JACINTO FREIRE DE ANDRADE e FR. LUÍS DE SOUZA

Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)

CURSO DE LITERATURA NACIONAL Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

LIÇÃO XXVII – biografia

O PADRE JACINTO FREIRE DE ANDRADE

O Padre Jacinto Freire de Andrade, natural da cidade de Beja, na província do Alentejo, viu a luz em 1597. Revelando desde os mais verdes anos grande propensão para as letras, foi mandado por seus pais à universidade que então existia em Évora, onde fez o seu curso de preparatórios. Passando mais tarde à de Coimbra, distinguiu-se nos estudos teológicos, para os quais o chamava a sua vocação, e graduou-se em cânones em 1618. Terminados esses estudos e havendo recebido o presbiterado, fez uma viagem a Madri, onde soube de tal sorte granjear a estima do monarca que foi logo despachado para a rendosa abadia de N. S. da Assunção de S. Bade, na província de Trás-os-Montes. Pouco tardou que, pela influência dos seus protetores, não fosse removido para mais pingue benefício, qual era a abadia de S. Maria de Cãs, no bispado de Viseu.

Constantemente considerado pelo governo espanhol com honrosas comissões, não pôde Jacinto Freire sufocar os brados de seu patriotismo, declarando-se abertamente partidista dos direitos da casa de Bragança, e defendendo-os na própria corte de Madri. Valeu-lhe essa imprudência ordem de prisão, de que pôde subtrair-se abrigando-se à sombra dos altares de sua abadia. Nesse remanso da paz encontrou-o a gloriosa revolução do 1o de dezembro de 1640, que reergueu a abatida nacionalidade portuguesa. Solícito foi Jacinto Freire em dirigir-se a Lisboa para cumprimentar o novo rei, de cuja privança, assim como da do príncipe D. Teodósio, herdeiro presuntivo da coroa, por muito tempo gozou. Duas recusações de honrosos cargos para que fora lembrado, o de mestre do infante, depois rei D. João V, e o de bispo de Viseu, arrefeceram suas relações com o paço, e obrigaram-no a refugiar-se de novo em sua abadia, cuja residência parecia pouco aprazer-lhe. Desgostoso dos homens e das glórias mundanas, viveu por-muitos anos na sociedade de seus livros, até que, convidado por uma irmã, a quem sumamente prezava, foi terminar sua existência em Lisboa no ano de 1657, sendo sepultado na igreja paroquial de Santa Justa.

Foi Jacinto Freire de Andrade notável poeta da escola de Gongora, que então dominava despoticamente na Espanha e Portugal, e consta que compusera muitas obras em verso, as quais se perderam em um incêndio que consumiu a casa de sua habitação na rua das Portas de Santo Antão. Não devemos porém lamentar semelhante perda, a julgarmos pelos excertos que foram publicados na Fênix renascida. Testifica o abade Barbosa Machado que deixara este autor uma coleção de cartas familiares, que infelizmente nunca viram a luz da imprensa. A mais célebre porém das suas obras, até hoje publicadas, é certamente a que escreveu a pedido do bispo inquisidor geral D. Francisco de Castro, e que intitulou — Vida de D. João de Castro, quarto Viso-Rei da índia — e cuja primeira edição saiu da oficina Craesbeekiana em 1651 in-folio. Diversas edições tem tido esse interessantíssimo livro, sendo a mais recomendável a de 1835, autorizada pela Academia Real de Ciências de Lisboa, e enriquecida de notas e documentos originais, devidos aos cuidados do distinto literato D. Fr. Francisco de S. Luís. De duas versões nas línguas inglesa e latina faz menção o erudito autor da Biblioteca Lusitana, servindo de documento do apreço em que por estranhos e imparciais juízes fora tida esta belíssima biografia.

Ceifemos na abundante seara dos primores da eloqüência e castiça linguagem, que nos oferece a Vida de D. João de Castro, e sem perder de vista a estreiteza do nosso plano, copiemos o que de mais saliente se nos antolhou. Exemplo de concisão e nobreza de estilo é sem dúvida o seguinte trecho, em que narra a escolha que do benemérito fidalgo fizera D. João III para ir governar a índia.

