- II/ JULGAMENTO DE D. JOÃO VI
- III / COMÉRCIO BRASILEIRO DEPOIS DA ABERTURA DOS PORTOS
- XI / REVOLUÇÃO DOS PADRES
- XV / DIVERTIMENTOS POPULARES NO RECIFE
- XVI / SEGURANÇA PÚBLICA
- XXII / CONDIÇÃO DO MILITAR E GUERRA DOS MASCATES
- XXIII / ACADEMIAS E MAÇONARIA
- XXXIII/ CRIMES DA REVOLUÇÃO
- XLIV I SENTIMENTOS DE IGUALDADE
- XLV / TEMOR DA PLEBE
- LXXVI / AGRESSÕES AOS PATRIOTAS DE CÔR
Oliveira Lima
HISTÓRIA DA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817*
II/ JULGAMENTO DE D. JOÃO VI
Na sua obra — Dom João no Brasil (cap. XX, "A Revolução Pernambucana de 1817", vol. II, pp. 785 e 828), o autor destas anotações faz sobre o movimento a seguinte observação, que coincide curiosamente com a ponderação do Monsenhor Muniz Tavares:
A revolução de 1817 tem que ser examinada sobretudo pelo seu lado teórico, no seu aspecto correlativo, em sua feição proselítica. Foi um sinal mais dos tempos, a manifestação de uma combinação de impulsos em que entravam o amor exagerado, literário se quiserem, filosófico mesmo, mas em todo caso ativo da liberdade, e uma noção jactanciosa da valia americana, que o Abade de Pradt aponta com felicidade quando escreve num dos seus muitos livros de vulgarização da emancipação do Novo Mundo, que pela primeira vez, tratando-se do Brasil com relação a Portugal, uma parte da América aprendera a levantar a cabeça mais alto que a Europa e a dar leis àqueles de quem tinha por hábito recebê-las.
Aliás, veremos que estes sentimentos abstratos e gerais assumiam na província revoltada traços concretos e particulares.
III / COMÉRCIO BRASILEIRO DEPOIS DA ABERTURA DOS PORTOS
O Dr. Maximiano Lopes Machado, na primeira das suas notas à 2.a edição desta obra, faz ver com grande acerto e sagacidade que a abertura dos portos do Brasil ao comércio universal não foi absolutamente uma concessão aos ingleses em pagamento dos seus serviços. A medida inicial do Governo brasileiro de Dom João VI foi pura e simplesmente uma necessidade. Isto mesmo procurei demonstrar no cap. IX da obra já citada (Rio de Janeiro, 1908).
Fechados os portos de Portugal com a ocupação francesa, era mister que o Brasil respirasse economicamente pelos seus próprios pulmões, que exportasse diretamente seus produtos agrícolas e suas matérias-primas e importasse do mesmo modo as manufaturas de que carecia. Sem isso não poderia viver o país uma vida desafogada, nem lograria sustentar-se a administração, para cujas múltiplas despesas forneciam as receitas aduaneiras a melhor contribuição. A vítima da mudança, atribuída pela tradição às sugestões do economista José da Silva Lisboa, quando de fato era uma providência indispensável e inadiável, foi o comércio português, o do Reino, único intermediário para todas as transações e que regulava a seu talante os preços.
* Notas avulsas tiradas do livro Revolução de Pernambuco em 1817, terceira edição comemorativa do Centenário, revista e anotada por Oliveira Lima, e publicada pela imprensa Industrial, Recife, 1917.
O tradutor francês de Koster escreve {Traveis in Brazil, Lon-don, 1816, na versão francesa de 1818) que o que realmente houve foi uma mudança de metrópole, passando o Brasil a ser colônia da Grã-Bretanha em vez de o ser de Portugal. O conceito, embora de um admirador do viajante inglês, é exagerado. O comércio com a Grã-Bretanha foi antes benéfico para o Brasil, que entrou a conhecer um sem número de artigos úteis com os quais não era familiar e o tratado de 1810 só foi realmente desvantajoso para Portugal mesmo, cujas importações no Brasil até 1818 pagavam 16% ad valorem, ao passo que as importações inglesas eram tributadas em 15% e as dos demais países em 24%.
O Brasil abastecia-se exclusivamente da Inglaterra até sua independência nominal — a independência real veio-lhe com D. João VI — como hoje pretendem os Estados Unidos que o Brasil se abasteça exclusivamente das suas fábricas, sem as mesmas razões. De Portugal não vinham braços para a agricultura, que vinham da África; não vinham manufaturas, que lá se não fabricavam. Os lucros portugueses consistiam, para os particulares no transporte marítimo entre Lisboa ou Porto e os portos brasileiros e na dupla reexportação a que dava lugar, na metrópole, o intercurso, e para o governo nas taxas de alfândega que a franquia mercantil restabeleceu, deixando a pauta de ser proibitiva com os seus 48% ad valorem, do que resultou ampliarem-se as transações.
Os impostos diretos até ali pagos pelo comércio brasileiro ou, melhor dito, pelo comércio estabelecido no Brasil e que indiretamente recaíam sobre os consumidores nacionais, como não podia deixar de acontecer pela falta de concorrentes às transações coloniais, subiam a 150% no cálculo feito por Luccock, que foi negociante da praça do Rio depois da abertura dos portos (Notes on Rio de Janeiro and the Southern Part of Brazil, London, 1820). Quer isto dizer que Portugal recebia 250 libras esterlinas por cada 100 libras mandadas sob a forma de material de escambo ou antes de venda e de trabalho, além dos ganhos apurados nos fretes, juros do capital empregado, monopólios e estancos etc.
O Brasil entrou a negociar diretamente após 1808, mas nem podia empregar capitais seus, nem navios mercantes seus, que uns e outros lhe faltavam. Precisava porém vender para poder comprar, sendo essa sua única expressão de riqueza, colher para logo exportar. Isto podia importar em lucros individuais, mas não redundava em fortuna pública, desde o momento em que não havia acumulação de reservas fomentando a prosperidade nacional e criando recursos ao Estado.
A população da capitania de Pernambuco, abrangendo politicamente a de Itamaracá e administrativamente a do Rio Grande do Norte — o Ceará fora desanexado no começo do século XIX — devia orçar por 600.000 habitantes disseminados sobre uma super-lície de mais de 10.000 léguas quadradas, segundo o cálculo do autor anônimo de um curioso manuscrito sobre as Revoluções do Brasil, de que apenas se salvaram alguns capítulos dando uma Idéia Geral de Pernambuco em 1817, os quais foram publicados na Revista do Instituto Arqueológico, n.° 29, ano de 1884. Este autor, ao que diz, teve cm suas mãos as listas oficiais, mas reputa mui difícil formar juízo pelos mapas que os governadores exigiam todos os anos dos capitães-mores e párocos das freguesias, a fim de os remeterem à Secretaria de Estado.
As próprias famílias escondiam o número exato de filhos pelo horror ao recrutamento para o serviço militar, e os párocos e capitães-mores também diminuíam intencionalmente o número dos habitantes, para evitar, aqueles, a divisão das suas freguesias e portanto a redução das côngruas; estes, a criação de novas vilas e portanto o cerceamento da área da sua autoridade.
Para mostrar que Pernambuco era a capitania de população mais mesclada e mais pobre de gente branca, o referido autor, ide sentimento português, muito antipatriota, e que não poupa o ardor da sua maledicência, avaliava o número dos negros cativos em 260.000, dos negros livres em 60.000 e dos mulatos em 160.000 contra 50.000 brancos e 40.000 índios. A população escrava crescia sobretudo pelo tráfico e constituía todo o elemento de trabalho rural e doméstico.
