Capítulo III – O QUE ERA O RESTO DO BRASIL- D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

CAPÍTULO III

O QUE ERA O RESTO DO BRASIL

Ao tempo da chegada de Dom João VI, era o Rio de Janeiro capital mais no nome do que de
fato. A residência da corte foi que começou a bem acentuar-lhe a preeminência,
foi que a consagrou como centro político, intelectual e mundano. Não só a
população da cidade, a qual, posto escassa, enchia à cunha sua área limitada e
quase transformava em colmeias suas vivendas apertadas, cresceu muito, passando
de 50.000 almas, que contava em 1808, a mais de 110.000, número atingido em 1817; como formou-se uma classe que
dantes não existia e que é indispensável numa sociedade bem organizada sobre a
base hodierna, de burgueses ricos, derivando seus proventos do comércio estrangeiro, o
qual dantes também não existia, e familiarizando-se cada dia mais com as ideias
e cousas da Europa.

É muito difícil calcular com exatidão a população
de uma cidade como o Rio de Janeiro numa época em que não existiam estatísticas. E para prova basta observar as
grandes variantes dos escritores coevos. Assim, o oficial de marinha inglês sir
G. Keith, comandante do brigue de guerra The Protector, tocando no Brasil em
1805, a caminho do Cabo da Boa Esperança69, orçou o número dos brancos em
37.000, o que não difere muito do cálculo posterior de Spix e Martius, mas avaliou
o dos pretos em
629.000, muitos deles libertos. Dir-se-ia que perdera a noção do cálculo, ao debater-se
naquele mar de tinta. Luccock, muito melhor informado, dá para o tempo depois da
chegada da família real o algarismo de 60.000 habitantes, dos quais 12.000 escravos, sem
contar uma população de cerca de 16.000 estrangeiros, população flutuante, pois que esses
eram na
maioria de arribação ou sem domicílio enraizado. O padre Luiz Gonçalves dos Santos70
avalia, para o mesmo número de 60.000, mais de metade composta de escravos.

É de notar que no orçamento do viajante britânico
figuram não só os adultos dos dois sexos como as crianças, entre as quais era grande a
mortalidade
pela dificuldade da aclimação e falta de ciência e cuidado no tratamento das
doenças. O cálculo da população escrava difere muito nos dois autores citados por último,
mas o razoável em qualquer caso é admitir que dois terços do total dos habitantes eram
formados por gente de cor, livre ou escrava. De 1808 a 1817 chegaram, segundo Spix e Martius, nada menos de 24.000
portugueses, fazendo portanto subir muito a proporção dos brancos.

Proporção quase igual deve ser fornecida pelos
estrangeiros, entre eles mecânicos e artesãos ingleses, fundidores suecos,
engenheiros alemães, artistas e manufatores franceses. No ano de 1820, calculava Henderson em 150.000 almas a
população do Rio de Janeiro, que outra avaliação mais modesta e menos verídica fixava
em 80.000 para o ano de 1821.

Uma cousa estava fora de dúvida, como já ficou notado: o
convívio com
os elementos estrangeiros. Seria aliás impossível que se verificasse tal fenômeno de introdução
no sistema de gentes de outras tantas nacionalidades, dando-se apenas uma
mistura de sangues na circulação e não se alterando com a física a fisionomia
moral. Era antes forçoso o efeito e nem esperou para se fazer sentir o aparecimento da nova
geração. De certo modo revelou-se logo, sobretudo nas artérias próximas do
coração, onde toda a seiva dessa
transfusão afluía.

Os grandes proprietários rurais, de S. Paulo e Minas especialmente, viram-se naturalmente
atraídos pelo brilho da corte real e pela sedução das honras, títulos e dignidades
de que ali se encontrava o manancial: entraram portanto a frequentar esse Versalhes
tropical sito em São Cristóvão. Aí se despiam de alguns preconceitos, alijavam
certas velharias de espírito e prestavam ouvidos aos novos Evangelhos. Talvez ao mesmo
tempo contraíssem
vícios. O efeito da instituição servil sobre que se baseava a nossa organização social,
era tão poderoso e por forma tal amolecera a fibra brasileira, enrijada nas
lutas contra a natureza, que conforme observaram com critério Spix e
Martius, muito mais do que o gosto das artes, ciências e indústrias, fez o
contato europeu desenvolver-se no reino ultramarino o gosto do conforto, do luxo e dos encantos da
vida social.

Para este gosto de uma existência mais refinada deviam
mesmo achar-se
de preferência preparados os brasileiros por um notável apuro de maneiras em
sociedade, apuro cultivado nos lazeres da vida colonial, de horizontes estreitos mas de
formalismos educadores a meio da sua maior despretensão. Verdade é que o rei e
seu governo se não pouparam esforços para dotar a nova sede da
monarquia do lustre de que ela ainda tanto carecia, e se mais completo êxito
não obtiveram seus tentames, deve a culpa ser atribuída sem hesitação às
condições do meio sobre o qual, apesar das exceções e restrições apontadas,
pesavam a torná-lo algum tanto refratário, o atraso e o obscurantismo que se não logram
sacudir em poucos anos.

Podia, por exemplo, no ano de 1817 um presbítero como
Aires do Casal,
espírito educado na colônia mesmo, publicar uma obra tão valiosa como a sua Corografia,
cuja utilidade ainda se não desvaneceu e representa o fundamento estimável
dos nossos ensaios desta ciência: tão importante era a obra que Henderson nada mais fez do
que traduzi-la, posto que sem acusar o plágio, ao editar o seu denominado trabalho histórico.
Como
poderia, porém, o geral da população fluminense secundar ou mesmo dar o devido valor aos
serviços da colônia de artistas de mérito e reputação que o conde da Barca
mandou contratar em Paris pelo marquês de Marialva para fundarem a
Academia do Rio, e incutirem e derramarem o gosto das belas-artes na
expressão mais acabada a que tinham elas chegado na pátria de David e de
Géricault? Em 1816, ano em que chegaram Lebreton, Debret e os outros, ainda
percorriam índios nômadas o distrito de Campos, e na própria baía do Rio estava instalada a missão de S.
Lourenço.

Que dizer das extensões enormes sobre que imperava o cetro português cuja projeção para
os lados do Ocidente só na formidável cordilheira andina parecia querer esbarrar,
em sua marcha avassaladora de regiões ferazes e bravias? Ao abrir-se oficialmente ao
mundo, em 1808, achava-se o Brasil em grande parte percorrido, pode mesmo dizer-se
até certo ponto explorado, mas quase nada estudado. Os bandeirantes paulistas queriam arrecadar índios e ouro:
não se interessavam pela zoologia nem pela botânica, mais do que pela caça que
podiam comer e pelas ervas que os podiam curar. Explorações de caráter científico não as
havia sistematicamente organizadas. Um Alexandre Rodrigues Ferreira era um fruto raro da própria iniciativa, não tanto
da iniciativa oficial. A colônia foi portanto para os sábios europeus um
verdadeiro mundus novus, que eles se cometeram a investigar.

As comunicações da capital com as capitanias vizinhas
pela via terrestre
eram relativamente difíceis e irregulares, apesar de existirem caminhos sofríveis para São
Paulo e para Minas e dos sertanejos, inclusive os de Goiás, se não incomodarem com
as viagens as mais prolongadas, de muitos meses de duração, feitas para venderem seus
produtos e realizarem suas compras. Essas comunicações eram todas executadas por
tropas de mulas e, fora do estreito campo mercantil em que laboravam, os habitantes do interior pouca ou nenhuma
curiosidade experimentavam sobre o que ocorria à beira-mar, segregados por
completo, em corpo e espírito, de um mundo que estava caminhando a passos tão largos para
melhor destino. Conta Luccock que na sua viagem a Minas encontrou dois mercadores de Cuiabá, os quais lhe
confessaram que até bem pouco (provavelmente até a chegada da família real e abertura
do Brasil aos estrangeiros) se não tinha ouvido falar no seu canto de mundo de
guerras europeias, supondo eles que somente existiam dois povos — espanhóis e
portugueses, sendo tudo mais
gentio.

Tudo no Brasil, considerado na sua generalidade, se
encontrava falho,
rudimentar e indeciso, e a ignorância vulgar apenas se modificaria no tocante
aos indivíduos de certa classe, dando a situação dos demais nos nossos dias uma justa ideia da que seria
naqueles tempos.

Os limites mesmo do país eram muito incertos, continuando
em plena atividade
a expansão portuguesa, sobretudo para o sul e sudoeste, no fito de assenhorear-se dos
ricos terrenos de aluvião da margem direita do Paraguai e Paraná e das duas margens
do Uruguai, e ficar com toda a região a leste do estuário do Prata e com tão excelente
fronteira. A população espanhola da Banda Oriental diferia pouco no aspecto da
população gaúcha do Rio Grande: os mesmos homens musculosos e trêfegos, montados em ligeiros cavalos e metidos
em amplos ponchos. Não lhe era, porém, afeiçoada. A velha antipatia de raça
falava sempre alto nessas terras onduladas e bem regadas, com belas matas e
muitos campos, onde crescia algum trigo, pastava muito gado e se levantavam
poucas cidades, sendo nelas mais frequentes as casas de taipa que as de tijolo,
e mais numerosas as imensas estâncias, com raras habitações isoladas, do que os
aldeamentos.

