Gil Vicente, Poesia dramática e origens do Teatro Português

Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)

CURSO DE LITERATURA NACIONAL

LIÇÃO XI

gênero dramático

Estudemos a origem do
teatro português antes de anali­sarmos as obras dos que nele maior nomeada
obtiveram na época de que nos ocupamos.

Nos primeiros séculos
da monarquia nada encontramos
de semelhante às representações dramáticas, que eram
ape­nas conhecidas por alguns povos da Europa que nos prece­deram neste
gênero, tais como os da Itália
e França. Davam os nossos avós preferência à caça, como meio de destruir os
animais malignos, e às justas e torneios, mais aptos para
adestrar-lhes os corpos,
servindo-lhes de simulacros da guer­ra, em que de contínuo viviam.

Julga Aragão Morato 1 descobrir o gérmen do
teatro na­cional nesses momos,
entremeses, guindas e galantarias
de mouros e judeus que recreavam a corte de D. João I e de seus imediatos
sucessores, divertimentos quase- sempre acompa­nhados de danças e de músicas,
agrestes e ruidosas, como soem aprazer aos ânimos grosseiros.

1 Memória sobre o
teatro português,
por Francrsco Trigoso de Aragão Morato, inserta no tomo 5? das Memórias da Academia
Real das Ciências de Lisboa.

"É provável que
as touras e guindas (diz o referido es­critor) fossem rebuços, ou máscaras com
que os mouros e


judeus se disfarçavam
para fazer as suas danças e folias, e para arremedarem o
espetáculo dos touros. Os momos
não passavam ordinariamente de representações mímicas acompa­nhadas de dança,
que precediam quase sempre as justas e tor­neios e lhes serviam de desafio.
Finalmente os que Rezende chama entremeses e representações eram figuras, ou
maqui­nas, que entravam e saíam, e que pela novidade dos trajes, ou pela
semelhança que tinham com as cousas figuradas, enchiam ora de admiração, ora de
assombro aos espectadores."
1

Nem sempre porém eram
mudos esses momos e entreme­ses, e em muitos-casos dirigiam as personagens
palavras aco­modadas ao
caráter que representavam; mas essas falas em prosa,
ou em verso, estavam muito longe das representações dramáticas, como devem ser
entendidas, e só mui remotamente se podem ligar à história do nosso teatro.

A Gil Vicente cabe
indubitavelmente a glória de criador da cena lusitana, e o seu monólogo
pastoril, recitado no ano de
1502 por ocasião do nascimento do príncipe D. João,
depois terceiro rei deste nome,
serviu-lhe de incentivo a muitos e mais completos
trabalhos.

Diz-nos Luís Vicente, no
prefácio à primeva edição das obras de seu pai, que semelhante monólogo
agradara tanto à rainha D. Maria, que lhe pedira que apresentasse isto mesmo
nas matinas do natal, aplicando-o ao nascimento do Reden­tor, o que não achando
o poeta conveniente, compusera um
auto em que entravam seis pastores, e que
adquirindo nova fama fora sucessivamente escrevendo outros por espaço de trinta
e quatro anos, e durante os reinados de D. Manuel e D. João III.

Muito se tem discutido
acerca da originalidade do pri­meiro dramaturgo português, apresentando-o
alguns como mestre e discípulo de si mesmo, e outros como um mero co­pista e servil
imitador dos franceses e espanhóis. Examine­mos perfuntoriamente este ponto.

1 Memória
sobre o teatro português,
pág. 45.

Reconhecemos
com Aragão Morato que na carreira dra­mática nos precederam a Itália, a França
e a própria Espa­nha; e que um século antes de Gil Vicente eram representa­das
nas cortes dos príncipes italianos as tragédias e comédias de Angelo Poliziano
e Ludovico Ariosto, imitadas dos gregos e dos romanos. Não cremos porém que
tais composições, quan­do conhecidas por Gil Vicente, influenciassem a sua
musa, demasiadamente livre para
moldar-se pelas regras clássicas.

Nem melhor fundada nos parece
a opinião dos que o fazem discípulo de João de
la Enzina, porque este poeta
castelhano, mui popular nessa época, como se
colige do Cancioneiro de Garcia de Rezende, não
escreveu senão dramas pastoris, a que apelidava
aVèglogas, e não podia portanto servir de
norma a
Gil Vicente
na vastidão de seu plano.

Propendemos para os que pensam achar no
teatro francês, que desde a primeira metade do décimo quinto século
desabro­chara, os modelos a que talvez
recorresse o dramaturgo portu­guês, a quem por certo não foram estranhas a
História da Vida de Cristo, por João Michel, e a Farça do advogado Pathelin: como nos testifica o seu Breve sumário da História de
Deus, desde o princípio do mundo até a resurreição de Cristo,
em que Gil Vicente parece imitar a
primeira das obras supra­citadas. Em muitos lugares das suas peças nota-se o
apreço que fazia dos autores franceses, e é muito possível que se inspiras­se
dessa escola quanto lhe permitia a originalidade que desejava sempre guardar.

Falemos agora dos principais
representantes da cena que acabava de criar-se.

GIL VICENTE

Colocado à frente dos nossos
dramaturgos pela prioridade dos seus trabalhos justo é que lhe consagremos
algumas páginas.

Parece hoje averiguado que em
1470 nascera este ilustre poeta em Lisboa; posto que Guimarães e Barcelos por
muito tempo lhe disputassem essa honra. Oriundo de família distinta, formou-se
em direito civil na universidade de Coimbra; não constando porém que servisse
lugar algum de magistratura, nem tão pouco advogasse. Decidida vocação para a
poesia arredava-o quiçá de qualquer outro emprego; devendo a seus talentos a
boa aceitação de que gozou na corte de D. Manuel.

Já vimos por que ocasião se
desenvolvera nele o talento dramático destinado a essa nobre e
infortunada carreira sua longa e gloriosa
existência. Fixada a residência na corte, e cremos mesmo que no paço real, não
houve festividade, mo­tivo de regozijo público, em que não fosse solicitada a
sua fecunda musa.

1   Bouterweck, Lütérature portugaise et
espagnole.
page 190.

Tão grande foi a sua nomeada,
diz um crítico alemão,1 que não havia por esse tempo poeta cômico
mais
afamado, nem mais querido dos seus do
que o poeta português. Não se limitava sua reputação unicamente a Portugal,
estendendo-se por toda a parte; a ponto de dizer-se que o grande literato
holandês Erasmo aprendera a nossa língua só para 1er as obras do que ele
denominava
rival
de Flauto.

Duvidava porém a fátua mediocridade do gênio
inventivo do poeta, e, como já dissemos, não faltou quem o suspeitasse de
plagiário. Desenganou-os vitoriosamente Gil Vicente; pois que, achando-os
reunidos em um dos serões do paço, a que costumava assistir, pediu-lhes que lhe
dessem um assunto para compor uma farsa, e sendo-lhe designado o
rifão popular: antes quero burro que me leve
que cavalo que me derrube,
ser­viu ele de tema à espirituosa farsa d’Inès Pereira. "A enge­nhosa aplicação
deste provérbio, diz Barreto Feio, as situações verdadeiramente cômicas que se
encontram nesta farsa, a verdade sempre sustentada com que pinta os caracteres
de
Inês, de Pero e do Escudeiro; a
naturalidade, graça e
fluên­cia do diálogo, o inimitável sal, a elegância de estilo, a
música harmoniosa da
versificação, formam a mais vitoriosa resposta que jamais escritor,
em iguais circunstâncias, deu a seus
zoilos".2

Depreende-se de algumas
passagens das suas obras que saíra em pobreza o grande cômico; talvez porque
confiando demasiadamente na proteção dos grandes consumisse o seu patrimônio,
ou porque não remunerassem estes com genero­sidade. São bem característicos os
seguintes versos por ele dirigidos ao conde de
Vimioso:

Agora trago entre dedos

Uma farsa mui fermosa;

Chamo-a "A caça dos
segredos",

De que ficareis mui ledos

E a minha dita ociosa.

Que o medrar,

Se estivera em trabalhar,

Ou valera o merecer,

Eu tivera que comer,

E que dar, e que deixar.

2 Ensaio sobre a vida e escritos de Gil Vicente, por J. Barreto Feio, p. 14.

Gil Vicente faleceu em Évora no ano de 1536, em que
escreveu a comédia denominada:
Floresta dos enganos. Her­daram-lhe seus dois filhos
(Luís e Paula) o talento dramáti­
co; sendo a última afamada pelas suas muitas letras, que
a tornavam um dos ornamentos da academia feminina funda­da pela infanta D.
Maria, filha de el-rei D. Manuel.