Nos campos, a população livre era representada, na zona das matas, pelos senhores de engenhos, pelos lavradores meeiros na produção e pelos moradores, foreiros, ou não. Tollenare (op. cit) tantos elogios tem para os segundos cuja diligência e dignidade lhe pareceram comuns e dizia apreciar, como desprezo pelos terceiros, que achava no geral preguiçosos e servis, o que os não impedia de serem ocasionalmente vingativos, precavendo-se contra eles os donos das terras, expostos a tal perigo. Os lavradores personificavam uma tendência para a burguesia; os moradores formavam o povo. O chamado sentimento aristocrático não podia ser espalhado nem genuíno numa sociedade onde não existiam certos privilégios, nem títulos de nobreza colonial, nem grandes riquezas acumuladas. O que assim literariamente se chamava era antes o orgulho da primazia ou da tradição, revelando-se pelo gosto do domínio, que a instituição servil robustecia. As próprias democracias podem ser orgulhosas e dominadoras e o Brasil era socialmente uma democracia se bem que se encaminhando para uma oligarquia política, que o Império não deixou medrar com o viço a que aspirava.
Na cidade, o elemento comercial era o mais importante, excedendo o burocrático. O amor ao ganho figura como seu traço capital, mas para pôr em circulação os lucros aferrolhados, contavam-se dois poderosos incentivos: o jogo e a libertinagem. Naturais do Reino, os negociantes do Recife inclinavam-se naturalmente para o sentir português em matéria política, a qual no caso cm questão senão podia separar da matéria econômica. O antigo regímen de exclusivismo lhe era por isso simpático, o que levava o observador francês a registrar nas suas notas semanais:
Certo é difficil ser-se ao mesmo tempo rei de Portugal e do Brazil, e agir paternalmente para com dous povos, que teem interesses tão oppostos. Ura não pode viver sem o monopólio: o progresso do outro exige a sua supressão.
O Recife tinha então para mais de 25.000 almas; Olinda menos de 4.000.
Um outro elemento da população, e êste bem nacional, era o dos sertões, representado pelos plantadores de algodão, predominantes na zona denominada agreste, e criadores de .gado, cuja prosperidade tinha por inimigo as secas. Abrangia esta última classe os donos de sesmarias de 6, 8 e 10 léguas quadradas, onde 4 a 6.000 animais por fazenda andavam soltos nas brenhas, e seus dependentes, gente geralmente robusta e toda destemida, sabendo tanger o gado e reuni-lo para marcá-lo, abatê-lo para aproveitar-lhe os couros e secar a carne ao sol, ou conduzi-lo em boiadas para o litoral (Tollenare op. cit.).
Estes sertanejos completavam o esboço da classe média pernambucana, outrossim formada pelos agricultores fixados nas terras dos grandes proprietários, pelos caixeiros e pelos empregados públicos, numerosos e mal pagos estes últimos, mas acusados de ajudar, com os frutos do peculato e da corrupção, os magros salários que lhes andavam atribuídos. Era gente toda ela pouco apta a compreender os motivos de ordem moral jacentes sob a erupção de um movimento autonomista, mas habilitada a apreciar as razões, verdadeiras ou tendenciosamente aduzidas, de ordem material, que o provocavam. Aos espíritos ilustrados ficava reservada a convicção da justiça de semelhante movimento: outros muitos, porém, a aplaudiriam por instinto, ou como se poderia dizer, mais rigorosamente e mais pretensiosamente, pela ação do subconsciente.
XI / REVOLUÇÃO DOS PADRES
Os sacerdotes formavam a classe mais instruída do país, e por êste próprio fato se aninhava entre êles o mais veemente amor à liberdade, observava o anotador desta História na sua monografia sobre o desenvolvimento histórico de Pernambuco. Uma semana depois da sua chegada a Pernambuco o francês Tollenare, indo jantar a Olinda com os carmelitas descalços do Convento de Santa Teresa, já registrava nas suas notas que
não era essa a primeira vez que notava que entre os frades, mesmo mendicantes, se encontrava mais espírito e instrução do que nas outras classes.
Presumia êle portanto que
não era senão n’esta superioridade de conhecimentos que se devia procurar a causa da manutenção da sua existência em meio da opinião geral que reclamava a sua suppressão, opinião que tinha penetrado das classes elevadas ás medias e que se manifestava em todos os estados portuguezes com a máxima liberdade.
Tollenare diz que teve por essa ocasião de fazer frente ao guardião e a um outro frade, aos quais nenhuma das circunstâncias da Revolução Francesa era estranha, mostrando suas infindáveis controvérsias e erudição que possuíam e o desejo de instruírem-se de que se achavam animados. A política européia era a sua mania, comenta o francês, e podemos ajuntar ser freqüente o traço.
A revolução de 1817 pode quase dizer-se que foi uma revolução de padres: pelo menos constituíram o seu melhor elemento, o que mais provas deu de sinceridade, de isenção e de devotamento, aquele onde se recrutaram com poucas excessões, seus dirigentes. A lista dos que participaram no movimento e sofreram pelas idéias que tinham feito suas encontra-se reproduzida de Antônio Joaquim de Melo, no estudo do Sr. Mário Melo sobre a Maçonaria e a Revolução Republicana de 1817 (Revista do Instituto Arqueológico, n.° 79, vol. XV, 1910). Abrange no seu avultado número cónegos, e governadores do bispado, vigários, coadjutores, regulares e seculares, dos quais dois se suicidaram, quatro foram supliciados e muitos condenados à pena de prisão na Bahia. *
O catecismo liberal imbuíra de tal modo o clero nacional que o governador do bispado, Deão Manuel Vieira de Lemos Sampaio chegaria a publicar uma pastoral em que declararia não ser a revolução contrária ao Evangelho, porquanto a posse e o direito da Casa de Bragança eram fundados num contrato bilateral, estando os povos desobrigados da lealdade jurada por ter sido a dinastia quem faltou primeiro às suas obrigações. Era esta, em sentido diverso, a doutrina invocada nas colônias espanholas, nomeadamente em Buenos Aires, para justificar o grito da Independência. A fidelidade era devida ao Rei, suserano direto das colônias, não à metrópole: o laço era portanto pessoal e desaparecera, visto que o Rei se achava se bem que sem culpa própria, coacto, preso e deposto.
Padres assim políticos não podiam ser sacerdotes de vida canonicamente exemplar. Amancebados muitos deles, davam o mau exemplo e o número de eclesiásticos desordeiros não era tão limitado quanto o exigira a disciplina. Aliás, a vida monástica, teoricamente contemplativa, já pouca sedução exercia. Koster, ao descrever o raro espetáculo a que assistiu, no Convento de São Francisco de Igaraçu, da profissão de um noviço, observa que em outros tempos havia pelo menos um frade em cada família, mas que as coisas tinham mudado, preferindo os rapazes outras ocupações. Não havia mais na capitania convento algum cheio e alguns mesmo tinham sido abandonados. O noviço, que não tinha mais de 16 anos, parecia intimidado. Recomendando-lhe o guardião que não tivesse vergonha, comentou por gracejo um dos assistentes que a pouca vergonha era de fato a regra da ordem. (Koster, op. cit.).
XV / DIVERTIMENTOS POPULARES NO RECIFE
Henry Koster aponta como os principais divertimentos pernambucanos os ruidosos, mesmo brutais folgares do entrudo e as festas religiosas. Tendiam a desaparecer as cavalhadas, manifestações vigorosas de destreza física, e os outeiros poéticos ou desafios de rimas, expressões encantadoras de um lirismo tradicional. Tudo se ia diluindo na banalidade da vida, banalidade que entrava a caracterizá-la numa compreensão mais ampla, por parte dos nacionais, das relações sociais, fundada no intercurso material e moral com a Europa que se ia produzindo.
Entre as solenidades eclesiásticas avultavam as novenas, com seu cortejo de cânticos, músicas alegres, jantares de empanturrar, partidas e fogos de artifício, e as procissões de aparato, com seus animados quadros vivos, figuras simbólicas e danças burlescas. Tudo era semi-religioso, semiprofano neste campo. Diferentes irmandades velavam pelo custoso esplendor das cerimônias, que atingia o seu máximo de ostentação na Semana Santa.
