Heidegger: A Arte como poesia essencial em que um povo diz o Ser

A ARTE
COMO POESIA ESSENCIAL EM QUE UM POVO DIZ O
SER


ISABEL
ROSETE

«(…) Pois desde que a
Poesia se libertou dos lábios

Mortais, exalando a paz, e o nosso
canto,

Benfazejo na dor e na fortuna, alegrou

O coração dos homens, também nós,

Cantores do povo, gostamos de estar entre os viventes

Onde muitos se reúnem, alegres amigos de cada
um,

Abertos a cada um; assim também
O nosso avô, o Deus do Sol, (…)»

Hölderlin

NOTA INTRODUTÓRIA

Heidegger é absolutamente peremptório quando afirma que a
Arte é, por essência, Poesia, onde a verdade acontece como espaço de
combate ocultante/des-velante. Na sua essência repousam o artista e
a obra de arte, pela qual a verdade é posta em obra de um modo que
nos transporta para além do habitual, quer dizer, para além do dado
na trivialidade da mostração quotidiana comum dos homens que não
nomeiam, como o Poeta, a originariedade do ser de todos os entes que
são.

É por
isso que a «verdade, observa Heidegger, como clareira e
ocultação do ente, acontece na medida em que se poetiza. Toda a
arte, enquanto deixar-se acontecer da adveniência da verdade do ente
como tal, é na sua essência Poesia. A essência da arte, na qual
repousam simultaneamente a obra de arte e o artista, é o
pôr-em-obra-da-verdade. A partir da essência poetante da arte
acontece que, no meio do ente, ele erige um espaço aberto, em cuja
abertura tudo se mostra de um outro modo que não o habitual”.“(…)
a poesia é aqui pensada num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo,
numa união essencial tão íntima com a linguagem e a palavra que tem
de permanecer em aberto se a arte, e mais propriamente em todos os
seus modos, desde a arquitectura à poesia, esgota a essência da
poesia».[1]

I. A
INSTAURAÇÃO DA VERDADE COMO COMEÇO E A ARTE COMO
POESIA

                                                                       Die
hier waltende Fragwürdigkeit sammelt sich

 dann
an den eigentlichen Ort der Erörterung,

 dorthin,
wo das Wesen der Sprache und der

Dichtung
gestreift werden, alles dies wiederum

 nur
im Hinblick auf die Zusammengehörigkeit

 von
Sein und Sage”
[2]

                                                                                                                                              M.
Heidegger

A
Arte, na medida em que deixa advir com a máxima fidelidade a verdade
do ente é, por excelência, Dichtung, Poema.

Por Dichtung não se entende, em sentido próprio, a poesia
enquanto género literário, pois o poema jamais é tomado como o
resultado de uma “vagabundagem do espírito” inventada a seu
bel-prazer, ou como um deixar fluir da imaginação até terminar na
irracionalidade:  Dichtung, enquanto
verdadeiro poema, é um projecto de iluminação na abertura, na Lichtung, na clareira, do Ser. A essência do Poema só poderá
ser, então, buscada com um alcance suficientemente claro e evidente,
a partir do momento em que a desviarmos dessa qualidade da alma[3].

A
Poesia é, radicalmente falando, a obra suprema da Linguagem.
A reflexão heideggeriana sobre a linguagem não é mais uma mera
perspectivação da relação possivelmente patenteada entre a linguagem
e a realidade, sobre a propriedade ou impropriedade da mesma para
descrever as coisas, nem tão-só uma reflexão sobre um “aspecto” do estar-aí (Da-sein) do homem. Ao invés, essa
reflexão é a forma mais eminente da experiência e da expressão da
própria realidade, já que é na linguagem que se dá a abertura do
Mundo, que se dá o ser das coisas e, por isso, o verdadeiro modo de
perscrutação daquilo que se afirma como existente só pode ser
atingido através do auscultar do significado primordial das
palavras.

As
coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo-exterior,
mas na palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis,
até mesmo na presença espacio-temporal. As coisas são, no sentido do recolectante fazer-morar“, só na Linguagem que, como
veremos adiante, é essencialmente Poesia. Eis como deveremos
entender a afirmação segundo a qual é a palavra que “torna coisa”
(be-dinget), a coisa (Ding).

