GÊNERO LÍRICO – ESPECIE BUCÓLICA – Poesia portuguesa no século XVI

Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)

CURSO DE LITERATURA NACIONAL

 

LIÇÃO VI

GÊNERO LÍRICO —  ESPECIE
BUCÓLICA

À amenidade do clima de
Portugal e ao gosto pslos praze­res campestres que sempre tiveram os seus
habitantes cumpre atribuir a aparição da poesia bucólica na alvorada de sua
civi­lização, e o grau de aperfeiçoamento que revelaram os seus primeiros
ensaios.
Podia-se com
justeza dividir a população deuses tempos em três grandes classes: a dos
guerreiros, que repeliam os mouros para além das suas raias africanas; a dos
lavradores, que armados da charrua e do arado, conquistavam ao sol a sua
subsistênca; e a dos pastores que apascentavam pelos montes, veigas e quebradas
os rebanhos, indispensáveis auxiliares da lavoura. Devera produzir a conformidade
do seu céu com o da Grécia as cenas d’Arcadia; o certame dos pas­tores fora
talvez uma das primeiras formas de poesia nativa. Deixando à margem esses
tentâmens mais ou menos felizes, tratemos dos poetas que maior nome^xlquiriam
nessa espe­cialidade durante o período que ora estudamos.

>BERNARDIM RIBEIRO

Era este ilustre poeta
natural da vila de Torrão, no Alentejo, e nasceu no ano de
1475. Terminados os seus
estu­dos, entrou para o serviço do paço na qualidade de moço fidalgo: exercendo
mais tarde com distinção as funções de


capitão-mor da índia e
governador da fortaleza de S. Jorge da Mina, pelo que mereceu ser agraciado com
uma comenda da ordem de Cristo.

A data da morte de Bernardim Ribeiro foi anterior ao ano de
1554, em que pela primeira vez saiu dos prelos de Ferrara o seu romance
intitulado
Menina
e Moça
como
obra póstuma.

Reservando para mais de espaço
emitir nosso voto acerca deste seu romance cavalheiresco, considera-lo-emos
como poe­ta bucólico.

"Bernardim Ribeiro foi um tanto mais
original em sua simplicidade, diz
Garrett; o que lhe falta de sublime e
culto sobeja-lhe em
brandura, e em uma ingênua ternura que faz suspirar de saudade,
daquela saudade, cujo poeta foi, cujos suaves
tormentos tão longo padeceu, e tão bem
pintou.1"

Preferindo sempre as opiniões
dos outros aos nossos mes­quinhos juízos, juntemos às palavras do exímio
reformador da poesia portuguesa o grave pensador do maior crítico que no século
XVIII contou a nossa literatura. Queremos falar do erudito Francisco Dias
Gomes.

"As belíssimas éclogas de Bernardim Ribeiro são as mais antigas
que em Espanha se conhecem; e, segundo o meu pa­recer, são as melhores que há
escritas em verso de arte me­nor, e onde como na mais pura fonte se deve beber
o verda­deiro estilo pastoril.2"

Apesar dos gabos de tão grandes mestres,
faltaríamos ao nosso dever se deixássemos de mencionar algumas manchas que
obumbram o disco dessas maviosas composições.

Em primeiro lugar torna-se
monótona a espécie de eco que de espaço a espaço repete a mesma idéia, senão o
mesmo vocábulo; e depois essa infeliz imitação de
Sannazaro, Boscán e Garcilaso, que lhe
faz repudiar tantas galas pátrias para co­brir-se de peregrinos
andrajos. Travavam no ânimo do poeta porfiada luta as usanças e costumes nacionais, que tão
gracio­sos puderam tornar seus painéis, com a impressão que lhe dei­xavam suas
diletas leituras, e esforçando-se por ser português cometeu mais de uma
infidelidade à cor local.

1   Bosg. da Hist, da poes. e da ling. port.

2   Obras Poet. pág. 292.

Para que possa o leitor por si
próprio avaliar as belezas e defeitos do nosso poeta citemos alguns trechos das
suaves
éclogas e romances:

Nas selvas junto do mar, Pérsio
pastor costumava Seus gados apascentar; De nada arreceiava. Não t.nha que
arreceiar. Na mesma seiva nasceu; Fez-se famoso pastor; Mas foi permissão do
céu Fazer-lhe guerra o amor; Era mais forte e venceu.

