HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA

(O. M.)

Índios poetas e imaginosos

SERIA aquela gente primitiva e rude que vivia no Bra-— sil, ao tempo de seu descobrimento, desprovida de imaginação e de idéias poéticas ? As pesquisas e trabalhos de etnólogos e sociólogos mostram que os índios brasileiros sabiam criar mitos, e mitos poéticos, para explicar os fenômenos da natureza. Recolheram-se poemas e numerosas historietas, que atestam certo senso poético e imaginação. A maioria dessas histórias narra fatos acontecidos com os bichos das selvas, e fatos humorísticos, em geral, revelando o senso satírico dos homens das tabas.

Esta canção, recolhida pelo general Couto de Magalhães, é uma bela amostra de ciúme amoroso:

O’ Ruda, vós que nos céus estais e amais as chuvas. . . Vós que nos céus estais. . . fazei com que êle (o amante) por mais mulheres que tenha, as ache todas feias; fazei com que êle se lembre de mim, quando o sol se encobrir no poente.

Esta outra tem a delicadeza de um haj-kai japonês:

Eia, minha mãe Lua, fazei chegar esta noite ao coração dele (o amante) a minha lembrança!

Como teria aparecido o milho, que constitue saborosa alimentação do indígena? Eis como êle imagina, segundo

uma de suas lendas, a origem do milho. Recolheu a lenda Clemente Brandenburger: "Um grande chefe Pareci, dos primeiros tempos da tribu, Ainotarê, sentindo que a morte se aproximava, chamou seu filho Kaleitôê e ordenou-lhe que o enterrasse no meio da roça, assim que terminassem os seus dias. Avisou, porém, que três dias depois da inumação brotaria de sua cova uma planta que, algum tempo depois, rebentaria em sementes. Disse-lhe que não a comesse; guardasse-a para o replantio, e ganharia a tribu um recurso precioso. Assim se fez; e apareceu o milho entre eles."

Semelhante a esta é a lenda da mandioca, também recolhida por Brandenburger, havendo outras que explicam a origem da raiz tão utilizada pelos selvagens para bebida e comida: "Zatiamare e sua mulher, Kôkôtêrô, tiveram um casal de filhos: um menino, Zôhôôiê e uma menina, Atiôlô. O pai amava o filho e desprezava a filha. Se ela o chamava, êle lhe respondia por meio de assobios; nunca lhe dirigia a palavra.

"Desgostosa, Atiôlô pedia à sua mãe que a enterrasse viva, visto como assim seria útil aos seus. Depois de longa resistência ao estranho desejo, Kôkôtêrô acabou cedendo aos rogos da filha, e a enterrou no meio do cerrado. Porém, ali não pôde ela resistir, por causa do calor, e rogou que a levasse para o campo onde tampouco se sentiu bem. Mais uma vez suplicou a Kôkôtêrô que a mudasse para outra cova, esta última aberta na mata; aí sentiu-se à vontade. Pediu, então, à sua mãe que se retirasse, recomendando-lhe não volvesse os olhos, quando ela gritasse.

"Depois de muito tempo gritou: Kôkôtêrô voltou-se rapidamente. Viu no lugar em que enterrara a filha um arbusto mui alto, que logo se tornou rasteiro, assim que se aproximou. Tratou da sepultura. Limpou o solo. A plantinha foi-se mostrando cada vez mais viçosa. Mais tarde Kôkôtêrô arrancou do solo a raiz da planta: era a mandioca."

Não menos interessantes são os contos em que se narram as proezas do finório e astucioso jabotí, da onça bronca e feroz, dos macacos galhofeiros e moleques, dos gambás matreiros.

Fazer poesia e contar histórias, eis uma herança que enriquece muito brasileiro de hoje.

Teatro da natureza

HOUVE tempo em que se falou muito em "teatro da natureza". Representavam-se ao ar livre tragédias gregas, tendo o céu como bambolina e as árvores como bastidores. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes eram declamados, a plenos pulmões, por artistas famosos. No Brasil, houve "teatro da natureza" muito tempo antes que a moda pegasse na Europa e, por muda, nas Américas.

Foi o Padre Anchieta o primeiro teatrólogo que, no nosso país, utilizou o cenário autêntico e natural para pano de fundo de suas peças. E que peças eram essas? Quais eram os atores? As peças, escrevia-as o próprio Anchieta. Por meio delas ia ensinando aos índios regras de moral e princípios religiosos. Os pedagogos de hoje chamam a isso "dramatização de assunto". Como isso é velho então! Anchieta fazia "escola nova", antes que a "escola nova" aparecesse, engalanada pelo entusiasmo de seus partidários. Os atores eram os próprios sel-vícolas, especialmente os indiozinhos, os "corumins".

Anchieta se valia de seus "autos" e "diálogos", de suas peças, para não somente ensinar os mistérios da fé e as regras da moral cristã aos selvícolas bisonhos ou ferozes, mas satirizar e verberar os abusos dos habitantes da colônia. Como não havia jornais àquele tempo, era no palco que o hábil jesuíta condenava, pelo ridículo e pela sátira, os excessos dos poderosos, os abusos dos colonos contra os indígenas.