Se
quisermos compreender este modo de ser da coisa na palavra devemos
pensar, antes de mais, no gosto heideggeriano pela etimologia que é
justamente uma maneira de remontar, através das vicissitudes e das
conexões das palavras, às dimensões autênticas, ontológicas, da
coisa em si mesma nomeada.

A
figura etimológica, a escavação do significado a partir das raízes
verbais e da história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma
emergência“, um “des-ocultamento“, um movimento para
a luz. Qualquer investigação séria sobre o ente deve adoptar, como
ponto de vista, as considerações linguísticas, em virtude da
linguagem se apresentar como a chave que abre a porta do
des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo.

A
palavra é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho
privilegiado que nos permite pensar, através do depoimento
existencial que transmite, o Ser do ente, quer dizer, o Ser daquilo
que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no
seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial,
remetendo umas para as outras e não mais para o Ser. Deparamo-nos,
todos os dias, com Discursos vazios de conteúdo, pois o modo de
significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos
lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos
articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação
ontológica.

Torna-se
claro que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na
proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda
a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal
abertura.

Perspectivando
à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do “Homo
Superfulus
“, que habita cada vez mais cada um de nós nestas duas
últimas décadas, não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente,
que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas
podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam; não
se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta
sociedade consumista nos apresenta e nos “pressiona” a
angariar, sem que tenhamos a mais lúcida consciência disso, nos tão
frequentados hipermercados, onde as palavras, e os livros que as
encerram, são comercializadas de modo similar e, quiçá, com o mesmo
estatuto do quilo de arroz.

O
pensamento ocidental esqueceu, de facto, a máxima fundamental: é na
linguagem e, portanto, nas palavras, que as coisas nascem e
verdadeiramente são. Afirmar a existência, dizer que uma coisa é,
significa falar do ser das coisas, como somente a Linguagem
originária pode fazê-lo. Impõe-se-nos, por isso, como estritamente
necessária, a refutação da tese que defende a existência de uma
arbitrariedade entre o que se diz e o que é, quer dizer, entre o
Dizer e o Ser, porque em cada sentença que proferimos o Ser é
efectivamente nomeado.

Devemos
recusar, sem reservas, a tendência de certo modo nominalista da
sociedade contemporânea, particularmente registada depois do grande
advento da Publicidade que tem feito crer ao comum dos mortais – que
vagueiam com as suas mentes errantes por este universo de quase
arbitrariedade semântica – que as coisas ou objectos da experiência
não têm realidade intrínseca fora da linguagem que as descreve e as
faz falar.

A
linguagem opera o des-velamento das significações do Mundo, não
havendo, portanto, dois planos: o do percebido e o do conhecido; o
do falado e o do expresso. A palavra não introduz um sentido num
conteúdo. Pelo contrário, é o conteúdo que se revela significante na
linguagem. É forçoso, propõe-nos o filósofo da Floresta Negra, que
destruamos a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna
significante a partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e
significados, em seguida, pelas palavras; são, antes, os objectos
que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da
linguagem falada.

O
sentido do Discurso, que Heidegger define em Sein und
Zeit
como sendo «a articulação significativa da
compreensão do ser-no-mundo no sentimento de situação
»[4],
nunca é construído, mas sempre descoberto. O mundo mostra-se-nos
investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a
linguagem seja tomada como uma leitura hermenêutica da experiência,
expressão que assume uma vasta e originária significação ontológica,
ao indicar a manifestação do carácter linguístico do Acontecimento
do Ser.

O
homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto
interpretativo, cuja linguagem é a sua única justificação. Muito
embora as coisas existam fora do gesto falado, o Mundo, esse
horizonte inteligível que abre acesso aos entes, só existe, em
sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada pela e através
da linguagem. Apenas onde há linguagem há Mundo, quer dizer, uma
esfera em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de
responsabilidade, mas também de arbítrio e de con-fusão.