Sendo livre, mui isento, Viu
dos olhos
Caterina; Cegou-lhe o entendimento, E Caterina era dina Pera dar pena e tormento. Logo então começou Seu gado a
emagrecer, Nunca mais dele curou, Fol-se-lhe todo a perder. Dá-me conta do teu
dano, Porque a um desconsolado, Um conselho, ou um engano Tira as vezes de
cuidado.
Poderás julgar então Se quiseras ter razão, O teu cuidado por vão, Mas no grande bem
querer Poucas vezes há razão

Da écloga IV, chamada Jano, extratamos o começo, notá­vel
pelos doces sentimentos que nela dominam. Ei-la:

Um pastor Jano chamado, De amor
da formosa
Dina Andava tão transportado, Que por dita nem mofina Nunca era outro cuidado,
Segundo o bem que queria. Tão pouco do mal se guardou, Que vendo a
Dina um dia Logo da vista cegou, Que
d’antes d’alma não via.

De si ela o desterrou.
Pera longe terra
estranha,
Seu mal só acompanhou
Sobre uma mágoa tamanha,
Tamanha mágoa
ajuntou:
Vendo-se
assim desterrado,
Muitas vezes se subia
Para um despovoado,
                          y

Onde ir ninguém podia      /
Senão
desencaminhado.


Ali triste se assentava; Pascendo ao derrador Seu pobre gado o
cercava, E o coitado do pastor Nunca uma hora repousava. Encostado a uma mão.
Os olhos postos na terra, E a
Dina no coração Assi ante aquela serra Se estava queixando
em vão.

Dina minha, ou se me engano Ao menos
muito querida, E com tanto desengano Já me vós
fostes a vida, Agora me sos o dano,
Danos meus tão encobertos, Aqui
podereis sem medo Ser agora descobertos; Se ficou algum segredo
Al de menos nos desertos.

A nenhum outro lugar, Por minha
desaventura, Vos não posso já levar, Levou-me toda a ventura, Le’xou-me só o
pesar, Pesar nunca me leixou, Depôs que por meu pecado Tudo me desamparou, E eu
mais desamparado, Fico como que me ficou…

Traça-nos ele em um dos seus
romances o mimoso quadro
de um sítio abençoado, uma estância do silêncio,
guarida sau­dosa do amor.
Demos aqui uma amostra desse primor literário:

Ao longo duma rbeira Que vai
po’o pé da serra. Onde me a mim fez a guerra Muito tempo o grande amor, Me
levou a minha dor, Era já tarde do dia, E a água dela corria Per antre um alto
arvoredo, Onde as vezes ia quedo O rio e as vezes não; Entrada era do verão.
Quando começam as aves Com seus
cantares suaves Fazer tudo gracioso. Das águas cantavam elas,
Todalas minhas
querelas

Se me puseram diante: Ali
morrer quisera ante, Que ver per onde passei; Mas eu que digo? Passei! Antes
inda hei de passar Enquanto houver pesar Que sempre e hi ha de haver. As águas
que de correr Não cessavam um momento, Me trouxeram ao pensamento Que assim
eram minhas mágoas, Donde sempre correm águas Por estes olhos mesquinhos, Que
tem abertos caminhos Pelo meio do meu rosto: E já não tenho outro gosto Na
grande desdta minha. O que eu cuidava que tinha Foi-se-me assm não sei como,
Donde eu certa crença tomo, Que pera me leixar veio…

FRANCISCO DE SÁ DE MIRANDA

Nascido em Coimbra em 1495 e
distinguindo-se na pátria universidade a ponto de nela lecionar, foi arrastado
pelo im­pulso de seu gênio poético a viajar pela Espanha e Itália, que então
eram os maiores focos do saber humano, deixando para isso a cadeira, que tão
dignamente ocupava na faculdade de direito em que se formara. Regressando a
Portugal fixou sua residência em Lisboa, onde gozou da privança de D. João III,
e consagrando às musas todo o seu tempo poderosamente con­tribuiu para o
aperfeiçoamento da língua e
metrificação por­tuguesas. Faleceu na sua
qu"nta da Tapada a 15 de Março de 1558, sinceramente pranteado por todos
os que o conheceram e praticaram.