Na Quinta-feira maior o elemento feminino, trajando com espavento, envolto em seda, carregado de ouro, ostentando ricos e extravagantes enfeites como os célebres pentes de tartaruga chamados de trepa-moleque, pejava por exceção as ruas, orando em cada uma das igrejas deslumbrantes de luzes, toldadas de incenso, odoríferas das plantas que trepavam pelos altares e das flores que juncavam as lajes. Na Sexta-feira, toda esta vida era substituída por uma soturna tristeza que se refletia nos ornamentos, nos vestuários e nos semelhantes. As cenas finais do drama da Paixão representavam-se à voz dos frades pregadores com um realismo tal que, no dizer de Koster, numa das igrejas o papel da Madalena era com efeito desempenhado por uma cortesã, suponho que ainda não arrependida. Os anjos, o São João Evangelista, os soldados romanos possuíam-se com tamanha consciência dos outros papéis, que na nave os soluços e as pancadas no peito redobravam a cada passo da descida da Cruz e a cada apóstrofe do sermão do monge. O Sábado de Aleluia e o Domingo de Páscoa constituíam para as famílias dias do jovial espairecimento e de farta comezaina, compensadora da prolongada abstinência quaresmal (Oliveira Lima, Pernambuco, Seu Desenvolvimento Histórico).
XVI / SEGURANÇA PÚBLICA
Em contrário desta asserção é positivo e conhecido quão precária andava então a segurança pública na própria capital. É possível que no interior o crime passional sobrepujasse muito o crime interesseiro, mas os termos tinham sem dúvida que ser invertidos, tratando-se do Recife, onde o próprio capitão-general foi uma vez assaltado, incidente que êle recordava com chiste quando o importunavam para exibir maior severidade na perseguição dos malfeitores. A revolução foi, pois, precedida de um período de anarquia criminal em que eram repetidos os atentados contra a propriedade, quando não contra a vida.
Semelhante situação era aliás comum a todo o Brasil (Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil, cap. XVIII, "Administração e Justiça" e cm outros capítulos da imesma obra) é a repressão só se fazia sentir quando a intendência de polícia se achava nas mãos de um Vidigal, como no Rio de Janeiro por algum tempo, ou de um Correia Onça, como em Pernambuco, pouco antes do movimento de 6 de março de 1817.
José Correia da Silva, por alcunha o Onça, falecera cm 1811 (nascera em 1746) após uma vida assaz agitada, cuja peripécia mais notável foi o haver salvado de cair nas mãos dos espanhóis, ao ser tomada Santa Catarina em 1777, a bandeira do Regimento de Infantaria do Recife, trazendo-a até Pernambuco pelos sertões, na mais arriscada das viagens. Tendo assentado praça de soldado voluntário, era então sargento de granadeiros e subiu até o posto de sargento-mor. Durante 24 anos, desde 1787, esteve encarregado da polícia na vila e termo do Recife, cargo em que se ilustrou pelo vigor do seu proceder não isento de arbitrariedades, mas gerador de admirável segurança para a comunidade, que assim desfrutou tranqüilidade, e de terror para os delinqüentes (Pereira da Costa, Dicionário de Personagens Célebres).
Os viajantes estrangeiros confirmam o dizer do Monsenhor Muniz Tavares no tocante à confiança com que podiam percorrer os sertões, livres de assaltos. Os homicídios que ali se apontavam eram muito mais por vingança, e as rixas obedeciam sobretudo ao ciúme, a demarcações de terras entre proprietários e a ofensas ao amor-próprio. Os roubos eram quase todos de animais, recrutando-se raras vezes os seus autores entre as classes ínfimas e gozando os ladrões da impunidade oferecida pelas condições deficientes da administração e da justiça. Referindo-se à ausência de furtos, diz Koster que nas suas longas digressões a cavalo, apenas numa parada lhe desapareceram alguns objetos de pequena monta. Entretanto, só uma vez lhe recusaram pousada: a hospitalidade não era uma palavra vã.
XXII / CONDIÇÃO DO MILITAR E GUERRA DOS MASCATES
A revolução de 1710, o chamado 10 de Novembro, foi a primeira manifestação aguda e coletiva do sentimento latente de antagonismo entre portugueses e brasileiros, o primeiro brado de nativismo. As reclamações nacionalistas dentro da lei já não constituíam novidade na metrópole. No século XVII o procurador da Bahia requerera em Cortes (1668) que aos naturais do Brasil e lá domiciliados fossem exclusivamente atribuídas as vagas que se dessem nas milícias, nos ofícios de justiça e fazenda e nas dignidades eclesiásticas e a Câmara da Bahia protestara (1671) contra a proibição imposta aos brasileiros de ocuparem os lugares de desembargadores da Relação ali de novo estabelecida (Oliveira Lima, Pernambuco, seu Desenvolvimento Histórico).
Da súplica e do protesto passaram depressa os nacionais às violências. Quando os olindenses entraram no Recife em 1710 para derrubarem o pelourinho, padrão da dignidade municipal, lançaram um bando tirando sob pena de morte os postos militares aos oficiais nascidos em Portugal. Era a desforra das proibições existentes, um desafio insolente atirado à autoridade da metrópole. Sobre este caráter nacionalista da sedição não pode existir a menor dúvida. Os escritores que então ou hoje se têm ocupado do assunto, o têm porém tratado consoante suas preferências pela nobreza ou pelos mascates.
Assim aconteceu, entre os coevos do movimento, com o Padre Leitão, aproveitado por Fernandes Gama, na sua Memórias Históricas de Pernambuco (o Dr. Vicente Ferrer atribui o trabalho do Padre Leitão ao Vigário-Geral Coutinho) e com o cirurgião Manuel dos Santos nas suas Calamidades de Pernambuco) (Tomo LIII da Revista do Instituto Histórico do Rio de Janeiro), as quais o Dr. Vicente Ferrer supõe serem antes do Padre Cipriano da Silva, da Congregação do Oratório, tendo, no seu dizer, estes oratorianos ajudado os mascates no seu levantamento, podendo-se denominá-los os autores intelectuais da reação contra os olindenses.
O Dr. Vicente Ferrer recentemente (Guerra dos Mascates, no tomo especial da Revista do Instituto Histórico do Rio de Janeiro, consagrado ao primeiro Congresso de História Nacional) e há alguns anos o Major Codcccira (Revista do Instituto Arqueológico) representaram as duas correntes discordantes. Parece ter razão o primeiro em pretender que se exagerou a importância propriamente política da sedição de 1710. Em todo caso sua feição independente, que a teve em maior ou menor grau, foi antes uma feição adquirida do que um traço espontâneo; mas tampouco foi um propósito deliberado, como o seria na revolução de 1817. Os olindenses estariam por certo dispostos a pugnar pela separação se lhes fôsse recusado o perdão real pela sua insubordinação. Escreve mesmo Muniz Tavares que
elles não haviam cessado de respeitar a auetoridade real.
Seu primeiro objetivo era porém mais restrito: consistia em defender o exclusivismo da sua corporação municipal e a integridade dos pelouros, impedindo que, uma vez de posse do Senado da Câmara, pudessem os mascates — quer dizer os comerciantes do Recife destarte pejorativamente tratados — dispor das arrematações dos contratos reais e taxar ao sabor dos seus interesses os preços dos gêneros, encarecendo os que eles vendiam e barateando os que compravam. Devedores como no geral eram os agricultores fidalgos dos seus exigentes correspondentes no Recife, numa quadra em que a produção do açúcar atravessara severa crise pela grande concorrência que sofria, continuando os mesmos os hábitos de prodigalidade dos senhores de engenho, só fazia essa obrigação pendente acirrar a má vontade existente. Era um dos motivos da rebelião contra os holandeses que reaparecia, chocando a vaidade dos enricados com o despeito dos empobrecidos.