Para os portugueses a antiga Colónia do
Sacramento, cujo futuro tinha por garantias seguras o clima e a fertilidade, e que
Dom João VI
ia de novo incorporar na
monarquia brasileira, valera sobretudo como um admirável ponto de contrabando
para as possessões espanholas, no qual se tinham chegado a empregar mais de 30 navios. Mercadorias
na importância de milhão e meio de piastras desciam assim até Buenos Aires e
iam até o
Chile e Peru71, ao invés dos gêneros legalmente importados da Espanha. Com a entrega da
Colónia ao governo de Madri e o simultâneo povoamento da capitania intermédia
do Rio Grande, o antigo contrabando marítimo tornou-se em boa parte terrestre, fazendo-se
pela linha da fronteira
em lugar de simplesmente atravessar o estuário, e não cessando deste modo aquele lucro
português, que mais tarde passou a brasileiro.

A cidade do Rio Grande era o mercado e praça de
guerra do Brasil meridional, apesar da barra perigosíssima e do deserto de areia que a separava da costa. Contava
em 1809 quinhentas casas e cerca de 2.000 habitantes, e do seu porto saíram em
1808 cento e cinquenta navios mercantes, quase todos brigues de 100 a 200 toneladas de
carga, metade em direção ao Rio de Janeiro.72 No aspecto todas as
cidades da costa brasileira se pareciam, diferindo o espetáculo oferecido ao viajante na
sua respectiva situação topográfica. O cenário variava segundo a disposição dos
mesmos bastidores: singelas igrejas brancas de portal verde e um par de
modestas torres
quadradas, raros edifícios leigos dignos de nota e uniformemente despidos de
estilo, residências de cantaria e de taipa lado a lado, um ou mais fortes de alvenaria
com a patina do tempo, de ordinário já pouco eficientes e às vezes de todo
inofensivos, aparentando contudo proteger os habitantes confiados à sua guarda.

A condição militar da capitania era superior à da
capital. Pelo menos a impressão que se desprendia quanto à segurança das fronteiras surgia mais tranquilizadora
do que a oferecida pelas defesas do Rio de Janeiro contra a eventualidade de
qualquer invasão. Constava a guarnição do Rio Grande de dois regimentos de
linha, sendo um de S. Paulo, ao todo 700 homens que se detestavam cordialmente, de
acordo com o seu bairrismo; alguma artilharia ligeira; um regimento de milícias
e um corpo de cavalaria, recrutados ambos nas estâncias, nos quais serviam sem exceção
todos os gaúchos válidos com os seus laços e bolas, que lhes eram mais úteis do que os
mosquetes, mobilizando-se esta tropa de segunda linha com a máxima presteza e
oferecendo ao inimigo a resistência do número e do valor. O batalhar constante
dessa seção do país tinha aguerrido o espírito da população, tornado enérgico a
administração e até destra a polícia, tanto mais necessária quanto a exuberância dos
temperamentos apaixonados fazia frequentes os homicídios por disputas e ciúmes.

Mercê do clima europeu, a imigração portuguesa aí
aumentava espontânea
e gradualmente e, devido ao estado ultimamente anarquizado do Rio da Prata,
assenhoreado pelos ingleses e onde iam principiar longas e tremendas dissensões
políticas, crescia o bem-estar da província correlativamente com o
desenvolvimento do seu comércio, quer marítimo com outros portos do litoral, quer
terrestre através das fronteiras. Segundo o depoimento de Luccock, a vida no
Rio Grande nada tinha de desagradável ao tempo d’el-rei Dom João VI. A convivência parecia
mesmo mais franca
do que no Rio, mais disposta a gente a divertir-se; do que resultava ser nessa, como noutras
capitanias, a animação social superior à da capital.

Em casa do vigário — um excelente tipo dos nossos
padres de então, padres ardentes, tropicais, com muito adiantamento nas idéias,
muita bondade
no coração e muita frouxidão na moral — davam-se partidas de jogo e dança7 a
que concorriam cavalheiros de peitilhos bordados, casacas de alamares e botões de prata,
coletes de chita e calças de algodão branco, e senhoras de sapatinhos de cor,
mantilha espanhola e enfeites de flores e pirilampos nos cabelos escuros. Eram estas
senhoras no geral bonitas, bem conversadas, gozando de mais Uberdade e tendo por
isto mesmo mais desembaraço, mais sentimento de responsabilidade e mais instinto de
sociabilidade do que as suas patrícias fluminenses. A alegria delas dava-se sobretudo largas no
entrudo, quando escolhiam para alvo das limas de cheiro os próprios graves
ingleses do comércio, que corriam a refugiar-se fora dos seus ataques desapiedados.

Pela planície fácil e pelos suaves outeiros acampava a
sociedade pastoril que ainda hoje predomina: gaúchos expansivos, de vozes
estridentes, falando
muito, gesticulando muito, sobre cujos ombros esvoaçavam ponchos enfeitados, e em
cujas casas de madeira e barro alternavam rudes instrumentos de lavoura com os
arreios de couro cru dos cavalos de montaria e dos bois que, em juntas de seis e oito,
puxavam os duros carros de modelo
português.

O couro cru, denunciando a indústria capital da
criação de gado, servia, mole, de assento nos bancos muito baixinhos e largos;
inteiro, de colchão nas camas; retezado sobre pauzinhos, de reposteiro ou
guarda-vento nas
portas das pousadas; recortado, de manta nos dorsos dos animais que transportavam os
compradores do sertão e de além da fronteira. Podemos figurar-nos esses
mestiços de europeu e índio, vestidos uns de briche, faixa de cor, chapéu cónico de
feltro ou de palha, faca à cinta, bolsa com petrechos de fumador sobre o
ombro, e, no calcanhar a espora atada por uma tira de couro; outros de jaquetão
azul com moedas de prata à guisa de botões, colete de couro e botas moles; outros ainda de
lenço ao pescoço,
suspensórios sobre a camisa e a ponta do pé descansando no estribo de chifre.

Viajavam assim léguas e léguas sem fim, através de uma
região despovoada,
pois que povoada se não podia chamar uma terra onde eram tão raros, tão disseminados e
tão insignificantes os núcleos de população. Só quando se aproximavam do
litoral ocupado e os olhos dos cavaleiros passavam, de descansar na grama
verde, a fitar a clara areia movediça das dunas, é que as caravanas entravam a
deparar com maiores aglomerações de seres humanos, que as recebiam hospitaleiramente.
Envolvia-as então uma paisagem de prados onde
pastavam, ao lado de alguns rebanhos de carneiros, enormes manadas de bois que se
subjugavam a laço com pasmosa destreza; de pomares e hortas com pessegueiros e
legumes da Europa, devastados porém pelas formigas e gafanhotos; de campos onde corriam potros que se
domavam fazendo-os arrastar um couro cru, a um tempo os familiarizando com os ruídos
estranhos, obrigando a um passo regular e certo e acostumando a precaverem-se contra
dificuldades na marcha, no intuito
de torná-los animais dóceis e seguros.

Até aí os animais avistados teriam sido perdizes, veados
assustadiços
que também se caçavam a bola, onças, cutias, pacas, coelhos e lebres, emas de passo altaneiro
e veloz, tamanduás, javalis seguidos das crias, patos e outras aves aquáticas das
muitas lagoas, chegando por último aos urubus adejando sobre a fressura do
gado morto para fabrico do charque, em proporção tal que um único fazendeiro abateu num ano
54.000 reses.

A outra cidade importante da capitania e sua capital
ficava, edificada em declive, ao norte da lagoa dos Patos, 25 milhas acima da foz do
Jacuí. Apesar de datar de pouco tempo, como de resto toda a capitania, fundada para encher o
claro entre Laguna e a Colónia do Sacramento, Porto Alegre começava a prosperar
como centro mercantil. Entretanto a região setentrional servida por ela achava-se ainda, em
grande parte do interior, nas terras mais elevadas do planalto que nesse ponto entra a
descer para o sul mas sem pressa de chegar ao mar, dominada pelos carijós. Executavam estes índios
correrias ferozes, contra as quais eram as pequenas colónias estabelecidas
defendidas por fortins e estações militares. A guerra de retaliação mostrava-se
implacável, usando os brancos do laço, das armas de fogo e dos cães de fila.

De São Pedro do Sul passava-se para o lado do
norte a Santa Catarina, por mar, correndo ocasionalmente o risco dos pampeiros, ou mesmo
por terra. Da segunda maneira podia efetuar-se a viagem, por trajeto conhecido, em quatro dias,
com cavalos bastantes para esfalfar quatro e cinco por dia, trotando uns soltos,
sem carga, assim se refazendo enquanto os outros transportavam o passageiro e a bagagem.
De Laguna para a parte do continente fronteira à ilha torna-se o caminho nemoroso e montanhoso, apresentando
prenúncios da grande cordilheira marginal, e cruza uma região abundante em índios e
animais selvagens. Mais para o norte, ao aproximar-se de São Francisco, o terreno faz-se
mesmo úmido e pantanoso.