A indiada gostava imensamente desse teatro. Quando havia representação, corria de suas aldeias para a ela assistir. O palco se armava à orla da floresta, em pleno ar livre. O perigo estava no mau tempo. Se chovesse, adeus espetáculo. E teria sido assim, no dia da estréia de uma nova peça de Anchieta, "A Pregação Universal", em S. Vicente, no dia 31 de dezembro de 1556. Conta uma lenda que, no momento da representação, o tempo enfarruscou e forte trovoada se fez ouvir. Tremendo aguaceiro estava iminente. Os espectadores, numerosíssimos, na perspectiva de uma carga d’água pesada, já se retiravam, frustrando assim o objetivo máximo de Anchieta, que era atacar, através dos personagens de sua peça, os colonos preadores de índios.

Mas o santo jesuíta confia em Deus. Ergue os olhos para o céu e reza. Depois, confiante, diz ao povo que fique para assistir ao espetáculo. A chuva não cairá no momento. E de fato, a ameaçadora nuvem borrascosa paira por sobre o palco e platéia, como um toldo sombrio, resguardando assim espectadores e atores dos raios do sol.

Terminada a representação, prossegue a lenda, a carga d’água inundou os campos.

O "Boca do Inferno"

QUEM seria aquele fidalgote atrevido e loquaz, que nos corredores da velha universidade de Coimbra assombrava mestres e colegas pelo seu talento e, principalmente, pela sua língua acerada e irreverente? O sr.

Gregório de Matos, brasileiro da Baía, filho de um fidalgo minhoto e de uma matrona baiana. O brasileirinho era terrível. Logo depois de formado se tornou advogado ha-bilíssimo, perito nas tretas e rabulices forenses. Não poupava adversários. Denunciava as salafrarices de todos. Era um perigo, o homem. Reconhecendo-lhe os talentos, o governo português nomeou-o delegado de polícia de um dos arrabaldes de Lisboa e depois juiz de órfãos e ausentes. Mais tarde incumbiram-no de averiguar as acusações formuladas contra o governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá e Benevides.

Não foi muito do agrado do bacharel Gregório de Matos esse regresso, em função tão espinhosa, à terra natal. Já era homem maduro, meio céptico e amargurado. Embora não fosse êle padre, o arcebispo D. Gaspar Barata de Mendonça fê-lo vigário geral da Baía e tesou-reiro-mor da Sé. Essa investidura deveria ser de molde a dar maior compostura ao bacharel Gregório. Mas o homem era levado. Sua língua virulenta a ninguém poupava. Criou terríveis inimigos. Abandalhou-se numa vida de farras, esbórnias, arruaças. Com violão e mulatas, carraspanas e ceatas, ia êle passando a vida.

O novo arcebispo, D. Frei João da Madre de Deus, não esteve pelos autos, com tão escandaloso vigário geral. Tomou-lhe a murça capitular. Contra todos os seus adversários respondia atrevidamente Gregório de Matos:

"Querem-me aqui todos mal: Mas eu quero mal a todos, Eles, e eu, por vários modos, Nos pagamos tal por qual.

E querendo eu mal a quantos Me têm ódio veemente; O meu ódio é mais valente, Pois sou só, e eles são tantos."

Casou-se com uma viúva, que êle achava "tão honesta quanto formosa". Mas a-pesar-dêsses predicados, não se entenderam os dois. E a mulher foge-lhe de casa. Cada vez mais se degrada o fidalgo e cada vez se torna mais ferino e mais atrevido nos seus ataques em versos. Apelidam-no de "Boca do Inferno". Suas sátiras provocam uma deportação para a África. De lá regressa, algum tempo depois, para Pernambuco, onde continua sua vida de sempre, entre "músicos, solfistas e folgazões", embora proibido de fazer versos, tal era o temor que infundiam as suas sátiras escorchantes.

Faleceu em 1696, arrependido e reconciliado com a Igreja. Uns contam que, na hora da morte, fizera ainda uma pilhéria irreverente. Outros citam um admirável soneto que compôs momentos antes de morrer, no qual, após se referir ao infinito amor de Deus, diz:

"Esta razão me obriga a confiar.

Que por mais que pequei, neste conflito»

Espero em vosso amor de me salvar."

Os críticos se dividem no apreciá-lo. Araripe Júnior acha-o "notabilíssimo canalha", "reles boêmio", "quase louco, sujo, mal vestido, tocando lundus e descantando poesias obcenas", "incorrigível, vadio, incapaz de trabalho assíduo", "mau marido e péssimo cidadão".

Ronald de Carvalho, embora não obscureça seus defeitos e deficiências literárias, escreve: "Gregório de Matos representa na história de nossas letras a revolta do bom senso burguês contra as ninharias ridículas da fidalguia reinol; a bravura do julgamento desassombrado, muitas vezes perigosa, contra a covardia dos áulicos, sempre caroável aos mandões; a nobreza do caráter contra a nobreza do sangue, a força da inteligência e da lealdade contra a intriga sinuosa e escorregadiça. Êle foi, para resumir, o primeiro espírito varonil da raça brasileira."

Descontados os excessos dos críticos, o certo é que êle vergastou os erros e abusos do seu tempo, as vaidades, os roubos, os crimes. Nos seus sonetos de tom moralizador há belas advertências aos vaidosos, e nas suas sátiras não poupa os que merecem corretivo. Da situação dos brasileiros e portugueses dirá:

"Que os brasileiros são bestas E estão sempre a trabalhar Toda a vida por manter Maganos de Portugal."

Contra a fidalguia da terra:

"No Brasil, a fidalguia No bom sangue nunca está; Nem no bom procedimento. Pois logo em que pode estar?"

