GUILHERME MONIZ BARRETO
Oliveira Lima
Uma carta de Domício da Gama, cujo espírito delicado compreendeu quanto me seria a um tempo doloroso e consolador ter pronta e minuciosa notícia do triste acontecimento, deu-me conta da curta doença e prematuro falecimento em Paris, aos 29 de dezembro último, de um dos meus melhores amigos, que era uma das inteligências mais brilhantes e das almas mais límpidas que tenho tido a ventura de conhecer — Guilherme Moniz Barreto. Fomos companheiros de colégio, companheiros de estudos superiores, amigos de todo o tempo e de cada momento. Comigo partiu êle há dois anos quase para o Brasil e ao deixar há perto de um ano a Europa, foi a sua mão leal a última que apertei. Eu e Silva Gayo, o distinto escritor português, podemos gabar-nos de ter gozado do melhor da afeição daquele coração nobre e elevado. Pobre e infeliz amigo!
Estou ainda muito novo para escrever memórias, mas não desejo perder o ensejo de achar-se viva em lembranças do que aí o conheceram a fisionomia simpática de Moniz Barreto, para dizer ao grupo da Revista Brasileira, em cuja convivência êle especialmente deleitou-se no Rio de Janeiro, quanto havia de bondade, de hombridade, de fidalguia, numa palavra de superior, naquela individualidade de corpo tão débil e franzino quão robusto e poderoso era o caráter. Deixarei de parte o lado puramente intelectual de sua figura atraente.
Moniz Barreto nunca logrou dar vasão ao muito que o seu cérebro gerou e projetou, simplesmente porque sempre foi precária a sua saúde e lhe faltaram os meios de fortalecê-la. Lutou cons-tantemente contra a miséria, que acabou por levá-lo de vencida. ainda assim, o seu estudo psicológico de Oliveira Martins ficará Como um dos livros mais penetrantes, mais pensados da literatura portuguesa contemporânea, e sei — porque mas leu — que deixa páginas igualmente profundas e interessantes sobre Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Antero de Quental. A sua Carla a El-Rei de Portugal é um modelo de ironia flageladora e de visão desapaixonada dos eventos políticos da sua pátria. Em Moniz Barreto coexis-tiam um poeta, um crítico e um filósofo, o poeta de uma imaginação criadora, o crítico de uma sagacidade incisiva, o filósofo de uma serena e luminosa compreensão dos fatos e das leis que os regem. Silva Gayo, num excelente livro, publicado há dois anos,1 estuda admiravelmente a personalidade a um tempo complexa e simples do malogrado publicista; complexa porque eram muitas as partes do seu vigoroso talento literário, simples pofque nele nada havia senão de transparente e diamantino. Isto, porém, não obsta a que cu contribua com alguns dados para a fixação de porção íntima dessa biografia tão simples e tão cativante.
Moniz Barreto nasceu na índia, de uma velha família portuguesa, e de lá veio, ainda criança, cursar aulas em Portugal. Desde que matriculou-se no curso superior a sua vida foi um martírio e um ensinamento. Fraco, enfermiço, pobre e orgulhoso, de um são e viril orgulho, êlc teve de trabalhar para viver e para aprender, porque a sede de saber foi a única e exclusiva paixão de sua vida obscura e virtuosa. As poucas forças não lhe permitiam grandes trabalhos.
Lições parcamente remuneradas, artigos mal, quando retribuídos, pequenos1 empregos miseravelmente pagos, eis com que êle podia contar para comprar pão e livros.
Não estou exagerando, nem armando os efeitos: o pobrezinho já expirou no quartinho da casa de saúde dos irmãos de S. João de Deus! Segui passo a passo a sua existência difícil e digna, durante a qual a necessidade nunca o fêz sacrificar uma parcela dos seus brios ou das suas convicções.
Quando saí de Lisboa, em 1892, deixei-o agasalhado numa cadeira de conservador de uma das bibliotecas municipais, que êle ordenou e catalogou com a consciência e fadiga com que desempenhava todas as suas obrigações. A doença obrigou-o, porém, dentre em pouco a abandonar Lisboa, demasiado ventosa e úmida no inverno, acolhendo-se a Vila Nova de Portimão, de onde escrevia-me para Berlim, em 13 de fevereiro de 1893:
Tenho-me dado perfeitamente neste clima suave que pela temperatura aproxima-se do da índia e Brasil, com a diferença de ser mais seco.