Imitador acérrimo dos italianos, transplantou Sá
de Mi­randa, com o seu metro, a fisionomia de sua escola,
sacrificou a naturalidade, ou como também
se diz a
cor
local,
ao
imode derado desejo de seguir as pegadas de
SannSzaro. Nota-se po­rém harmonia em
suas
éclogas: e posto
que inferior nesse ponto ao
suavíloquo Bernardim, pode-se ser contado como um
dos melhores
bucólicos da nossa
literatura. Profundo pensa­dor, não deixa o nosso poeta de misturar aos seus
cantares máximas da mais pura moral, e
se algumas vezes deparamos com palavras que ferem a delicadeza dos nossos
ouvidos é por­que em seu tempo nada tinham elas de ásperas, ou indecentes. Para
bem avaliarmos quaisquer escritor cumpre que nos co­loquemos pela imaginação na
época em que ele escreveu.

Como prova de quão filósofo
era Sá de Miranda citemos esta sentença que se lê na sua segunda
écloga:

A virtude é paga igual De si
mesma sem mais troca, Mas tratemos ora d’al, Sabe-se que vos não toca O bem,
nem menos o mal. Quem sabe por onde vai Leva sua conta leita; Nunca do caminho
sai,
Nao olha a quem
diz tomai A esquerda e à direita.

Na mesma écloga lemos outro trecho, notável
pela in­genuidade e candura de estilo;

Fui-me um dia à vila, Gil, E logo ao sair de casa, Mais
verde que um perrexil Cuidei que matava a brasa De galante e de gentil. Bem
passei co’os
viandantes, Mas depois, quando lá cheias Vi ruas d’outros galantes,
Se eu viera uíano de antes, Não tornei tal às aldeias. Dizia um vendo-me assim;
"Bom vai o do barretinho, Nunca o tão fidalgo vi! — Chamaram-me outros
ratinho, Uns assi, outros assi; Finalmente por acerto Vi alguns nossos de cá,
Deixei-os chegar mais perto, Meti-me entre eles por certo, Que tarde me acolhem
lá."

Se os pastores de Sá de
Miranda falassem sempre com esta graça e naturalidade seriam mui superiores aos
de Virgí­lio, e rivais dos de
Teócrito; infelizmente porém tomam a
miúdo ares acadêmicos e discorrem como não se devera deles esperar.

ANTONIO FERREIRA

Contemporâneo do precedente
poeta, foi um dos legisla­dores do
Parnaso Português, que muito deveu à sua íntima amizade
e comunhão de vistas.

Era natural de L5sboa,
onde nascera no ano de 1528, e pertencia a uma família distinta sendo seu pai,
Martim Fer­reira, condecorado com o hábito de S. Tiago da Espada. Pas­sando na
flor da idade à Universidade de Coimbra, aí com­pletou com aplauso o seu curso
de humanidades, alcançando os foros de grande
latinista e helenista. Seguiu depois os es­tudos de
Direito civil, e tão notável tornou-se neste ramo, que apenas recebia o capelo
e já uma cadeira magistral lhe era destinada. Mais tarde trocou a vida de lente
pelo cargo de desembargador da relação de Lisboa, onde gozou dos favores da
corte, obtendo a mercê de fidalgo da casa real, e sendo geralmente
benquisto. Sua morte, acontecida no ano
de 1569, foi considerada como uma calamidade pública, e os pri­meiros poetas do
tempo, como
Diogo Bernardes, Andrade Ca­minha, Sá de
Menezes e outros, consagraram-lhe o tributo de sua dor em sentidos versos.

Ainda que o estro de Ferreira
o chamasse antes para as espécie lírica, elegíaca e trágica do que para a
pastoril, legou-nos todavia algumas
éclogas recomendáveis principal­mente na parte descritiva.
Citemos o começo da intitulada
Títiro:

Uma
fresca manhã, fria
orvalhosa

Ao longo do Mondego que corria

Com água clara, mansa e
graciosa;

Quando já o claro raio reluzia

Do louro Febo na água, e começava

O orvalho derreter, dourar o dia:

Ao pé de um grã ceiceiro rodeava

O gado de Castalho e de
Serrano,

Que ambos um bom amor sempre
juntava.

Mas outro amor cruel, amor
tirano,

Os trazia ambos tais que
pareciam

Dois espritos perdidos trás seu
dano.

Ambos mancebos, ambos se perdiam

Um por uns olhos verdes, outro
brancos,

Ambos cantavam sempre, ambos
tangiam,

Diziam que aprenderam de dois
Francos.