E responde que é no amealhar dinheiro "para ter que gastar mal".

Vivendo em pândegas com mulatos e mestiços, não lhes poupa alguns remoques:

"… ser mulato, Ter sangue de carrapato, Cheirar-lhe a roupa a mondongo, E’ cifra de perfeição: Milagres do Brasil são."

Dá conselhos aos que desejam afidalgar-se, conselhos de servilismo, e remata:

"E com isto, e o favor de quatro asnotes De pronto ouvir e crer; se porá a pique De amanhecer, um dia, um grão Fidalgo!"

Tinha razão o povo. O homem era mesmo um Bôca do Inferno.

Dirceu de Marília

DA janela do sobrado, o desembargador Tomaz Antônio Gonzaga contempla o vulto gentil que, além, no casarão distante, também mira a figura donairosa do magistrado poeta. O desembargador Tomaz Antônio Gonzaga namorava a senhorita Maria Dorotéia Joaquina de Seixas. Ou, para usar modos de falar do próprio poeta, Dirceu se embevecia na contemplação das galas e encantos de Marília.

O desembargador transformava em poesia seus sonhos de amor, seus ideais duma vida pacata e familiar, entre massudos autos e a sua bela Marília, linda flor de 16 anos.

Português de origem, já nomeado desembargador para a Baía e perdidamente enamorado da menina mineira, não parecia crível que o poeta magistrado se metesse em conspiratas. Mas o fato é que se viu envolvido na "Inconfidência Mineira", naquele movimento contra os excessos do fisco português que, em 1789, se tramava em Vila Rica. Preso com os demais conjurados, três anos passou o poeta na prisão, enquanto durou a devassa para averiguação dos verdadeiros culpados. Do fundo do cércere compunha ainda seus versos a Marília, desta vez, porém, versos de tristeza, de desespero, de lastimosos pressentimentos.

E’ condenado com os outros, e com os outros merece a comutação da pena para degredo na África. Tudo lhe foge então: posição, noivado, todo um futuro de vida honrosa e feliz. Levam-no para o degredo. Nunca mais verá sua Marília.

Amores tão infortunados mereceriam um fim mais doloroso ainda e mais dramático. Dirceu e, Marília, morrendo de saudades, ou escrevendo-se sentidas e apaixonadas cartas, como aqueles dois outros famosos amantes, Heloísa e Abelardo. Mas a realidade é outra. Embora o poeta, à moda de Hércules tecendo ao lado de Ônfale, tivesse andado a costurar com a bela Marília o enxoval do casamento, o certo é que na África ‘esqueceu, ou fez por esquecer, a Marília dos "meigos, vivos olhos" e tratou, pouco tempo depois que chegou, de casar-se, sem mais poesia, com certa dama não muito arcádica e partoril.

Quanto a Marília, não se casou. Mas viveu até idade provecta, pensando sem dúvida no seu belo poeta, ingrato e esquecido, que lá na África distante, talvez não mais fizesse versos de amor por não ter diante dos olhos amorosos a "serrana bela".

E assim acabou, prosaica e chãmente, a história desses amores. Mas deles ficou um dos mais belos, dos mais maviosos, dos mais queridos livros de versos da literatura de língua portuguesa: as Líricas, de Gonzaga.

Gonçalves Dias O cantor dos guerreiros

DE Gonçalves Dias, disse Ronald de Carvalho: "Foi êle, sem dúvida, a primeira voz definitiva da nossa poesia, aquele que nos integrou na própria conciência nacional, que nos deu a oportunidade venturosa de olharmos, rosto a rosto, nossos cenários físicos e morais. Nesse homem pouco vulgar palpita com inegualável intensidade a luz de nossos horizontes, a limpidez de nossos céus e o sonoro fragor de nossos rumorosos rios. Foi Gonçalves Dias como uma dessas árvores da floresta tropical, onde a beleza das flores se mistura ao perfume dos frutos, ao colorido das folhas, ao canto dos pássaros e à surdina musical dos ventos, num equilibrado concerto de correspondências imprevistas".

Efetivamente, esse mestiço, filho de português e de mãe índia pura ou cafusa, reuniu no seu estro as qualidades, as tristezas, as saudades, os sofrimentos das três raças principais que se caldearam no sangue brasileiro. Foi\ o cantor clássico, pela perfeição da língua que utilizou, foi o cantor dos sofrimentos do escravo negro, foi o cantor dos feitos guerreiros dos selvícolas e traduziu em seus versos a tristeza das tribus que se enfraqueciam diante do conquistador. Seus poemas andam na memória do povo e inspiraram artistas do mármore e do pincel. Quer cante as suas saudades de exilado e os seus amores, como na Canção do Exílio, em Se se morre de amor, Ainda uma vez adeus, quer nos fale das façanhas dos guerreiros das "tabas sagradas", no Canto do Piaga, no I-Juca-Pirama, nos Timbiras, quer se entristeça com as lamentações de Marabá, sua poesia está sempre impregnada de sentimento brasileiro, de natureza brasileira, de acento brasileiro.

Tendo nascido e vivido no período em que predominou o romantismo literário, sua vida está pontilhada de episódios românticos, desde o do nascimento até o da morte. Nasce numa fazenda das proximidades de Caxias, no Maranhão. O pai, português, ali procurara refúgio contra perseguições políticas. E’ afastado aos seis anos dos carinhos maternos, quando o pai abandona a índia para casar-se com uma senhora de Caxias. A madrasta estima-o e quando lhe morre o pai, em vésperas de mandá-lo a estudar em Portugal, ela realiza o seu desejo enviando-o a Coimbra, onde estudará direito.