El-rei com quem a opinião do infante tinha crédito grande, vendo que avaliava as cousas de D. João com zelo de principe e notícias de amigo, aprovou a inculca feita pelo infante, cuja autoridade qualificou o conceito de todos; mandando chamar a D. João de Castro a Évora, onde tinha a sua corte, lhe disse em sala pública: "Andei estes dias cuidadoso em buscar varão que governasse o Estado da índia, e não duvidava podê-lo achar na família dos Castros, de cujo tronco os senhores reis meus antecessores, tiraram sempre generais para os exércitos, regentes para os povos: assim me prometo que de tão valorosa raiz não pode degenerar o fruto; mormente se medir as futuras ações pelas passadas, as quais vos têm dado justo nome na opinião do reino; pelo que confiadamente vos encomendo o governo da índia, aonde espero procedais de maneira que possa dar vossas ações por regimento aos que vos sucederem." D. João beijou a mão a el-rei, mais agradecido à honra que ao ofício, estimando só de tão grande cargo o não o haver buscado. Na corte houve sobre esta eleição diversos sentimentos: alguns a notaram por inveja, e outros por costume; tanto que nas virtudes, em que lhe não podiam achar faltas, lhe arguiram excessos; foi porém tão bem avaliado dos mais e dos melhores que el-rei se alegrava de haver achado um homem feito à vontade de todos.

Na descrição de Dio deu Jacinto Freire provas de quão bem sabia desempenhar as regras de pintar com a pena:

A ilha de Dio (diz ele), célebre pela riqueza do seu trato, lastimosa pela ruína dos seus habitantes, ilustre pela fama das suas virtudes, está situada em uma enseada e ponta que limita o reino de Cambaia, em altura de vinte e dois graus da banda do Norte. Da antíiguidade de sua fundação fabulam os naturais dando-lhe princípios mais ilustres que averiguados, cuja memória conservam suas tradições na falta de escritos. Foi sempre o porto da enseada a principal escala freqüentada das naus que navegam a Meca, cuja viagem fez aos mouros grata religião e o comércio. É a cidade apartada da terra firme por um esteiro, que em torno a vai cingindo: pela qualidade do terreno é forte, e ajudando-se d’arte a natureza, a faz mais defensável. O esteiro que o rodeia faz duas bocas, uma ao norte, que por ser aparcelada e baixa é ao serviço inútil; outra ao sul, também desacomodada pela aspereza do rochedo, em que bate. Tem outro canal na face da ilha, podem ancorar navios, e deste recebe a cidade mais cômoda passagem.

Modelo do estilo asiático, ou derramado, posto que sem verossimilhança é a alocução por Coge-Çofar dirigida aos seus soldados, quando se dispunha a apoderar-se da fortaleza de Dio. Citemo-la em sua íntegra:

Companheiros e amigos, não vos ensinarei a temer nem a desprezar esses poucos portugueses, que dentro daqueles muros estais vendo encerrados, porque não chegam a ser mais que homens inda que soldados. Em todo o Oriente até agora os acompanhou, ou serviu a fortuna, e a fama das primeiras vitórias lhes facilitou as outras. Com um limitado poder fazem a guerra ao mundo, não podendo naturalmente durar um império sem forças, sustentado na opinião, ou fraqueza dos que lhe são sujeitos. Apenas têm quinhentos homens naquela fortaleza, os mais deles soldados de presídio que sempre costumam ser os pobres, ou os inúteis; por terra não podem ter socorro, os do mar lhe têm cerrado o inverno. Estão fartos de munições e mantimentos, assegurados na paz e na soberba com que desprezam tudo. Como são poucos sempre naquele muro hão assistir os mesmos defensores, sem haver soldado reservado para o lugar de outro, falta-lhes peonagem para reparar as ruínas da nossa bateria, e por força os há de render o trabalho repartido ém tão poucos. Estão insolentes com o destroço que fizeram nas galés do Grão-Senhor no cerco desta mesma fortaleza. A tão honrados Turcos e valentes janízaros, como estes presentes, toca acudir pela honra de vossa gente e de vosso império, com’o causa mais justa da guerra que fazemos, que ainda que Cambaia tem exércitos e soldados, nãò convém à reputação do Grão-Senhor vingar suas injúrias com as armas alheias. Com este fim vos trouxe a esta empresa, porque vos não furtassem outros a glória de tão justa vingança. Esta mesma terra que agora estais pisando, cobre os ossos dos vossos companheiros, parentes e amigos, que a cada um de nós (me parece) estão chamando por seu nome, contando-nos as mortes, e as feridas que destes homicidas receberam, esperando por vosso esforço poderem descançar vingados. Estes mesmos são os matadores de Badur, ingratos aos benefícios, atrevidos à majestade de príncipe tão grande, cuja vingança será grata a todos os que se chamam reis, precisa a todos os que somos vassalos.