A
análise existencial não é, definitivamente, senão um estudo do homem
no universo do Discurso. O Da-sein determina o modo como o
próprio homem se interpreta como ente que fala, e falar equivale a
fazer surgir o Ser do real: a linguagem é um modo do Ser, uma
estrutura da Ek-sistência. Porém, não é um existencial entre
outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham
corpo. A linguagem não é somente uma possibilidade do Da-sein, mas uma determinação essencial do ser-homem, não
obstante constituir, a um tempo, a sua grandeza e a sua
miséria.

O
discurso do Mundo é, inextrincavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek-sistência é o discurso que reflecte esta linguagem
fundamental: «a linguagem é a casa do ser», na qual o homem
habita e, deste modo, ek-siste, pertencendo `a verdade do Ser
que ele próprio vigia. Em Unterwegs zur Sprache,
Heidegger afasta toda a falsa interpretação desta metáfora, que
aliás é muito mais do que uma simples metáfora: uma casa recolhe
passivamente aqueles que abriga, enquanto a linguagem tem o poder
efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do
Homem.

A
importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem na citada
passagem de Briefe Über den Humanismus – e que urge
recuperar face a este premente esquecimento da autenticidade da
linguagem que conduz, em cada Discurso, a que as palavras
remetam meramente para o viso de si próprias e não mais para o Ser,
tese que não podemos deixar de reiterar – resulta justamente da
firme convicção segundo a qual a linguagem é própria do homem, não
apenas porque para além de todas as suas outras faculdades o homem
também tem a genial capacidade de falar, de comunicar
inteligivelmente através das palavras, mas sobretudo porque apenas
por intermédio desta irredutível via, ele tem acesso privilegiado ao
Ser.

 

II.
LINGUAGEM E ACONTECIMENTO DO SER

«Por
isso (…) foi dado ao homem a língua, o mais perigoso dos bens
(…) para que ele dê testemunho do que ele é
(…)».

                                                                                                                              Hölderlin

Segundo
o mesmo princípio, a função da linguagem é deixar que o Ser seja.
Jamais poderemos obnubilar que não é mais o homem que determina o
Ser, mas o Ser que, através da linguagem, se revela ao homem e o
determina. Face à significação atribuída a este modo específico de
re-velação, o homem surge-nos apenas como o portador da linguagem –
em virtude de a linguagem não radicar na essência do homem, mas
manifestar uma essência histórico-ontológica fundamental, sendo
segundo esta essência que ela é dita como a “Casa do Ser” – e
como tal tem a função, sendo ele o único, de mostrar o Ser por seu
intermédio.

Revelando
esse extraordinário poder de manifestar a originariedade e
primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o
dês-ocultar, de o colocar na não-latência e com ele a essência do
homem, a linguagem afigura-se como a única morada onde o Ser pode
ser realmente acolhido e posteriormente mostrado na sua nudez
primordial.

A
linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é
o não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O
encontro com o para além das palavras é possível porque o Ser, essa
Alma da linguagem, é o lugar da nossa permanência. A linguagem que
nos faz comunicar com o Mundo e com os outros homens exprime sempre
algo de diferente do que se diz, ou seja, exprime as relações
ocultas que as palavras mantém com o Ser, quer dizer, com aquilo que
em si mesmo é e não necessita de nada para que seja.

A
linguagem é um acontecimento (Ereignis) que, ao
manifestar-se, produz a indicação e a língua. A palavra é a marca do acontecimento interior à linguagem e a escrita o depósito da
Tradição do Ser. Por isso, ao interrogar-se o Ser, a
Linguagem arranca constantemente a palavra ao peso significativo da
tradição e a escrita aos limites do signo para a fazer regressar à presença originária que permitiu a sua manifestação.
Neste sentido, a Linguagem reside na diferença interior à palavra do
Ser que se inscreve entre o acontecimento o qual, ao mesmo
tempo, desvela e oculta a letra ou a palavra que morre no limiar da
coisa.

A
ideia de uma linguagem transparente ao espírito é seguramente uma
ilusão de representação. Há sempre para além uma palavra essencial que o coloca na presença, mas que não pode ser
captada como palavra porque o acontecimento do Ser é a sua
marca concomitantemente oculta e des-velada.