O poeta passa dificuldades. O dinheiro que a madrasta a custo lhe remete nem sempre chega para sua manutenção. Os amigos se cotizam e Gonçalves Dias consegue terminar o curso. Sua inteligência indagadora e aguda leva-o ao estudo das grandes literaturas. E começa, ainda estudante, a escrever seus poemas, tão ricos de seiva brasileira.

De regresso à terra natal, que lhe estivera sempre presente na saudade, deixa-se fascinar pela beleza e pela graça da menina e moça, Don-Ana, filha de rico negociante português. Mas as necessidades de ganhar a vida afastam-no do Maranhão. Segue para o Rio, onde publica os seus Primeiros Cantos. E’ professor. Leciona no Colégio Pedro II. Continua publicando dramas e versos.

Encarregado de estudar a organização da instrução pública no norte do país, volta ao Maranhão, onde encontra, em pleno viço da beleza, a menina de outrora. Reacende-se a paixão e o poeta resolve pedir a moça em casamento. Mas a-pesar-da estima em que o têm os pais de Don’Ana, recusam o consentimento. E’ que o poeta era mestiço.

Gonçalves Dias prefere renunciar à sua felicidade a ter de casar-se contra a vontade dos pais de sua amada, embora esteja esta resolvida a seguir o seu poeta. Tempos depois, quando em Portugal, aonde fora em missão oficial do governo brasileiro, encontra por acaso, num jardim, a sua bem-amada. DonAna, para vingar-se da oposição que lhe haviam feito os pais ao casamento com Gonçalves Dias, casara-se com um comerciante mestiço e de origem modesta. Mas é infeliz. O marido falira e se refugiara com a esposa em Portugal. O poeta sofre por ver a infelicidade de sua amada. Mas respeita-lhe a desgraça e desaparece para sempre de sua vida.

Esse encontro tão doloroso foi imortalizado no poema que compôs então: "Ainda uma vez adeus", em que o poeta dá expansão a todo o seu sofrimento e a todo o seu amor. De volta à pátria é encarregado de nova missão, no Norte. Publica, então, como fruto de suas observações e estudos, o Vocabulário da língua geral usada no Alto Amazonas, que completa o seu anterior trabalho, intitulado Dicionário da língua Tupi.

Doente e amargurado, segue novamente para a Europa em busca de melhoras. Mas sua saúde se agrava. O poeta pressente seu fim e, como vive sempre saudoso das palmeiras de sua terra natal, resolve regressar. Está já à vista de terra. Levanta-se, porém, um temporal e o poeta moribundo sossobra, com o navio que o transportava, quando já se delineiam além as praias maranhenses. Morria com êle uma das maiores vozes líricas da literatura brasileira.

"Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! Virgens das matas, suspirai comigo."

José de Alencar De ledor de romances a escritor de romances

EM torno da mesa, à luz avermelhada do candieiro, a família está reunida. As mulheres costuram, fazem croché, enquanto, com voz vibrante e entusiasmada, o menino José lê um romance. Que paixão e que vivacidade põe êle na leitura daquelas histórias de amor! Todos se comovem nos trechos mais sentimentais. Os olhos se enchem de lágrimas pela sorte das heroínas e pelos acentos apaixonados das declarações de amor dos namorados.

Esse menino que lia tão vivamente para os seus histórias de aventuras e de amor, iria mais tarde escrever êle próprio histórias semelhantes, para que outros meninos, por sua vez, as lessem, nos serões tranquilos da família. Esse menino iria escrever alguns dos livros mais belos da literatura brasileira, iria inspirar músicos e pintores, iria encher o Brasil de nomes de heróis e de heroínas de seus romances, iria dar o grito de independência da literatura brasileira contra a sujeição aos moldes portugueses, iria ensinar aos escritores futuros o amor ao estilo poético e harmonioso. Esse menino José Martiniano de Alencar iria escrever, dentro de poucos anos, o Guaraní, Iracema, Ubirajara, livros era que a paisagem brasileira se retrata com toda a sua fragrancia, a sua beleza rude, a sua pujança tropical, o seu silêncio majestoso e a sua saudade imensa.

Jurisconsulto, jornalista, poeta, romancista, parlamentar, orador e ministro, sua atividade se exerce sempre com brilho em todos os postos que assume. Tem a conciencia do próprio valor. E daí certo orgulho, que se extrema quando, sendo já ministro de Estado e candidatan-do-se a senador do Império, é interpelado pelo Imperador, D. Pedro II, que o acha demasiado moço para figurar entre os venerandos membros do Senado. A sua resposta é atrevida: "Por esta razão Vossa Majestade; devia ter devolvido o ato que o declarou maior, antes da idade legal…", embora procure amenizá-la, acrescentando: "Entretanto, ninguém até hoje deu mais lustre ao governo".

O Imperador não se desarmou diante do elogio e lhe vetou o nome ao ter de escolhê-lo na lista do senadores vitoriosos nas eleições. Alencar vinga-se escrevendo as famosas Cartas de Erasmo, em que critica a política imperial e não hesita depois em mal disfarçar a augusta personagem e seus companheiros de política nas figuras de seu romance histórico A Guerra dos Mascates.

