HAXIXE – Crônica de Olavo Bilac

Haxixe – Olavo Bilac

Como
a conversação, depois de haver borboleteado de assunto em assunto, durante esse
jantar de refinados, tivesse caído afinal em Baudelaire e nos seus Paraísos artificiais,
Jacques, que aos trinta anos de idade já tem experimentado todos os prazeres
e provado todos os desgostos, disse acendendo o charuto e enchendo o segundo
cálice de chartreuse verde:

"Pois afirmo-lhes eu, com conhecimento de causa, que a
embriaguez do ópio não tem nenhum dos encantos que lhe atribui
Baudelaire…"

"Oh! desgraçado! pois até já tomaste
haxixe?", indagou um de nós, com alguma incredulidade.

"Propriamente
haxixe não tomei: tomei cousa melhor." E relatou-nos isto:

"Foi há pouco tempo. Estava eu morrendo de
tédio numa cidade do Norte. Toda a solidão daquelas ruas muito direitas, muito
largas e muito vazias me havia entrado na alma. Como eu me aborrecia, meus
amigos! E imaginem que, por esse tempo, sofria eu de uma singular excitação
nervosa, que me fazia ficar semanas inteiras sem dormir, com o corpo quebrado,
todo o organismo vibrando dolorosamente ao menor choque, à menor
contrariedade, à menor emoção. Cheguei a ter horror à minha casa, àquela casa
imensa e deserta entre cujas paredes se arrastavam longas, terrivelmente
longas, as minhas noites de insônia. Preferi passá-las a vagar de rua em
rua, sem destino: e inda hoje me lembro com pavor desses passeios noturnos por
uma cidade morta, ora à claridade de luar que escorria pelas casas como um
banho de prata viva, ora ao clarão trêmulo dos candeeiros de azeite, dependurados
a ganchos de ferro, rangendo lugubremente ao mais fraco sopro de vento… Um
dia, um médico meu amigo aconselhou-me o uso do ópio.

"Protestei que seria inútil: a morfina, o
láudano, tinham sido impotentes, deixavam-me o corpo despedaçado, a língua
amarga, a cabeça apuada de dores, e a alma acordada, no mesmo sofrimento e na
mesma agonia. Ele, então, receitou-me um novo preparado…

Não
conhecem vocês, com certeza: é o tanato de canabina. A canabina é o alcalóide
que se extrai do haxixe, da cannabis indica. Recebi esperançado, das
mãos do farmacêutico, a pequena caixinha redonda, sentindo, com delícia,
mexerem-se dentro dela, no pó avermelhado, as doze pílulas consoladoras,
pequeninas, escuras, moles, de uma cor de bronze azinhavrado. O farmacêutico,
solícito, recomendou-me com ares misteriosos que não tomasse, em caso algum,
mais de duas pílulas. Mas já eu não ouvia…

"Esperei
a noite com uma ansiedade grande. As dez horas tomei duas pílulas, deitei-me,
e, abrindo um livro qualquer, chamei o sono. Não sei que livro era: sei que a
página me interessou, e que, embebido na leitura, me despreocupei do efeito da canabina.
Ao cabo de algum tempo, olhei para o relógio. Correra uma hora. Nenhum
efeito. O cérebro claro, fresco: nenhum desejo de sono.

Sorri,
com desdém, do poder do narcótico, e engoli corajosamente mais três pílulas e
dali a um quarto de hora uma outra. Não posso dizer se ainda gozava de pleno
uso da razão, quando tomei essa quarta pílula. Quero crer que não: não sei
mesmo como consegui voltar à cama. Doía-me a cabeça alucinadoramente.
Estalava-me no ouvido um barulho de mar quebrando-se de encontro a rochedos. E
não sei se acharei palavras para lhes referir o que principiou então a
passar-se em mim…"

Jacques esvaziou o seu cálice de ebartreuse. Nós
todos ouvíamos calados e ansiosos. Ele, com a voz um pouco trêmula, continuou:

