Graça Aranha – Biografia e Obras

JOSÉ PEREIRA DA GRAÇA ARANHA. Natural do Maranhão, em cuja Capital nasceu aos 21 de julho de 1868. Dezoito anos após, colava grau de bacharel na Faculdade de Direito do Recife. Foi discípulo de Tobias Barreto, às influências de cujo espírito muito deveu a sua formação mental.

Iniciou a vida pública como advogado, professor e magistrado, passando-se depois para a carreira da diplomacia, que por largo tempo o manteve apartado do Brasil. Conviveu com Joaquim Nabuco em missões diplomáticas; e sofreu possivelmente o influxo estético daquele pensador.

Ocupou na Academia Brasileira a cadeira de Tobias Barreto; e fez-se, de 1920 em diante, propugnador da reforma na arte literária, baseada no "espírito moderno", e quis impor a sua orientação à Academia, em sugestões que leu, em junho de 1924, aos seus confrades e por efeito de cuja recusa se desligou, nesse ano, daquele cenáculo.

A sua produção literária oferece, de par com minudente poder descritivo e evidente riqueza verbal, tipos e quadros, idéias e conceitos que lhe assinalam relevante lugar entre os nossos prosadores. Graça Aranha faleceu no Rio, em 26 de janeiro de 1931, aos sessenta e dois anos de idade.

Sua primeira obra — Canaã —, publicada no Rio de 1901, obteve decisivo êxito; e a esse romance seguiram-se: Malasarte, drama (Paris, 1911); A Estética da Vida (Rio, 1920); O Espírito Moderno, conferências e estudos após 1920; A Viagem Maravilhosa, romance (Rio, 1919); e O Meu Próprio Romance (Rio, 1931).

No Outeiro

No pavilhão do jardim, mirante da vastidão, Teresa abismava-se nas ansiadas e resfolegantes águas da baía. Para além da barra alongava-se, lívido e glauco, o oceano. A luz limitava as formas sem côr das cousas. Os corpos postavam-se extáticos, isolados e brutais, na eternidade incandescente.

Na refulgência solar, os cabelos escuros de Teresa irradiavam eflúvios de ouro. Nos olhos castanhos chispavam pontas de sol. Nas ondas em elevação espumavam miríades de sóis. As pesadas manchas da terra, as sombras das montanhas avolumadas cortavam em faixas densas a unidade fosforescente. A boca de Teresa cintilava na pulverização da luz e equilibrava a fulguração universal. A palidez do rosto esbatia-se na atmosfera vibrante. Do esguio corpo, contornado pelas fugitivas cores zodiacais, e das brancas vestes emergiam vagas mãos esmorecidas. Ávidas línguas de sol desciam sobre as chamejantes pedras dos anéis e das unhas rubras.

O cheiro das árvores e das flores exaltava a solidão. O murmúrio abafado das vagas e o arrepio do vento escasso ressoavam lugubremente no cálido torpor. O espírito de Teresa mortificava-se no excessivo arrebatamento do mundo tropical. Era a implacável luz perpétua, era a fixidez das massas aterradoras e sempre a imobilidade eterna. A alma móvel aspirava a libertar-se da natureza hostil. A adversária, pronta a desencadear a catástrofe, está em secreta e infatigável destruição e no tumultuário aspecto sente-se o frêmito da revolução íntima, que um dia nos avassalará. A magia do terror gera-se na idéia da ameaça permanente e, nessa misteriosa angústia, Teresa sorvia o supremo encanto e a entranhada fascinação da natureza brasileira.

Fatigada de esperar o que jamais acontecia. Teresa deixou o pavilhão do jardim, entrou em casa e recolheu-se à penumbra do salão. Para mover-se no escuro fechou os olhos, tontos de luz, e atirou-se mansinha a um sofá, que lhe agasalhou docemente o flexível corpo abrasado. Foram-se-lhe abrindo os olhos noturnos por entre a pompa triunfal das cores ali abrigadas, fugindo à impiedosa luz devoradora. Das sedas e dos brocados, do ouro e do cristal, do bronze e do marfim, das madeiras e das pratas, das rosas, das folhagens, das orquídeas volatizavam-se as cores. Em uma só tonalidade aérea uniam-se às sonoras vibrações do Universo, ao infinito e nostálgico mugido das águas, ao ardente e intérmino canto das árvores, dos pássaros, dos insetos, das plantas e dos humanos, ao indefinível gemido do que não tem nome, do que é imponderável e abstrato. E em tudo fundiam-se os cheiros onipotentes e sutis, as emanações ininterruptas da perene combustão do que vive e se transfigura eternamente. Sobre o âmbar da palidez do rosto de Teresa, o reflexo azul dos olhos sombrios. A tépida respiração sussurrava longínqua e vaga e ela cheirava como uma planta aromática. Cumpria-se com as outras cousas a unidade inquebrantável.

Absorta numa irreprimível cisma, Teresa não perturbava com os seus gestos aquela vida dos objetos e tudo se consumia em arrastar no labor imaginário o mundo das sombras. No compacto jorro de luz, que pela porta do terraço invadia o salão, entravam besouros reluzentes e zombeteiros, trombeteando no espaço colorido, enquanto insetos impalpáveis se fixavam fascinados no clarão e vibravam, como moléculas luminosas. Entravam borboletas, álacres, loucas, farejando as plantas, entrou um beija-flor célere, inatingível, bailando sobre as rosas e na vertigem alucinante, agitando sutilmente a suavidade sepulcral, parecia, na sua pequenina e imperiosa violência, arrebatar tudo na dança fantástica da luz, das cores e dos perfumes. Teresa adormeceu e os prodígios da vida universal continuavam incessantes e maravilhosos na quietação sem fim.