Sua obra literária sobrepuja, porém, a sua atividade política. Nacionalista extremado, procura retratar nos seus romances e nas suas peças de teatro toda a vida do país, nos seus mais variados aspectos. E’ assim que escreve romances históricos, romances de psicologia mundana e feminina, romances regionais, romances sociais, e romances e poemas indianistas em que fixa para a posteridade, sob o halo da poesia, a luta entre a raça conquistadora e a raça conquistada e a sua subsequente fusão, simbolizada nos amores de Peri, o índio, e Ceci, a moça branca, entre o português Martim Moreno e a índia Iracema, "a virgem dos lábios de mel" e de "cabelos mais negros do

que a asa da graúna". O Guarani é considerado o seu melhor romance, inspira a ópera admirável de Carlos Gomes. Iracema é um poema em prosa, que lembra, pelo colorido, pela leveza e pelo pensamento triste da fragilidade do amor e das coisas belas, o próprio irisado e frágil beija-flor de nossas matas.

Poetizou, é certo, a nossa paisagem e os nossos índios, como havia feito Chateaubriand com os selvícolas e paisagens das terras norte-americanas. Mas ninguém como Alencar descrevera até então toda a majestosa grandeza das nossas matas, o troar ribombante de nossas cachoeiras, o amavio de nossos crepúsculos e de nossas noites de lua, o fragor de nossas tempestades e a bravia cólera dos nossos mares, — desses mares que êle assim descreveu, no capítulo inicial do Iracema :

"Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba.

"Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do Sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros".

Castro Alves – O poeta dos escravos

ANO de 1866. O teatro Santa Isabel, da cidade do Recife, está repleto. A platéia e os camarotes fremem de curiosidade e de paixão partidária. Acesa estava a luta entre os estudantes e o público, a favor das duas principais atrizes que faziam parte da companhia teatral então em temporada. As duas facções exaltadas e rixentas são chefiadas por duas brilhantes figuras da Academia de Direito: o sergipano Tobias Barreto, que exaltava Adelaide do Amaral, e o baiano Castro Alves, partidário e amante de Eugênia da Câmara. O público já está habituado àqueles duelos poéticos, em que, nos intervalos dos atos, os dois rivais se defrontam e cantam, em versos apaixonados e vibrantes, as excelencias e o gênio das duas atrizes.

Em meio da espectativa daquele grande público que enche o teatro, se ergue o sergipano desengonçado, mestiço, de gesticulação violenta, para exaltar a sua diva, aproveitando a ocasião para lançar bervada seta contra o rival e a rival:

"Sou grego, pequeno e forte Da força do coração, Vi de Sócrates a morte E conversei com Platão: Sou grego; gosto das flores, Dos perfumes, dos rumores; Mas minh’alma inda tem fé, Meus instintos não esmago. Não sonho, não me embriago Nos banquetes de Friné. . ."

Quando terminou o recitativo todo o público aguardou, especiante, o revide, que não deixaria de vir. De um dos camarotes se levanta a figura apolínea dum adolescente. E’ Castro Alves, o jovem poeta baiano, cujos versos incendiavam os corações e abrasavam de entusiasmo as mentes mais frias.

De preto, para ressaltar a sua palidez romântica, os negros e ondulados cabelos deitados fartamente para trás, a fronte larga e escampa, um leve e atrevido buço a ensombrar-lhe o lábio superior, os olhos pestanudos e fuzi lantes, em gestos eloquentes e voz cheia e harmônica, vai deelamando as suas estrofes ardentes e apaixonadas em que exalta a mulher amada e a atriz de talento, e ao mesmo tempo fere o rival e a sua dama:

"Sou hebreu, não beijo as plantas Da mulher de Putifar. . ."

Mas não era somente nesses prélios teatrais que se exercitava a musa condoreira do poeta adolescente. Estava-se naquele tempo em plena guerra contra o Paraguai e Castro Alves punha a sua inspiração ao serviço da pátria, enaltecendo-lhe os feitos e incitando patrióticamente os soldados. À partida de tropas de voluntários declamava, no momento do desfile, os seus versos arrebatadores.

Outro problema lhe suscitava o ardor combativo e a inspiração vivaz: o da emancipação dos escravos. Sua compaixão pela raça escrava vinha de longe, dos tempos de sua infância na fazenda das Cabaceiras. Pode dizer-se que a mamara com o leite, pois sua ama de leite, era uma mestiça, chamada Leopoldina, que o criara com desvelo maternal. Já ao tempo de estudante, no Recife, preparava os poemas que fariam parte do livro Os Escravos, publicado somente depois de sua morte. A democracia, a libertação dos escravos, o amor, eram os grandes temas de sua musa sempre arrebatada e grandíloqua, exceto quando se aveludava em frases cariciosas de amor.

Do Recife, onde escrevera seu drama Gonzaga ou A revolução de Minas, regressa, acompanhado de sua amante Eugênia da Câmara, à Baía, onde fará representar com extraordinário êxito a sua peça. O sul do país o atrai. Resolve prosseguir seus estudos de direito em São Paulo.

Sua passagem pelo Rio é ocasião de firmar-se sua fama de grande e inspirado poeta. Recebe mesmo a maior consagração que lhe poderia ser dada no momento. José de Alencar, o romancista que todo o Brasil admirava e lia, o apresenta a Machado de Assis, que iria ser o outro grande romancista do século. Alencar e Machado elogiam, e com razão, o talento do adolescente baiano.