"Foi
uma cousa horrível, sobre-humana, inenarrável, prolongada por toda a noite. Eu
não dormia, mas não estava acordado. Dentro do meu corpo havia uma alma
que sentia, que pensava; mas, como hei de eu explicar isto? não era a minha
verdadeira alma, porque essa eu a sentia fora de mim, divorciada do meu corpo,
pairando sobre ele, querendo reentrar nele, e não podendo! não podendo! não
podendo! Sabem vocês o que se passa, alguns momentos depois da morte, segundo
os espíritas? Dizem os espíritas que a alma, abandonando o corpo, não se afasta
dele, e, enquanto não se faz o enterro, fica errando em derredor do despojo
carnal desprezado. Era talvez isso o que eu sentia… Mas, não! não era isso,
porque além da minh’alma que pairava fora, havia uma outra que permanecia no
corpo, sofrendo e chorando…

"Vejamos… Eu tinha consciência de que
estava deitado, de costas sobre a cama: apalpava-me, sentia o calor da minha
carne, a pulsação de minhas artérias, sabia que não estava sonhando… Doía-me
a cabeça cada vez mais: era como se, estando ela apertada entre duas barras de
aço, a fossem pouco a pouco esmigalhando, amassando, triturando. Eu sentia
tudo isso: logo a minh’alma estava ali. Mas que outra alma era aquela, também
minha, que estava fora da carne e dividida entre dous sentimentos opostos: a
mágoa de não poder entrar no corpo que era seu, e a delícia de não poder estar
sofrendo o que esse corpo sofria?…

"Quanto tempo durou isso, não lhes posso dizer: deve
ter durado séculos. Quantos? um, cem, mil, uma eternidade…

"Depois,
senti que acabara o desdobramento da minha personalidade. Estava outra vez com
uma só alma. O corpo continuava a sofrer, a sofrer indizivelmente. E a alma,
outra vez una, outra vez indivisível, adquiriu uma acuidade, uma perfeição, uma
clareza de memória sobrenaturais. Recapitulei toda
a minha vida, de dia em dia, de hora em hora. Lembrei-me até de quedas que dei,
quando tinha um ano de idade. Assisti mesmo à cena do meu nascimento… E como
me doía o remorso dos menores crimes cometidos, das mais insignificantes
injustiças praticadas! Tudo isso se passava em absoluto, cm perfeito estado de
vigília. Eu via arder, debaixo do globo azul, a chama da minha lâmpada de
petróleo; via agitarem-se à janela as cortinas brancas; ouvia o tique-taque do
relógio sobre a mesa… E vi mesmo o dia romper lá fora, como uma meia-luz
tênue a princípio, depois como uma claridade violenta que me pôs no quarto,
atravessada de parede a parede, uma larga faixa cor de ouro, em que dançavam
milhões e milhões de átomos de poeira afogueada… Foi então que dormi, sono
bruto, sono de pedra, sono de morte, por dez horas a fio…”

"O mais curioso", concluiu Jacques,
depois de uma pequena pausa, "é que o abalo produzido por essa noite no meu
organismo foi tão forte, tão brutal, que me restituiu a saúde: equilibrou os
nervos e livrou-me da insônia. De modo que a canabina me curou, não pelo bem,
mas pelo mal que me fez…"

Houve um
momento de silêncio. Um de nós disse: "Mas isso nada prova… Você sofreu
assim, porque o excitante encontrou mal preparado o terreno em que devia
operar. E, mesmo, está hoje provado que o haxixe nada mais faz do que exacerbar
o estado normal do indivíduo: dá mais alegria a quem é naturalmente alegre, e
mais tristeza a quem é naturalmente triste…"

"Pode ser!", retorquiu Jacques. "Mas
aconselho-lhes que não experimentem. Demais, sabem quem tem razão? É Balzac,
que, apesar de fazer parte de um clube de bebe-dores de haxixe, nunca bebeu a
droga, porque (dizia ele) o homem que voluntariamente se despoja do mais belo
atribulo humano — a vontade — deve ser, na escala animal. colocado abaixo do
caramujo e da lesma… E vamo-nos embora, que é meia-noite!"

Olavo
Bilac

Gazeta de Notícias2 2/4/1894

 

1.       
Paraísos artificiais
(1860):
poemas  de Baudelaire (1821-67) que tratam de experiências com
alucinógenos.

2.       
Texto publicado em Crônicas e
novelas
(1894) com o título de "Crônica livre". Nesse
livro, o primeiro da prosa bilaquiana, há uma seqüência de crônicas
ficcionalizadas, em que aparece o personagem Jacques, alter ego de Bilac.

 

 

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