Em três classes podem-se
dividir as peças de
Gil Vicente; a saber, os autos, a que muitas vezes deu a forma
de
farsas, alargando
assim os estreitos limites que lhe eram assinados; as
tragicoméãias, gênero bastardo, que servia de
meio termo entre a tragédia e a comédia; e finalmente as
farsas e comé­dias, em que melhor sabia
desenvolver o seu talento. Seu principal móvel em todas essas composições era divertir
a corte por constantes alusões, por sátiras indiretas e também por
personalidades no gosto de
Aristófanes. Sabemos pelo teste­munho dos cronistas contemporâneos
que não raro era o achar-se presente a pessoa a quem o poeta dirigia as suas
ervadas setas: e maravilha-nos que tão grande fosse a liber­dade de que então
gozavam as letras em Portugal.

Bem estranhos pareceram os
elogios prodigalizados a
Gil Vicente a quem quiser julgar o seu teatro pelas regras
clássicas, que acintosamente desprezou, posto que muito bem as conhecesse.
Partindo do princípio de que o drama deve ser a fiel expressão da vida, espécie
de fotografia moral, quis falar aos seus contemporâneos a única linguagem para
eles compreensível.

Formava a Bíblia, em cuja
lição era mui versado, a base da sua erudição, não descobrindo-se em suas
composições ne­nhum vestígio dos teatros grego e romano. Assim pois não divide
seus dramas em atos 1; menosprezando inteiramente as unidades, como
se vê no já referido
Breve sumário da História de Deus, em que os seus interlocutores
Adão, Moisés e Jesus Cristo, tendo vivido em tão diversas épocas, aparecem
suces­sivamente na mesma cena. Nem menos anômalo é o enredo; por isso que os
personagens chegam, falam e se retiram quan­do lhes
apraz e sem que disso sejam
instruídos os espec­tadores. Falta as mais das vezes nexo aos episódios, que de
todo se destacam da ação principal. E para cúmulo de mons­truosidades são estas
peças simultaneamente escritas em por­tuguês e espanhol, e em versos
endecassílabos, de arte maior e de redondilha.

Para com justiça julgar o
patriarca da cena portuguesa releva que nos transportemos ao tempo em que ele
vivia,

1 A comédia de Rubena é a única que aparece dividida em atos, e assim mesmo
chamados
cenas.

estudemos os usos
dessa sociedade já de nós tão remota. Assim, v. g., quem não achará
inconveniente o emprego de algumas frases e vocábulos, impróprios hoje da mais
ínfima plebe, e que no entanto causavam prazer e eram ouvidos sem escân­dalo
pelas honestas e delicadas damas das cortes de D. Manuel e D. João III? Não
somos também obrigados a usar de perí-frases para exprimir o que com tanta
naturalidade disseram os autores hagiógrafos? Consistindo a obscen;dade
na
idéia, e não nas palavras,
claro é que seguem estas uma escala móvel.

Arrastado pela
torrente do mau gosto, confundiu Gil Vi­cente o sagrado com o profano, vício
este a que não escapou o próprio Camões. Umas vezes as diversas hierarquias de
anjos, as estações do ano e o mesmo Júpiter vem adorar o Deus Menino;
segue-se-lhes Davi, repetindo salmos, e termina a representação com um
Te Deum laudamus. Outras vezes apa­rece
um padre que vem casar dois noivos:
ouve-se um diálogo entre Jesus Cristo e Satanás acerca
dos perigos das tenta­ções; e para remate dos absurdos são alteradas as
palavras das Escrituras e das preces da Igreja, como quando um frade chega do
inferno recitando uma espécie de invitatório amoro­so de que usava no mundo, e
prega por último um sermão com este tema:
Amor vincit omnia.

Para melhor
compreensão do que acabamos de escrever releva que digamos duas palavras sobre
o modo por que eram nesse tempo representados
os autos.

Depreende-se da leitura das crônicas que as peças dramá­ticas
serviam a miúdo de continuação ao serviço divino, e que os povos, depois de
assistirem a estes, nos quais parece que pouca parte tomavam, corriam às
representações dramáticas, em que esperavam santificar com imagem sagrada o que
de profano havia no divertimento, e de certo modo
tatearem as verdades e
mistérios da religião, que por metafísicos esca­pavam a seu rude engenho.
Vê-se pois que um pio e
louvável sentimento presidiu à criação dos
autos, cujos abusos porém foi
bem depressa forçada a Igreja a coibir.

Geral era por toda a
Europa o uso dos dramas sacros cha­mados pelos franceses
mistérios e pelos ingleses milagres. Com­parados com os dos
seus antecessores e contemporâneos mui graves e decentes eram os
autos do poeta português: pois que os franceses
e castelhanos
levaram-nos a um grau de exagera­ção repreensível.

Uma das causas que por
certo mais contribuiu para o de­salinho e pouco estudo que se notam na mor
parte das peças de Gil Vicente consiste na absoluta falta de um auditório justo
e imparcial, e de um público composto de todas as classes da sociedade.
Escrevia ele para os fidalgos em cuja presença e muitas vezes em cujos paços
representava seus dramas. Imo­lava a substância à forma; e havendo provocado a
hilaridade finda julgava a sua missão. Ninguém porém melhor do que ele conhecia
o falso terreno que trilhava, e talvez que consigo dissesse o que em idêntica
situação escrevia Lope de Vega:

Sustento en fin lo que
escribi y conozco Que aunque fuera mejor de otra manera, No tuvieran el gusto
que han tenido. Porque á veces lo que es centra el justo Por la misma razon
deleita el gusto i.

Posto que não se desse
Gil Vicente ao estudo dos caracte­res, e não fosse a moralidade o alvo das suas
composições, não se olvidou contudo de introduzi-la sempre que para isso achava
azada ocasião. Assim v. g. se encentra em suas comédias um usurário logrado por
um cavaleiro de indústria; um ministro prevaricador por uma moça ladina;
coberta de ridículo a as­trologia judiciária muito em voga nessa época; e
finalmente humilhada a soberba dos ricos e poderosos. Nem menos digna de
encómios é a franqueza com que se exprimia, nem menos honrosa para a corte
perante a qual representava, e que muitas vezes, como já dissemos, era ferida
pelos seus sarcásticos gracejos.

A fim de dar uma
ligeira idéa das obras dramáticas de Gil Vicente, vamos rapidamente analisar
uma das suas mais espiri­tuosas farsas denominada
Mofina Mendes, representada diante de
D. João III por ocasião das matinas do Natal de
1534.

Entra em cena um
frade; a maneira de sermão recita o argumento da farsa, na qual acumula para
ach ncalhar muitos nomes de autores sagrados e profanos. Explicando a sua apa­rição
na cena diz o frade:

Mandaram-me aqui subir Neste santo
anfiteatro Para aqui introduzir As figuras que hão de vir Com todo o seu
aparato.

É de notar

Que haveis de
considerar
Isto ser
contemp.ação

»   Arte nuevo de
hacer
comedias.

Fora da história geral, Mas
fundada em devoção.

Findo o prólogo, aparece a
Virgem Maria acompanhada de suas damas, a Fé, a Pobreza, a Prudência e a
Humildade. Vem depois o anjo Gabriel fazer a anunciação com estes lin­dos
versos:

Oh! Deus te salve, Maria, Cheia de
graça, graciosa, Dos pecadores abr go! Goza-te com alegria, Humana e divina
rosa, Porque o Senhor é contigo.

Cerra-se a cortina, ajuntam-se
os pastores para saudarem o nascimento do Messias; e depois de haverem recitado
um extenso diálogo, deitam-se, e dormem. No entanto mostra se em público a
Virgem, S. José e a Fé, que juntamente com as outras virtudes rezam genuflexas
um salmo
marchetado de latim e português. Ordenando a Virgem à Esperança
que acen­da uma vela, responde-lhe S. José com bastante espírito:

Senhora, não monta mais Semear
milho nos rios, Que querermos por sinais Meter cosas
divinais Nas cabeças dos bugios.

Mandai-lhe acender candeias,
Que chamem
oiro e fazenda, E vereis bailar baleias; Porque irão tirar das veias O lume com
que se acenda. E à gente religiosa Manda-lhes velas
bispais; A cera de renda grossa; Os pavios de casais; E logo não porão grosa.

Terminada esta cena, chora o
Menino posto em seu berço e embalam-no cantando as Virtudes; anuncia o anjo a
vinda dos pastores, que entram tangendo os seus instrumentos, e,
for­nindo um baile, com ele finalizam a farsa.

Concordamos com Sismondi
quando julga
as tragicome­dias como a parte mais imperfeita
das obras dramáticas de
Gil Vicente; podendo apenas recomendarem-se pela graciosi­dade de algumas cenas que foram
escritas por motivo da partida da infanta D. Beatriz, casada com o duque de
Sabóia, e denominadas Nau de Amores e Frágua de Amores.