Se em Sein und Zeit a Linguagem já ocupava uma posição
peculiar, na medida em que, como signo, revelava a própria estrutura
ontológica da mundaneidade, em obras posteriores, Der Ursprung
des Kunstwerkes
e Hölderlin und das Wesen der
Dichtung
, mostra-se ao filósofo, nesse caminho de
des-contrução da concepção vulgar de Linguagem (tão-só como um meio
de comunicação), como o modo próprio do abrir-se na abertura do
Ser
, enquanto é pensada como Poesia, a Arte originária da
palavra:
«Segundo
a concepção corrente, a linguagem surge como uma forma de
comunicação. Serve para a conversação e para a concertação em geral,
para o entendimento. A linguagem não é apenas – e não é em primeiro
lugar – uma expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não
transporta apenas em palavras e frases o patente e o latente visado
como tal, mas a linguagem é o que primeiro trás ao aberto o ente
enquanto ente. Onde nenhuma linguagem advém, como no ser da pedra,
da planta e do animal, também aí não há abertura alguma do ente e,
consequentemente, também nenhuma abertura de não ente e do vazio.»[5]

É
neste sentido que a Linguagem é, para Heidegger, “Poesia em

sentido essencial”: «porque a
linguagem é o acontecimento em que, para o homem, o ente como ente se abre, a
poesia, a Poesia em sentido estrito, é a poesia mais original, no sentido
essencial. A linguagem não é, por isso, Poesia, por ser a poesia primordial (Urpoesie),
mas a Poesia acontece na linguagem, porque esta guarda a essência original da
Poesia.»

[6]

 


III. A LINGUAGEM COMO POESIA ESSENCIAL

 



                                                                             
                                «Gerado no teu seio



                                                                                             
                O divino menino e em volta dele



                                                                                             
                O filho da amiga, chamado João



                                                                                             
                Pelo pai mudo, o audaz



                                                                                             
                A quem foi dado



                                                                                             
                O poder da língua,



                                                                                             
                Para interpretar (…)»



                                                                                                                            
               

Hölderlin

Posto que a abertura do Mundo se dá sobretudo na
linguagem, é nela que se pode perscrutar a autêntica inovação ontológica, uma
vez que nos é dito que a «linguagem é poesia no sentido essencial»
,
[7]
ou como Heidegger refere, em Einführung in die Metaphysik

[8],
«a linguagem é poesia originária (Ur-dichtung) em que um povo diz o Ser»
e, inversamente, a grande poesia, pela qual um povo entra na sua História,
inicia a configuração da linguagem.


Dizer que a linguagem é Poesia, apenas no sentido essencial, significa
afirmar que o falar autêntico é criação, abertura, inovação ontológica, uma vez
que nem todo o falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento
de comunicação que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu
próprio interior, a abertura já aberta.


Na linguagem essencial instituem-se os mundos históricos em que o
estar-aí e o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no
Mundo, o que faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, «o fundo que
rege a História do homem», porque, afinal, «o que perdura fundam-no os poetas
».
Fundar o que permanece ou fundar o permanecente significa desvelar o Ser para
que o ente apareça, só pelos poetas alcançado por serem os únicos capazes de
nomear os Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.


O nomear do poeta não consiste, porém, em atribuir um nome a uma coisa
anteriormente conhecida mas, ao invés, falando, o poeta celebra a palavra
essencial e celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é; através desta
nomeação, torna-se conhecido enquanto é, pois a poesia é, na sua essência, a
“fundação do Ser pela palavra” e esta fundação é doação livre. Quando os Deuses
são nomeados originariamente pelo poeta e a essência das coisas se torna
palavra, a própria existência humana é inserida num contexto firme e é colocada
sobre o terreno desta fundação.


A Poesia é, radicalmente falando, não um fenómeno de Cultura ou a
expressão de uma “alma natural“, mas a obra suprema da linguagem,
enquanto dada como projecto de iluminação na abertura, na clareira (Lichtung)
do Ser. O dizer do poeta é este mesmo projecto de iluminação onde é dito
como o ente chega à abertura. Este dizer que em si mesmo é poema,
nomeia o Mundo e a Terra assim como o espaço de jogo do seu combate.
Precisamente por isso, cada língua é o surgimento do dizer no qual, para
um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a veracidade
da Terra no seu oferecimento original.