Pastores que com as Musas se
criaram

Dois Linos. dois Orfeus os
nossos Francos.

Bem conhecidos são: Sás se
chamaram

Um de Menezes, outro de
Mrafljia

De que as irmãs de Febo se espantaram!

E ainda hoje entre nós soa voz
tão branda

Do seu divino canto que lhe
ouvimos,

Que todo o céu aclara e o ar
abranda.

Ditosos nós que em nosso tempo vimos

A nomeada Arcádia, tão vencida

Destes nossos pastores que
seguimos!

Aconteceu que enquanto era
ouvida

De mim uma bela ninfa, que contando

Na veia d’água estava
meia-metida,

Um cordeiro dos meus se foi lançando

Para onde ambos escavam; o que
eu seguindo

Ouvi Castainó estar-me ja
chamando.

"Titiro, amigo, sejas tao
bem vindo

Como este ciaio sul que nos aquenta.

Aqui (diz) teu cordeno veio
lug.ndo,

De.xa o mais gado ao moço: aqui
ie assenta.

Não vês esta ciara água que nos
chama

Esta erva verde que se nos
presenta?

Aqui se esfria aqueia doce
chama

Que arde em nós sempre; aqui amor se engana,

Aqui queres amar quem te desama.

Se o sol muito apertar temos choupana

De canas e ramadas bem cobeita,

Onde nem entra sol, nem a chuva
dana.

Sentei-me. Eis se ergue entre
eles
grã referta

De quem tange melnor, ou meihor canta.

A contenda então mais a voz
esperta.

Assi ora um, ora outro a voz
levanta.

Mostra-nos este trecho da
terceira
écloga de Ferreira que o sublime autor da Castro era também capaz de tanger o
arrabil: pena é que as
reminiscências clássicas tanto preo­cupassem o seu espírito que nos
parece ouvir o eco da flauta mantuana através de seus versos.

LUÍS DE CAMÕES

O egrégio cantor dos Lusíadas, com quem nos ocuparemos mais
de espaço, aspirou também um nome na poesia bucólica, e, graças à inimitável
flexibilidade do seu gênio, pode ser nela inscrito entre os da primeira plana.

Admiremos o tom mavioso com que começa a sua un­décima écloga:

A rústica contenda desusada Entre as
musas dos bosques, das
areias, De seus rudes cultores modulada;
A
cujo
som
atônitas e alheias Do monte as
brancas vacas
estiveram, E do rio as saxátiles lampreias; Desejo de cantar. Que se moveram Os troncos às avenas dos
pastores E já silvestres brutos
suspenderam. Não menos o cantar dos pescadores As ondas amansou do fundo pego E fez-se ouvir aos mudos nadadores...

O que maior interesse comunica às éclogas de Camões é a paixão que as anima, e a
constante
melodia de seus versos, que, se nos de Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda
encontram superioridade em singeleza, levam-lhes incontestável vanta­gem em
elevação de sentimentos. Deve-se-lhe também o na­turalizar entre nós o
idílio piscatório, que quando bem traça­do, é
sumamente agradável. Copiemos integralmente um a que chamou
Sereno, que poucos rivais conhece em
todas as lite­raturas antigas e modernas.

Arde
por
Galatéia, branca e
loura,

Sereno pescador   pobre,
forçado

Duma estrela que quer que a
míngua moura»

Os outros pescadores tem
lançado

No Tejo as redes: ele só fazia

Este queixume ao vento descuidado:

Quando virá, formosa ninfa, um dia,

Em que te possa dar a conta
estreita

Desla doidice triste e vã porfia?

Não vês que me foge alma e que
me
enjeita,

Buscando um só sorriso dessa
boca

Nos teus olhos azuis mansa
colheita?

Se ao teu espírito alguma mágoa
toca,

Se de amor fica nele uma pegada

Que te vai, Galatéia, nesta troca?

Dar-te-ei minh’alma: lá ma tens
roubada,

Não ta demandarei; dá-me por ela

Uma só volta d’olhos
descuidada.

Se muito te parece, e minha
estrela

Não consentir ventura tão ditosa,

Dou-te asas do amor perdidas
nela.

Que ma:’s te posso dar, ninfa formosa,

Inda que o mar de aljôfar me cubrira

Toda
esta praia leda e graciosa?