Quando ela acordou, pareceu-lhe que tudo parara. A monótona agitação dos insetos perpetuava o infatigável ritmo da ardente calmaria. Teresa veio ao terraço e mirou a água, cuja pele era lisa, tranqüila e juvenil. O ar extinguira-se. No amplo silêncio da luz, o espírito de Teresa pairava sobre a imobilidade universal. Nenhuma aspiração, nenhum desejo a agitava. Abismava-se no sossego solar, em que tudo entorpecera. Confundia-se com a melancólica tristeza do céu, do mar e de toda a imensidade. E nessa quietude instantânea cessava a singular tortura, que busca e ignora. Tudo se acalmara na resignação inconsciente, em que se apaga a suprema angústia humana. As fronteiras do universo estavam ali, na luz, na água, nas montanhas, nas árvores. O espírito em êxtase ficava prisioneiro do maravilhoso das cousas efêmeras. Na exaltação aniquilava-se para sempre. Era a indiferença integral a toda a relatividade da vida, era a possibilidade do ser que, no vazio da existência, se deixa esmagar pelas forças desconhecidas e insuperáveis de um destino particular, imaginado como a emanação da inacessível e inexorável fatalidade primordial. A ascensão fêz-se lentamente. No começo era a inconsciência moça, o ardor físico de viver, a combustão do sofrimento moral, que transforma rapidamente tudo em alegria. Mais tarde, Teresa se sentiu só. Foram–se os fugazes divertimentos da mocidade e a grande separação entre ela e o mundo formulou-se alucinante. Era a incomensurável tristeza do vácuo. Nenhum refúgio deu-lhe a vida. Nenhum apoio socorreu-lhe o pensamento. Nenhuma magia veio-lhe do coração. O mundo rolava indiferente e o espírito desvairava, ora na revolta, ora na melancolia. A ânsia da libertação da sua própria existência e de toda aquela agressiva e trágica natureza, que era o quadro permanente do seu espírito, terminava inócua e desfalecida. Não havia finalidade para a sua revolta. Onde ir? Que alívio à sua indefinível dor? A solidão a perseguia eternamente, a separação das outras cousas universais jamais se extinguiria. E ficava prisioneira da terra maravilhosa, impregnando com a sua tristeza todo aquele fulgor revoltante, afundando-se na amargura desesperada da sua vida. Quando lhe vinha o doce e sutil tédio de tudo, Teresa inebriava-se na volúpia desse gozo sem gozo e deixava-se triturar pela fatalidade, até sentir-se dissolvida no eterno aniquilamento universal.

(A Viagem Maravilhosa, 1929, pp. 31-34).

O Espírito Moderno

A finalidade da arte não é a imitação da natureza. Ela tem o seu fim em si mesma. O espírito humano é tão criador (como é a natureza e só se atinge a obra de arte, quando o espírito se liberta da natureza e age independente. As formas artísticas que se limitam a reproduzir a natureza são de qualidade inferior àquelas que o artista formula como criação individual e livre. Nem todos os povos primitivos se subordinaram à natureza, muitos foram verdadeiramente artistas, criando obras de arte sem imitação, como jogos de fantasia espiritual. Quanto mais uma civilização é artista, mais ela se afasta da natureza. A arte não é um canto da natureza visto através de um temperamento, como a paisagem não é um estado da alma. Todas estas fórmulas subjetivas fizeram o seu tempo. (174) São incompreensíveis hoje. A essência da arte está nas emoções provocadas pelos sentimentos vagos, que nos vêm dos contatos sensíveis com o Universo e que se exprimem nas cores, nas linhas, nos sons, nas palavras.

Que é a Natureza? Não é a matéria universal. Ela está na matéria, na energia, porque nada existe fora desta e realiza-se perpetuamente na profunda inconsciência, independente do espírito humano. No sentido artístico, a Natureza é tudo o que se apresenta aos nossos sentidos como exterior a nós. As artes plásticas são as que mais procuram reproduzir a Natureza. A música é mais independente. Depois da grande vassalagem à Natureza, a arte libertou-se e cria livre de toda a submissão. É a suprema vitória do espírito humano. A imitação no princípio, a libertação no fim. Não há uma máquina, um aparelho, que não seja no seu início uma cópia de um fato natural. O primeiro vapor idealizado tinha patas de palmípede; o avião asas de pássaro. E, quando as máquinas sucediam a outros aparelhos, guardavam a estrutura destes. O automóvel foi a princípio um côche sem cavalos. Depois estas máquinas se emancipam da imitação e tomam formas próprias, constituem organismos originais, distintos e característicos, fixando o tipo, a espécie. Hoje, o vapor, o avião, o automóvel têm a sua forma própria e modelar. Assim será a obra de arte, que a cultura liberta da imitação da natureza, para dar-lhe forma artística, forma espiritual, peculiar, como um organismo novo, vindo da força criadora do homem.

(Da Conferência na Academia Brasileira em junho de 1924; na Revista da Academia, n.° 31, pp. 231-233).

(174) fizeram o seu tempo — construção à francesa, com a significação em português de: estão fora do tempo, já se não admitem, ficaram no passado. "Há cousas — diz Vieira — a que se lhes passa o tempo".

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