A poesia é – onde a língua manifesta a sua essência, que é o dizer do Ser
de todos os entes – essencialmente pensamento. Pensamento não significa aqui

qewria
, determinação do conhecer como atitude
teórica, ou

tecnh
,
tomada no sentido da reflexão ao serviço do fazer e do produzir, ou

praxiz
, mas aquilo que pertence (gehören)
e escuta (horen) o Ser. «Numa palavra, o pensamento é o
pensamento do Ser
»

[9].


A Poesia é uma forma de pensamento e este, por seu turno, é por essência,
poetizar (dichten).É, pois difícil distinguir neste momento
a linguagem autêntica, o pensamento e a Dichtung. Em última análise, e
não obstante as diferenças conceptuais que possam evidenciar, estes três
elementos acabam por se tornar homólogos, homologia que é estabelecida por uma
comunidade essencial: das Sein, o Ser.

 


 


IV. A INSTAURAÇÃO POÉTICA DO SER E DA VERDADE PELA POESIA

 


                                                          

           

«Muito aprendeu o homem. Dos Celestiais muito nomeou,

                                              
                                               Desde que somos um Diálogo


                                              
                                               E podemos ouvir uns dos outros»



                                                                                                             
                                               

Hölderlin


Dispondo desse poderoso “instrumento” de des-velamento – a Linguagem – a
Poesia afigura-se como sendo uma forma de

alhqeia
,
tal como a arte genericamente considerada. Por isso, em vez de banirmos os
Poetas da cidade, como havia pretendido Platão, urge requerê-los por serem os
únicos que privilegiadamente dispõem da genial capacidade de instaurar uma
ordem durável
, ao nomearem as coisas que permanecem inacessíveis ao vulgo.


Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e
tal instauração possui o carácter de ser um dom fundante e
inicial
, rebatendo toda a familiaridade da aparência. Fundando
poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a si mesmo. Compreendemos, assim,
porque é que o Das-ein é poético (dichtrich) e em que sentido é
dito que «de um modo poético habita o homem sobre esta Terra». Habitar
poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela
proximidade das coisa.


O fundamento do “ser-aí” (Da-sein) humano é, pois, poético,
como o próprio acontecer da linguagem primordial que é poesia como fundação do
Ser. Se compreendermos esta essência da Poesia dada como linguagem primordial de
um povo historicamente concebido pela qual diz o seu ser, percebemos, ao mesmo
tempo, que a essencialidade da linguagem tem que ser compreendida a partir da
essência da poesia, tal como a essência da poesia é compreendida a
partir da essência da linguagem.


Então teremos de afirmar que a linguagem não é apenas criação e inovação
ontológica, como já se havia referido, mas, sobretudo, a sede, o lugar do
acontecimento do Ser como o abrir-se das aberturas históricas em que o
Da-sein
está lançado. É a linguagem que “rege o nosso estar-aí” e,
por esta razão, dependemos dela de um modo umbilicalmente profundo: «a
linguagem não é mais um instrumento disponível para o homem, mas aquele
acontecimento que dispõe da maior possibilidade de ser homem
». Enquanto tal
apropria-se de nós, na medida em que com as suas estruturas, delimita, desde o
início, o campo da nossa possível experiência do Mundo: só na linguagem as
coisas nos podem aparecer e só no modo como ela as faz aparecer; é a palavra que
proporciona o Ser da coisa e todo o falar concreto, autêntico, pressupõe que a
linguagem já tenha aberto o Mundo e que também, a nós, nos tenha colocado nele.


Toda a problematização da linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico,
requerer que ela já nos tenha falado. A linguagem é, acima de tudo e
originariamente, mais do que uma faculdade de que dispomos; é um “dirigir-se a
nós”, sem o qual não poderíamos falar. Se isto significa, antes de mais, que
todo o falar autêntico é fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no
entanto, que o homem seja um ouvinte passivo, uma vez que a linguagem não é,
acidentalmente, um “dirigir-se a nós“. Pelo contrário, é nesse “dirigir-se
a nós
“, que somos os seus ouvintes e respondedores privilegiados, que
consiste a sua própria essência.