Pelo seu laconismo e firmeza de expressão contrasta com a supra mencionada a seguinte fala de D. João de Castro aos seus briosos guerreiros:

Entramos em uma batalha, onde vencidos honraremos o nosso Deus com o sangue; vencedores o nosso rei com a vitória. A força do exército inimigo são Turcos e janízaros, os quais como soldados mercenários, buscam a guerra e aborrecem a peleja. A outra parte se compõe nações diferentes, o soldo as obriga a estar juntas, mas não a estar conformes. Não são estes mais valentes que seus pais e avós, não serão mais felizes, a todos sujeitarão nossas armas. Este império d’Asia é filho de nossas vitórias, criamo-lo em seu primeiro berço, sustentamo-lo agora já robusto, que depois de largas idades há de mostrar ao mundo com o dedo a fama deste dia. Animar a batalha fora esquecer-me que somos portugueses.

Da famosa carta escrita pelo vice-rei à câmara de Goa extraímos este parágrafo, recomendável não só pelo brilhantismo da dicção como pelos sentimentos, dignos dos tempos heróicos:

Eu mandei desenterrar D. Fernando, meu filho, que os Mouros mataram nesta fortaleza, pelejando pelo serviço de Deus e d’el-rei, nosso senhor, para vos mandar empenhar seus ossos; mas acharam-no de tal maneira que não foi lícito inda agora de o tirar da terra; pelo que não me ficou outro penhor, salvo as minhas próprias barbas, que vos aqui mando por Diogo Rodrigues d’Azevedo; porque, como já de-

veis ter sabido, eu não possuo ouro, nem prata, nem móvel, nem coisa alguma de raiz, por onde vos possa segurar vossas fazendas, somente uma verdade seca e breve que me nosso Senhor deu.

Finalizemos as transcrições copiando a narração que dos últimos momentos do seu protagonista faz-nos o ilustrado biógrafo que ora analisamos:

Achava-se D. João de Castro gastado menos dos anos que dos trabalhos de tão continuas guerras, em que veio a cair rendido aos pesos de tão graves cuidados. Enfermou gravemente e descobriu a doença ^m poucos dias indicios de mortal, o que ele reconhecendo pela moléstia de repetidos acidentes se aliviou do cargo do governo. Chamou o bispo D. João d’Albuquerque, D. Diogo d’Almeida Freire, ao P. Francisco Toscano, chanceler-mor do Estado, a Sebastião Lopes Lobato, seu ouvidor-geral, e a Roberto Gonçalves Caminha, vedor da fazenda aos quais entregou o Estado com a paz dos príncipes vizinhos assegurada sobre tantas vitórias. Mandou vir a si o governo popular da cidade, ao vigário-geral da índia, ao guardião de S. Francisco, a Fr. Antônio do Casal, ao P. Francisco de Xavier, e aos oficiais da fazenda d’el-rei a quem fez esta fala:

Não terei, senhores, pejo de vos dizer que ao vice-rei da Índia faltam nesta doença as comodidades que acha nos hospitais o mais pobre soldado. Vim a servir, não vim a comerciar ao Oriente; a vós mesmos quis empenhar os ossos de meu filho, e empenhei os cabelos da barba, porque para vos assegurar, não tinha outras tapeçarias, nem baixelas. Hoje não houve nesta casa dinheiro com que se me comprasse uma galinha; porque nas armadas que fiz primeiro comiam os soldados os salários do governador, que os soldos de seu roí; e não é de espantar que esteja pobre um pai de tantos filhos. Peço-vos que enquanto durar a doença me ordeneis da fazenda real uma honesta despesa e pessoa por vós determinada, que com modesta taxa me alimente.