No unânime pensar dos críticos
ocupam os primeiros lu­gares entre as farsas a intitulada
Inês Pereira, a que já nos referimos, pela vivacidade do diálogo; e a do Juiz da Beira pela sua vis cômica e fiel desenho dos costumes do
tempo.

No nosso humilde conceito o
mais bem acabado e mais
chistoso dos seus autos é o da Feira da Virgem, que podemos opor aos melhores
de Lope de
Vega e Calderon de la Barca. Citemos dentre infinitas belezas que nela
abundam o seguinte trecho da fala do Tempo:

Em nome daquele que rege nas
praças
D’Anvers e Medina as feiras que têm, Começa-se a feira chamada das graças, A honra da
Virgem parida em Belém. Quem quiser feirar

Venha trocar, que eu não hei de
vender; Todas virtudes que houverem
m’ster Nesta minha tenda as podem achar A troco de coisas que
hão de trazer.

Além do estudo da língua e dos
costumes do tempo, lucra com a leitura das obras de
Gil Vicente quem desejar
inteirar-se cabalmente da história do teatro português. Verá aí que então representavam
os atores em anfiteatros, isto é, em luga­res mais elevados do que os assentos
dos espectadores; que havia mutações de cena, operadas por meio de bastidores e
cortinas; que já eram usadas grande número de máquinas teatrais; oferecendo o
dramaturgo aos espectadores do
Triunfo do Inverno, "uma vista de mar com
navios e toda a confusão de uma
tormenta," segundo no-lo afirma um grave cronista.1

Pela vereda que tão bem se
estreara Gil-Vicente trilha­ram ainda alguns engenhos lusitanos, entre os quais
importa fazer expressa menção do infante D. Luís,
Antonio Prestes, Antônio Ribeiro (Chiado), Jerônimo Ribeiro e do próprio au­tor
dos
Lusíadas, que não se
dedignou de imitá-lo. Soara porém a derradeira hora da escola dos
trovadores; e Sá de Miranda e Ferreira
apressavam-se a inaugurar a
era itálica.

FRANCISCO
DE
SA DE MIRANDA

Francisco de Sá de Miranda é
autor de duas comédias clássicas, as quais Sismonde de Sismondi denominou de
eru­ditas. Apartando-se do impulso tão
felizmente dado por
Gil Vicente, imitou os italianos a ponto tal de desnacionalizar as

J   Garcia de Rezende, Hida da Infanta D. Beatriz para
a
Sabóia.

suas composições que de
português só têm a linguagem. Fa­lemos de cada uma delas.

Os Estrangeiros, comédia em cinco atos, impressa
pela primeira vez em Coimbra em 1569, e dedicada ao cardeal D. Henrique, que
foi rei de Portugal. Fraco é o seu assunto consistindo em uma banal intriga
amorosa entre alguns es­trangeiros reunidos acidentalmente em
Palermo. Mal susten­tados são os
caracteres, se excetuarmos os do doutor Petrônio, e do velho
Reinaldo: frio e monótono o diálogo:
revelando a infância da arte e as poucas disposições que para ela tinha o
autor. A falta de nexo entre as várias cenas de um mesmo ato é outro defeito
que não pode escapar à crítica; assim como o pouco espírito, a quase nenhuma
vis cômica, que se nota em seus graciosos. Os extensíssimos monólogos em que abunda a
comédia de que nos ocupamos deveram ser um gran­de embaraço para a sua
representação, ainda no tempo em que podia ela aparecer no palco.

Através dessas imperfeições,
descobrem-se algumas bele­zas que recomendam a sua leitura. Não faltam aí os
princípios filosóficos, que
granjearam ao seu autor o título de Séneca português; nem o conhecimento do coração humano,
de que tantas provas dera em suas
rimas. No começo do quinto ato a fala de Reinaldo é o modelo da linguagem que
convém a um pai que peregrinava em busca de sua filha. Façamo-lhe um excerto
para sua melhor apreciação:

Reinaldo,

No cabo desta minha tão longa e
trabalhosa jornada, quando os outros descansam começa o mor cansaço meu, com a
dúvida que tenho se acharei aqui uma filha em cuja busca venho. Té agora na
minha esperança ia passando meus males, sem ela como passarei isso que fica de
vida? O mor bem que neste mundo tive que foi a mãe desta moça, a morte o levou
dias há, o da filha que me em seu lugar fi­cava, se m’o também tem levado fê-lo
cruelmente crmigo, que me não deixou nesta vida a que possa alevantar somente
os clhos. Aque­le foi o meu primeiro amor, aquele será o derradeiro, a grande
dor da sua morte me lançou então de toda a Itália, o desejo da f lha me trouxe
agora cá…

O caráter do vaidoso Petrônio
que, preconizando a sua profissão, rebaixa as outras, é
admiravelmente desenhado na quarta cena do
ato terceiro quando assim se exprime:

Desde que homem nasce até que
morre não trata
cousa de mor peso, que a do seu casamento que cada dia
rematamos tão levemen­te. Grande feito que se te vendem um
rocim manso, ou uma mula maliciosa,
logo aí são mil leis a te ajudar, e tem procuradores tanto que dizer e alegar,
e na tua mulher por quem deixamos os pais, e as mães, ali os desampara tudo, e
só a morte pode ser boa. Pelo que estive tanto tempo solteiro vim aqui, com sós
as letras de que me a fortuna não pode roubar: com elas me remediei, que a
estes nossos direitos não se lhes pode negar o senhorio de todas as outras c
ên-cias. Os Teólogos jazem por todos esses mosteiros
mendicantes como se eles chamam. Filósofos
já passaram mal
avindo uns com os ou­tros, com as suas barbas, e gravidade.
Poetas tudo põem em flores; pelo fruto não
espereis. Os Oradores nós os tiramos das
suas vezes. Os
Astrólogos sempre tratam do porvir de que eles, nem ninguém, sabem
pouco, nem muito. Físicos ganham bem que comer, porém é com ourinho na mão.
Artistas debatem sempre sobre a lã da porca, e antre todos estes não há um
homem de negócio: somente o
Juris­consulto é o que pode tratar, e rematar
dúvidas de substância. To­davia frades entremeter-se queriam, mas não têm asas
com que voem, que a vontade não lhes falece. Só o Jurista pode andar com o
peito alto e satisfeito do seu saber quer seja para concertar as coisas desta
vida, quer da outra. Isto é o que te revela e crê-me que não busca ninguém
senão o que te há mister.

Como se vê, pura e castiça é a
locução empregada por Sá de Miranda,
incontestavelmente um dos maiores mestres da
língua, e as frases que hoje aos nossos ouvidos parecem áspe­ras eram as mais
finas e delicadas em seu tempo.

Os Vilhalpandos. — Moldada pelo Miles gloriosus de Piau to é esta comédia de
Sá de Miranda, também impressa em Coimbra nove anos antes (1560), e igualmente
dedicada ao cardeal Dom Henrique. Consta o assunto dessa peça das seguintes
palavras proferidas pela Fama, que faz o prólogo:

Nós estamos em Roma; naquelas
duas casas vivem do’s velhos cidadãos, cujos nomes vedes cada um sobre a sua
porta. O Pompô-n?o tem um filho a que chamam Cesarião, o qual filho,
o pai e a mãe andam por tirar do cativeiro duma destas suas
cortesãs (que assim lhe chamam). O pai
por razão e autoridade e a mãe por devoções; faz dele tudo o que quer.

Como era de esperar casa
Cesarião com
Aurélia e tudo se acomoda do melhor modo possível, terminando
destarte a ação.

Os mesmos defeitos e
incoerências que assinalamos nos
Estrangeiros existem nos Vilhalpandos que lhe precederam alguns anos, como se verifica pela
data das suas respectivas impressões, que deixamos apontadas. No nosso entender
é esta comédia inferior à que primeiro analisamos, sendo os seus caracteres
ainda mais imperfeitos.

A sátira porém é manejada com
mais graça nos
Vilhalpan­dos do que nos Estrangeiros e algumas vezes sabe o autor ter espírito e provocar a hilaridade sem por
forma alguma roçar nos
baixios da obscenidade. Sirva de exemplo a maneira por que o fanfarrão
do Vilhalpando (soldado espanhol) caracteri­za os pcetas:

"E tu cuidavas que eu era como estes poetas,
que andam sempre falando consigo, e
cacarejam mais um verso, que uma galinha
o seu ovo."