A linguagem, afirma Heidegger em
Sein und Zeit


[10]
,
«tem necessidade da fala humana, embora não seja um produto da nossa
actividade linguística
». Ela é o anúncio, o apelo, a mensagem e nós, homens,
somos usados por ela como ”mensageiros da voz do Ser“. A linguagem não se
dá senão no falar do Da-sein e, todavia, é verdade que tal falar encontra
já delimitadas as suas possibilidades e os seus contornos na própria linguagem,
ainda que não como uma estrutura rígida que o obrigue, mas como um apelo a que
responde. É neste sentido que devemos entender porque é que Heidegger retoma do
poeta do poeta“, o romântico Hölderlin, a caracterização do homem como

Diálogo, porque é que o ser do homem se funda na linguagem e porque é que
só acontece verdadeiramente no Diálogo.

Por linguagem não se entende, portanto, um mero
instrumento ou um meio de comunicação, mas a expressão representativa da
veracidade do que é comunicado, sempre numa relação com a alteridade: «
A
linguagem é a casa do Ser» (Die Sprache ist das Hause des Seins),
sendo por excelência os pensadores (die Denkenden) e os Poetas (das
Dichtenden
) os guardas (der Wacheter) desta habitação (dieser
Behausung
)

 [11], embora os
poetas se apresentem numa relação de primazia sobre os pensadores, uma vez que a
«poesia penetra toda a arte, todo o acto pelo qual o ser essencial (das
Wesende
) é desvelado no Belo
»

[12]
.


Significará esta afirmação que a Arquitectura (Bauen) e as
Artes Plásticas (Bilden) devem ser necessariamente fundadas sobre
a Dichtung? Serão todas as Artes meras variantes da arte da palavra?
Temos de nos desviar deste impasse bizarro, na medida em que a Poesia é apenas
um modo entre outros do projecto de iluminação do Ser. Todavia, sendo a sua
essência a Linguagem, a Arquitectura e as Artes Plásticas só são possíveis, só
advêm verdadeiramente em virtude da abertura operada pelo dizer e pelo nomear.
Só por meio da linguagem podem ser efectivamente guiadas. Todas as artes são
cada uma a seu modo Dichtung, no interior da clareira do Ser advindo em
obra.


A Poesia é pensada precisamente a partir da
poihsiz
, isto é, como um dos modos de manifestação do Ser. A
essência da Poesia apreendida a partir da experiência grega do pensar brota do
Ser como do seu fundamento original. A questão da essência do poético, bem como
a da Arte, não pode ser pensada senão a partir da questão do Ser. Quando o Ser
não é mais compreendido no horizonte do tempo, a historicidade poética
manifesta-se como o domínio próprio onde a verdade do Ser é colocada em obra.
Longe de exprimir simplesmente uma cultura, a poesia torna possível toda a
Cultura. Por conseguinte, se a Arte é na sua essência Dichtung, e a
essência da Dichtung é precisamente a instauração da verdade


Isabel Rosete
Julho de 2006





[1]

Heidegger, UKW, in Holzwege, pp. 59 e
62.

 



[2]

.”O que aqui se impõe como digno de questão reúne-se então no genuíno lugar
da explicação, onde se toca a essência da linguagem e da Poesia, tudo isto, uma
vez mais, tendo apenas em vista a pertença recíproca do ser e
da
palavra”,
Martin Heidegger, “Zusätze”, in Holzwege, p. 74
 




[3]

Martin Heidegger, op. cit., p. 82.
 




[4]

Martin Heidegger, Sein und Zeit, p.201.

 




[5]

Heidegger, UKw, in Holzwege, p. 59.
 



[6]

Op. cit., pp. 59-60.
 




[7]

Martin Heidegger, Hölderlin und das Wesen der Dichtung, p. 40.
 




[8]

Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik, p. 37.
 




[9]

Martin Heidegger, op. cit., p. 78.
 




[10]

Martin Heidegger, Sein und Zeit, p. 13.
 


[11]
Martin Heidegger, Lettre sur L’Humanisme, p. 45.





[12]

Martin Heidegger, Es
sais et Conférences, p. 47.

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