E a 4 de março ajuntava satisfeito: Passei aqui no Algarve um inverno como nenhum há doze anos que estou na Europa. Nos últimos dias tem estado um tempo magnífico; escrevo-te com vinte graus acima de zero.
O período de mais continuada produção literária de Moniz Barreto fora o imediatamente anterior a essa data: o tempo da Revista de Portugal que Eça de Queirós dirigia e onde êlc inseriu, entre outros trabalhos de valor, um valioso estudo crítico (com que abriu a Revista) sobre os modernos escritores portugueses e unia soberba análise do Discípulo, de Bourget, espírito fino que êle particularmente prezava. Na carta de 13 de fevereiro de 1893 dizia me Moniz Barreto:
Depois que morreu a Revista de Portugal, não apareceu outra. E a geraçã nova tem ressonado com invejável constância. Eu esforço-me por acompanhá-la; o pior são as minhas insónias de nervoso. Decididamente ninguém c perfeito, e a modéstia é um dever.
As suas vistas dirigiam-se mais e mais para o Norte da Europa o seu espírito ambicionava mais e mais escapar ao círculo mesquinho em que era compelido a debater-se. A Alemanha fascinava-o especialmente. Reiterando os seus conselhos para que eu estudasse "essa literatura tão cheia de inteligência, em particular os historiadores", escrevia-me:
…, podes talhar para ti o papel de comunicador entre o pensamento germânico e a inteligência brasileira. Naturalmente, por estudos sobre os mestres da historiografia, da crítica literária, de ciência política, dos estudos morais e também sobre as produções do lirismo e do drama, que imagino devem sustentar o grande nome que foi ilustrado pelos chefes da idade clássica. As nações novas têm este inconveniente, que o escritor não é sustentado pela ação coletiva, como naquelas em que existe uma longa tradição que chega mesmo a encarnar-se na língua. Mas tem isto de bom: que a ação individual é mais livre e não tem limites além dos da energia nativa do inovador.
A 11 de maio de 1893 acrescentou:
Entendo que é esse o trabalho que deve ocupar os jovens escritores brasileiros. Num país novo, em via de formação, o trabalho é sobretudo de preparação, de educação da consciência nacional que mais tarde reflorirá em criações positivas. Ora, no Brasil, que é um país recente, este trabalho pode e deve ser feito com todos os recursos da ciência. Noutras palavras, considero trabalho de mais alcance para o Brasil o feito sobre história ou crítica do que o que tiver classificação como romantismo ou teatro. E esse trabalho dc história ou crítica deve ter por objeto não só a própria nação mas também e sobretudo a velha Europa, cuja vida deve ser o eterno assunto do pensamento dos povos novos.
A 27 de julho de 1894:
Deves esforçar-te por ler o alemão como o francês ou o inglês. E por isto faz por abster-te durante estes próximos meses de leituras em outras línguas. Os vocabulários constituem verdadeiros povos que dão batalha no interior do espírito e estão sujeitos às leis da luta pela vida. Quanto à escolha de textos a ler, o teatro não é mau, mas os versos são o melhor. Por que não lês os Lieder e o Romancero de Heine?
O ritmo e a rima fixam na memória as palavras c as construções sintáticas. Não sei se gostas de versos. Mas de Heine gosta-se sempre. É incrível como um pequeno artifício como o que aqui indico pode poupar trabalho e fazer ganhar tempo. Contudo a leitura que agrada é no fundo preferível e creio que é o que te sucede com o teatro. Mas neste caso deves ir assistir às récitas. Embora não entendas bem às primeiras vezes, hás de ver o caos aclarar-se em breve com uma rapidez surpreendente. Em resumo, faz por te assenhoreares da língua alemã para poderes ir buscar alimento e guia para o teu espírito quase exclusivamente nos livros alemães, fi para mim ponto de fé que a peste política que nestes últimos anos tem assolado o Brasil é de origem francesa. Se a mocidade brasileira se tivesse alimentado de doutrinas políticas sérias ou de história bem-feita, não veria abrasar o país esse incêndio revolucionário que não tem nessa terra abençoada nenhuma razão de ser, visto nem mesmo existir a questão social.