E logo pedindo um missal fez juramento sobre os Evangelhos que até a hora presente não era devedor a fazenda real dum só vintém, nem havia recebido coisa alguma de cristão, judeu, mouro, ou gentio; nem para a autoridade do cargo, ou da pessoa tinha outras alfaias que as que de Portugal trouxera; e que inda a parte que no reino fizera, havia já gastado, nem tivera jamais possib lidade para comprar outra colcha, que a que na cama viam, só a seu filho D. Álvaro fizera uma espada guarnecida de algumas pedras de pouca estima para passar ao reino. Que disto lhes pedia que mandassem fazer um termo, para que se alguma hora se achasse outra coisa, el-rei, como perjuro, o castigasse. Esta prática se escreveu nos livros da cidade, a qual se poderá ler como instrução aos que lhe sucederam; nos quais creio ficou a memória mais viva que o exemplo.

Pelos fragmentos citados terá o leitor formado o seu conceito sobre a Vida de D. João de Castro, escrita pelo Padre Jacinto Freire de Andrade, e cremos que não hesitará em confirmar-lhe o epíteto de Quinto Cúrcio Português, com que o saudaram seus contemporâneos. Pureza, gravidade e elegância são predicados que se encontram nesta preciosa obra, que, no pensar do abalizado filólogo Pedro José da Fonseca, grandemente concorreu para a restauração da boa linguagem que se achava corrompida nos escritos dos autores coetâneos. Nas constantes antíteses, na empolação da frase, e em algumas hipérboles de mau gosto pagou porém o exímio literato o tributo da fraqueza do entendimento humano como judiciosamente o disse o severo, mas justiceiro crítico Francisco José Freire.

Mais panegirista do que historiador, sacrificou a miúdo a verdade para exornar seus quadros e realçar o mérito de seu herói, que aliás disso não necessitava. Freqüentes são as inexa-tidões que comete, e a maior parte das vezes voluntariamente, como muito bem o demonstrou o sábio cardeal patriarca D Fr. Francisco de S. Luís nas notas e comentários a que acima aludimos, e para os quais remetemos o leitor curioso.

FR. LUÍS DE SOUZA

Fr. Luís de Souza, que no século se chamava Manuel de Souza Coitinho, nasceu na vila de Santarém de pais ilustres, no ano de 1555, segundo a opinião de alguns biógrafos, ou nos de 1557—1559, conforme as suposições do Sr. Alexandre Herculano. Terminados os estudos rudimentais, dirigiu-se a Coimbra, onde consta que adquirira grande nomeada entre seus mestres e condiscípulos. Não quis porém dedicar-se à carreira literária, preferindo-lhe a das armas, e, alistando-se na milícia da ordem de Malta, prestou relevantes serviços e sofrei» não poucos incômodos. Prisioneiro dos mouros, foi conduzido a Argel tendo por companheiro o célebre Miguel Cervantes, autor do D. Quixote. Restituído à liberdade por meio de resgate, após dois anos, passou-se à Catalunha, sendo despojado pelos bandoleiros que então infestavam o principado. De volta à pátria contraiu matrimônio com D. Magdalena de Vilhena, estabelecendo em sua casa uma douta palestra, em que muito se recreavam os eruditos com grande proveito das letras portuguesas. Da firmeza do seu caráter temos sobejas provas, bastando citar o fato de haver mandado lançar fogo à casa da sua residência em Almada por nela quererem à força aposentar-se os governadores do reino. A fim de subtrair-se às conseqüências que o seu arrojado feito lhe arrastariam, procurou asilo em Madri, de onde se trasladou para a cidade de Panamá, na América meridional. No seu regresso à pátria, sendo informado por um peregrino que voltava de Jerusalém de não ser legítimo o seu consórcio com D. Magdalena por ainda, viver o primeiro marido desta, D. João de Portugal, prisioneiro na batalha de Alcacer Quebir, entrou para a ordem de S. Domingos, onde tomou o nome de Fr. Luís de Souza, forneceu este passo da sua vida assunto para um mui conhecido e estimado drama do visconde de Almeida Garrett.