Nem menos mordaz é o dito de Milvo, que falando
das mulheres de diversas nacionalidades diz:

"Demos, mas seja porém
Italiana, que tudo mais é vento. Francesas e Alemãs, conquanto muito vinho
bebam, são mais frias do que uma pouca de água, Espanholas todas vem já
coroadas de Caleze, de
Valença, de Aragão: e sempre o broquel do rufião há de luzir em algum canto da casa como por posse. Ora que rosto é
o de uma Romana, que graça das Bolonhesas, e Mantuanas."

Distingue-se pela sua vivacidade e fina crítica o diálogo entre
Antonioto e o
ermitão Apolônio. Citemo-lo textualmente:

apolônio

Por aqui há de ser segunda a
informação hei de esperar piloto que me navegue.

antonioto

Torno a guardar aquele ermitão, o que azimei tão pesado da rédea, de quão
prestes é a grega.

apolônio

DOminum,
Domínum, Dominum.

antonioto

E porém às vezes assi carrancudos e de má graça enganam mais.

apolônio

Dominum,
Dominum meum, Dominum meum.

antonioto

E os agudos que querem dar razão a tudo às vezes se
perdem.

apolônio

Conturbatus,
conturbatus.

antonioto

Este é bom, vem, como dizem, em hábito e tonsura.

apolônio

Abrenuntio, abrenuntio,
abrenuntio.

antonioto

Apolônio, deixa de rezar e escuta.

apolônio

N&o pode homem em
Roma acabar uma oração em paz
e por isso é melhor estar só na minha lapa.

antonioto

Ah! ah! ah! que também me queres enganar a mim.

apolônio

Oh! ta eras, não te conhecia; como está a casa?

antonioto

Vosso amo repousa, vossa ama te espera.

apolônio

Bem está.

antonioto

O que logo puderes recadar não o deixes para depois.

apolônio

Mas deixá-lo-ia para dia de San-Circijo.

antonioto

Espanta, apanha e despacha-te.

apolônio

Bem te ouço.

antonioto

Se te enrequererem muito, faz-te agastadiço e de poucas
palavras.

apolônio

Tudo me lembrará.

antonioto

Aquela é a casa, vai muito em hora má.


Má seja para ti.

antonioto

Quem anda neste mundo
em seu hábito, nem em seu próprio rosto? De alguns religiosos saem enganos, dos
Regedores as desordenanças, dos letrados as cautelas, assi como das boticas as
peçonhas. E, como dizem os beleguines são os que roubam as c:dades.
De que fazem em Roma os oficiais tais quintas? Quem sabe de nossa casa? O velho
ó em outro posto, esperarei o ermitão a tornada, que já sabe onde há de acudir.

A imitação de Gil
Vicente, mistura Sá de Miranda era suas comédias o português com o espanhol,
pondo na boca dos dois Vilhalpandos muitas frases e canções nesta última
língua. Era este um abuso tão generalizado que não podiam a ele
subtrair-se os próprios mestres da
língua e
legisladores do Parnaso.

Nada tinham de
populares as comédias de Sá de Miranda
: não podiam ser compreendidas e apreciadas como o foram
as peças de Gil Vicente:
faltava-lhes o cunho nacional; pois os assuntos,
personagens e até os lugares das cenas não perten­ciam a Portugal. Produzidas
pela
reação clássica,
inaugu­rada por ele, só à nata da sociedade poderiam agradar, e de fato foi
perante ela que subiram à cena, e dela que rece­beram louvores.

"As comédias de
Sá de Miranda, diz Costa e Silva, apesar dos seus visíveis defeitos, e dos seus
desgraçadíssimos desfe­chos, foram representadas com todo o aparato e pompa no
palácio do cardeal D. Henrique, que fazia delas muito apreço e até as mandou
imprimir a sua custa depois da morte do autor; nem deve
estranhar-se que um cardeal se
divertisse fazendo representar comédias no seu alcaçar, quando o Sumo Pon­tífice
Leão X despendeu grossas somas na representação das de Bibbiena e de Ariosto,
sem comparação mais livres, e muito menos modestas, que as de Sá de Miranda.

i Ensaio biog. e
critico.
Tom. n, Cap. n.

"O poeta ficou
mui satisfeito com os aplausos com que as acolheu o auditório, composto de
fidalgos, prelados, frades e outros eclesiásticos reunidos no paço do
infante-cardeal; mas se nesse tempo existisse em Lisboa um teatro público e
nele se representassem as duas comédias, é mais que provável que lá não fossem
recebidas tão lisonjeiramente."
1

ANTONIO FERREIRA

Deixou-nos este exímio poeta
duas comédias,
Bristo e o Cioso, e uma
tragédia, a que denominou
Castro. Invertendo a ordem cronológica, ocupar-nos-emos de
preferência com a tragédia
Castro, em cinco atos, escrita em versos heróicos e líricos,
sendo a primeira tragédia regular que contou a língua portuguesa, é a segunda
em toda a Europa. Tomando por objeto um fato da história pátria, guiou-se
Ferreira pelos clássicos gregos, e parece que nenhuma influência sobre o seu
estro exercera a famosa
Sofonisba, de Trissini, que teve a glória de inaugurar o teatro
do renascimento literário, nem tão pouco pensamos haver ele conhecido as duas
informes tra­gédias de
Rucellai, que nessa época encantavam a Itália.

eminentemente clássico, seguiu
Ferreira as pisadas
de Só­focles, Esquilo e Eurípedes, apartando se unicamente nos
lugares em que impossível se tornava a imitação. É pois esta excelente tragédia
mais apropriada à leitura do que à repre­sentação, que não nos consta que
jamais tivesse. Tão longe levou p poeta português o seu respeito pelo teatro
grego, que não duvidou introduzir em sua peça os coros, que podem ser
considerados como uma planta
helénica, que nunca germinara em solo
estranho; porque, como
otimamente pondera Schlegel "não lhe sendo a nossa
dança e a nossa música apropriadas, nem existindo tão pouco para eles lugar em
nossos teatros, baldadas serão sempre as tentativas para naturalizá-los entre
os modernos." 1

Percorramos perfuntoriamente
esse monumento da nossa brilhante literatura, e assinalemos com franqueza seus
pri­mores e também suas
nódoas.

Abre-se a cena por uma linda
canção de D.
Inês convi­dando as suas amigas a regozijarem-se pelo
júbilo que lhe inunda o peito:

Colhei, colhei alegres,

Donzelas minhas, mil cheirosas
flores:

Tecei frescas capelas

De lírios e de rosas, coroai
todas

As douradas cabeças.

Expirem suaves cheiros,

1  W. Schlegel, Cours de Littérature
dramatique.
Tom. I, 1. Hl.

De que se encha este ar todo.

Causado era esse
júbilo pela certeza que do seu amor lhe dera o infante D. Pedro, que lhe jurara
jamais se desprenderia de seus braços, arrostando para esse fim todos os
obstáculos que se lhe pudessem opor. Enlevado pelas graças de D. Inês,
exclamara o herdeiro da monarquia:

Por ti a vida me é
doce, por ti espero

Acrescentar impérios,
sem ti o mundo

Duro deserto me
pareceria.

Não poderá fortuna, não
os homens,

Não estrelas, não
fados, não planetas

Apartar-me de
ti, por arte, ou força.

Nesta tua mão te ponho
f rme e fixa

Minhalma; por Ifante te
nomeio,

Do meu amor senhora, e
do alto estado

Que me espera e teu
nome me faz doce.

O coro, que, no pensar
dos gregos, era um espectador ideal representante das
idéias populares, toma o seu
papel na tragé­dia de Ferreira e censura no príncipe sua imperiosa e indo­mável
vontade, que nem às leis da razão queria
submeter-se.

Recomendável é o diálogo
da terceira cena entre o in­fante e o seu secretário, que com rude lealdade lhe
lembra os seus deveres de filho e de primeiro vassalo. É admirável a resposta
do fiel servidor a quem D. Pedro, agastado pelas suas admoestações, pergunta:

Quem tão livre te fez e
tão ousado?

secretário

Amor e lealdade esta
ousadia

Me dão: dá-me a razão que tem tal
força

Que inda que se não
siga, não se nega.

O caráter do infante, que tão
frio e secundário se há de mostrar no decurso da peça, lança aqui um vivo
lampejo nestas hiperbólicas expressões:

Não cuidem que me posso
apartar donde Estou todo, onde vivo, que primeiro A terra subirá onde os céus
andam, O mar abrasará os céus e a terra, O fogo será frio, o sol escuro,

A lua dará dia, e todo
o mundo
                                                   ,

Andará ao contrário de
sua ordem

Que eu, ó Castro, te
deixe, ou nisso cude.

Termina o primeiro ato
por dois belos trechos líricos que o poeta empresta ao coro e que derramam
extraordinário en­canto, oferecendo uma agradável diversão à áspera discussão
suscitada entre o infante e o seu secretário.