Esta carta já é datada de Paras, onde Moniz Barreto se achava desde julho de 1893 para tratar-se, pois que, apesar da estada no Algarve, sentia-se, dizia êle, "num estado de debilidade crescente a que precisava de pôr cobro. A literatura ia-lhe dando para morar num quartinho no Bairro Latino e tomar suas refeições num Bouillon Duval. De resto, se as suas preferências intelectuais eram evidentemente pelas manifestações do gênio alemão, o encanto que se desprende de Paris sorria aos seus gostos artísticos. A literatura francesa agradava-lhe pela forma, pela clareza e elegância de linguagem, além das qualidades de caráter de cada escritor. Falando de Chateaubriand, por exemplo, numa carta de 10 de março de 1894:
Apesar de uma quantidade de coisinhas deprimentes coligadas por aquele velhaco do Sainte-Beuve no» seu Chateaubriand, continuo a admirar o autor de Réné como escritor e como homem. O que amo sobretudo nêle é a sua altivez cavalheiresca que nunca lhe permitiu descer a adular a opinião, apesar da sua natureza de artista o tornar extremamente sensível às delícias da popularidade. Chateaubriand será sempre uma das minhas admirações, talvez por ter sido a primeira. Tinha eu 12 anos quando lhe li as obras. Como literatura é da grande. Se eu um dia chegar a velho, o que não espero nem desejo, conto deleitar-me antes de morrer em reler esse maravilhoso panegírico da morte, solene e grandioso final das Mémoires d’Outre Tombe": Et maintenant, le crucifix à la main, je vais descendre dans l’éternité.
Referindo-se a Brunetière, na mesma carta:
Falas-me no Brunetière e na celeuma que levantou. Li o discurso de entrada para a Academia. Há lá um punhado de verdades que por serem amargas não deixam de ser verdades. "^Êle podia dizer coisas piores dos jornalistas, que não dizia mentira. Acho porém que a nossa ilustre confraria se mostrou demasiado susceptível. Ê certo contudo que a leitura dos jornais é mais interessante e instrutiva do que esse erudito supõe. Mas o mérito não provém dos jornalistas, mas da variedade c imprevisto da vida cosmopolita contemporânea. De resto gosto do Brunetière pela sua decisão. E falando com franqueza êle é menos estreito, menos do passado do que se pensa.
Moniz Barreto todavia nutria muito mais o seu espírito com leituras filosóficas do que propriamente literárias. Gostava das idéias, de preferência ao estilo. Os escritores de sua maior simpatia eram os que descem ao âmago das coisas, os que buscam a razão de ser, o porquê dos fatos. Citando, por exemplo, o formidável livro de Carlyle Heroes and Heroworship — descreve-o como escritor incomparável, de profundo e penetrante bom senso, sob exteriot dades de louco, e muito mais do futuro do que do passado.
Aludindo ao volume, que cu então tinha em preparação, sôbre literatura pátria, a sua inexcedível amizade ditou-lhe as seguintes linhas, em 12 de novembro de 1894:
Sei que estás preparando novo livro e que fazes grandes leituras, cm vista dele. Foge contudo de leituras inúteis. Abraça-te com o excelente. Remon ta em todas as coisas aos elementos essenciais e faz deles listas completas A crítica do lirismo, por exemplo, é uma aplicação da fisiologia das paixões Um livro portanto como as Emoções e a Vontade de Bain pode-te servir de mais que vinte dissertações literárias feitas com erudição e engenho, Uma simples página de Spencer sobre os sentimentos de que se compõe o amor abriu-me mais horizontes na psicologia e patologia desta paixão do que infinitas divagações dos moralistas de ofício. Volta portanto bem os teus olhos para o moderno esforço dos psicólogos. E faz da bibliografia psicológica o nervo de tua biblioteca de crítico.
Paris, porém, lhe não restituía a saúde, nem êie possuía com que tratar-se devidamente e viver confortavelmente.
Não te escrevi há mais tempo (carta de 31 de março de 1895) porque, além de tudo, tinha caído num grande estado de depressão física que me manteve na cama repetidas vezes, resultante da dureza do inverno e que mesmo agora me não deixou de todo pela influência abominável deste começo de primavera.