Os índios ocupavam sem disputa os montes, e o
litoral andava resguardado deles por meio de pequenos redutos militares à distância de 7 a 20 milhas da costa.
Não contava Santa Catarina, pouco depois da chegada do príncipe regente,
mais do que 3.000 habitantes distribuídos por uma vila e sete aldeias, e a vida
ressentia-se da maior falta de conforto, não obstante o clima delicioso, as flores
abundantes e formosíssimas e a extrema fertilidade do solo, o qual já produzia cereais,
legumes, mandioca, tangerinas, açúcar, café, linho e nos alagados, arroz, ao
mesmo tempo que
se cortava muita madeira das suas matas frondosas e se apanhava muito peixe nas suas águas vivas.

Diz contudo John Mawe, que esteve em Santa Catarina em setembro de
1807, que a aparência geral da vila e as maneiras dos habitantes apresentavam uma decidida (striking)
superioridade sobre as terras platinas donde ele chegava. O comércio na
verdade era quase nulo, mesmo porque a produção local muito pouco excedia o consumo,
mas o desterro era em todo caso ponto frequente de escala e aguada para as embarcações que do norte se dirigiam
para Montevideu e Buenos Aires. Aí se encontravam sempre artífices para qualquer
reparo e abastecimento para qualquer urgência, de provisões alimentícias bem se entende,
pois que a produção industrial se cifrava nas linhas e redes para as extensas
pescarias que abrangiam a das baleias e constituíam a principal ocupação dos hospitaleiros habitantes da ilha, e
numas jarras para água e utensílios culinários de barro vermelho, que se exportavam para
o Rio de Janeiro e para o Rio da Prata.

Mawe dá para a ilha e dependências o algarismo de
30.000 habitantes, o que é uma prova mais do quanto podem variar esses cálculos
a esmo
feitos sem as indispensáveis estatísticas. Este autor é aliás propenso a
aumentar, pois que orça a população do Rio nessa época em 100.000 almas. Graças
à escassez da gente e à quase nulidade do tráfico, possuía a propriedade mui
diminuto valor, oferecendo-se por mil cruzados (125 libras esterlinas) uma casa de
campo com jardim e plantações bem-tratadas, e podendo adquirir-se por cem dólares uma
habitação decente com roça e pomar não longe da vila, onde os preços eram de resto correspondentes.

Pode dizer-se que para as bandas do sul a
capitania do Rio de Janeiro trajava as vestes da viuvez depois da expulsão dos
jesuítas, antigos proprietários da enorme fazenda de Santa Cruz, como também o tinham sido do Engenho Novo, nas
imediações da capital. A fazenda estava agora ocupada pela coroa, decaída porém
da sua primitiva prosperidade que dantes se denunciava pela fartura da produção
agrícola, assim como se revelava a indústria dos possuidores pelos canais abertos
entre os rios navegáveis, permitindo transportar em canoas até o mar as mercadorias a exportar. Referindo-se a
semelhante propósito ao poder e esplendor da Ordem e à sua admirável organização
política, escrevia Luccock, protestante dos mais intransigentes e cheios
de preconceitos, que "falando geral e desa-paixonadamente, é lícito afirmar ser
obra da Companhia de Jesus tudo quanto no Brasil se encontrasse bem engenhado e
executado, havendo a prosperidade e felicidade comum declinado desde a sua dispersão".

Mawe fornece interessantes pormenores sobre o grau
de abandono da fazenda de Santa Cruz depois de passar para a administração régia, chegando — esta informação é
de Luccock — o desleixo ao ponto de se tornar preciso fazerem-se
requisições aos moradores da vizinhança, lavradores laboriosos e afáveis que de
bom grado emprestavam ao rei, mas não eram por via de regra indenizados pelos seus
serventuários e feitores. Se desaparecera a abundância promovida pelo trabalho,
conservava-se a terra bonita: montanhosa nalguns pontos, noutros dotada de
várzeas férteis, banhadas por muitos cursos d’água e cobertas de grama virente. A caça pululava sob a forma de
pacas, pombos, veados e outras numerosas espécies, e pássaros da mais brilhante
plumagem contrastavam com as habitações
miseráveis da gente, como se a natureza se risse do homem.

Ressentia-se este trecho de território fluminense da
falta de comunicações com o centro, em que o tinham deixado cair, não lhe aproveitando
para esse
fim o poderoso Paraíba, cuja corrente rápida por entre margens abruptas se dirige para
sudoeste e depois para nordeste, recebendo numerosos tributários. Ainda assim a
produção abrangia café, anil e açúcar. Este constituía igualmente o principal produto
das várzeas não menos entremeadas de montanhas que se estendem para oeste da
capital na direção da serra dos Órgãos. Das menos afastadas vinham para a cidade o leite
para consumo dos habitantes e o capim para o gado; das mais distantes saíam outrossim café,
arroz, milho, mandioca, lenha e carvão de madeira.

Carros de bois ou de mulas, canoas ou tão
simplesmente negros carregadores transportavam esses artigos cultivados em propriedades de
fácil rendimento,
cujos donos concentravam as safras dos moradores semi-nômadas e sobretudo dos
lavradores mais sedentários, dividindo-se os lucros conforme o acordo prévio.
Era geral tornarem-se depressa proprietários os lavradores, que andavam muito
protegidos pela lei, a qual obrigava os senhores a pagarem as benfeitorias,
salvando assim os rendeiros de vexames e espoliações. A propriedade tinha portanto aí,
às vistas dos vice-reis, tomado um caráter menos aristocrático e menos feudal. Entre os
senhores, para quem no dizer dos viajantes estrangeiros a moda não era de todo uma desconhecida
e a limpeza chegava a ser familiar, existia a convivência facultada pelas
prontas comunicações. Trocavam-se frequentes visitas de uns para
outros engenhos, apesar das rivalidades e invejas tão costumeiras entre
vizinhos rurais e aí alimentadas, mais do que pela solidão, pelo clima doentio, que
tornava os indivíduos biliosos e irritáveis.

Para leste e norte, onde predominava o solo de argila
vermelha, variava a configuração da capitania entre baixadas, serros e lagoas,
encerrando
distritos povoados, com culturas e pastagens, e trechos inteiramente silvestres, nos quais
apenas floresciam macacos, papagaios e arapongas. O distrito de Campos, no
delta do Paraíba, raso e quente, era e continua a ser a melhor várzea dessa
latitude para o cultivo da cana de açúcar, nela existindo em 1801, segundo a
estatística do padre Aires do Casal, 280 engenhos. A esse tempo não faziam mais do que
começar na capitania as plantações de café, substituindo com sua folhagem luzente a folhagem escura das velhas matas.

O porto do interior para o norte e bem assim das
capitanias de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso para o Rio de Janeiro e vice-versa desta
cidade para aquelas regiões, era o da Estrela, no fundo da enorme baía onde
deságuam numerosos rios. Aos poucos anos de residência da corte no Brasil e conexo desafogo
do país, tornou-se aí deveras considerável a movimento, todo local, de
saveiros, canoas e balsas, empregadas em pescarias, trazendo provisões para o mercado
do Rio, combustível e madeiras de construção, e levando os carregamentos destinados ao
sertão. O seu conjunto
emprestava a necessária animação a essa soberba paisagem de águas verdes e
irrequietas, rochedos, massas graníticas, mangues, matas frondosas e, no último
plano, verdejantes montanhas de grande elevação, frequentemente envoltas em grossas nuvens.

Não é de espantar que fosse o porto da Estrela
destinado a um lugar cheio de animação e bulício, como ficou, quando às vezes 500 mulas, divididas por lotes de 7,
com um tocador para cada lote e um arrieiro para cada tropa, estavam em linha
para receberem nas cangalhas os fardos. O movimento era todo de carga e
descarga, pois que a vila em si nunca passou de uma longa rua de casebres.

O caminho de Minas cortava a serra onde fica
atualmente Petrópolis, tendo as tropas de galgar vagarosa e penosamente a subida que a
via férrea
hoje facilita. Eram aliás as minas que tinham tido o efeito de tornar explorado o interior
do Brasil, estabelecendo comunicações terrestres até Mato Grosso. Se se não
internassem as bandeiras à busca do ouro e também à caça do índio, o enorme
litoral brasileiro bastaria para uma mais fácil fixação e mais rápida
lavoura dos imigrantes do reino. Mesmo depois de aberto e até certo ponto povoado o sertão,
as comunicações fluviais se usaram todavia de preferência, sendo no extremo
difícil manter em condição de trânsito estradas ou melhor atalhos de tamanha extensão,
desdobrando-se sobre montes, por vales e através de florestas. As mercadorias de exportação
desciam geralmente por água até os portos de desembarque, e as propriedades
rurais só tinham até valor quando situadas perto dos rios navegáveis, ou
então quando encerravam em seu subsolo minerais, quer dizer, ouro.