Precedido de tanta fama e glória Castro Alves chega a S. Paulo, em cuja academia se matricula. Começa uma época de grandes triunfos para o jovem poeta. Nos saraus acadêmicos, é êle estrela ímpar. Os salões aporfiam em tê-lo a ilustrar uma festa. As mulheres admiram-no e amam-no. Mas dizem que Eugênia o atraiçoa. O poeta sofre e geme suas queixas e faz explodir suas cóleras nos versos que então compõe. Um dia, numa caçada, um tiro acerta-lhe num pé. Prostra-o a doença por muito tempo. Tem de seguir para o Rio, para ser operado. Amputam-lhe o pé, mesmo sem anestesia. Conta-se que, nesse momento, dissera risonho ao operador: "Corte-o, corte-o, doutor. Ficarei com menos matéria que o resto da humanidade".

Enfraquecido pelos longos sofrimentos, a tuberculose dele se apodera. Volta à terra natal, em busca de melhor clima. Na Baía, nova paixão amorosa o toma. Desta vez é uma cantora, Agnese Murri, que, embora o ame, não consente em ser a George Sand daquele Mus-set. Enfraquecendo dia a dia, definha o poeta. E um dia, diante duma janela aberta, a contemplar o infinito céu, Castro Alves morre, aos vinte e quatro anos.

No curto espaço de sua existência deixara, porém, uma obra imortal que atesta irrecusavelmente o seu gênio. Quer na poesia lírica, quer na poesia patriótica e social, seu estro tem vibrações únicas na nossa literatura. Ombreia-se sem desdouro, nem amesquinhamento, com aqueles que lhe foram mestres: Vitor Hugo, Lamartine, Musset, Byron e Espronceda.

A selvatiqueza e o mistério de nossa paisagem vivem opulentamente nos seus versos, túmidos de seiva, sensuais, cálidos, arrebatadores. Os poemas que dedicou à defesa dos escravos jamais se apagarão da memória do povo. O Navio Negreiro descreve e vergasta, em estrofes imortais, os horrores do tráfico. E as Vozes ¿’África são o próprio grito de sofrimento, as queixas desesperadas do continente negro. Dizem que A cabana do Pai Tomaz provocou a guerra de Secessão, nos Estados Unidos. Os versos de Castro Alves, genialmente superiores aos sentimentalismos exagerados do livro de Harriet Beecher Sto-we, inocularam na alma mesma do povo, não o ódio, mas a fraternidade e a compaixão por uma raça sofredora. Foi realmente o grande poeta dos escravos.

Machado de Assis – De moleque de morro a presidente de Academia de Letras

PELAS ladeiras e ruelas do morro do Livramento, no Rio de Janeiro, vagava aí pelos fins da primeira metade do século XIX um molecote franzino, arisco, observador e inteligente. Seus brinquedos e diversões seriam "caçar ninhos de pássaros ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceição, ou simplesmente arruar à-toa…" Era o mestiço Joaquim Maria Machado de Assis, filho de um pobre pintor e de uma lavadeira. Era um menino doente, sofrendo umas "coisas esquisitas". Mas o desejo de aprender sobrepujava todas as deficiências de ordem social e física.

Era mestiço, plebeu, pobretão, tímido e gago, e ainda por cima, epiléptico. Não tinha amigos ou protetores poderosos que, a um passe de mágica, lhe transformassem todas aquelas desvantagens em outros tantos dons, capazes de fazê-lo um grande vitorioso na vida social. Mas naquela alma recatada e humilde havia uma flama inextinguível, havia o fogo central duma idéia galvanizadora: ser um artista, ser um escritor, vasar na prosa ou no verso os sonhos de uma alma adolescente ou as experiências da maturidade.

Foi esse ideal de arte e de beleza que operou todas as tranformações necessárias a fazer do mestiço, do plebeu, do pobretão, do tímido, do gago e do epiléptico, o homem de maneiras corretas e medidas, o aristocrata da língua, o funcionário cumpridor de seus deveres e ao abrigo da pobreza, o escritor famoso, que os contemporâneos estimavam e admiravam e os moços veneravam e saboreavam, como dos que melhor escreveram entre nós e dos que mais fundo desceram no coração humano, para descobrir nas dobras do subconciente as florações psicológicas que mostram o homem tal qual é, com as suas misérias e com as suas grandezas.

Mas esse trabalho de ascenção êle o executou dolorosamente, penosamente. Lutou dia a dia contra todas as desvantagens, numa vigilância incansável, para que os de fora (exceção feita de raro íntimos) não bisbilhotassem o que ia de tenacidade, de esforço doloroso, do sigilo ciumento, naquela criação de um novo homem que o mestiço Joaquim Maria queria realizar. E conseguiu-o.

Cortando na própria carne, sufocando certos sentimentos mais ternos, vigiando sobre si mesmo com a intransigência inclemente de um verdugo, fazendo da própria timidez um recurso de defesa contra as investidas da curiosidade alheia, Joaquim Maria criou Machado de Assis, o chefe de secção, o escritor castiço, o artista ordenado e sereno, o acadêmico, o homem frio e correto, incapaz das palmadinhas das intimidades e das exibições cabotinas, ü molequinho do morro do Livramento se transformou no mais vernáculo e mais profundo escritor da literatura brasileira. O filho do pintor e da lavadeira chegou a ser o presidente da Academia Brasileira de Letras, o mestre que todOs admiravam e diante de cujo valor os mais altos engenhos se inclinavam.