Southey que, além de ter tido documentos interessantes sua disposição, possuía o instinto do historiador, compreendendo me lhor as coisas a distância do que outros de perto, atribui na sua História do Brasil aos revoltosos de 1710 intuitos separatistas e republicanos, que fatalmente se deviam manifestar no decorrer dos acontecimentos quando os não tivessem orientado, por serem a con seqüência lógica de uma sublevação contra os poderes constituídos, desde o momento em que estes mostram favorecer uma das par cialidades. Ora, o movimento de 1710 comportou nas suas penpe cias fases distintas, a última das quais de franca perseguição à nobreza da terra, tanto por parte do novo governador, Félix José
Machado, e dos seus acólitos judiciais como em Lisboa, onde o rigor com que se procedeu contra os olindenses após a última devassa, em contradição com a primitiva clemência, parece indicar que as faltas cometidas eram maiores do que simples desabafos locais, ainda que violentos, pois que foram ao extremo de destruir- se o foral régio do Recife.
A tão apregoada idéia da oligarquia veneziana não deve ter sido uma lenda sem fundamento: a aristocrática república era o figurino egoísta que naturalmente ocorreria à nobreza enfurecida. A maioria contemplava-se decerto com o desforço tomado sobre os mascates, mas alguns sem dúvida pensariam que a solução mais radical seria a melhor: governar-se Pernambuco a si mesmo, sob a proteção de alguma potência forte, visto que ainda se não experimentara a independência de colônias americanas. A preferencia pela suserania francesa, pela qual se diz ter havido manifestação, explica-se com a Guerra da Sucessão então em andamento e em que Portugal estava arregimentado contra a França, daí resultando mesmo os ataques de Duclere e Duguay-Trouin contra o Rio de Janeiro em 1710 e 1711 (Oliveira Lima, op. cit.).
Haveria pois base para acusação de alta traição. As consultas do Conselho Ultramarino (Revista do Instituto Arqueológico) n.° 41) são confusas e contraditórias quanto a informações. Nobres e mascates increpavam-se mutuamente de felonia e intrigavam desesperadamente em Lisboa, os portugueses sobretudo, que encontravam mais fácil acolhida. O resultado foi a ordem de uma outra sindicância: já a do Desembargador Cristóvão Soares Reimão, parcial segundo querem, falava repetidas vezes na franqueza e arrogância com que os nobres proclamavam seus planos demolidores, aquilo que Rocha Pita trata mais simplesmente de insolências. "
A tendência da Corte seria antes para usar de clemência, dada a consideração em que era tida a nobreza pernambucana — pouco mais de meio século se tinha passado desde a expulsão dos holandeses, de que lhe cabia a principal glória — e havia quem julgasse invenções do ódio e da vingança as acusações formuladas contra a fidelidade, até aí insuspeita, dos olindenses. A nova devassa do Ouvidor-Geral Bacalhau fêz porém mudar quaisquer disposições benévolas: verdadeiras ou apaixonadas, suas conclusões levaram à prisão e deportação de onze patriotas. O castigo dava-lhes direito a este título. A frase do Monsenhor Muniz Tavares é profundamente verdadeira: guiava-os a vertigem do partido, e não o sincero amor da liberdade.
O ódio entretanto os arrastava para a mesma meta que os doutrinários de 1817, inimigos da "autoridade real" que os insurgidos de 1710 não haviam cessado de respeitar.
XXIII / ACADEMIAS E MAÇONARIA
As idéias republicanas no Brasil são, pode dizer-se sem risco de incorrer em inexatidão, o resultado direto das suas sociedades secretas, algumas delas disfarçadas com o nome de academias, devendo englobar-se nessas instituições de caráter revolucionário as lojas maçônicas,\ importadas do estrangeiro, rebentos de árvores européias, ou meras criações originais, americanas. As chamadas academias não eram portanto mais, como o tinham sido no século XVIII as baianas, dos Esquecidos e dos Renascidos, o reflexo ou a imitação local das que tinham constituído a feição intelectual portuguesa desde os fins do século XVII e vieram a tornar-se predominantes no século imediato, quando o Conde da Ericeira, protótipo do erudito acadêmico, amontoava na biblioteca do seu solar 43 volumes escritos do seu punho e o Duque de Lafões, um letrado cosmopolita, e o Abade Correa da Serra, um botânico notável, fundavam a Academia Real das Ciências de Lisboa.
A história das academias recifenses é obscura e faltam dados precisos para reconstituí-la, como seria mister. Não se conhece melhor a do denominado areópago de Itambé, de que teriam derivado as academias Suassuna e do Paraíso e que se julga (Mário Melo, A Maçonaria no Brasil, Prioridade de Pernambuco, Recife, 1909) haver sido criada antes d2 1800 sob a inspiração e direção do sábio Manuel de Arruda Câmara, que regressara da Europa ao findar o século XVIII.
A cultura espiritual, frutificando num meio colonial que tendia a nacionalizar-se numa marcha agora acelerada, e numa época de transformação mental como era essa, não podia deixar de conduzir as inteligências à solução da independência sob a forma democrática que era a solução preconizada nas sociedades secretas do Velho e do Novo Mundo, nas quais, a par da liberdade, se ensinavam a igualdade e a fraternidade. O Sr. Mário Melo recorda a este propósito a frase do Deão Bernardo Luís Ferreira Portugal, que foi quem fêz a entrega da nova bandeira aos revolucionários em armas:
O nosso Pai que está nos céus criou livres todos os homens (A Maçonaria e a Revolução Republicana de 1817, na Revista do Instituto Arqueológico, Vol. XV, N.° 79).
Nas sessões dessas sociedades pernambucanas, que reuniam sacerdotes, elemento de ilustração e mais impregnado de nativismo político que de universalidade religiosa, médicos e outros cultores das ciências naturais, e capitães-mores abastados e emproados, se discutiam à luz dos novos princípios de direito natural os assuntos de política geral e as condições particulares da colônia, procurando-se congraçar suas aspirações com os ideais da época. Tollenare conta que na sua casa, várias vezes na semana, se congregavam à tarde alguns conhecidos, entre eles o Padre João Ribeiro, José Carlos Mayrink, que o Dr. Vicente Ferrer espirituosamente crismou de pai do "adesismo nacional" porque serviu com todos os governos, e o diretor da Alfândega, a fim de palestrarem mais que tudo sobre a transformação das idéias na França.
Concordávamos — registra o viajante nas suas notas sobre o progresso das luzes entre os povos, sobre a caducidade de muitas das suas instituições, sobre o principio que faz emanar da própria nação a auctoridade de que estão revestidos os reis, sobre a impossibilidade de entravar o impulso que leva todos os povos a reverem os poderes dos seus magistrados, sobre a necessidade de dirigir este impulso para impedilo de levar a anarchia.
Caetano Pinto, informado destas conversas e das opiniões professadas pelo dono da casa, achava-as moderadas e não lhes regateava mesmo o seu aplauso, segundo mandou dizer a Tollenare quando à última hora entrou a recear perturbações da ordem.
O Padre João Ribeiro disse numa dessas reuniões que se podia por um momento adormentar a liberdade, mas que esta tinha sempre o seu despertar. Este despertar soou em Pernambuco a 6 de março, buscando os responsáveis pelo movimento inflamar e tornar de súbito consciente o povo que todos convinham até aí ser em demasia ignorante e inepto para comprehender outra cousa alem da obediência passiva e irreflectida. (Tollenare op. cit.)
O areópago de Itambé era uma sociedade secreta política e maçónica no seu espírito, senão no rito que lhe teria sido talvez posterior. De acordo com Manuel de Arruda Câmara, trabalhavam, além dos indicados pelo Dr. M. L. Machado na Introdução à 2.a edição desta História, seu irmão Francisco de Arruda Câmara, igualmente médico, e os irmãos Francisco de Paula, Luís Francisco de Paula e José Francisco de Paula Cavalcânti de Albuquerque, o primeiro deles senhor do engenho Suassuna. Foram estes três irmãos os principais acusados de uma conspiração tendente a tornar Pernambuco independente debaixo da proteção do Primeiro Cônsul Napoleão Bonaparte.