Amansão-se as ondas, quebra o
vento a ira:

Minha tormenta só nunca sossega;

O meu peito arde em vão, em vão
suspira.

Anda no romper d’alva a névoa cega

Sobre
os montes d’Arrabida viçosos

Enquanto o solar raio não lhe
chega.

Eu,
vendo aparecer outros formosos

Raios que a graça e cor ao céu
roubaram,

Se os olhos cegos vi, vejo-os
saudosos.

Quantas vezes as ondas se
escrejparam

Com meus suspiros! Quantas com
o meu pranto

As fez parar de mágoa e me
escutaram!

Se na
força da dor a voz levanto

E ao som do remo, que a água
vai ferindo,

Perante
a lua meu cuidado canto,

Os maviosos delfins me estão ouvindo,

i   Em vez de morra está moura, como então se
dizia.

A noite sossegada, o mar
calado: Tu só foges de ouvir-me e te vás rindo! Estranhas porventura o mar
cercado Da fraca rede? a barca ao vento solta? E um pobre pescador aqui
lançado? Antes que o sol no céu cerre uma volta, Se pode melhorar minha
ventura, Como a outros sucede, n’água involta. Igual preço não é da formosura
D’ouro a areia que o rico Tejo espraia, Mas um amor que para sempre dura. Vejam
teus olhos, bela
ninfa, a praia; Verás teu nome na mimosa areia. Nunca sobre
ele o mar com fúria saia! Vento algum até agora o não
salteia: Três dias há que escrito aqui o
leixou Amor, e o veda a toda a força alheia. Ele com suas mãos próprio ajudou A
escolher estas conchas, afirmando Que o sol para ti só as matizou. Um ramo te
colhi de coral brando: Antes que o ar lhe desse, parecia O que de tua boca
estou cuidando.
Ditoso se o soubesse inda algum dia!

DIOGO BERNARDES

Natural de Ponte de Lima,
província do Minho, viu a luz pelos anos de 1530—1540 e distinguiu-se desde a
mais tenra infância pelo seu gosto poético. Acompanhando, na qualidade de
secretário, a
Pero de Alcaçova Carneiro, no­meado embaixador
na corte de Madri, regressou a Por­tugal para seguir a D. Sebastião em sua
desastrada expe­dição da África. Combatendo com galhardia ao lado de seu rei,
caiu prisioneiro dos mouros e curtiu os
amargores da escravidão. De volta à
pátria, abandonou a vida pública consagrando seu tempo à poesia. Julga-se que
então com­pusera uma coleção de
éclogas que denominou — O Lima, — por figurarem seus pastores
nas margens desse rio. É a sua melhor obra; e
incontestavelmente um dos monumentos da nossa
literatura. Os conceitos e trocadilhos que enfeiam seu livro são vícios que
começavam a invadir a poesia contempo­rânea e de que não soube libertar-se como
o imortal cantor dos
Lusíadas. Pura é ainda a sua linguagem; harmoniosos e fluidos os
seus versos, apropriados os costumes, e bem expres­sadas as paixões.
Exemplifiquemos o que acabamos de dizer.

Com grande naturalidade pinta
o poeta o lugar da cena cm que se passa a segunda
écloga:

Num solitário vale fresco e
verde Onde com veia doce e vagarosa, O Vez no Lima entrando o nome perde; Numa
tarde rosada graciosa Quando no mar seus olhos
resfriava, O sol deixando a terra saudosa;
Ouvi uma voz triste que soava Tão brandamente ali que parecia Um rio que com
outros murmurava. O gado que do campo recolhia Deixando nele por antre a
espessura Me fui chegando à triste voz que ouvia. Vi
Tirso e Melibeu que na verdura Entre
bastos salgueiros escondidos, Choravam duras mágoas com
brandura. Nesta nossa ribeira ambos
nascidos, Mas como pouco nela conversaram, Eram mais na do Tejo conhec:dos.
Em moços foram lá, lá se criaram Em outros de mor nome, mor estima De tanger,
de cantar fama cobraram.

Modelo de ternura e doce
melancolia é sem dúvida a
écloga quinta em que se lêem estes belos tercetos:

Quão docemente agora aqui
cantava Um rouxinol entre estas
aveleiras, Enquanto Fílis sua dor chorava, Eu vim a
lançar fora estas cordeiras Daquele trigo e não ouvi jamais Senão as diferenças
derradeiras, A sem ventura
Fílis deu uns ais, Tão sentidos então que me cortou O coração
com dor de dores tais. Enfim triste se foi, ele voou, Não sei se voou triste,
ou voou ledo, Co’a minha saudade me deixou.