As estradas para São Paulo e Minas eram no entanto
bastante frequentadas
graças ao progresso das duas capitanias, achando-se em ambas desbravadas e
relativamente habitadas as zonas marginais, aquém das vastas solidões onde erravam
hordas numerosas do gentio. Na estrada de Minas cruzavam-se as caravanas a
miúdo, havendo dias, refere Luccock, de passarem 400 mulas carregadas. De
quando em vez encontrava-se o correio d’el-rei sob a figura de um negro de chapéu
armado e jaquetão azul com gola encarnada, para maior presteza transitando a pé
e levando às costas um saco com a correspondência. Tal era o respeito pelos serviços
oficiais e
tal a segurança individual, que ninguém o assaltava para desencaminhar valores.
Já se conheciam contudo as cartas registradas com o fito de assegurar melhor a entrega,
que era muito mais demorada do que descurada, indo cada um reclamar suas cartas
de acordo com a lista afixada na porta da repartição, onde era cobrado o porte.

Como paisagem é o caminho variadíssimo: a própria flora
varia com a
zona atravessada. Perto do mar, nos brejos, é ela tão particular como depois aparece a alpina,
e mesmo cada um dos grandes rios possui, no dizer de Spix e Martius, sua
flora especial que lhe acompanha o curso e o distingue, fornecendo a cada
região a tonalidade das suas formas vegetais peculiares.

A variedade da viagem mais lhe encarecia o
encanto. O percurso é uniformemente bonito, todo ele acidentado, com uma riqueza animal e florestal de deleitar os
naturalistas, e golpes de vista esplêndidos de deleitar qualquer viajante, sobretudo
na travessia do rio Paraíba, rolando com impetuosidade sobre um leito de pedra
as suas águas barrentas, e na gradual subida da serra da Mantiqueira,
desdobrando fidalgamente os seus maravilhosos taboleiros verdes. Spix e Martius deixaram
entre as suas impressões, cuja consciência não é prejudicada pela fantasia antes posta
em realce
pela sinceridade, a mais sugestiva descrição de uma floresta virgem, dessas que se encontram
de preferência na zona do litoral, onde se exibe pasmosa a pujança da vegetação e
a vida pulsa até sobre os gigantes vegetais caídos e mortos.

Os dois ilustres naturalistas como que evocaram
graficamente diante do leitor curioso dos princípios do século XIX, cujas sensações de paisagem não
estavam ainda gastas, os jacarandás de folhas leves, o ipê de folhas douradas, o pau
d’alho de casca aromática, a araucária de graciosos contornos, as palmeiras de
folhas farfalhantes e as parasitas "com as quais as velhas árvores se arrebicam
como novas". Fizeram-no não só ouvir todos os ruídos da mata, das
primeiras às últimas horas — os gritos dos macacos e da preguiça, o coaxar das
rãs, o chiar estridente das cigarras, o zumbido das vespas, o doce bater de asas dos
beija-flores — como ver as cores brilhantes das borboletas e dos besouros, o
frio mosaico da pele dos lagartos e das cobras, as sombras medrosas dos veados e das pacas.

De par com as belezas naturais, não deixam Spix e Martius, infatigáveis como foram, de
salientar os incómodos e dificuldades das excursões de outrora, num meio pouco
conhecido e num clima hostil ao menos pela novidade. As caravanas
descansavam nos ranchos ou telheiros, abertos aos quatro ventos ou com dois muros
em ângulo reto. Como transportavam nas cangalhas das mulas tudo de quanto careciam,
achando-se o trabalho perfeitamente dividido entre os tropeiros, estavam dispensadas de
suprirem-se
nas modestas vendas anexas aos ranchos e, nas melhor guarnecidas das quais, se encontravam
algumas garrafas de ruim vinho do reino e pior cerveja inglesa, queijo da terra,
rosca seca, beijos, toucinho, latas de marmelada de Minas, fumo, aguardente,
alguns côvados de fazenda de lã ou algodão, raras peças de cambraia, meias de algodão,
fita e caixas de rapé.

A hospitalidade dos fazendeiros e moradores era
todavia sem exceção quase. Fazia esta sociedade gala de predicados amáveis, comuns às sociedades primitivas: o
agasalho desinteressado, o sentimento de honra no acolhimento e defesa do
hóspede, o escrúpulo na guarda e restituição de qualquer objeto confiado em depósito. A confiança respondia à confiança nas relações do indivíduo para indivíduo, não nas relações de
indivíduo
para o Estado. Nestas parecia lícito o defraudar, mormente em Minas, onde o sistema de
suspeição, originado na extração do ouro, de que o governo percebia o quinto, e
dos diamantes, que eram monopólio da coroa, estimulara semelhante falta de
honestidade dos cidadãos. A suspeição gerara o espírito desconfiado e facilmente
subversivo, que passara a ser o fundamento do caráter da população severamente
fiscalizada e severamente punida.

Ser contrabandista era por isso uma aspiração vulgar, a
qual satisfazia
outrossim a vaga disposição errática, própria de gente que de bom grado fugia ao trabalho regular,
e levianamente se comprometia a executar tarefas que em seguida
abandonava sem preocupação de responsabilidade. O hábito da vida selvática; a
superior destreza em evitar os perigos, combater os inimigos, guiar-se nas matas;
a costumeira deserção local de minas esgotadas por veios e jazidas de maior
produção e de terras cansadas por outras exuberantes de seiva — tudo se combinava para
ajudar aquela disposição nômada.

Contava Minas Gerais em 1817, no cálculo de Spix e
Martius, 500.000 habitantes. A ser exato o orçamento, não faria em 1808 considerável
diferença
para menos o algarismo. Por motivo da crescente improdutividade das minas de ouro,
achava-se a vasta capitania, riquíssima aliás em quase toda sorte de metais, em transição
para uma fase agrícola, pastoril e embrionariamente industrial. Já produzia mesmo algum
açúcar, couros e algodões, em rama e tecidos. Minas e mineração continuavam no entanto a captar as atenções,
absorver as fortunas e prender as atividades. A principal ocupação dos filhos da
terra mais desprotegidos da sorte era ainda lavar cascalho e bater areia para
rebuscar o ouro, que se ia depositando às oitavas no Registro para, quando houvesse
certa quantidade junta, pesar-se o todo e poder-se negociar o certificado de depósito —
verdadeira circulação
fiduciária — sobre a base do valor provável na fundição, a qual se encarregava de transformar em barras o ouro
em pó.

As barras, com as armas reais, a proveniência, o peso e
a qualidade estampadas, circulavam também até chegarem ao Rio e serem cunhadas
em peças de 6$400 e 4$000, as quais não tinham todavia curso legal na capitania originariamente
produtora do metal, correndo em seu lugar notas especiais, variando de
capitania para capitania. Com tantas proibições é natural que fosse grande o
contrabando, apesar de percorrerem continuamente a raia patrulhas de cavalaria, e não
menor a venda clandestina do ouro, cuja compra devia ser exclusiva do Estado.

A extração do metal ocorria não só em Minas, mas mesmo
na capitania
do Rio de Janeiro, no leito do Paraibuna. Ali era porém o seu verdadeiro terreno. Também as
grandes propriedades rurais persistiam sem remuneração nem sequer destino,
mercê do elevado preço dos escravos e mormente da dificuldade na condução dos gêneros,
contentando-se com produzir milho e outros cereais para consumo da família e algum gado para venda. A policultura
seria entretanto favorecida pelo clima, em muitos pontos europeu.

À medida que se sobe para o planalto, a temperatura vai
baixando e a vegetação mudando. A par de muitos representantes da
flora do litoral,
aparecem os pinheiros, o buxo, o aloés, as giestas, toda a flora do meio-dia da Europa — árvores
que perdem as folhas, cujas flores são crestadas pelas geadas e cuja tonalidade
verde é mais clara e mais alegre. Uma vez chegando-se aos campos polvilhados de
arbustos, entremeados de morros escarpados, cortados por sombrios córregos, de uma
fisionomia revolta e de uma geologia complicada, o clima torna-se seco, tónico,
revigorante. Dormia-se
então bem sobre os sacos cheios de palha de milho que serviam de camas nas casas
desprovidas de maiores confortos. De dia, o sol dardejava sem piedade e, batendo
em cheio sobre as capelinhas brancas encastoadas na paisagem, fazia na limpidez da
atmosfera sobressair os tons variados e garridos dos trajes das mulheres dirigindo-se
com seus guarda-sóis de cores
vivas para as romarias e as festas.