Passou-se isto em 1801. O Padre Joaquim Dias Martins na sua obra — Os Mártires Pernambucanos, que é o manual por excelência do Pernambuco revolucionário, conta que Francisco de Paula e Luís Francisco foram presos por denúncia contra eles havida, e que o outro irmão, o qual se achava em Lisboa como agente e emissário da intriga, se salvou fugindo para Inglaterra. Um outro emissário, Francisco de Paula de Albuquerque Montenegro, devia ir aos Estados Unidos e ao Rio da Prata com o objeto de abrir relações continentais à projetada república protegida.
Se o negócio se abalou foi porque correu para este fim muito dinheiro, e poderosos deviam ter sido os empenhos para livrar os indicados pelo que a Câmara Municipal do Recife chamava a horrorosa calumnia de um aleivoso fanático e baixo intrigante (Officio de 17 de novembro de 1802).
Recolhido incomunicável à fortaleza das Cinco Pontas, com sentinela à vista, privado do cargo de comandante do Cabo, seqüestrados os seus bens, rebuscadas as malas do correio do Reino à busca de novos indícios, foi o "Coronel Suassuna" — e com maioria de razão seu irmão — solto por falta de provas depois de quatro anos quase e restituído ao gozo das suas propriedades, honras e prerrogativas, determinando a ordem régia, sem mais explicações, que se lançasse perpétuo silêncio sobre a denúncia. (Pereira da Costa, Dic. cit.)
Como se veio a estabelecer sua inocência não consta do documento. Francisco de Paula, a quem o ofício da Câmara do Recife qualificava, quando preso, de illustre de nascimento e abastado de bens, era em 1804 capitão de ordenanças da freguesia de Jaboatão; no mesmo ano cavaleiro de Cristo, pela contribuição de cinco contos para as despesas extraordinárias do Estado; cm 1805 capitão-mor de Olinda e cm 1808 fidalgo cavaleiro da Casa Real.
Dissolvido por êste fato e também pela ausência de Arruda Câmara o areópago, Francisco de Paula deu, ao que parece no ano mesmo da sua libertação, a melhor prova de que não abandonara os seus ideais, fundando no seu engenho uma academia no intuito de não deixar que se dispersassem os esforços liberais. Foi essa de fato uma escola democrática onde. na frase do Padre Martins, adeptos e aprendizes, não só da província e nacionaes mas ainda estrangeiros, achavam luz, agasalho e subsídios.
Por esse tempo já a maçonaria fora transportada para o Brasil. Pereira da Costa (Arquivo Maçónico, dezembro de 1910) fixa o ano de 1801 como a data da sua introdução por meio de várias lojas abertas no Recife, donde teria a propaganda irradiado para o interior, vindo a constituir-se na Bahia o primeiro Grande Oriente ou Governo Supremo, formado por irmãos iniciados na Europa e já figurando na hierarquia maçónica, na qual era abundante a clerezia. (No seu est. cit. o Sr. Mário Melo reproduz o rol dos padres maçons daquela época.) Esse Grande Oriente visava a ser um centro de ação antitirânica, mas o seu caráter era português. A desgraçada missão do Padre Roma a São Salvador demonstraria no entanto que oficinas das duas provínckis trabalhavam de harmonia noutro sentido antilusitano.
Segundo Pereira da Costa, a instalação na Bahia do Grande Oriente foi imediatamente precedida pelo estabelecimento da loja Virtude e Razão, para a abertura da qual dá o Sr. Mário Melo a data de 5 de julho de 1802, fundando-se em 1803 no Rio de Janeiro as lojas Reunião, Constância e Filantropia. Domingos José Martins já encontrou pois desbravado o caminho quando, tendo conhecido, em Londres, Miranda e sido por este instruído de muita particularidade da revolução americana, veio na intenção de estreitar os laços entre as oficinas do Velho e do Novo Mundo e realizar sob a inspiração comum o programa da libertação das colônias ibéricas em conseqüência da abolição da tyrannia dos reis e da alforria dos povos.
Areópago e academias eram conseguintemente verdadeiros pseudônimos, um manto de tonalidade clássica sob que se abrigavam intuitos modernos, levados a efeito em sigilo como o eram os processos da Inquisição, a inimiga moribunda da Maçonaria triunfante. Os rigores da polícia contemporânea faziam necessária toda a cautela: a revolução pernambucana só estalou porque os processos de tolerância do Capitão-General Caetano Pinto permitiram um preparo que tornou possível a sedição ao primeiro embate das correntes opostas.
No dizer do Padre Martins, foi a academia Suassuna quem mais influiu para ser transferida para o Recife a cadeira de Desenho ocupada no seminário de Olinda pelo Padre João Ribeiro, iniciado nos "mistérios da democracia". Isto permitiu que lhe fôsse confiada a administração do Hospital São João de Deus, anexo à Igreja de Nossa Senhora do Paraíso, edifícios ambos levantados em 1686 pelo Mestre-dc-Campo D. João de Sousa, tendo este e sua mulher, D. Inês Barreto de Albuquerque, doado dois anos antes o terreno preciso. No salão principal do hospital, transformado cm biblioteca, entrou a funcionar uma outra academia sob a proteção do morgado do Cabo, Francisco Paes Barreto, mais tarde marquês do Recife (1779-1848), cujos antepassados tinham construído aquele mesmo estabelecimento de beneficência do qual era êle provedor por direito de sucessão, zelando-o desveladamente até morrer, quando passou para a gerência da Santa Casa da Misericórdia.
O morgado do Cabo, que seria depois um dos esteios do império constitucional, nutria então sentimentos republicanos. A propaganda entrou assim a generalizar-se, estendendo-se nomeadamente ao Cabo, onde o morgado era capitão-mor; a Olinda, onde em 1815 veio assistir como ouvidor Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, o qual fundou em sua casa uma "universidade" democrática e converteu-se êle próprio numa "academia ambulante" (expressões do Padre Dias Martins), aliciando e iniciando prosélitos, como também o fazia José Luís de Mendonça, o advogado mais conceituado do foro pernambucano e espírito que a cultura jurídica tornava pouco fanático; a Igaraçu, cujo capitão-mor, Francisco Xavier de Morais Cavalcânti, conhecido pelo seu fausto e hospitalidade, criou uma "oficina" filial das academias, onde costumava ir perorar Antônio Carlos e onde o grito de morram os marinheiros se proferia sem reserva. Nesta vila o cirurgião Vicente Ferreira dos Guimarães Peixoto abriu em sua casa uma "escola" secreta que em 1821 reinstalou como loja, dando-lhe o título de Seis de Março de 1817.
No Recife mesmo as duas principais lojas maçónicas, que vieram a funcionar em 1814, depois da chegada da Europa dos seus respectivos fundadores, os negociantes Antônio Gonçalves da Cruz (Cabugá) e Domingos José Martins, foram a Pernambuco do Oriente e a Pernambuco do Ocidente. Citam-se ainda a Guatimosim e, Restauração e Patriotismo, somando assim as quatro a que se reporta Muniz Tavares, secretário da academia do Paraíso. À natureza republicana da última refere-se Armitage na sua História do Brasil (tradução portuguesa, Rio de Janeiro, 1837).
Domingos José Martins era um mação de prestígio internacional pelas extensas relações que contava, mesmo porque sua atividade comercial abraçara, aliás sem grandes resultados pecuniários, vários países. Seu plano favorito era aproximar o mais possível entre si as lojas brasileiras e relacioná-las bem com as estrangeiras, combinando-se assim os esforços de todas para o fito grandioso da emancipação política do mundo. Neste intuito foi pessoalmente acreditar junto ao Grande Oriente da Bahia o seu futuro colega de governo provisório Domingos Teotónio Jorge Martins Pessoa, enquanto o Coronel Sussuana seguia para o Norte — Paraíba, Rio Grande e Ceará — por onde as lojas maçónicas se iam alastrando.