Para muitos não se justifica tanta glorificação e outros acham que não merece tanta publicidade um escritor que descreveu as pequeninas misérias da alma humana, ou os seus grandes dramas, mostrando os escaninhos secretos e vergonhosos da sociedade, sem ter para esses males e misérias palavras de censura acre, ou sugestões de meios de regeneração.

Seus romances não terminam com um personagem sentencioso a resumir didaticamente o ensinamento moral a tirar da história, nem estão refertos de máximas para uso dos que queiram andar direitinho na vida. Mas não contêm o endeusamento dos vícios, nem se deleitam na pornéia. Porque êle foi, antes de tudo, um artista. E um artista especial: um humorista, isto é, urna criatura a quem a vida magoa com todas as suas feiuras e maldades e que aspira por outra vida menos cruel e menos cínica.

Percorreu varias escalas sociais. Veio das baixas camadas <e chegou a ser o presidente da mais alta sociedade cultural do país. O molecote de outrora passou a ser chamado de mestre pelos homens mais inteligentes de sua terra. Nessa ascenção, porém, foi conhecendo os homens. Contemplou-os nos seus vários aspectos, desde o escravo até o ministro, desde a mucama até as marquesas. Viu os seus erros, os setís vícios, os seus crimes, como notou também as suas qualidades e as suas virtudes. E como sofrera muito por causa justamente daqueles vícios e daqueles cinismos, foi sempre com a amargura dos que querem uma sociedade melhor que êle escreveu os desmandos dos que fazem as sociedades.

Se por vezes parece mostrar-se cínico, egoísta, inescrupuloso, hipócrita, vaidoso, sensual, ganancioso, é que os homens são tudo isso e mais ainda. Se, porém, não tem palavras eloquentes para castigar-lhes os vícios e torpezas, o espetáculo da vida de suas criaturas que delinquiram é demasiado triste para que não compreendamos a lição que elas nos proporcionam.

Antônio Conselheiro O homem que escrevia com um cipó

EM Canudos, lugarejo dos sertões da Baía, um grupo de fanáticos se reúne em torno de um tal Antônio Conselheiro, tido por aquelas gentes rudes e supersticiosos como um taumaturgo e um profeta. A polícia baiana tenta dispersar o pequeno núcleo de sertanejos, mas é destroçada. Aumenta o número de seguidores fanatizados de Antônio Conselheiro. O governo da Baía pede socorro ao governo da União, pois nova expedição, desta vez de forças do exército, havia sido também destroçada pelos fanáticos. O caso desses jagunços fanatizados começa a impressionar e a inquietar o governo. Expedição maior, comandada pelo coronel Moreira César, é igualmente dizimada, morrendo na refrega o próprio comandante.

O jovem engenheiro Euclides da Cunha faz parte, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, da grande expedição militar que vai a Canudos vingar a morte de Moreira César e destruir o reduto dos fanáticos. Euclides da Cunha envia sua correspondência para o jornal, mas nada faz ainda prever que daquelas notas muitas vezes apressadas surgirá um dos livros máximos da literatura brasileira, obra que imortalizará o seu autor.

Euclides da Cunha entrara em contacto com a natureza híspida do sertão. E êlc mesmo, um caráter áspero, contundente, irritadiço, sente extrema afinidade com aquela natureza adusta e hostil, espinbenta e machucante, que o sol implacavelmente combure e rescalda. O drama terrível que presenciara lhe fica indelével e assom bradoramente gravado na sensibilidade hiperaguda.

Mais tarde, quando trabalha no exercício de sua profissão, na construção duma ponte em S. José do Rio Pardo, põe-se a redigir as evocativas cenas do horroroso drama sertanejo, de que fora espectador comovido e simpatizante. Porque Euclides soube compreender o sentido daquele drama e a psicologia daquela gente, que sabia lutar e sabia morrer como poucos heróis o conseguem fazer.

Num barracão de zinco, nos quartos de hora de descanso, vai êle transportando para o papel todo o caudal de emoções que sentira ao presenciar a tragédia de Ca nudos. Estuda a terra, isto é, o cenário em que se desenrolará o drama. Estuda o homem, isto é, o próprio personagem do drama. E descreve, por fim, todo o drama da destruição implacável do reduto dos fanáticos. Sua pena, como que estimulada pelo horror das cenas a que o jovem engenheiro assistira, entusiasmada pela heroicidade dos homens que lutavam naqueles sertões calcinados, traça com enorme vigor descritivo, com paixão, com ardor e desassombro, as linhas sangrentas do drama sombrio e vergonhoso. Os Sertões serão, como diz o crítico José Veríssimo, não apenas uma descrição brilhante dos homens e coisas do sertão, mas obra de "um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; de de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contacto do homem."

Escrito num estilo muito pessoal e ’empolgante, de pronto arrebatou o entusiasmo do grande público. A sua linguagem, por vezes tortuosa, áspera, contundente, enérgica, de uma grande força descritiva, cheia de termos técnicos e de imagens e comparações completamente originais e insólitas, fez com que se dissesse que êle escrevia com um cipó. Não faltaram imitadores de seu estilo, e imitadores que caíram no exagero do termo difícil, do encaroçamento, da pompa de mau gosto.