Das cidades de Minas Gerais era Vila Rica a mais típica, mas São João d’El-Rei a mais
bonita, alegre e próspera, com seus 6.000 habitantes e suas feições habituais de vila
portuguesa: igrejas bem caiadas, que aí subiam ao número de treze e arvoravam pretensões
estéticas, ornadas de muitas pinturas executadas por artistas locais; casa de
governo espaçosa; cadeia bem à vista; excelente Misericórdia sustentada mais
que tudo pela caridade
particular. Cidade de lojistas e funcionários, comercial e burocrática (pois que sua
única indústria era a dos chapéus de abas largas, e a do distrito em redor alguns
algodões baratos) não possuía São João d’El-Rei mais do que um movimento pacato
e nas suas ruas pouco concorridas cresceriam o capim se fossem mais largas; a
estreiteza é que as fazia parecer mais frequentadas. Contudo servia de entreposto
mercantil, o mais considerável da província, no tempo da estada de Spix e Martius, recebendo
para distribuição por uma área vastíssima do interior manufaturas inglesas, as quais depois da
abertura dos portos foram diariamente ganhando terreno, por causa da sua melhor
aparência e preço mais baixo, e cujo consumo foi paralelamente aumentando à
medida que, ainda que relativamente, crescia o gosto pejas comodidades. Os tecidos de lã
continuavam em todo caso a vir de Portugal, e outros se fabricavam nos
interiores mesmo de Minas.

A vida em São João era barata e as fortunas acumulavam-se, não havendo quase em que
gastar. Cifrava-se o luxo dos negociantes em terem em volta da cidade, nas
eminências, suas casas de campo com jardins alin-dados à moda do tempo e pomares
com frutas tropicais e europeias, inclusive muitos parreirais. As distrações não passavam de
partidas de jogo e dança, aliás muito agradáveis porque a escassez dos recursos
da instrução se não refletia de modo algum em incivilidade de maneiras, sendo a
gente no
geral bem humorada, até jovial e independente. Notava-se pouca mendicidade,
carência Sintomática de dignidade, fartura c generosidade. Pela vizinhança, na
própria comarca abundavam as herdades, as pequenas lavouras; para oeste ficavam
as grandes pastagens, onde se criava bastante gado; para nordeste, de São João a Vila
Rica, lobrigava-se uma região montanhosa, intercalada de desoladas ravinas e planuras
com largo horizonte, na qual o solo regorgitava de metais e alternavam as matas com as
rochas.

Vila Rica era o avesso de São João: sombria e quase misteriosa sob o seu céu transparente,
com trechos miseráveis e outros vestidos de certa grandeza, como o largo em que se
levantavam o palácio do governador, o paço do conselho, a prisão e o teatro.
Encerrava umas duas mil casas, dispostas em degraus com suas hortas e jardins
em terraços, e habitadas por uma população complexa e desigual, toda ela porém
doente da febre do ouro. A falta de segurança era aí proverbial. Os assassinos trabalhavam nas ruas como galés,
de grilheta ao pé, segundo os viam os viajantes, o que quer dizer que
correntemente não escapavam ao castigo, mas para atingir a totalidade dos ladrões
não chegava nem a cavalaria miliciana, recrutada nas suas fileiras entre os habitantes
mais pobres, e cujos oficiais afetavam o seu amor às patentes e a sua negligência pela
profissão, confirmando o nenhum pendor brasileiro para as cousas militares. A
própria combinação
de imponência e de pobreza, atestada a primeira pelos chafarizes monumentais, pelos
edifícios de cantaria, pela vastidão das acomodações oficiais, pelas igrejas
bem ornamentadas, visível a outra nos casebres dependurados dos morros por onde
desciam torrentes, e nos muitos farroupilhas,
indicava a agonia da mineração.

No distrito em redor da cidade a faina aparecia
ainda grande, revolvia-se a terra pelos mesmos processos primitivos, toda a gente — hospedeiros, lojistas,
vagabundos — catava ouro ou andava interessada nas descobertas. Era o jogo do bicho do
tempo, a avidez do lucro imediato e colossal, sem gradação e quase sem esforço. Os
resultados porém não mais correspondiam à exploração e, despeitados, irritados,
desvairados, esses bandos de desesperados, de vadios e de malfeitores, ao
ouvirem rumores longínquos de novas minas, desertavam a tradicional capital do ouro para irem à aventura,
fixando-se uns pelo caminho, morrendo outros à mingua ou vítimas dos caboclos,
internando-se a maior parte e ajudando sem querer o desbravar e o povoar da capitania.

Mariana constituía com suas 500 habitações a terceira
vila em importância
de Minas Gerais, edificada num terreno acidentado, abafado por montes mais altos,
com alguns prados verdes em redor. Jardins nos quais se combinavam espécimes da
flora da zona tropical e da flora da zona temperada, sorriam entre as suas
casas brancas e ajudavam a impressão que se recebia do seu aspecto asseado, tranquilo e
feliz de cidade eclesiástica, e que teria realizado suas aspirações de cidade
universitária do Brasil se se houvesse tornado efetivo o desígnio atribuído a
Pombal, de colocar em São João d’El-Rei a capital da monarquia portuguesa. Viviam nas imediações índios mansos que
pareciam ter-se afeito ao meio pacato de Mariana, diferindo dos que
rondavam com intentos de saquear, obrigando os viajantes a acautelarem-se e
até as pessoas do sexo feminino a andarem armadas, ao noroeste de Vila
Rica, e que inversamente pareciam ter-se contagiado de ferocidade perto daquela população
desordeira.

Nenhuma igreja encerrava contudo a cidade
diocesana de Minas como a de Congonhas, com suas pinturas, dourados, obras de talha, mármores e pedras polidas,
imagens, milagres e, no adro, os célebres Profetas do Aleijadinho. Esta é que se
erguia como a verdadeira catedral, como, na frase de Luccock, o Loreto para onde afluíam a
dirigir preces os numerosos doentes de morféia e papeira, como o centro místico dessa região quase fria sob o céu dos
trópicos, de horizontes esbranquiçados e estrelas cintilantes, em que a fascinação
do ouro, a miragem dos caldeirões repletos de pepitas, se ia
paulatinamente desvanecendo, ao mesmo tempo que se ia abrindo tempo e formando
ocasião para uma melhor observação dos seus defeitos sociais, que eram alguns,
e das suas belezas naturais que são muitas. De Mariana e Congonhas para São João d’El-Rei, e
na direcão da
fronteira do Rio por Barbacena — que então só tinha 350 casas, muitas delas no entanto
boas, e cuja população se ocupava em tecer algodões e noutras indústrias caseiras —
tinha-se, nas constantes subidas e descidas, a repetição dos panoramas grandiosos em que
rios de águas volumosas correm entre vales verdejantes ou massas de granito e de quartzo,
num anfiteatro de montanhas
azuladas.

São Paulo, para onde as tropas se dirigiam do Rio
marginando e depois galgando a serra do Mar, oferecia um espetáculo todo em contraste com o de Minas Gerais: o
que ali se deparava era na essência uma coletividade agrícola. As aglomerações
humanas, exceção feita de São Paulo e Santos, os velhos pontos de desembarque e de
colonização, não possuíam na maioria a importância das principais da capitania
mineira, mas surgiam mais frequentes, menos distantes, testemunhando uma geral prosperidade. Não contava
entretanto grande porção dos aldeamentos e mesmo das vilas, mais do que
efêmeras casas de taipa sem pretensões a definitivas e menos ainda a formosas, do
que resultava uma sensação de sociedade primitiva ou rudimentar, muito mais do que de
provisória. Esta última

nota não
seria aliás descabida, porque o gosto nómada e a feição inquieta estavam bem no caráter
da população aventurosa da qual tinham saído os bandeirantes que devassaram
os sertões, venceram os rios e revolveram o interior do Brasil, e cujos
parentes mais sedentários se cruzavam agora pelas estradas com os barómetros
e herbários de Spix e Martius. Estes viajantes os descrevem montados em árdegas mulas,
com o chapéu de castor redondo e de abas largas, jaqueta e calças de algodão escuro, botas de
couro afiveladas
abaixo do joelho e grande faca na cinta ou mais frequentemente no cano da bota, deixando ver o vistoso
punho de prata.

Os distritos rurais, quer os de montanhas, quer
os de planície, davam uma impressão de colonização intencional, denunciando diligência e um resultado positivo
colhido da cultura dos cereais, do açúcar e do café e da criação de gado vacum,
cavalar e sobretudo muar. Os campos em si, esses famosos campos de barro
vermelho, eram fertilíssimos e sugeriam riqueza, uma riqueza menos luxuriante do que a
equatorial, porém mais segura e saudável na sua pompa mais discreta. Impressão igualmente favorável dava a
população, que em 1808 era de 200.000 almas e em 1815 atingira somente 215.000, sendo
nula a imigração se bem que grande o número dos nascimentos e pequena a
mortalidade. Notava-se nas gentes de todas as camadas bastante mistura de sangue índio,
proveniente de antigos e comuns casamentos, e nas camadas inferiores
enxergava-se algum sangue negro, que depois se tornaria mais vulgar. Já então se
apresentavam no entanto tipos muito variados, que iam do branco ao cafuzo,
passando pelo mameluco. Os verdadeiros paulistas, isto é, os descendentes de
brancos — portugueses, ou espanhóis que aí tinham afluído do rio da Prata e do Paraguai em
várias ocasiões — com certa proporção de cruzamento indígena, eram geralmente
quanto ao físico altos, espadaúdos, musculosos, com traços enérgicos, olhos vivos e
cabelo preto corredio, e quanto ao moral francos, altivos, facilmente
irascíveis, impetuosos, corajosos, obstinados, industriosos, sofredores e propensos às
aventuras. Simples e despretensiosa era por assim dizer toda a gente no Brasil
colonial, mas em São Paulo parecia que essa singileza andava realçada por
uma sinceridade mais à flor d’alma, costumando-se sempre dizer o que se pensava, sem que tal candura fosse filha da rudez.