No claustro repartiu Fr. Luís de Souza o seu tempo entre a (i ração e o estudo, e compôs três obras de grande vulto, que colocaram o seu nome a par dos primeiros clássicos da nossa língua. Referimo-nos à História de S. Domingos, particular do reino e conquistas de Portugal, refundida da que no idioma espanhol compusera Fr. Luis de Cácegas; a Vida de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, igualmente recopilada da que escrevera o referido Fr. Luis de Cácegas, e ampliada com muitas particularidades omitidas pelo cronista castelhano. Já no último quartel da vida, e para aceder aos desejos de D. Filipe IV, deu-se à composição dos Anais de D. João III, que deixou incompletos, e que por muito tempo se julgaram perdidos, até que no ano de 1844 os deu à estampa o exímio historiador Sr. Alexandre Herculano. Ocupar-nos-emos unicamente com os dois últimos monumentos por amor da brevidade e maior beleza da matéria.

Vida de D. Fr. Bartolomeu dos Mártires da Ordem dos Pregadores, Arcebispo e Senhor de Braga, Primaz das Espa-nhas, repartida em seis livros com a solenidade da sua trasladação. Saiu pela primeira vez impressa em 1619 na oficina de Nicolau Carvalho em Viana, e diz Barbosa que fora traduzida em castelhano por Luis Muñoz, e em francês por um anônimo que a fez imprimir em casa de Pedro Petit, livreiro de Paris no ano de 1664.

Da simplicidade do estilo de Fr. Luís de Souza oferece-no singular exemplo a seguinte passagem em que narra o modo porque o arcebispo procedia em suas visitações.

Tanto que o arcebispo cerrava a visitação daquele dia que visitava, chamava os dois companheiros e conferiam todos os três o que tinham achado, e do que resultava de tudo, fazia ele por sua mão um abreviado memorial em um caderno que sempre costumou levar cons5 go; e pera mais segredo, e ser menos a escritura, aos nomes dos culpados juntava umas cifras por onde se entendia na qualidade das culpas de cada um. Aos clérigos que achava de boas vidas e boa fama depois d’apontar o nome e lugar em que moravam sinalava-os com um círculo de campo branco; e nos que havia infâmia provada eclipsava o círculo, fazen-do-lhe o campo negro; se a infâmia era com defeito de prova ecl’psa-va o campo só pela metade; e se testemunhas depunham ao costume alguma da matéria da suspeição, sobre o círculo meado de branco e preto lançava um S. Correndo o tempo foi fazendo outro livro maior em que tinha repartido o arcebispado em comarcas pela Ordem do al-

fabeto, e nele reduzidas a breve leitura grandes e compridas devassas, com os nomes dos delitos e delinqüentes, notados com as cifras acima ditas: e este levava quando tornava a visitar os mesmos lugares, mas tão arrecadado, que pessoa nenhuma sabia o que continha.

Outras vezes, e quando o assunto o exigia, elevava o autor o estilo, e tornava-o florido como v. g. na belíssima pintura que nos traça dos costumes dos moradores de Viana.

Os homens, ou sigam as armas, ou as letras, ou se dêem à mercancia e navegação, em tudo provam bem; em geral agudos de engenhos, duros no trabalho, capazes, sisudos, amigos do bem comum, e da conservação dele, moderados na vida e gasto ordinário; mas nas ocasiões de honra mais .que liberais; esforçados e animosos nos perigos, br.osos em todo o tempo e amigos de se fazer respeitar e conhecer por tais; nas armas e nas ciências têm lançado nomens de tanto valor e tantos em número que se fazem agravo no que têm por honra, que é não buscarem escritores que os façam no mundo celebrados. Todos os nobres exercitam a mercancia, a uso de Veneza e Gênova contra o costume das mais terras de Portugal, que os louvam e não os seguem, invejam a felicidade e bons conselhos do trato e não sabem imitar a indústria.

Posto que mais parco do que Jacinto Freire, não deixa Fr. Luís de Souza de emprestar alguns discursos ao seu herói e fá-lo sempre com nobreza de sentimentos e de linguagem. Sirva de exemplo a fala pelo arcebispo endereçada ao Papa, estigmatizando o abuso de estarem os bispos em pé e desbarretados nas juntas que se celebravam no Vaticano, enquanto os cardeais se conservavam comodamente sentados e cobertos. Com franqueza, quiçá um pouco rude, assim se exprimiu o virtuoso prelado bracarense:

……Mas, Santíssimo Padre (acrescentou o arcebispo), uma obra tão santa e de tanta justiça não tem ainda a sua perfeição. Que V. S. tirou e não consente que os bispos* que assistem a sua mesa estejam em pé e descobertos, como em tempos atrás se sofria; que ma s razão há para estarem da mesma forma nas juntas e congregações que se fazem diante de V. S., como notei nesta última, que durou três ou quatro horas, e todos estiveram em pé quantos bispos foram presentes, e com os barretes na mão? Juntando-se outra desigualdade que para o meu entendimento faz o caso mais indigno, o qual foi ver no mesmo tempo os cardeais bem assentados e suas cabeças cobertas. Se os bispos enquanto bispos são superiores aos cardeais, enquanto somente (porque já deixamos declarado no concílio que os bispos têm o primeiro lugar da Igreja) em que justiça caberá que os cardeais, que é uma dignidade instituída somente por autoridade e conselho humano, sejam avantajados diante de V. S. nas honras do barrete, do assento, aos bispos que foram criados por autoridade divina pelo mesmo Cristo, Senhor nosso, e sucederam no lugar dos santos apóstolos? Que razão pode aprovar que onde os cardeais estão com tanta honra, fiquem os bispos humilhados, e abatidos, e afrontados? Beatissimo Padre, os bispos enquanto bispos são vossos irmãos, e como tais devem ser tratados.

Tal impressão fez esta prática, ditada por um zelo e liberdadade verdadeiramente apostólicos, que, refere o ilustre biógrafo, rendera-se o Pontífice às razões de D. Frei Bartolomeu, abolindo tão censurável usança.

Cheia de unção é a despedida do virtuoso prelado, aue com tão sublime abnegação renunciara à primeira mitra do reino. Cremos que a ninguém deixará de sensibilizar as seguintes palavras:

Ficai-vos muito nas boas horas, minha muito amada, primeira e derradeira esposa igreja bracarense, honra das Espanhas, cabeça e primaz delas, fundada pelo grande filho do trovão, S. Tiago, mu"to ninada e querida de mim, mas servida com infinitas imperfeições. Ficai-vos embora, minha formosa igreja, meus primeiros e últimos amores, a que eu não correspondi, como era obrigado posto que muito desejei e enquanto pude procurei. Perdoai-me se me aparto de vós com alegria e júbilos d‘alma, que como sempre me houve por indigno de ocupar uma cadeira em que tantos e tão grandes santos se assentaram, é razão que aceite com gosto ver-me livre da grande vergonha e pavor em que sempre vivi, olhando para sua santidade e para meus grandes pecados. Não me levam de vós amores novos, nem deixo de vos servir para buscar outra, ou amar outra mais que a vós, senão porque desejo que venha quem supra meus defeitos, emende minhas faltas, e tenha partes para vos saber merecer, que em mim nunca houve. E pois me sofrestes tanto tempo tal qual sou não poderei deixar de vos querer sempre muito e encomendar-vos muito a Deus. Enquanto nestes membros velhos e cansados durar espírito de vida sempre em minhas orações e sacrifícios pedirei ao senhor que nas necessidades vos acuda com socorro e nos bens espirituais com grande aumento.

Falemos agora de outra obra do mesmo Fr. Luís de Souza, a que o Sr. Alexandre Herculano denominou de último canto de cisne.

Os Anais de El-rei D. João III, que, como já dissemos, se consideravam perdidos, e que ora enriquecem a nossa literatura, podem ser considerados como uma obra biográfica, a exemplo do que fizemos com a Crônica de El-rei D. Manuel por Damião de Góis; posto que ambas encerrem muitos fatos que pertencem ao domínio da história.

Descrevendo as façanhas dos seus compatriotas na Ásia é algumas vezes Souza inexato; porque, arrastado pelo prestígio de Barros, e pelo incontroverso valor que então se davam aos seus assertos, recusou por si mesmo informar-se quando pelas partes do Oriente peregrinara. A largos traços delinean-

do os acontecimentos da metrópole, é na história das guerras da África que o distinto escritor brilha com todo o seu fulgor. "Descobre-se (diz o Sr. A. Herculano) no historiador uma certa complacência em narrar os sucessos daquelas partes e descrever miudamente os sítios dos recontros e correrias. Lembram-nos sempre com triste saudade o lugar e o tempo onde passamos dias de mocidade, embora esses dias fossem esquivos e trabalhados. Lembrava-se porventura Fr. Luís de Souza do seu cativeiro em Argel ou era antes que a sua alma grandemente poética se comprazia nas memórias daquele teatro, onde até mais .tarde luziu o astro do puro, nobre e desinteressado esforço português, convertido na Ásia, havia já muito, em cobiça sanguinária de mercadores."