Alguns ligeiros, mas vivos
traços, da poesia descritiva no­tam-se aqui e acolá, como v. g. na
écloga décima sétima:

Sentamo-nos à sombra duns olmeiros, Num prado de arvoredo rodeado,
. Onde cruzar-se vinham três ribe^r*òs; Lugar fresco e sombrio aparelhado Para
fugir ao sol que então entrara, No
rei dos animais todo abrasado. Por cima da corrente doce e
clara,   * Um
freixo te amostrei cuja verdura Um raio que deu nele
chamuscara, Em cujo tronco, nós, e sua altura, Uma
gralha três dias gritou tanto Que sem
folgo caiu na veia dura.

Nem menos feliz foi Bernardes no patético, revelando grande
estudo do coração humano. Sirva de prova o seguinte trecho da primeira
écloga, em que dois pastores pranteiam
a morte do príncipe D. João:

SÍLVIO

Secai-vos verdes campos
lusitanos, Secai, fontes e rios, secai flores, Mostrai neste
grã dano grandes danos. Cobri-vos
verdes bosques doutras cores. Tão triste como traz a dor consigo • Senti
tamanha perda dos pastores.

SERRANO

Descobre esse mal já, ah! Sílvio amigo, Que pois é mal
comum segundo vejo, Também o chorarei aqui contigo.

SÍLVIO

Levou a cruel morte sem ter
pejo Aquele belo moço a quem tributo Esperavam pagar o Indo e o Tejo. Que bem
na vida já, que rosto enxuto De
ninfa, ou de pastor se pode ver! Qual ave escura dor, qual
fero bruto? Morreu contigo,
Adônis, o prazer, A brandura, o amor, o aviso raro. De tudo
quis-se o céu enriquecer.

SERRANO

Oh Adônis, Pastor formoso e caro, Contigo
nos crescia erva na terra, E das fontes corria o cristal claro. Os frutos sem
trabalho dava a terra, Seguro andava o gado nas montanhas, Não lhe fazia o lobo
cruel guerra.

SÍLVIO

Chorai tamanho mal, gentes
estranhas, Nas frias e nas quentes regiões, Chorai perda, que fez perdas
tamanhas.

SERRANO

Dai lágrimas sem fim, várias
nações,

A dor que enche de dor, enche
de espanto,

A dor de tigres, mágoa de
leões,

Não negue coisa viva, vivo
pranto

De quantas o céu vê, a terra
cria;

As que o mar cobre façam outro
tanto.

SÍLVIO

Escuro torne sempre aquele dia,

Em que da branca neve andou
roubando

A morte as frescas rosas com
mão fria.

SERRANO

Assim se foi teu rosto
descorando Como o lírio no campo, ou a
bonina, A quem o arado talha em traspassando.

SÍLVIO

Levou-te para si, oh! flor divina, Esse que gera o
sol,
enfreia os ventos A
quem o céu, a terra, o mar se inclina.

SERRANO


gozas imortais contentamentos, Nós ficamos sem ti nesta baixeza, Em mágoas, em
misérias, em
tormentos.

Pesa sobre a memória de Bernardes a grave acusação de haver
roubado bastantes sonetos,
éclogas e o poema de Santa Úrsula ao cantor dos Lusíadas, o que é para lamentar-se em um
poeta de tanto mérito.

Para não alongar demasiado
esta lição deixamos de fazer
excertos de alguns outros poetas que nesse século se en-
tregaram
à espécie
bucólica, como sejam
Pero de Andrade
Caminha,
Fernão Alvares d’Orienté, e Maneei da Veiga, que
todos, com mais ou menos felicidade, adquiriram boa reputação
nessa espécie, com que tanto se conforma o caráter nacional.
Dos nomes acima citados o mais justamente célebre é sem
dúvida o de
Fernão Álvares d’Orienté, pela frescura de sua
imaginação, sendo profundamente para lamentar que, nas-
cido nas poéticas ribas do
Ganges, não se inspirasse dos es-
plendores da natureza tropical para só cantar na sua
Lusitâ-
nia transformada,
o clima e os costumes da Europa que só por
tradição conhecia.
                                                   .. t

 

Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

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