É muito provável que a maçonaria nacional tenha somente assumido mais definitivamente este caráter depois da ação internacional de Domingos Martins e de Cruz Cabugá. As primitivas sociedades secretas — areópago, academias, universidades, oficinas, etc. — eram certamente centros brasileiros: as lojas propriamente maçónicas tinham sido, pelo contrário, de origem portuguesa. Instalada por portugueses foi a loja baiana Virtude e Razão, do rito francês, que se subdividiu e foi o núcleo do Grande Oriente do Brasil, ao qual era subordinada, como escreve o autor desta His~, tória, a grande loja provincial de Pernambuco que dirigia as quatro apontadas.
As três lojas do Rio de Janeiro de que se fêz menção foram autorizadas pelo Grande Oriente Lusitano, ao qual estavam filiadas, sendo porém outro o seu vôo por terem sido denunciadas ao Conde dos Arcos, vice-rei antes da chegada do Príncipe-Regente. Perseguidas pelo representante da autoridade régia, no exercício dos seus deveres, tiveram de fechar, mas continuou vivaz a idéia, mesmo porque a perseguição raramente consegue entibiar os entusiasmos, antes os estimula. Em 1815, sob o regímen da Corte, era instalada a loja Comércio e Artes que mais tarde, em 1821, nas vésperas da Independência, se subdividiu em três — Comércio e Artes, União e Tranqüilidade e Esperança de Niterói para a organização do Grande Oriente do Brasil (Manuel Joaquim de Meneses, Exposição Histórica da Maçonaria no Brasil).
Depois da revolução pernambucana cessou o sistema de tolerância usado com as sociedades secretas — se tolerância se pode
chamar uma relativa negligência — e entraram elas a ser vigiadas do perto e dissolvidas, criando-se no Rio, para punição dos culpados, um juízo da Inconfidência. Conta Antonio de Meneses Vasconcelos Drummond, nas anotações à sua própria biografia publicada num dicionário francês de contemporâneos (Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. XII), que na espécie de terror produzido por esse assomo de violência da parte de governo tão paternal, muitos mações entenderam denunciar-se a si mesmos, entre eles o Conde de Parati, camarista e valido do Rei. O castigo que o monarca lhe infligiu foi jocoso e prova a sua bonomia: mandou-o entrar para a Ordem Terceira de São Francisco da Penitência e conservar-se no Paço durante todo o dia do juramento com o habite de irmão. O Marquês de Angeja, outro mação confesso, resgatou sua falta entregando toda a prata da sua casa para servir as neces sidades do Estado.
Como se vê, aristocratas portugueses faziam parte das sociedades secretas do tempo. A maçonaria pode nas suas várias ramificações visar a fins políticos diversos, e não tinham certamente idêntico objetivo os mações portugueses e brasileiros afora o ideal comum de liberdade humana. Agora mesmo, na perturbação dos espíritos produzida pela conflagração européia, vemos a maçonaria portuguesa, conivente ontem com a abolição da monarquia e a supressão violenta do soberano, ser eminentemente francesa nos seus sentimentos, ao passo que a maçonaria espanhola deixou de fazer alarde de republicanismo e parte dela até se mostra germanó-fila, tal qual o elemento católico.
A maçonaria, tanto em Portugal como no Brasil, tinha por objeto primordial o que o Padre Dias Martins chama "iniciar prosélitos nos segredos da liberdade" e, segundo o mesmo autor, outro fim não teve a ida do Padre João Ribeiro a Lisboa senão "apertar os laços suassunais", isto é, estreitar as relações da academia do engenho Suassuna com o centro maçónico lusitano. No dizer do Sr. Pereira da Costa (A Maçonaria em Pernambuco), aquele sacerdote, o Padre Miguclinho (Miguel Joaquim de Almeida Castro), lente também do seminário de Olinda, e o Padre Luís José Cavalcânti Lins, vigário de Santo Antônio do Recife, foram iniciados mações em Lisboa em 1807, tornando-se membros conspícuos da loja que com intuitos puramente políticos se fundou em Pernambuco cm 1809.
A certa distância bifurcou-se o caminho percorrido pelas duas maçonarias, cada qual tratando de organizar em seu proveito a liberdade, uma pela implantação de um regímen de fato democrático sob o seu ouropel — a expressão pertence ao Monsenhor Muniz Tavares — de realeza constitucional, a outra pela proclamação prévia da independência política. O fato do ano de 1817 ser também o ano da conspiração portuguesa de Gomes Freire, grão-mestre da maçonaria lusitana, parece indicar que não cessara entre ambas a inteligência. Há quem diga, e houve então quem pensasse que, apesar dos mações portugueses andarem excluídos do melhor dos sigilos das lojas brasileiras, tramando-se a aliança nacional na
Ignorância dos adeptos locais europeus, existia concerto para um movimento sedicioso nos dois reinos, tendo por primeiro objetivo I orçar Dom João a regressar para Lisboa.
Os portugueses reclamavam o seu Rei B as suas regalias de metrópole, e os mações tanto quanto os corcundas queriam ter o monarca à mão para o fazerem um títere, consoante suas respectivas preferências. Os brasileiros tinham toda a vantagem em afastar o obstáculo principal à separação do seu país, almejando a maçonaria nacional formar uma pátria antes de poder pensar em sacrificar esta noção particular cm prol do maior, do universal ideal humano.
XXXIII/ CRIMES DA REVOLUÇÃO
A revolução não podia ter corrido inteiramente limpa de crimes desde o momento em que se abriram as portas da cadeia aos facínoras e se armaram de chuços e machados negros e mulatos, indistintamente livres e escravos. As declarações dos capitães das quatro embarcações francesas surtas no porto do Recife — a 6 de março havia umas dez embarcações estrangeiras aí ancoradas — fornecem depoimentos preciosos sobre o caráter e incidentes do rompimento. Essas declarações foram tomadas nos portos de entrada na França por ocasião do regresso dos navios. (Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros da França, para onde foram os papéis remetidos pelo Ministério da Marinha e Colônias.)
O capitão do La Perle confirma o que Tollenare aponta nas suas notas: que teve três homens da tripulação espingardeados e um quarto muito mal ferido (só o não acabaram por verificarem que era francês, carregando-o para o hospital) quando, com receio da pilhagem, transportava para bordo 17 a 18 mil francos cm ouro. Era o dinheiro da venda a retalho, pois que muitos capitães de navio costumavam abrir loja ao chegarem, para disporem das mercadorias que traziam. Tollenare escreve que o seu patrício foi despojado desse dinheiro; o capitão, no seu depoimento, não menciona o roubo, apenas o ataque. Pode ser que tivesse sido indenizado pelo governo provisório porquanto este lhe deu, ao singrar a embarcação, três marinheiros portugueses em substituição dos três franceses mortos no tumulto do primeiro dia — "testemunhando seu vivo pezar pela calamidade que me assaltara", ajunta o depoimento.
O populacho armado perseguia especialmente os marinheiros, isto é, os portugueses, e ainda mais se eram marinheiros de profissão, pois se propalara que o intendente da Marinha, Cândido José de Siqueira, pretendia organizar a contra-revolução, aproveitando os tripulantes das embarcações portuguesas estacionadas no porto. Não faltou quem se valesse do ensejo para liquidar contas com algum inimigo ou satisfazer qualquer velha vingança, e entre aquela ralé haveria quem desse simplesmente folga aos seus instintos bestiais.
Não se deu entretanto, como de resto faz observar Tollenare, assalto algum às casas particulares, e das 50 ou 60 mortes que, segundo este viajante e também segundo o capitão do La Perle, enlutaram o movimento, quase todas devem ter sido obra dos criminosos soltos. Na ulterior ocupação do bairro do Recife pelos soldados de linha e milicianos não se passou morticínio igual.