A tentação de procurar no Brasil calor e saúde, mais mesmo do que uma colocação remuneradora no professorado ou no jornalismo, precisou-se cada vez mais. Minha última viagem ao Brasil acabou de decidi-lo. A 10 de abril de 1895, na véspera de minha partida de Berlim, a sua pena traçava esta nota de esperança:
Sobre a folha em que te escrevo cai um sol magnifico, como um prognóstico de atividade e alegria. O meu velho deus tutelar cuja falta tanto me tem feito sofrer desde que saí da índia… Se o sol do Recife não pecar por excesso de amor, isto é, de calor, sinto que trabalharei muito c bem.
Não era sem motivo que êle pensava em fixar-se no Recife.
Pernambuco (carta de 27 de julho de 1894) é a parte mais brasileira do Brasil c na abastardação geral dos Estados pela imigração estrangeira, é êle um dos que há de conservar mais íntegro o velho caráter histórico. Vale pois a pena trabalhar por uma obra, cujo futuro não é inteiramente um enigma. E êsse trabalho deve ser essencialmente o da educação dos espíritos, visto que o fomento da riqueza não precisa ali de estímulos e que a distribuição dela não apresenta dificuldades fundamentais como na velha Europa ou na América do Norte.
E a 1 de março de 1895, já de tenção feita, escrevia-me da cama:
Pernambuco pelo seu clima tropical é o caráter português da sua população é-me particularmente simpático… Ir passar, uma vida meio estudiosa, meio ativa, contribuindo na medida das minhas forças para a educação duma população do meu sangue e língua, é uma perspectiva não destituída de encantos para mim.
É fado de muitas esperanças se não realizarem. Moniz Barreto passou bem de saúde durante sua curta estada no Recife (julho de 1895), mas o meio desagradou-lhe. Não que êle desgostasse da gente. A nossa franqueza e hospitalidade chegaram a comovê-lo, porque lhe recordavam a sociedade despretensiosa e boa da longínqua colônia portuguesa de onde era oriundo. O seu espírito aberto simpatizou em extremo com a superior inteligência do então Governador Barbosa Lima, cujos planos de administração e intenções de reformas ouvia e aplaudia sem, é força dizê-lo, acreditar muito em sua eficácia.
Êle percebera as intrigas políticas corroendo todos os pensamentos levantados; pressentira a distância que media da sua miragem à realidade, sondara a disparidade que existia entre o que entendia por educação e a concepção corrente na imprensa e no magistério local. Como era essencialmente um delicado, desanimou e não ousou combater com a prévia certeza da derrota. Seguiu para o Rio de Janeiro em procura de um ambiente mais culto.
Apenas chegado, escrevia-me:
Tive uma excelente impressão da entrada da baía. É certamente um magnífico espetáculo. Seria preciso sair dos limites do estilo epistolar para consignar a impressão do esplendor das águas e da severidade das rochas fundidos num só efeito da magnificência. Mas é inútil fazer frases, visto que já viste e em breve vais tornar a ver.
Quanto à cidade em si, conheço por ora pouco. Contando pelo que tenho visto acho que é uma aglomeração humana realmente considerável. Há aqui edifícios que pelas dimensões e arquitetura são sem favor bons, e um grande número de habitações que têm aspecto agradável e suponho serão interiormente confortáveis. Falo das construções modernas dos bairros novos. Porque a parte antiga é deplorável e dá a pior idéia da cidade ao estrangeiro que desembarca.
No Rio de Janeiro, com o friozinho úmido de agosto, Moniz Barreto sentiu-se novamente doente, e, não encontrando por outro lado facilidades de conveniente colocação, deliberou regressar para Paris como correspondente do Jornal do Comércio, em cujas colunas já anteriormente colaborara com brilho. Deixou a capital federal em fins de outubro de 1895 e em abril de 1896, de passagem em Paris na minha viagem para os Estados Unidos, gozei dos últimos dias de intimidade com o amigo carinhoso que hoje choro. Faltam-me pormenores recentes da sua vida. Pela carta de Domício da Gama tive apenas conhecimento de que nos últimos meses arcara com graves dificuldades para manter-se, em terra estrangeira e baldo de saúde. Sofreu, como sempre, calado, sem confessar aos amigos seus dissabores; tão completamente independente que deixou ainda assim com que -o enterrassem decentemente. A altivez nele sobreviveu ao corpo vitimado pela necessidade.
Belo coroamento de uma belíssima vida, que é um raro e grande exemplo de honestidade e valor moral.
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
VEJA Francisco Moniz Barreto – História da Literatura Brasileira
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