Na capital, que ao tempo da visita de Spix e Martius
tinha 30.000 habitantes
— o que é porventura exagerado pois Mawe em 1808 calculava entre 15 e 20.000 — e já
apresentava um aspecto de limpeza e regularidade, existia gosto pelos estudos,
mesmo abstratos, sendo cultivada a filosofia e conhecidas, posto que por meio de resumos
defeituosos, as obras de Kant. Os viajantes alemães
observaram nos paulistas educados poder reflexivo e gênio inventivo. No
seu dizer era a vida patriarcal. Nas residências urbanas (as rurais podiam
chamar-se primitivas) não se encontrava sombra de luxo, ao invés do que acontecia no
Norte — Bahia, Pernambuco e Maranhão — onde se timbrava na ostentação. Nas mobílias simples e
pesadas das casas de São Paulo refletiam-se a ausência de aspiração a elegâncias, a escassez do
intercurso europeu e a viveza do espírito nacional. Nas próprias reuniões, em
que se tocava e cantava mais do que se jogava, a escolha musical recaía sobre as modinhas
e outras deliciosas canções de origem popular e sabor lírico, que celebravam o amor, o ciúme e a saudade.

São Paulo não era então a terra das grandes escravarias
que posteriormente foi, quando principiou a grande cultura de café. Contavam-se
bastantes pretos, mas não se importavam muitos. Apenas São Pedro do Sul e o Rio
Negro os recebiam em menor escala: esta capitania porque nela os índios, muito
abundantes, substituíam no serviço dos poucos senhores os africanos, e aquela
porque o seu clima temperado e a natureza do trabalho rural permitiam a franca
participação dos brancos. Os escravos custavam mesmo muito caro no extremo sul e os que
havia, mais se ocupavam, por conta dos donos, em ofícios de que se sentia
grande falta, como de sapateiro,
lavadeira etc.

Também a criação representava em São Paulo mais ainda do que a agricultura, a principal ocupação dos habitantes. Suas indústrias cifravam-se no fabrico de algodões
e lãs grosseiras e de chapéus brancos de castor, afora o fabrico caseiro de
rendas e o curtimento das peles, tendo sido posta de lado por completo a
mineração, em outros tempos febrilmente tentada.73 O meio
tampouco era de entibiar os trabalhos braçais, dando o solo da costa frutas tropicais,
mas a imensa região alta as frutas europeias, e sendo sobretudo fresca e
revigorante a comarca do sul que tinha por sede da ouvidoria Curitiba e que,
atualmente separada da antiga capitania de São Paulo, constitui o estado do Paraná.

Uma terra de tão favoráveis condições pelo que diz
respeito ao clima, à uberdade e ao caráter da gente, não podia deixar de ir progredindo
por si,
apesar de demorado o aumento da população pela carência de todo movimento imigratório e
de limitadíssimas as aspirações dessa comunidade agrícola e pastoril, onde as
ideias adiantadas não circulavam quase fora da capital e as ambições
políticas não se tinham ainda manifestado. Com efeito São Paulo, que em 1807
exportava 496 contos, cinco anos depois, em 1813, exportava 666 contos e importava 766. Nos
géneros exportados contavam-se, como
parcelas mais importantes, 578.000 arrobas de açúcar contra 9.223 apenas de café, e 11.263 cabeças de
gado suíno contra 1.402 i e gado vacum; algarismos que por certo
não faziam prever o desenvolvimento
que mais tarde tomariam aquele cultivo nas encostas de São Paulo e esta criação
nos campos do Paraná. Nas importações incluíam-se principalmente 3.445 pipas de
vinho, 37.669 alqueires de sal e 4.447 arrobas de charque, géneros todos de alimentação. Outras necessidades seriam secundárias, e deviam sê-lo numa sociedade ocupada
com bem raras exceções em fabricar
açúcar, plantar milho, ferrar bois bravos, vigiar as manadas de milheiros de animais, laçar e abater reses
para as charqueadas e domar potros ariscos.

Vegetavam as capitanias interiores de Goiás e Mato
Grosso, uma vez passada a fase de produção aurífera que na primeira metade do século XVIII havia determinado o seu
mui escasso povoamento. Ao inverso das terras de São Paulo, onde os indígenas tinham
diminuído enormemente, andavam aquelas outras terras entregues muito mais aos bugres, pela
maior parte
belicosos e ferozes, do que aos colonizadores brancos. Com dificuldade trocavam seus
produtos com os das capitanias do litoral e com as raras manufaturas européias de
que mostravam carecer, por meio de tropas que atravessavam penosamente os sertões
mineiros, alcançando Mato Grosso pelo planalto goiano, ou, já menos frequentemente,
de embarcações
que, vencendo os obstáculos da navegação, entre eles 113 cachoeiras, atingiam de São Paulo
pelo Tietê, Paraná e depois pelos afluentes do Paraguai a região onde por algum
tempo se localizara a fábula do Eldorado. As comunicações para o norte com
o Grão-Pará, de Goiás pelos rios Tocantins e Araguaia ou de Mato Grosso pelos
rios Guaporé e Madeira, tão preconizadas pelo governo da metrópole para exploração
integral do interior da possessão e eficiência da defesa contra os espanhóis do
Pacífico e
do Prata, não tinham quase surtido resultado, sendo de todo abandonadas como vias regulares e
mesmo como desígnio de administração, até que a mudança da corte para o Brasil lhe veio dar novo
incremento.

Antes de trasladada a sede da monarquia, já D.
Rodrigo de Souza Coutinho afagava aliás, como um dos seus planos favoritos, a criação de
um vasto sistema de comunicações pelo dilatado interior do Brasil, para tanto aproveitando a sua
admirável rede fluvial, cujos embaraços não entravam em linha de conta, como
não costumam entrar com os sonhadores os impedimentos às suas utopias. Era uma
verdadeira e grandiosa conquista do hinterland aquela com que sonhava D.
Rodrigo, igual à que no século XIX os americanos do norte realizariam no seu continente por
meio das vias férreas, dos barcos a
vapor e dos milhões de imigrantes europeus, mas que no nosso país tinha
fatalmente de malograr-se pela insuficiência da gente e exiguidade dos
recursos empregados. Os americanos foram enxotando os índios,
reconhecidamente refratários à civilização: só se condoeram deles quando tornados
inofensivos pelo seu quase desaparecimento. Entre nós falava-se
quixotescamente de civilizar os índios mansos dos sertões "de Goyazes e
Pará" e domesticar todas as nações gentílicas e bárbaras.

Com D. Rodrigo, e nisto se diferençava ele do comum dos sonhadores, as cousas nunca
corriam o perigo de ficar em projeto. O seu defeito, um nobre defeito, era o querer
dar imediata realização a quanto devaneava, descurando às vezes os meios pela absorção
mental na grandeza do seu objetivo. Não raro contudo a execução seguia o pensamento. Logo em 1809, agindo por ordens da corte, mandava o
governador de Goiás, D. Francisco de Assis
Mascarenhas, no intuito de encurtar a distância por terra entre o Rio de Janeiro e o Pará e facilitar
os correios, abrir na sua capitania
uma estrada de 121 léguas (do Registro de Santa Maria ao Porto Real do Pontal na comarca do norte), construindo
pontes nos ribeirões, pondo canoas
nos rios caudalosos e invadeáveis, mantendo cavalgaduras nos postos. O fato é
que o correio expedido pelo governador do Pará com a nova da conquista de Caiena já transitou por
essa estrada, que do Registro de Santa Maria continuava até Vila Rica.