Destina-se o segundo ato a apresentar-nos a sessão do conselho áulico em que foi decidida a
morte de D. Inês. Com razão pensa o Sr. Martinez de la Rosa que o papel de D.
Afonso IV é
ignóbil; mas nsto cingiu-se o poeta
à história, nenhum lugar deixando à fantasia. Bem desenhados são os caracteres
de Coelho e Pacheco, que levados por implacável ódio que votavam à família
Castro, queriam satisfazer suas particula­res vinganças envoltas no que
chamavam
razões de estado. A fraqueza, e culpável condescendência do rei, bem
compará­vel à de Pilatos, é, como há pouco dissemos, essencialmente histórica,
não cumprindo ao dramaturgo alterar um
caráter, que os fatos nacionais haviam registrado.
Remata também o coro este ato com uma magnífica ode sobre a triste situação em
que se acham colocados os reis, em que se lêem estas
sen­tenciosas estrofes:

Res poderosos, Príncipes,
Monarcas, Sobre nós pondes vossos pés, pisai-nos, Mas sobre vós está sempre a
fortuna,

Nós livre dela. Nos
altos muros soam mais os ventos, As mais crescidas árvores se derribam, As mais
inchadas velas no mar rompem.

Caem mores torres.
Pompas e ventos, títulos inchados, Não dão descanso, nem mais doce sono; Antes
mais cansam, antes em mais medo

Põem, e perigo. Como se
volvem no grã mar as  ondas, Assi se volvem estes peitos cheios, E nunca
fartos, nunca satisfeitos,

Nunca seguros.

O sonho da
protagonista que se lê no terceiro ato, e os terrores por ele causados, os
quais em vão busca dissipar a desvelada ama, é de excelente efeito dramático,
sendo para lamentar que por extensas e declamatórias percam as falas do seu
intrínseco valor.

A cena segunda, em que
vem o coro participar à D. Inês a aproximação da terrível hora de sua morte,
pois que para Coimbra se encaminhava
el-rei com grande séquito, é real­mente bem traçada;
e com especialdade a ansiedade da dama em inquirir novas de seu esposo. Nada
porém descobrimos de sublime nestas palavras:

He morto o meu senhor?
o meu Ifante?

comparadas por alguns
escritores ao célebre
"qu’il mourút", de Corneille.

Não menos bela e sentenciosa é a parte lírica, com
que finaliza o coro este ato, discorrendo acerca da instabilidade das coisas
humanas.

É o quarto ato o lugar
mais patético de toda a tragédia, e a súplica de D. Inês ao seu cruel sogro
pode ser apontada como um modelo neste
gênero. Dignas e sentimentais são estas expressões:

Meu Senhor, Esta é a
mãe de teus netos. Estes são
Filhos daquele filho que tanto amas, Esta é aquela
coitada mulher fraca, Contra quem vens armado de crueza. Aqui me tens. Bastava
teu mandado Pera eu segura e livre te esperar, Em ti e em minha inocência
confiada. Escusaras, senhor, todo esse estrondo LVarmas e cavaleiros, que não
foge Nem se teme a inocência da justiça, E quando meus pecados me acusaram A ti
fora buscar; a ti tomara Por vida em minha morte: agora vejo Que tu me vens
buscar. Beijo estas mãos Reais tão piedosas: pois quiseste Por ti
vir-te informar de minhas
culpas.
Conhece-mas, Senhor,
como bom Rei, Como clemente e justo, e como pai De teus vassalos todos, a quem
nunca Negaste piedade com justiça.

Quem não deixará de sensibilizar-se ao ler as despedidas,
que faz a infeliz Castro de seus filhos, quando com eles abra­çada exclama:

Abraçai-me, meus
filhos, abraçai-me,
Despedi-vos dos peitos que mamastes, Estes’ sós foram
sempre: já nos deixam Ah! já vos desampara essa mãe vossa; Que achará vosso 
pai quando vier? Achar-vos-á tão sós, sem vossa mãe: Não verá quem buscava,
verá cheias As casas e paredes de meu sangue. Ah!
vejo-vos morrer, Senhor, por
mim; Meu Senhor, já que eu morro vive tu;
Isto te peço e rogo: vive,
vive, Empara estes teus filhos que tanto amas E pague minha morte seus
desastres Se alguns os esperavam.

Comovido pelas
tocantes palavras da ilustre dama, ia
perdoar-lhe D. Afonso IV quando os seus ferozes
conselheiros lhe arrancaram o consentimento para que no sangue da ino cência
e da beleza se
embebessem seus gládios. Cheio de ani­mação é o diálogo entre o rei e os seus
indignos ministros, e palavras cheias de nobreza são postas pelo autor na boca
do monarca, a quem faltou infelizmente a necessária coragem para impedir o mal
que em seu nome se ia praticar.

Como que exausta a
musa de Ferreira pelo esforço do pa­tético que empregara no penúltimo ato,
deixou pálida e fria a catástrofe, onde releva que empregue o dramaturgo maior
talento e arte.

A lamentável notícia
da morte de D. Inês encontrou D. Pedro em seu regresso para Coimbra, quando
planejava quadros de ventura doméstica. Ouvindo do mensageiro a co­municação do
desgraçado fim de sua amada esposa prorrompe o infante em declamatórias
imprecações, mui pouco convinhá-veis à situação em que se achava, e nada
significativas da verdadeira dor.

Rigorosamente
observadas são nesta tragédia as clássicas unidades; a
ação, imitada do teatro
grego, é por demais simples. Raros são os lances dramáticos que nela se
descobrem; e certa medida parece presidir o desenvolvimento e trazer uma
forçada peripécia. O único
caráter verdadeiramente belo, e sempre com arte
sustentado, é o da protagonista; todos os mais ou são insignificantes, como o
de D. Pedro e da Ama, ou
ignó­beis como o de D. Afonso, de Coelho, e de Pacheco.
Cumpre, porém,
excetuar o do secretário, que se conserva na altura de sua
missão.

Tivemos mais de uma
ocasião de elogiar as belezas líricas dos coros; não deixaremos porém de
reconhecer que são em demasia longos para uma tragédia, ainda mesmo da classe
das
eruditas, como
a de que ora falamos.

Dura é em muitos
lugares a metrificação, perecendo-nos um vício
congênito em Ferreira, a quem o gênio da harmonia raras
vezes visitava.

Resta-nos examinar o peso que
deve merecer a grave acusação de plágio formulada por alguns críticos contra o
grande poeta lusitano.
Funda-se essa acusação na circunstân­cia de existir uma
tragédia castelhana composta por um frade domínico, natural da Galiza e por
nome Jerônimo Bermudes, que publicou alguns anos antes de aparecer impressa a
Castro de Ferreira a sua Nise lacrimosa, cujo assunto é abso­lutamente
idêntico, e cuja marcha é em tudo semelhante, che-


gando a
coincidencia a ponto de
empregarem ambas as tra­gédias as mesmas expressões.

A melhor defesa que se pode fazer do trágico português consiste, como
fez Costa e Silva,
em exibir o testemunho, su­mamente valioso, do sábio crítico espanhol o Sr. Martinez de la Rosa, que em uma nota à sua Arte poética não duvida decidir-se contra o seu compatriota,
afirmando que, posto
houvesse este publicado a sua obra em 1577, servira-se ele do
manuscrito de
Ferreira, que havendo falecido em 1569 não pôde ter o prazer de
imprimir a sua
Castro, que só viu a luz em 1536..Foi pois Bermudes, e não Ferreira o plagiário.

Bristo, comédia em cinco atos e em
prosa, publicada pela primeira vez em 1622 juntamente com a do
Cioso e as de Sá de M randa pelo impressor Antônio Álvares e dedicada a
Gaspar
Severino de Faria em agradecimento de lhas haver confiado para esse fim. — Foi
escrita esta comédia quando o autor freqüentava a Universidade de Coimbra, onde
parece que fora representada com grande aplauso, como se
colige da sua dedicatória endereçada
ao príncipe D. João, depois tercei­ro rei deste nome. Pertence à classe das
de enredo e leva gran­de vantagem sobre
as de Sá de Miranda, tanto no estilo como no diálogo. Menos
decorosas porém são as suas situações e
a obscenidade é muitas vezes o encolho de Ferreira em busca de espírito e de
graciosos trocadilhos.

Versa o enredo desta peça no loero pregado pelo rufião Bristo ao libidinoso comendador Aníbal, fazendo
com’ que a honesta donzela Camila case com Leonardo, que por mais de um título
dela se fazia digno.