Escreve Tollenare que no tumulto do dia 6 de março quase não viu soldados do Regimento de Infantaria do Recife e não se recorda de haver visto um só dos henriques. O Regimento de Artilharia era, entre a sua oficialidade, o mais imbuído do espírito revolucionário, e isto explica talvez que em Olinda tivesse sido tão pronto o golpe subversivo, sendo a sua população cm grande parte composta de famílias dos soldados desse regimento. Mensageiros expedidos do quartel do Recife ali puseram imediatamente guarnição e populaça cm ação, aos gritos de mata marinheiro. Tal prontidão, registra o autor das Notas Dominicais, me induz a duvidar da espontaneidade da revolução, que muitos dizem operada sem premeditação alguma.
Já sabemos que o não fôra.
Na noite de 6 para 7 os insurgentes consolidaram suas posições, "mantendo boa guarda com fortes patrulhas"; a 7 ainda se saía de casa com receio; a 8 de março, pelas informações que recebera e comunicava do Rio de Janeiro o Cônsul-Geral Maier ao Duque de Richelieu, ministro dos Negócios Estrangeiros da França.
A ordem e a tranquillidade estavam perfeitamente restabelecidas no Recife. (Officio de 28 de Março de 1817, no Archivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros de França.)
Maier acrescentava ter lido uma carta de um negociante inglês, escrita do Recife, a 9, dizendo não se perceber mais o menor vestígio da revolução e gosar-se alli da mais perfeita calma e segurança.
Quando o La Perle partiu, a 8 de abril, os escravos, armados no começo da revolta, tinham restituído as armas e retomado a sua canga: assim declarava o capitão no seu depoimento.
XLIV I SENTIMENTOS DE IGUALDADE
Tollenare aponta com felicidade como era real em Pernambuco o sentimento de igualdade, mau grado a grande diversificação social, envolvendo profundas desigualdades de condições, e mau grado também o sistema político de governo absoluto e de despotismo administrativo. Atribui o fato à existência de numerosos negros e mulatos livres, gente habilidosa, exercendo artes mecânicas e profissões tais como as de alfaiate, sapateiro etc, muitos possuindo eles próprios escravos, alguns sendo mesmo abastados, embora se não dedicassem ao comércio, todo nas mãos dos portugueses: entre os indivíduos de côr contavam-se entretanto vários armadores de embarcações costeiras.
Esta situação dava aos negros e mulatos uma superioridade sobre os brancos ociosos — a classe que no Sul dos Estados Unidos era conhecida, em tempo da escravidão, pelos mean whites, os brancos vis — que virtualmente abolia a linha de separação traçada pela côr, e conseguintemente o preconceito que noutras colónias européias da América contribuía tanto para manter a raça negra e suas derivadas na sujeição.
Em Pernambuco, escrevia o francês, pode um branco considerar-se melhor, mas um negro ou um mulato livre considera-se tão bom como um branco. É afinal o que recentemente notou o professor da Universidade de Yale, Hiram Bingham (The Monroe Doctrine: An old shibboleth), quanto à concepção fundamentalmente diferente nas duas Américas sobre a questão de côr. A divergência resume-se nisto: nos Estados Unidos um semi-branco é preto; na América Latina um mulato é branco.
Acresce que, dada a constante mistura das raças, a mestiçagem entre nós era, como ainda é, variadíssima, fazendo-se a passagem de uma cor a outra por uma escala de que a vista mal pode contar todos os graos. (Notas Dominicaes.)
Igualmente com acerto indica Tollenare os frades mendicantes como uma das causas da diminuição da consideração merecida pelos brancos. Esses frades, no intuito de recolherem humildemente donativos, percorriam os engenhos, e nas cidades as casas e as tavernas, não sendo mais possível, na frase do viajante francês, que o negro veja um ser superior no branco que se baixa a pedir-lhe esmola.
Pela sua significação moral e por estas disposições já existentes não podia a revolução de 1817 deixar de provocar uma explosão de igualdade insultuosa. É conhecida uma carta escrita de Pernambuco para o Rio de Janeiro a 15 de julho de 1817 e primeiro publicada por Melo Morais (Brasil-Reino e Brasil-Império) em que se conta
que os cabras e creoulos andavam tão atrevidos que se diziam iguaes aos brancos, e não haviam de casar senão com brancas das melhores, isto sobretudo depois que Domingos José Martins andara de braço dado com eles. Era comum ver-se um cabra cativo, de chapéu na cabeça, bater no ombro de um branco, tratá-lo de patriota e pedir-lhe fumo. O compadre do Rio, a quem a carta era dirigida, folgaria porém de saber que às sovas de 300 a 500 açoites, mandadas aplicar pelo almirante chefe do bloqueio depois do desembarque das forças legalistas, não tinham escapado nem os mulatos forros, aqueles mesmos que o governo provisório fizera oficiais.
Andam muito murchos agora, ajuntava a carta; já tiram o chapéu aos brancos, e nas ruas apertadas passam para o meio para os deixar passar.
Foi esta igualdade forçada e a muitos repugnante que determinou o arrependimento entre bom número dos queJsaudaram o advento da liberdade sem lhe medir as conseqüências, ou pelo menos que serviu de desculpa para adesões tíbias, ditadas antes pelo medo O loquaz ouvidor Antonio Carlos não desdenhou servir-se deste me i de justificação para fazer acreditar na coação sob que agira, tomand parte num movimento que de resto pelo seu caráter particularista fosse este fundamental, fosse produzido pela falta de correspondência que influiu tanto para o seu malogro — não podia entusiasmar sobremaneira um filho de outra província, ali temporariamente levado pelos azares da magistratura.
Eis"como o Andrada respondia aos juízes da alçada:
Como não odiaria eu antes, e trabalharia com afinco para destruir um sys-tema que, derrubando-me da ordem da nobreza a que pertencia, me punha a par da canalha e ralé de todas as cores e me segava em flor as mais bem fundadas esperanças de ulterior avanço, e de mores dignidades?
Arruda Câmara, na carta-testamento que deixou para o Padre João Ribeiro, datada de Itamaracá cm 2 de outubro de 1810, tomava o ponto-de-vista radicalmente oposto, favorecendo, pode dizer-se, a democracia de côr.
Acabem com o atrazo da gente de cor [escrevia êlcl; isto deve cessar para que logo que seja necessário se chamar aos lugares públicos haver homens para isto, porque jamais pode progredir o Brazil sem elles intervirem conectivamente cm seus negócios, não se importem com essa acanalhada e absurda aristocracia cabundá, que ha de sempre apresentar fúteis obstáculos. Com monarchia ou sem ella, deve a gente de cor ter ingresso na prosperidade do Brazil.
Se esta carta é autêntica, Arruda Câmara foi um precursor do mais veemente abolicionismo.
XLV / TEMOR DA PLEBE
A revolução carecia de apoiar-se no povo, mas tinha receio da plebe. O comércio português, já por natureza desconfiado e ciumento, era e não podia deixar de ser-lhe hostil: parte dele resignou-se, aceitando os fatos consumados até melhor ensejo, isto é, uma ocasião de volver às primitivas crenças políticas, mas os que puderam, fugiram da capital. Os navios Príncipe Real e Conceição conduziram muita gente, um para a Bahia e outro para o Maranhão. O fato da primeira destas embarcações ter-se logo feito de vela explica que o Conde dos Arcos houvesse sido prevenido do ocorrido a tempo de tomar suas precauções.
Favoreciam o movimento, como tudo o mostra, os oficiais brasileiros, o clero nutrido de filosofismo francês e a aristocracia territorial que ao orgulho do nascimento juntava intenso sentimento bairrista. Tollenare, na sua extensa nota dominical de 9 de março, após registrar que o povo assistiu muito friamente ao embarque do governador, observa que tampouco se via entusiasmo ou transporte algum entre êle pela causa da revolução, a qual como que lhe parecia só ter sido dirigida contra o capitão-general e não contra o Príncipe. E acrescenta:
Os novos governantes só pronunciam a palavra republica cm voz baixa e só discorrem sobre a doutrina dos direitos do homem com os iniciados. Parecem confessar que ella não seria comprehendida pela canalha; só os militares testemunham a sua ebriedade; quadruplicaram-lhes o soldo; os officiacs esperam promoções; a julgar só pelas demonstrações exteriores acreditar-se-hia tratar-se apenas de uma sedição militar; entretanto, o caracter de vários dos governantes faz suppor projectos mais vastos e mais profundos.