Como para haver comércio é necessário haver mercadorias, ordenava ao mesmo tempo o ríncipe
regente que no fertilíssimo terreno goiano se promovesse a plantação de trigo e
de outros cereais para consumo local e suprimento do Pará. É claro que para o
transporte de géneros e pessoas se apelava sobretudo para a extraordinária distribuição
hidrográfica do Brasil: "rios que desaguam no Tocantins e por este até o Pará, e
mesmo até ao
Maranhão pela nova estrada, que Sua Alteza mandou abrir pelo sertão, desde o
Tocantins até ao Itapicuru, e por ele abaixo até à sua foz. Assim, dentro de poucos
anos, haverá entre estas duas províncias marítimas, e a central de Goiás um
grande, e ativo comércio com avultados interesses recíprocos, e facilmente
se povoarão aquelas terras abençoadas, cuja fertilidade promete uma agricultura sem
restrição, e imensa."74

Em obediência a semelhante plano, que era em resumo o de
cimentar o
sistema político brasileiro com a facilidade das comunicações internas — um plano que era
muito, que fora sempre de D. Rodrigo, mas que teve de ser abandonado pelo desabitado
do sertão, desenvolvimento da navegação costeira que o vapor mais tarde ajudaria
poderosamente, e importância muito maior do
litoral, graças mesmo à atenção concentrada na corte — pensou-se em obras
gigantescas, sem todavia existirem recursos proporcionados a intenções, nem
sobretudo a extensões tamanhas. Os rios Tocantins e Araguaia e os tributários do Amazonas
seriam mandados explorar na ideia de animar aquelas comunicações com o alto sertão brasileiro, e em particular se
melhoraria a navegação que de Vila Bela se dirigia ao Amazonas pelos rios
Guaporé, Mamoré e Madeira, não havendo muito a esperar da navegação do Cuiabá e ligação
com o sistema do Ari-nos Tapajós e Amazonas, pelas muitas cachoeiras do Arinos e multidão de índios bárbaros e indomáveis.

Não era outra a concepção de íntima conexão do
centro inatacável por inacessível, inexplorado e ubérrimo, com o extremo norte ameaçado pelos franceses de
Caiena, que D. Rodrigo acariciava por motivos de defesa nacional antes de
fazê-lo por motivos de grandeza nacional, e já convencidamente manifestara em 1801
ao insinuar ao príncipe regente75 a nomeação de um vice-rei em lugar de
um simples governador do Pará, com o predomínio efetivo na administração do Maranhão, Mato
Grosso e Goia
zes, ao mesmo tempo que sugeria uma série de medidas defensivas e económicas.76

Procurando dilatar, robustecer e consolidar o
estado do Maranhão independente do do Brasil propriamente dito, firmava-se D. Rodrigo numa
divisão administrativa de que lhe não cabia a responsabilidade, e que se fizera por motivos de
comodidade de governo mais do que por argúcia política de prevenir a coesão da
enorme colónia, junto à qual desaparecia em dimensões e reserva de recursos o
diminuto e empobrecido Portugal. Quando a monarquia trasladou para a América a sua sede,
é que as inconveniências
daquela divisão apareceram e se experimentou a necessidade de apertar os laços que deviam
prender a um centro único todos os esparsos núcleos de povoamento e de desenvolvimento. D.
Rodrigo e o seu príncipe não se
esquivaram então a esse programa.

A parte entre a capitania do Rio de Janeiro e a
cidade de São Salvador, isto é, o Espírito Santo e o sul da Bahia constituíam um trecho
pouco povoado
e portanto pouco cultivado. As pujantes florestas a pequena distância da costa, ou mesmo
no litoral, formam um dos característicos da paisagem, ao mesmo tempo que
formavam um obstáculo à colonização outrossim contrariada pelos bugres. Um dos esforços mais
tenazes, senão dos mais felizes do governo de Dom João VI no sentido de desbravar a terra brasileira, ia justamente
localizar-se neste ponto, buscando-se com empenho abrir comunicações do mar
para Minas Gerais. Eram porém tamanhas as dificuldades que, quando o governador
Francisco Alberto Rubim construiu uma estrada de mais de 22 léguas desde o último morador
do rio Santa Maria até perto da margem do rio Pardo, houve que lhe por guarnições de três em três léguas por causa
dos índios botocudos.

Em carta régia de 4 de dezembro de 1816 recomendaria não
obstante o
soberano a conclusão dessa estrada e que outras se fizessem para reduzir a cultura o vasto
sertão, aproveitar suas riquezas e facilitar as relações de comércio, ao mesmo
tempo civilizando-se os índios bravos com reprimirem-se suas correrias.
Para tal fim isentavam-se de direitos por dez anos os géneros transportados do
Espírito Santo para Minas Gerais pelas estradas que se abrissem ou pelos rios que se
achassem navegáveis, pagando apenas os impostos à beira-mar; e isentavam-se do
dízimo os géneros cultivados no sertão, dividido o terreno e concedido por sesmarias ou
distribuído
pelas cartas de datas para lavra do ouro das minas. No desejo ardente de conseguir estes
resultados de progresso, desde 1811 se declarara conquistadas aos índios, desbravadas
e entregues, ou melhor restituídas à indústria particular para que as
aproveitasse, as terras do rio Doce e afluentes.

Sem a completa sujeição dos indígenas ociosa se tornaria
qualquer séria
tentativa de caráter prático no interior, pois que eles o percorriam de frechas e arco na mão, exterminando mesmo a
caca que devia servir de primeira alimentação aos colonos e levando a devastação até às povoações fundadas pelos
brancos. O terror justamente inspirado pelos assaltos e depredações dos Botocudos, que
dominavam as margens desse pequeno sistema fluvial e tinham destruído as fazendas uma vez
fundadas à beira dos rios Doce e Belmonte, era a principal razão de só serem habitadas na
costa a
capitania do Espírito Santo e a comarca baiana de Porto Seguro e de não contarem com sua
saída mais natural as comarcas mineiras do Sabará e Serro do Frio. A
filantropia do Correio Brasilienze condenou severamente a guerra feroz aos
Botocudos empreendida por ordem do conde de Linhares, mas sem o emprego da força para
avassalar esses selvagens rebeldes, é lícito perguntar como se conseguiria renovar
com escravos, imigrantes, bestas, bois e o mais aparelho de trabalho, as 144 fazendas
outrora
estabelecidas naquela região. Entretanto, feita a guerra, informava o capitão general conde da
Palma ao ministro Linhares77 que a duas das divisões militares criadas tinham
afluído para cima de 3.000 pessoas com fazendas ou para se ocuparem na mineração.

De Minas se vinha à Bahia pela estrada do Tejuco
(distrito diamantino) a Cachoeira, umas 250 léguas, em caravanas de 64 cavalos ou mulas. O caminho, posto que ainda frequentado, já
andava menos concorrido que o de
Vila Rica ao Rio de Janeiro. Era contudo seguro, livre de bugres e abundante em caça para abastecimento
das tropas. A vila da Cachoeira constituía um entreposto considerável de algodão, couros, chifres, farinha, açúcar, café e fumo da região
atravessada, podendo assim dividirem-se as zonas de produção: perto da Cachoeira, açúcar para cachaça,
tabaco e mandioca; no sertão, gado; ao chegar a Minas Gerais, algodão e café. Constituía também o término da estrada um centro de contrabando do ouro em pó e dos diamantes, exercendo a fraude
em larga escala os próprios soldados
que ciosamente proibiam o acesso do distrito diamantino.

Não admira pois que, malgrado as sérias interdições e punições, rondassem não poucos
especuladores a vizinhança do Tejuco sob vários disfarces e pretextos diversos. O
negócio era rendoso e como tal tentador, se bem que arriscado. Para o
governo a concorrência oferecia gravidade. Vendia ele em Londres ao tempo de
Dom João VI
60.000
quilates de diamantes a 60 francos o quilate bruto, o que dá 3.600.000 francos ou menos
de três
milhões líquidos. Os diamantes de contrabando compravam-se porém na Europa pelo terço ou
quarto do seu valor. O ouro trazido por fraude era ao contrário pago no Rio com
um prêmio de 3 a 5 por cento acima do preço oficial pelo qual pagava o fisco as barras em
peças amoedadas. Este ouro em barras já tinha pago o quinto: o ouro em pó que saía da província lucrava
portanto 20 por cento, ganhando além disso com ser muito mais fácil de transportar,
mais apto a ser falsificado e mais difícil de contrastar.78 Tal
género de contrabando exercia-se muito mais entretanto em Santa Catarina e no rio da Prata, pela
via de São Paulo, do que pelo caminho
que do centro conduzia à Bahia.

A fama do fausto da Bahia transpôs os limites
portugueses e dele chega a encontrar-se o eco nos trabalhos filosóficos do abade
Raynal, ao mesmo
tempo que da indolência da população amolecida pelo bem passar. Os habitantes abastados,
conta imaginosamente mas não mentirosamente o famoso escritor, usavam de
magníficas mobílias e cobriam-se de jóias, quando outras não fossem sob a
forma de cruzes, medalhas, rosários e bentinhos, vestindo mesmo de gala os escravos que
os transportavam nos seus palanquins cobertos de veludo e fechados com cortinas de seda. Tollenare, testemunha
presencial, fala de tudo isso, das damas reclinadas nas suas liteiras, das negras
carregadas de ouro, com suas camisas de cambraia bordada, suas saias de
algodão de ramagens, seus turbantes na cabeça, de uma vida muito original, muito sensual e
muito aprazível passada numa cidade pitoresca e em lindos arrabaldes. O francês não tem palavras bastantes para
enaltecer a beleza do Recôncavo, que apelida de romântico, descrevendo-o com
deleite igual àquele com que o percorria, com suas pequenas angras, seus
penhascos e grutas sobre que esvoaçavam bandos de gaivotas, sua vegetação
frondosa recobrindo até os flancos dos rochedos, sua navegação muito animada de pescadores
nos seus barcos, baleeiras e canoas de transporte de víveres e mercadorias.