Melhor conhecedor dos recursos
cênicos do que seu
pre­decessor, sabe Ferreira interessar, conduzindo a ação com mais
arte: traçando com ma^s felicidade os caracteres, como os de Bristo, Caledômo,
Roberto e de Leonardo, e ainda os de Aníbal e
Montalvão apesar de um pouco
fantásticos. Infeliz­mente porém os longos monólogos, em que o autor com pro­fusão
expande suas idéias filosóficas e princípios morais, re­tardam o caminhar da
ação.

Dssemos que Ferreira não
respeitara sempre nas suas comédias as leis da decência, caindo por vezes na
obscenidade. Esta censura, de que nenhum dos seus mais ardentes apolo­gistas o
poderá defender, procura-a atenuar o Sr.
Ferdinand Denis, alegando não serem elas distinadas ao público, e s’m à mocidade das escolas.1 Não cremos porém que a
linguagem

1.Résumé d’Histoire Littéraire du Portugal, Chap. XI.solta e as expressões
desonestas devam
tolerar-se nas casas de educação, nem jamais desejaremos que se
confundam os bancos com as tarimbas. A única explicação que a nosso ver se pode
dar de semelhante aberração da inteligência no grave e douto Ferreira é a de
haver-se deixado arrastar pelo mau gosto de sua época.

Desagrada-nos o modo por que o autor
nos apresenta em cena Brisoo tecendo uma apologia do seu indigno papel (o de
rufião)
: e, posto que adiante o
estigmatize, não de.xa de pro­duzir má impressão a sua cínica linguagem.

Verdadeiramente cômica é a cena entre Aníbal
e o sol­dado Montalvão, que à força de mentiras e adulações fazia crer ao
pretensioso comendador haver
praticado proezas, em que jamais cogitara. Excelente lição dá neste lugar o
autor aos que se deixam desfrutar pelos especuladores em treco da parva vaidade
por eles serem lisonjeados. Ainda que em demasia extenso, é bem característico
o monólogo em que o astuto soldado se gaba de haver
embaçado ao néscio fidalgo.
Citemo-lo resumindo:

Vedes ali um homem que
nunca vi, nem conheci senão dísde que entrei nesta teria. Tive ião toa manha
com eie que lhe meti em cabeça que o servira em Rodes, uns dias. De maneira que
anda que lhe agora jure o contrário já me crerá. Terra foi onde nunca pus os
pés. Toda a minha vida fui beleguim em Roma, matei lá um clérigo,
acolhi-me a este couto. A alma
não sei que tal anda, a vida queria segurar, mor medo hei à forca que ao diabo.
Quis-me Deus bem, que vim topar
com este doudo, meci-ihe mil ment ras em cabeça c?m pouco traba ho, desde que
me infoimei da sua arte, dou com ele um d a em sua casa estando jogando com os
outros (que foi grande j-cer’o).
lanço-me a seus pés, começo de abraçar, como se o sempre
conhec.ra, ele na verdade à primeira vista, ficou confuso, mas desde que me
ouviu falar em Rodes, nos Cavaleiros, nos Turcos, e dizer mil faça-
nhos que fizera, de que eu
soube, que se ele gabara mui’o, abraçcu-me,
conheceu-me, agasalhou-me, tem-me
como um Rei. Eu sou o que mando a ele, e a casa toda, é homem de boa rerda.
vão, gasta­dor, denodado, cabeça de ferro, que cem quanto não hei medo ao diabo
assombro-me com ele. O serviço que lhe faço é falar^he à vontade,
gabar-lhe quanto faz. rir-me quando ri, crer-lh?
quanto diz,
mentir-lhe isso
que posso, se chora choro, se canta bailo, se brada grito, e só com isso o
contento.
Conto-lhe coisas
que ele nunca viu, rem fez. desafios que teve, batalhas que venceu, mil perigos
de que
mD livrou, e tudo cuida que é si…

Na cena primeira do
terceiro ato o diálogo entre Cornélia e Camila é recomendável pelos sãos
prncípíos e sublimes máximas de moral com oue eram educadas nessas avós.

A inesperada aparição
do velho Píndaro, que após largos anos volve a seus lares, e que nada tem de
envergonhar-se da conduta de sua mulher e de
sua filha, a quem acha santa­mente ligada a um honrado
mancebo que soube antepor as nobres
qualidades dela às riquezas que
algures se lhe ofereciam, é um dos mais belos quadros desta
comédia, e novo testemunho do talento e proficiência do seu autor.

Bem disposto e com arte
combinado é o desfecho, que amplamente satisfaz servindo de natural
desenlace ao nó da intriga.

Como Sá de Miranda, a quem
folga /a de chamar de mes­tre, desprezou Ferreira a grande regra que manda
inspirar-se o dramaturgo-das idéias, costumes e crenças do país em que vive;
pois que, como diz
Schlegel, é a comédia uma cópia exata da realidade. Da cuidadosa
leitura de
Bristo não
podemos
co­ligir em que terra tivera lugar a ação, nem que costumes teve o autor em
vistas censurar. Supomos portanto que é esta peça uma tradução, ou antes uma
imitação de algumas das comé­dias italianas, que estavam então muito em voga,
não que­rendo pintar o cômico português a sociedade em que vivia, e que em
razão dos seus poucos anos pouco ou nada devera conhecer.

O Cioso. — Foi esta a primeira comédia
de caráter que apareceu em Portugal; e posto que não possamos fixar a época em
que fora composta, cremos ter sido ela muito posterior à de
Bristo, sendo mais adiantado em anos e
saber o doutor Antônio Ferreira. Depreende-se de sua leitura que se passa a
ação em Veneza, cujos costumes não são nem sequer esbo­çados, talvez por
desconhecê-los o autor, que não nos consta jamais deixasse o seu país natal.
Entretanto, esta comédia parece ser também tradução ou imitação do italiano.

Serve de assunto a esta peça,
que, como a precedente, é escrita em prosa com igual número de atos, a pintura
do fercz ciúme de um mercador por nome Júlio, que, suspeitando de sua própria
sombra, enclausurava sua mulher Lívia, ve-dando-lhe até ver a luz. A velha
Bromia,
aia da
desgraçada moça,
debalde procura abrandar a severidade desse Otelo de nova espécie, e o velho
César tarde se arrepende de haver sacrificado a filha aos cálculos de vil
interesse. Quando no purgatório desse malfadado casamento arrastava Lívia sua
mísera existência, chega a Veneza Bernardo,
mancebo portu­guês a quem ela outrora muito amara, vindo recomendado
ao seu zeloso marido, que, sabendo desta circunstância, recusa receber o
hóspede negando a sua identidade. Nasce a situa­ção cômica de haver Júlio
recomendado a Bromia que não abrisse a porta a ninguém, nem a ele próprio,
porque julgava
passar a noite em casa de Faustina; mas não o tendo
podido fazer por um contratempo, regressa à casa, cujo acesso lhe é vedado por
Bromia em obediência às suas próprias ordens, e para não perturbar a entrevista
que nesse momento tinha Lívia com o seu antigo amante.

Como em Bristo, conculcou ainda aqui o
autor as leis do decoro, não só na linguagem muitas vezes indecente, como nos
caracteres e lances
cômicos. Comprovam a veracidade desta asserção as cenas
entre Júlio, Faustina e Clareta no terceiro ato, e a sexta do quarto ato entre
o Cioso e a velha Bromia. Indigno é o papel destinado a Otávio, mancebo ho­nesto,
que não se devera prestar ao ignóbil mister de alcaiote.

Acérrimo imitador dos clássicos, seguiu
Ferreira o uso dos teatros grego e romano, em que o autor em longuíssimos
monólogos informava os espectadores do que se havia passado, ou se passava fora
de suas vistas, e fazia alarde dos princí­pios que professava. Como quase
sempre torna o discípulo, pela exageração, mais salientes os defeitos do
mestre, este grave inconveniente que Hegel nota na antiga arte dra­mática,
intolerável se faz nos que lhe quiseram seguir as pegadas.

Depois de ter apontado
os defeitos que mais afeiam a obra do douto magistrado, justo é que não
esqueçamos o su­mário das muitas belezas que lhe servem de remissão. A fala do
Cioso na cena terceira do
primeiro ato é mui própria para exprimir as torturas morais por que passava.
Com quanta angústia exclama ele ao
recolher-se à sua casa:

Oh! com que trabalhos
saio desta casa, o corpo anda pelas ruas, a alma cá fica espreitando as
janelas, o porque hei mor inveja aos Reis e Príncipes, porque são tão
bem-aventurados, que vem os ho­mens aos
negócios buscá-los a suas casas. Se me não fora por fazer costumes novos,
fechara estas portas, àquelas janelas
mandara-lhes deitar umas travessas. Mas antre tantos povos,
de força é que o seja. Não guardarei eu o meu tesouro, e minha honra, e minha
fama,
riem-se, e
não vêem os cegos quanta diferença vai da mulher à bolsa, morrem sobre um pouco
de ouro, que se acha por esse chão,
cavam-no, escondem-no, vig’am-no e tem-no em relíquias, nem eles
mesmo o tocam. E a mulher que é o seu verdadeiro tesouro,
deixam-no, desprezam-no, e oferecem-no aos ladrões; chama a um
destes con­fiado, e um homem que é perdido por ela, e como de poucos experi­mentados
no Mundo, vos vem a vós outros parvos estes enganos, quem anda, quem ouve, quem
vê por terras estranhas fará o que eu faço.

