofo crente que certas teses
filosóficas têm que ser necessariamente falsas: todas aquelas teses que, de um
modo ou de outro, resultem incompatíveis com os’ dogmas da fé. E esta
iluminação orientadora da fé o guiará através dos problemas racionais e lhe
indicará as questões em que o esforço do seu intelecto deva firmar-se com maior
afinco.

Mas
mesmo nos momentos de mais íntima colaboração e compenetração a razão e a fé
conservam sempre seus caracteres próprios e diferenciais, mantendo intacta a
mútua independência. O filósofo demonstra por razões evidentes. O teólogo, pelo
contrário, apela sempre, como fonte indiscutível, à autoridade suprema da
revelação di vina. E até tal ponto acentua Santo Tomás a distinção radical
entre esses dois modos de conhecimento, entre o método racional da filosofia e
o método de autoridade da teologia, que chega a declarar entre ambas as
ciências, uma diferença de gênero. Sem reservas de nenhuma espécie, com plena
consciência da profunda novidade que esta concepção implica, Santo Tomás
proclama e realiza rigorosamente a distinção e, ao mesmo tempo, a unidade da
razão e da fé. Sua filosofia é filosofia e nada mais que filosofia. Ou, como
costuma dizer-se hoje, filosofia pura. Nada de piedosas fraudes. Nem o menor
elemento de suas demonstrações racionais está torcido ou inibido ou exaltado
pela preocupação de acomodá-lo. A filosofia de Santo Tomás pode apresentar-se
na história do pensamento humano como modelo perfeito de objetividade
racional. Não há nela nem rastro dessas habilidades habituais nos virtuosos do
pensamento, que sabem às vezes com singular mestria pôr o raciocínio ao serviço
de uma causa alheia à pura verdade. Quase me atreveria a dizer que a filosofia
de Santo Tomás não é, na sua intenção, filosofia cristã. É filosofia verdadeira
e, por isso, resulta cristã. Porque todo o trabalho intelectual do Santo Doutor
se funda precisamente na convicção de que o melhor serviço que a filosofia pode
prestar à religião consiste em desenvolver-se como exclusiva e autêntica
filosofia. A verdade pura do pensar puro não pode senão conduzir em linha reta
à verdade santa da crença religiosa. Por isso no sistema de Santo Tomás
fraternizam de maneira quase miraculosa a profundidade com a singeleza; e o
acordo das verdades racionais com as verdades da fé se produz de modo tão
natural e evidente que se diria o encaixe e união das duas metades do mesmo
todo.

A
unidade objetiva da verdade é a base sobre que se funda a harmonia entre a fé e
a razão. A verdade racional e a verdade da fé não podem contradizer-se. O único
contrário da verdade é a falsidade. Um só e mesmo Deus é o autor de nossa
razão e o autor da revelação. Necessariamente, portanto, hão de coincidir a
revelação e a razão que procedem da absoluta verdade de Deus. A fé sabe o que
sabe por aceitação reverenciai da autoridade divina. A razão sabe o que sabe por
própria atividade inteligente. Porém, ambos os saberes são verdades e não podem
contradizer-se, porque os princípios do raciocínio foram postos em nós por
Deus, que é o mesmo autor da revelação recebida pela fé. A verdade de uma
afirmação consiste na concordância daquilo que se diz com aquilo que é, não no
modo ou método pelo qual chegamos a tal afirmação. Uma ocorrência fortuita, um
pensamento infundado, asseverações de um demente, podem ser verdadeiros se o
pensado ou asseverado concorda com o ser do pensado ou asseverado, embora sua
procedência resulte inexplicável ou incompreensível. É possível acertar por
casualidade. Sem dúvida nas coisas humanas e mundanas a garantia do acerto ou
da verdade deve ser exigida em forma de provas e demonstrações, que nos convençam
de que o pensado ou o falado coincide com o objeto a que se refere. Mas se o
objeto está fora do alcance de nossa faculdade de comprovar e demonstrar, e se,
de outra parte, a afirmação vem acompanhada de evidentes sinais que a indicam
como de procedência divina, então é possível e conveniente e necessário
recebê-la por verdadeira, embora não possamos humana e racionalmente
comprová-la e demonstrá-la. E em todo caso, podemos estar bem certos é que
entre essas afirmações recebidas pela fé e as que a razão natural elabora, não
pode haver contradição alguma. A realidade é uma. Deus é um. A verdade é uma. A
concordância entre a fé e a razão se funda em último extremo sobre o postulado
da unidade do ser e da verdade em Deus.

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