Parecem ser predicados inseparáveis do estilo de Fr. Luís de Souza a naturalidade e a graça; de que já havemos oferecido vários espécimens, e a que muitos outros se podem adicionar. Assim v. g. nas primeiras páginas do livro de que nos ocupamos lêem-se estas belas expressões:

Mostrou Deus ao mundo nos primeiros anos do reinado d’El-Rei D. Manuel em sua pessoa que se inclinava a entregar aos reis e reinos de Portugal a monarquia d’Espanha. Deu-lhe por mulher a princesa D. Isabel filha maior dos Reis Católicos, que ele em outro tempo reconhecera por senhora levando-a de rédea na entrada que fez em Évora, quando veio casar com o príncipe D. Afonso, filho d’El-rei D. João II. Foi conseguintemente jurado por herdeiro dos mesmos reis em Toledo, com que ficava universal e absoluto senhor das Espanhas. e dos reinos de Nápoles e Sicília. Deu-lhe após o juramento, primeiro filho o príncipe D. Miguel, chamado da paz em sinal de vínculo e penhor perpétuo dela, entre todos estes reinos, de que nascia herdeiro e sucessor. Mas passou tudo como sombra, e representação duma abreviada tragédia. Porque estava decretado no tribunal divino de trocar as mãos no particular da monarquia. Começou a passar no falecimento da princesa, que foi no mesmo dia, que dado ao mundo o prínc’pe D. Miguel. Infelice senhora em ambos os casamentos: no primeiro com a morte desastrada do marido; no segundo cem a própria; não menos triste por ser na flor da idade e quase repentina, que a do marido pelo acidente do cavalo. Acabou-se de passar-se toda a representação com a morte do príncipe D. Miguel, sucedida antes de sair das mantilhas e do primeiro leite das amas. Assi se achou El-Rei D. Manuel dentro de dois anos sem mulher e sem fi’ho e perdida de toda a esperança da grande monarquia de que se vira adorado por senhor. Muito de bronze fora o peito a quem não quebrantara tanto mal junto.

Não poucas vezes concisa e sentenciosa é a sua dicção, de que serve de exemplo o prólogo da segunda parte dos Anais de Dom João III:

Entrado no inverno da vida, que é a velhice e enfermidade que acompanha a quem vai já fazendo número de anos sobre setenta,entramos na segunda parte da vida do nosso grande rei D. João. Po deroso é o Senhor que nos chegou a contar tantos, inda que tristes e trabalhados, cm tempo que vemos a muitos moços robustos e fortes estalar como vidro na flor da idade, conservar-nos nesta até cumprir-mos com a obrigação cm que estamos a quem fiou sua história de nossa diligência, havendo outra de tão bom estilo que pudera bem forrar-nos o trabalho. Dias alciôneos têm ordinariamente o mais es-quivo inverno, e não há homem tão velho que não possa viver mais um ano. Se Deus for servido dilatar o chamamento, que já por muitas maneiras nos soa nas orelhas, e quase o temos à porta, brevemente daremos fim ao que resta do governo do nosso bom rei; porque os materiais que para o edificio servem estão juntos, e a vontade pronta para os empregar, sem perdoar ao trabalho, nem dar férias à pena, e para que nem este curto prólogo nos roube horas, comecemos logo.

Não acumulamos citações; e apressemo-nos em julgar os escritos do douto dominico. Quem contestará a Fr. Luiz de Souza cabal conhecimento do idioma pátrio, propriedade dos termos e singeleza e fluência da linguagem? Melhor que nenhum contemporâneo seu soube evitar os enfeites e artifícios viciosos, o que fez dizer ao distinto literato Francisco Freire de Carvalho que as suas obras ofereciam perfeitos modelos de bem historiar em português, quer se atenda a viveza das descrições, quer a magia dos afetos, ou as graças e polimento da expressão.

Como biógrafo incorre o nosso autor na pecha de pa-negirista; sendo porém muito menos hiperbólico do que Jacinto Freire, e mais crítico do que Damião de Góis.

Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

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