Repassadas de
sentimentalismo são as queixas de Lívia à sua boa ama, que se lêem na seguinte
cena, e cheios de pru­dência os conselhos que lhe dá Bromia.

Nem menos digno de elogio é o
arrependimento do velho César, que lamenta a sua cegueira, e o irreparável mal
que à sua filha causara. A cena terceira do segundo ato em que tal monólogo se
encontra é digno da delicada pena de Menandro. Como são tocantes estas
expressões de César dirigidas à sua
desditosa filha:

Não dera eu agora quanto tenho,
e quanto tinha por te ver livre, por não ver os escândalos da viz nhança, das
justiças que em ti fa­zem, e os brados de tua mãe, as suas lágrimas, e seus
arrependimen­tos magoados!
Oh! cobiça quanto podes, nem nos dás descanso neste mundo,
nem a’glória no outro, nem sei que remédio tenha!

Sublime é a indignação de Faustina na cena oitava deste mesmo ato
contra a inqualificável conduta de seu amante, e sirvam as nobres palavras que
o autor lhe empresta para absolvê-lo de haver engenhado semelhante situação.
Dir-se-ia, lendo este trecho, que
preludiava Ferreira a nudez da mo­derna
escola realista.

Concentrada toda a força da
comédia no quarto ato, em que se
desenlaça a intriga e onde se dá a
engraçada cena na qual o
Cioso cai em seus próprios laços, e em que a velha Bromia,
pela sua excessiva obediência, o pune das imbecis or­dens que lhe dera.
insípido e inverossímil é o último ato,
que sem dano algum da peça pudera ser suprimido. Parece que, como mais tarde
praticava Molière, consagrou Ferreira todo o esmero ao desenho dos principais
caracteres, dando à ação, que tão bem imaginara, um desfecho
lânguido, e contrário às naturais
previsões do auditório.

LUIS DE
CAMÕES

Nada escapa ao gênio em sua
pasmosa irradiação: assim Camões, primeiro épico português, avantajou-se em
todos os ramos da poesia’a que se consagrou. Havemos repetido seu nome em todos
os gêneros e espécies poéticas, e
vamo-lo ainda encontrar no dramático. Referem seus biógrafos
que em ver­des anos compusera Camões para seu recreio três comédias, intitulada
El Rei Seleuco, os Anfitriões e Filodemo, não dan­do o poeta grande
apreço a essas ligeiras composições.

Revelou Camões seu grande
talento até nesses brincos da sua musa; seguindo os passos de
Gil Vicente, desprezou as re­miniscências clássicas e teria sido um dos corifeus do teatro português, se
porventura contasse com um público digno para entendê-lo e aplaudi-lo.


Mais correto do que o seu
modelo, sobrepujou-o na arte de travar o diálogo, combinar a fábula, conduzir a
ação e pre­parar o desfecho. Conhecedor dos recursos da língua, sabe empregar a
propósito a expressão
chistosa, e, se nem sempre lisonjeia ela aos nossos ouvidos, é
porque cada século tem sua linguagem, diríamos quase o seu espírito.

Sendo Camões mais popular do
que Sá de Miranda e Fer­reira, podiam as suas peças ser representadas em seu
tempo; não nos consta porém que o fossem e nada achamos acerca da aceitação que
dos
coetâneos recebesse.
Fiel ao nosso plano, daremos tíe cada uma delas rápida notícia.

El-Rei Seleuco, comédia cujo asunto é o fato histórico, posto que
duvidoso, de Seleuco I, tendo casado em avançada idade com a formosa
Stratonice, havê-la cedido a seu filho Antíoco, que por ela se finava de
paixão.
Repugnava aos costumes portugueses e às suas leis civis e religiosas seme­lhante
amor; soube porém o dramaturgo superar as dificul­dades que se
antolhavam e, desenhando seus caracteres,
res­peitou em sumo grau a moral.

O papel do rei nada perde de
sua dignidade com o sa­crifício que faz ao filho: e os de Stratonice e
Antíoco ccn-servam-se nas raias do
decoro, nada dizendo ou fazendo estes personagens que o possa ultrajar. O mais
belo caráter porém é do físico, ou médico, que com extrema delicadeza e enge­nhosa
traça descobre a Seleuco o amor que para com a rainha alimentava o moço
príncipe. Cremos que será agradável ao leitor vê-lo aqui transcrito:

rei

Neste mal que não compreendo
Que meio dás de conselho?

físico

Señor, nada entiendo deFo, Y supuesto que lo
entiendo Yo quisiera no entendello.

reí

Por que?

físico

Porque he
entendido

Lo más malo de
entender, Para lo que puede ser, Porque anda, Señor, perdido De amores por mi
mujer.


rei

Santo
Deus,
que tal amor Lhe dá doença tão fera! Que remédio achais melhor?

físico

Forçado será que muera, Porque no muera mi honor.

rei

Pois como! a um só herdeiro
Deste reino não dareis Vossa mulher, pois podeis, Que tudo faz o dinheiro? Pois
este não
enjeiteis; Dai-lha, porque eu espero De vos dar dmheiro e honra, Quanto eu para ele
quero.

físico

No tira el mucho
dinero La mancna de la deshonra.

reí

Ora bem pouco defeito É pequice conhecida,
Quando deixa de ser feito Porque com ele dais vida A quem vos dará proveito.

físico

Quan facilmente aporfia Quien
en
tal
nunca
se vio! Del consejo, que
me
dio, Vuestra Alteza, que haría Si agora fuese yo?

reí

A mulher que eu tivesse

Dar-lhe-ia, oxalá

Que ele a Rainha quisesse!

físico

Pues déla, si le
parece Que por  ella muerto está.

reí

Que me dizeis?


físico

La verdad.

rei

Sem dúvida, tal
sentistes?

físico

Sin duda, sin
falsedad. Pues, Señor, agora tomad Los consejos que me distes.

reí

Certamente que eu o via Em tudo quanto
falava. Como vistes? porque via?

físico

Nei pulso, que se
alterava Si la via,
ó si la oía.

rei

Que maneira há de haver
Que eu certo me maravilho Possa ma s o amor do filho
D;j que pode o da mu.her: Finalmente hei-lha de dar, Que a ambos
conheço o centro.
Quero-o ir alevantar, E iremos para dentro Neste caso praticar.

"Eis aqui um
diálogo, diz J. M. da Costa e Silva, cerrado, vivo, sem inutilidades e cheio de
artifício: estou certo que nem
Moliere, nem Goldoni, os dois
maiores mestres da comé­dia moderna, se tirariam mais airosamente de situação
tão delicada, do que fez aqui um poeta moço, sem experiência de teatro, mas a
quem o
gênio revelava cs -segredos da
arte."
1

i   Ensaio biog. e crítico, Tom. III, Liv. V. Cap. I.

Como seu mestre Gil Vicente, entremeia Camões
os dois idiomas da península ibérica neste diálogo, bem como em muitos outros
lugares das suas obras dramáticas, o que deve­mos atribuir ao péssimo gosto dos
seus contemporâneos, a quem ele buscava agradar.

Nenhuma divisão de atos existe nas comédias do
autor dos
Lusíadas, e o prólogo da que ora nos ocupa destaca-se completamente do
assunto, parecendo uma farsa colocada no princípio da peça. Bastante engraçada
é a cena que aí se lê entre o escudeiro Ambrósio e o moço Lancerote, de que
damos um fragmento:

ambrósio

Oh que salgado moço! Zombas de mim? Vem cá, donde és
natural?

moço

Donde quer que me acho.

ambrósio

Pergunto-te onde nasceste?

moço

Nas mãos das parteiras.

ambrósio

Em que terra?

moço

Toda a terra é uma, e
mais eu nasci em casa assobradada, var­rida daquela hora, que não havia palmo
de terra nela.

marttm

Bem varrido de vergonha
que me tu pareces. Dize, cujo filho és? Ê para ver com que disparates
respondes.

moço

A falar verdade, parece-me a mhn, que eu sou filho de um meu

tio.

marttm

Vem cá, de teu tio, e isso como?

moço

Como? Isto, Senhor, é adivinhação,
que vossas mercês não en­tendem. Meu pai era clérigo, e os clérigos sempre
chamam aos filhos sobrinhos, e daqui me ficou a mim ser filho de meu tio.