Sejam quais forem, porém, as restrições que se fizerem a certos exageros estilísticos seus, o certo é que seu livro tem a riqueza, o colorido, a altiloquência, o calor, a vibração de uma verdadeira epopéia. Os sertões comburidos do Nordeste tiveram nele o seu grande pintor e o psicólogo, que soube compreender a verdadeira alma daquela paisagem adusta e sofredora e a alma daquela gente, bronca sim, mas indómita e heróica.

E trágico como o drama de Canudos foi o drama da vida de Euclides. Um lamentável episódio de sua vida familiar o põe na contingência de matar ou morrer. O grande escritor de Os Sertões tomba sob as balas assassinas de quem já lhe assassinara a santidade do lar. O crime e a deshonra não conseguiram, porém, matar a glória do autor de um dos mais característicos, dos mais belos e dos mais comovedores livros da literatura brasileira.

Rui Barbosa, o nababo da língua

REALIZAVA-SE a Segunda Conferência da Paz, na cidade de Haia. Os delegados de grandes potências tinham em mente fazer prevalecer os privilégios que os Estados grandes e poderosos se arrogam. Em meio da imponente e augusta assembléia, composta de grandes nomes da intelectualidade e da política universais, levanta-se um homúnculo franzino e de cabeça desproporcionada. E’ o representante do Brasil, o advogado e jurisconsulto baiano Rui Barbosa.

Os delegados das grandes potências consideram com desprezo aquela figurinha exótica. Mas o homenzinho começa a falar, num francês que não deshonra os manes de um Bossuet ou de um Racine, e sua voz, sua erudição, sua eloquência, suas idéias, enchem de admiração e de respeito os displicentes ouvintes do começo. Rui Barbosa defende os direitos das pequenas potências. Faz ouvir a voz do direito num conclave em que o direito da força procura manhosamente prevalecer. Chovem contra êle os apartes em várias línguas. E com maior assombro para os que o ouviam, vai êle respondendo a cada um em sua própria língua.

A Conferência termina com um extraordinário triunfo do representante brasileiro e das idéias que defendia. Um jornalista famoso, William Stradt, que assistira às reuniões da Conferência, não hesitou em escrever: "Rui Barbosa tem tanto a dizer que parece precisar da eternidade para esgotar o reservatório de sua erudição."

Essa facilidade em discorrer longamente sobre qualquer assunto provocou certa vez contra Rui a sátira de outro grande espírito e escritor, Carlos de Laet. A alguém que o convidara a ouvir um discurso de Rui, respondera: Rui longus, vita brevis.

Quem era, porém, o brilhante representante do Brasil em Haia? Um advogado baiano, cuja atuação na política, na tribuna, no foro, na literatura, já o havia colocado na primeira plana dos grandes homens do Brasil. Sua erudição era verdadeiramente extraordinária. Conhecia, coisa que não acontece a muitos, toda a sua biblioteca de mais de 30 mil volumes, pois os anotava e discutia. Gloriava-se de que o sol jamais o vira na cama. Era na verdade um trabalhador infatigável. Levantava-se pela madrugada e trabalhava três horas seguidas, lendo e escrevendo, antes de iniciar as tarefas diárias.

Sua atividade na política e no jornalismo atraíra desde cedo a celebridade para seu nome. Bateu-se pela abolição da escravatura e pela República, de que foi, ao tempo de sua proclamação, o Ministro da Fazenda. Em dois dias deu nova redação ao projeto de Código Civil, monumento jurídico e linguístico que provocou críticas, entre outras, de seu ex-mestre, o professor Ernesto Carneiro Ribeiro, o que deu motivo a uma polêmica e ao aparecimento do livro Réplica, extraordinária coletânea de estudos linguísticos em que não se sabe o que mais admirar, se o acervo de citações de clássicos, se a erudição filológica, se o ardor polêmico, se a elegância e a propriedade da linguagem.

Orador dos mais eloquentes até hoje aparecidos em terras de fala portuguesa, sua riqueza vocabular deixava a todos maravilhados. No que dizia ou no que escrevia, deixava manar toda uma fonte de jóias vocabulares do mais castiço lavor. Consideram-no o maior talento verbal de língua portuguesa. Da vastíssima obra oratória, jurídica e literária que deixou, numerosas são as páginas citadas pelo alto valor ideológico e pela pujança e perfeição da linguagem. O estouro da boiada, o vício, o jôgo, os conselhos à mocidade, os seus artigos e discursos de crítica e de polêmica são admiráveis realizações desse grande mago da oratória e do estilo.

Mas esse grande político e grande jurista, esse grande literato e esse grande orador, era, como diz Medeiros e Albuquerque, "o mais dócil e brando dos homens. Ouvia de qualquer pessoa qualquer objeção e atendia-a sem o menor enfado. Era bom e meigo. Era de uma simplicidade encantadora."

Efetivamente, não era, na realidade, o homem agressivo e orgulhoso que os seus discursos e os seus artigos vergastantes e cruéis faziam crer. Gostava de cinema, como uma criança. Lia, como qualquer petiz, O Tico-Tico e apreciava a leitura das aventuras de Nick Cárter e Sherlock Holmes, como um repouso espiritual.


Fonte: Maravilhas do Conhecimento Humano, Henry Thomas 1949. Trad. e Adap.de Oscar Mendes. Adendo para o Brasil por O.M.

 

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