Não bastavam estes esteios à solução patriótica. A tropa que se rebelara, mais o fizera por espírito de imitação do que por consciência do seu ato, e na classe média, se é que esta existia, o sentimento monárquico representava uma forte tradição, que o temor do desconhecido mais robustecia. A ralé é que afinal podia dotar o novo regímen do largo fundamento de que carecia. O número porém em todas as classes sociais dos que se tinham abeberado nos princípios políticos da filosofia demolidora era muito escasso, e uma sociedade onde existia a instituição servil não podia produzir uma revolução genuinamente democrática. Por lado algum, a não ser o do clero nacional, com raros leigos cm redor, se enxergava uma confiança que lograsse sobrepor-se às incertezas. Entre o povo, a regra era a sujeição, como entre a oficialidade, que foi o braço, e o clero, que foi a cabeça, a regra era a indisciplina.
No intuito de aumentar seu pessoal combativo, a revolução desceu até a camada escrava e não se pode facilmente explicar, senão pelo desígnio de importar negros para reforçar as fileiras rebeldes, o fretamento por Domingos José Martins do brigue Sally Dana para ir a Moçambique levar uma carta ao capitão general da capitania.
Assim se acha definido o objeto da viagem na autorização da junta para a despesa aludida. (Mss. da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.)
Os senhores de escravos não podiam contudo ver com bom olhos este emprego dos negros em defenderem a liberdade, e os doutrinários da revolução não podiam dispensar o apoio daquele elemento conservador, que julgava indispensável à manutenção da instituição servil e não se acomodava com o espetáculo de desenfreada igualdade que o movimento produzira. Seus hábitos autoritários estavam cm contradição com essa desconhecida familiaridade, e deve também ser levado em conta o geral temor que, depois dos sucessos de São Domingos, inspiravam as sublevações de escravos.
A carta do compadre, que Melo Morais divulgou, trata de passagem deste tópico, quando relata a contra-revolução.
Vão primeiro a Utinguinha [escreve êle dos rebeldes] mas ahi acham gente de Ipojuca, Escada e Santo Antão, que sem peças, e somente com espingardas, catanas e frechas, lhe fizeram tal estrago que poucos escaparam. Exasperam com este acontecimento e propõem ir a Ipojuca, onde já se achava o exercito com 200 artilheiros da Bahia, e ao mesmo tempo combater o Pau do Alho, e em ambas as partes foram derrotados inteiramente e lá morreu um filho do Suassuna, prenderam a Domingos José Martins, o filho de Manoel Caetano de Almeida e o Washington (que é como passara a denominar-se Vasconcellos Bourbon). Enfim ficaram sem recursos mais para combater, apezar de terem levado comsigo mais escravos que apanharam á força, e outros que se offereceram com a promessa de alforria; de sorte que já não se viam pelas ruas senão negras; cada um escondia seus escravos.
LXXVI / AGRESSÕES AOS PATRIOTAS DE CÔR
A melhor prova das ramificações da conspiração pernambucana encontra-se num interessantíssimo documento existente no Record Office de Londres e que acompanhou a comunicação do Cônsul-geral Henry Chamberlain a Lord Castlereagh, ministro dos Negócios Estrangeiros, sob o n.° 38, de 3 de maio de 1817. (Papéis do Fo-reign Office.) Este documento é a cópia de uma carta escrita do Rio de Janeiro para Buenos Aires pelo ex-Diretor Supremo Dom Carlos Alvear ao seu amigo Dom Matias Irigoyen. Posta a bordo da fragata britânica Amphion, essa carta foi violada pela diplomacia, dizendo Chamberlain que não pôde resistir ao desejo de tirar uma cópia literal de tão extraordinária comunicação antes de a tornar a selar e remeter.
Segundo Alvear, o movimento teve de estalar prematuramente e estendia-se ao longo da costa e através do interior, e o cônsul inglês abona tais informações porque diz que em maioria elas concordam com o que chegara ao seu conhecimento por outros canais, sendo apenas de admirar que o governo de nada suspeitasse.
Se as ramificações são tão extensas quanto o declara a carta [comentava Chamberlain no seu ofício] sera necessária a applicação de grande prudência e de hábil energia para impedir uma revolução geral no Brazil, pois comquanto exista um forte laço de dedicação á pessoa do Rei e á família real, existe com relação aos europeus, particularmente os fidalgos, um sentimento universal de antipathia, e o descontentamento lavra pela franca corrupção da gente no poder.
A carta de Dom Carlos Alvear traz a data de 25 de abril de 1817 e o signatário começava por felicitar-se pelo ensejo que se lhe deparava de despachar com segurança uma carta que só seria lida pelo destinatário e por Pueyrredon. Segundo êle, o movimento tramava-se desde muito nas lojas maçónicas de Pernambuco, mas a explosão deu-se mais cedo do que convinha pelo fato da prisão de alguns "irmãos". Por sua vez, tomados de surpresa e desconcertados com a inicitiva do Conde dos Arcos, os "irmãos" da Bahia nada puderam fazer. Isto foi dito a Alvear por um jovem baiano, que o argentino qualifica de talentoso e rico, e que se acha no Rio, onde outro mação, de loja fluminense, confirmou de algum modo a asserção, informando Alvear das intenções dos "irmãos" pernambucanos.
O plano destes era compelirem o Rei a reunir Cortes e jurar uma constituição: tal plano podia contudo dizer-se ostensivo, porque no íntimo — e isto resultava de várias conversações tidas por Alvear — a idéia era organizar república, o que os "irmãos" americanos ocultavam dos europeus, isto é, os brasileiros dos portugueses. Na loja fluminense discutira-se calorosamente o caminho a seguir diante dos fatos consumados e deliberara-se apoiar quanto possível a revolução, um partido, pelo menos, inteiramente composto de naturais do Brasil. Segundo um destes adeptos, o grande erro da junta patriota fora não tomar a ofensiva, pois que com 800 homens que fosse, se tivesse invadido a Bahia, haveria incutido coragem aos cúmplices, permitido que estes se declarassem e assim executado um movimento decisivo no conceito de Alvear, o qual neste ponto se engana. As forças de que podia dispor a República não eram suficientes para serem eficazmente contrapostas às forças legais. Nem se verificou o que muitos pensaram na Corte, que as tropas reais fraternizassem com os insurgentes.
Alvear dizia ter acabado de falar com duas pessoas, uma do Rio, outra da Bahia, ambas denotando a maior ansiedade por notícias, porque receavam que a revolta fôsse debelada, muitas execuções ocorressem, toda a conspiração viesse a lume e não tivesse fim o número de prisões. Quer debelada, quer não, a fermentação era tal que podia bem conduzir à abolição da monarquia. Alvear não sabia propriamente o que prever: I am aí a loss what to think, reza a tradução da carta violada; e num arrebatamento de patriotismo estreito e agressivo, assim se expressava a respeito:
Quando escuto os discursos dos brazileiros, quero imaginar que vencerão; pelo contrario, quando tenho cm mente sua effeminação, pusillanimidade, falta de senso e de proceder, não posso deixar de despreza-los. Pois ao passo que no vosso caso a intelligencia se acha do lado dos americanos e a ignorância do lado dos hespanhois, neste paiz é o inverso: os europeus são esclarecidos e os brazileiros estúpidos e illetrados.
O Rei, testemunhava Alvear, saíra de uma apatia que era antes letargia, e manifestava uma actividade de que ninguém o julgava capaz. Estimulava todos os negócios públicos; dispunha pessoalmente de tudo, oceupava-se de tudo e estava em toda parte. Não tivesse elle revelado tanta energia e teria ficado perdido sem remédio.
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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