Por mais de uma vez
havemos assinalado a intemperança de linguagem dos autores
cômicos do grande século da
nossa
literatura, sendo Sá de Miranda e Camões os mais sóbrios dessas descabeladas frases que escoriam os ouvidos
delica­dos. Bem como aos gastos
paladares convém fortes e estimu­lantes
condimentos, assim aos grosseiros populares
quinhen­tistas se destinavam ásperas
expressões. Escolhendo dentre as menos livres cenas, citaremos a que representa
a entrevista de dois namorados (o porteiro e a moça):

porteiro

Traz, traz?

moça

Jesu, quem está aí?

porteiro

Já vós, mana, éreis mamada: Pera vos levar furtada Nunca tal
ensejo vi. E vós estais descuidada!

moça

E meus descuidos que fazem?

porteiro

Vossos descuidos? cadela! Ah minha alma! sois tão bela,
Que esses descuides me trazem Dois mil cuidados à vela. Pois sou vosso há
tantos anos, Mana, tirai os
antolhos. E vereis meus tristes danos.

Posto que o objeto do Seleuco seja completamente estra­nho,
acomodou o autor o caráter dos personagens ao seu país, e fê-los falar como o
teriam feito os bons portugueses desses priscos tempos. O que há de inverossímil
em diversas situações procede da crença então dominante que o teatro era um
mundo convencional, nada de comum tendo com a vida positiva.

Os Anfitriões. — Imitada de outra de igual
título de Plauto é esta comédia muito mais regular do que a antece­dente; ainda
que menos
espirituosa. Urdida sobre usada tela e reproduzindo a mui conhecida
fábula de Júpiter enganando Alcmena debaixo da aparência de seu marido
Anfitrião, pôde ainda tornar-se interessante quando manejada por Camões.

Grande número de cenas
burlescas, nascidas das dupli­catas dos Anfitriões e Sósias, provocam a
hilaridade pela con­fusão em que lançam Alcmena e sua serva Bromia.

Não pode ser imputado
ao autor o aviltamento do
caráter do pai dos deuses; porque em sua
monstruosa história o foi buscar ele, havendo-o precedido um
cômico latino para quem
semelhante divindade nada tinha de falsa.

O diálogo entre
Júpiter e Mercúrio, no qual lhe sugere este a
idéia de metamorfosear-se na
pessoa de Anfitrião,
trans­formando-se ele na do seu criado,
tanto tem de imoral como de
cômico.

Fria é a entrevista de
Anfitrião com a consorte a quem desde longos anos não via, nem mais
afetuosa se mestra ela,
manifestando uma incredulidade mui pouco natural em se­melhante situação.
Sujeitemo-nos ao juízo do leitor,
ofere­cendo-lhe aqui a referida cena:

alcmena

Vejo eu Anfitrião, Ou a
vista me af.gura O que está no coração?

júpiter

Olhos, d ante dos quais Desejei mais este dia
Que nenhuma outra alegria. Senhora, nunca creais Que lhe minta a lantasia.

alcmena

Oh! presença mas
querida Que quantas formou amor!
Isto é verdade, senhor? Acabe-se aqui a vida, Por não
ver. prazer maior.

júpiter

Pois esta hora de vos
ver Alcançar, senhora, pude, Para ma.s conteste ser. Conformem com este prazer
Novas de vossa saúde.

alcmena

Vida foi pesada e crua
A saúde que eu sostinha;

Que enquanto, Senhor, a tinha,

Temer perigo na sua

Me faz descuidar da minha.

Trovas e voltas, ou como hoje
dizemos motes e glosas, abundam nesta composição, diferençando-a radicalmente
dos modelos clássicos, aos quais poucos seguiu Camões, preferin­do lhes as
inspirações da originalidade.

Filodemo. — Pertence esta comédia à
escola que Lope de
Vega e Calderon ilustraram. Simples é a sua
fábula, consis­tindo nos duplos amores de
Filodemo com sua prima Dionísia c de Vanadoro com Florimena,
aos quais ligava igual parentes­co. Forma o enredo a circunstância de ignorarem
ambos tão íntima aliança, servindo
Filodemo em casa de seu tio D.
Lu-zidardo, supondo-se de baixa condição e não sabendo ser filho de um seu
irmão, que
outrora, ausentando-se de Portugal é indo para Dinamarca, se
enamorara de uma filha do rei desse país; e, subtraindo-se com ela à cólera do
mencionado rei, naufragara nas costas de Espanha, morrendo nessa ocasião, assim
como a princesa, que expirara ao dar à luz dois gêmeos, que se chamaram
Filodemo e Florimena. Descoberto o grau
de parentesco em que se achavam os amantes pelo velho pastor que abrigara os
dois órfãos, nenhuma
dificuldadde opôs D. Lu-zidardo ao seu casamento e terminou tudo
com o maior júbilo de todas as partes.

Como os dramas de Shakespeare, é esta peça escrita em prosa e
verso, e a passagem de uma à outra forma nem sempre se realiza com acerto e
naturalidade. Releva porém não olvidar que eram ainda os juvenis ensaios de um
grande engenho, que teria emparelhado com o autor de
Macbeth e de Otelo, se a Tália e não a Calíope dedicasse o seu estro.

A fraqueza dos caracteres que
notamos nesta comédia é um vício comum a todas as
pastorais, de que nem puderam escapar o Pastor Fido, de Guarini, e a Aminta, de Torquato Tasso. Não são mal
traçados todavia os papéis de D. Luzi-dardo, de
Filodemo, e Dionísia, que derramam algum inte­resse
em tão pálida ação. Umas vezes atribui o poeta aos seus personagens pensamentos
filosóficos que animavam seu ilustrado espírito e, cedendo-lhes nos outros
lugares a sua
avena bucólica, traça idílios dignos de Teócrito e de Mosco. Exemplifiquemos:
queixando-se da triste sorte da mulher, diz
Dionísia:

Bofé que estava cuidando Que é
muito para haver dó

Da mulher que vive amando. Que
um homem pode passar A vida mais ocupado: Com passear, com caçar, Com correr,
com cavalgar, Forra parte do cuidado.

Mas a coitada

Da mulher sempre encerrada Que
não tem contentamento Nem tem desenfadamento, Mais que agulha e
almofada? Então isto vem parir Os grandes
erros da gente: Foram mil vezes cair Princesas d’alta semente.

Mais adiante descrevendo as
belezas de um sítio exclama Vanadoro:

Oh! ribeiras tão fermosas, Vales,
campos pastoris, Porque vos não
revestis De novas flores e rosas, Se minha glória sentis? Porque
não
secais, abrolhos? E
vós, água, que regando Os olhos his alegrando Correi, que também meus olhos
D’alegres estão
manando. Ah! pastora em quem espero Poder viver descansado, Contigo
guardarei gado, Que já eu sem ti não quero Nem uma
alteza d’estado.

Diga o que quiser a gente, Tudo
terei numa palha; Porque está claro e evidente Que não há honra que valha
Contra a vida descontente.

Alguns chistes apropriados ao paladar do seu público des­cobrimos
nesta comédia; e, para não multiplicar citações, mencionaremos apenas os ditos
de
Vilardo, convidando
a
Dio­nísia para acudir depressa ao chamado de seu
pai:

vilardo

Senhora, o senhor seu pai Mesmo
de vossa mercê Já lá para casa vai: Por isso, senhora, andai,

Que ele me mandou num pé, E diz
que fosse jantar Vossa mercê mesmamente.

solina

E já veio do pomar?

dionísia

Oh! quem pudera escusar De comer,
nem de ver gente! Nenhuma cor de verdade Tenho do que ele me manda.

vilardo

Se ela sem vontade anda, Eu lhe
emprestarei vontade, Empreste-me ela a
vianda.

solina

Vá, Senhora, por não dar Mais
em que cuidar à gente.

dionísia

Irei, mas não por jantar; Que
quem vive descontente Mantém-se de imaginar.

vilardo

Po’s também cá minhas dores Não
me deixam comer pão, Nem come a minha afeição Senão sopadas d’amores, E mil
postas de paixão Das lágrimas caldo faço, Do coração
escudela. Esses olhos são panela Que coze bofes e baço Com toda a mais cabidela.

Julgamos ter assaz demonstrado a proposição que
emiti­mos de ser Luís de Camões superior aos seus
predecessores na arte dramática, e de haver
melhor do que ninguém cooperado para a glória do teatro português, criado pelo
fecundo e ori­ginal
Gil Vicente.

Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

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