A população era muito variada e o número dos
brancos inferior ao das outras raças. Raynal, cujas estatísticas são menos que
problemáticas, calculava para a cidade 40.000 brancos, 50.000 índios e 68.000 negros:
queria ele
dizer para a capitania, mostrando em todo caso não ser estranho à grande
superioridade numérica das raças inferiores.

A riqueza da Bahia provinha não somente das fontes ordinárias do algodão e do açúcar,
como do cultivo do fumo e da pesca da baleia. O fumo representava uma parcela
importante da exportação de Portugal para o resto da Europa e figura como tal
insistentemente nos respectivos tratados de comércio, mas entrara a ser tão tributado à
saída do reino para o estrangeiro que os consumidores, diante da elevação do preço, tiveram que se afastar. Sendo
porém suprimidos estes nocivos direitos e ficando apenas de pé a taxa da
armazenagem, a exportação novamente cresceu, crescendo proporcionalmente os
lucros do produtor brasileiro. Grande quantidade do tabaco em pó, de qualidade inferior,
ia para África a servir no tráfico, com ele comprando-se escravos. As
qualidades superiores, de envolta com a inferior eram sobretudo reexportadas
para Génova, Espanha, Hamburgo e França. Em Portugal existia uma estanco régio, mas a venda para fora permanecera naturalmente
franca.

A pesca da baleia também constituíra exclusivo de
uma companhia de
Lisboa, que possuía suas armações na Bahia, na ilha de Itaparica, e numa enseada entre a
cidade e o cabo de Santo António, e auferira lucros bem maiores que o preço do
monopólio. Os americanos, com seu espírito então agressivo de livre
concorrência, tinham contudo chegado a esses mares nas suas baleeiras e
malferido o privilégio da companhia portuguesa, cuja atividade andava pelo
contrário forçadamente restrita às paragens tradicionais. A pesca tornara-se
afinal livre, cessando o regime de contrato. Com o seu faro de comerciante,
calculou Tollenare o produto das baleias, de que se arpoavam mais de 200
nos melhores anos, em mais de dois milhões de francos — mais de 10.000 francos
por baleia —, vendendo-se a carne orçada em 2.000 arrobas, e o azeite orçado em
20 a 30 pipas de 70 canadas. As despesas representavam menos de dez por cento.

A Bahia
desenvolveu-se muito durante o reinado de D. João VI porque teve a boa fortuna, entre outras, de possuir
à sua frente um capitão-general —
o mesmo conde dos Arcos que estava como vice-rei do Rio e para ali foi mandado quando a família real se trasladou para o Brasil
— que timbrava em gastar em obras de
utilidade e benefício público os rendimentos da sua capitania. Pouco
dinheiro vinha por isso dela para a capital,
ao passo que Caetano Pinto, o capitão-general de Pernambuco, costumava remeter fielmente para o Rio o produto
completo da tributação local, pelo que diz Tollenare 30 contos por mês. É
evidente que em tais condições
trabalho algum de monta se empreendia em Pernambuco. Um
e outro governador eram censurados, um pela sua inação e mesquinharia, o outro pela sua nímia diligência e
prodigalidade, mas com o segundo ao
menos lucravam os povos confiados à sua direção. Spix e Martius, encarecendo o estado em que encontraram a
Bahia, falam o melhor possível da
administração do conde dos Arcos, recordando que estabeleceu casas de educação, montou cordoaria e fábrica de vidros, deu
animação aos estaleiros, estendeu a alfândega, reparou as casas da fundição, levantou uma praça de comércio, ergueu
fortes, construiu um passeio público,
organizou o trem de artilharia, o reduto e os armazéns militares, aumentou os
regimentos de linha e de milícia, policiou a cidade, favoreceu a pesca e protegeu a cultura do fumo. O
progresso era tão marcado que na ilha
de Itaparica, ao tempo da estada de Tollenare, existia mesmo montado um engenho de açúcar a vapor, tendo o Rei
concedido uma recompensa honorífica
ao introdutor desse melhoramento pela sua inteligente iniciativa.

Tollenare, que em tudo preferia a Bahia a Pernambuco,
tece fartos elogios a muitas coisas, entre elas ao teatro espaçoso, cómodo e
fresco, cujos
espetáculos, compostos de dramas burgueses, farsas picantes e ocasionalmente peças sacras,
não eram destituídos de interesse. A jovial sociabilidade, que ao francês devia
ser grata, constituía um traço característico da sociedade baiana, mais exibido ainda do
que nas noitadas do seu teatro, que só nas récitas de gala se enchia
inteiramente, nas constantes partidas de jogos de cartas, de prendas e de loto, e nos
jantares suculentos, cerimoniosos e luxuosos uns, despretensiosos e não menos gostosos outros, para saborear os
quais se enfiava antes da comida o casaco de brim fornecido pelo dono da casa.79

Em todas as capitais de província foram gerais por
esse tempo no Brasil o aumento da edificação e o desenvolvimento das artes, mais porventura na Bahia do que em
qualquer outra pelo notável crescimento da sua riqueza, denunciado pela anual
subida do movimento comercial. As importacões que em 1806 eram (segundo um mapa
anexo à correspondência de D. Rodrigo de Souza Coutinho)80 do valor
de 3.600 contos, em 1813 tinham subido a 7.052 contos e em 1816 atingiam 9.084
contos, entrando os escravos por 2.500 contos e seguindo-se em importância os vinhos — quase 900 contos — e as
chitas — quase 800. As exportações, constantes principalmente de açúcar,
aguardente, fumo, algodão, café, arroz, couros e madeiras, tinham decrescido
nos primeiros anos do remado americano de D. João VI, talvez por se generalizar mais o
tráfico brasileiro, mas tomaram novo impulso e passaram de 3.205 contos no ano
de 1813 a6.156 no de 1816, uma diferença bem mais considerável que nas importações. Em 1816 representavam o
tráfico local a entrada de 519 embarcações e a saída de 431. Por isso escreviam
Spix e Martius ser a Bahia a mais rica e ativa praça de comércio do país.

A do Rio, com suas novas instituições de crédito,
suas trasplantadas especulações e seus incipientes jogos de bolsa, ofereceria o moderno
tipo mercantil. Conservava a outra mais a tradição nos negócios como em toda a economia. Era o
empório da velha cultura do açúcar: no ano 1808, o da passagem da família real,
saíram do seu porto nada menos de 26 a 27.000 caixas de 40 a 45 arrobas cada uma,
produto dos 511 engenhos da capitania. Era também o centro do comércio de escravos,
onde afluíam os
carregamentos de africanos, cujo valor regulava 140 a 150 mil réis cada um, e onde se detinham
os alforriados, negros do ganho e negras quitandeiras. Para estas manufaturavam
os ourives da terra boa parte das correntes, brincos, fivelas e outros adornos de
extensa procura, pois que igualmente os compravam muito os sertanejos de visita à
cidade. Tanto mais numerosos eram eles quanto do litoral baiano partiam importantes vias de comunicação com o
interior: a estrada que pela Conquista e rio Pardo ia a Minas, a que pelo rio de
Contas se dirigia a Goiás e Mato Grosso, para onde se descia do Joazeiro pelas vilas de
Pilão Arcado, Barra do Rio Grande e Urubu, na linha do S. Francisco, e a que,
passando pelo Joazeiro, alcançava as capitanias do Norte, Pernambuco, Piauí e Maranhão, e outras em ramificação.81

Todas estas circunstâncias contribuíam para emprestar à
Bahia a feição
particular, pitoresca e excêntrica que era tão sua. A variedade de raças e
condições determinava aproximações e sobretudo contrastes notáveis. Pode dizer-se que
essa comunidade apresentava o mesmo espetáculo desencontrado na sua original
mistura que os dois viajantes alemães observaram nas gravuras do vestíbulo da igreja da
Conceição, onde ao lado de Blucher se viam Leda e o Cisne, e ao lado da
Ressurreição do Senhor a entrada
dos aliados em Paris. "Como numa mágica, escreveram eles, a observador atónito ali contempla representantes
de todas as épocas, de todos os continentes, de todas as categorias, a
completa história do desenvolvimento da
espécie humana, com seus mais levantados esforços, suas taras, culminâncias e também estorvos que obrigam
a recuos para o passado, e
este espetáculo único, que nem mesmo Londres e Paris se acham emcondições de exibir, ganha em interesse pela
seguinte ponderação: o que trará o quarto século a uma terra que nos
três decorridos já pudera abrigar todas as
tendências e graus de cultura através dos quais o gênio da humanidade conduziu o Velho Mundo
no espaço de milhares de anos?" De São Salvador alcançavam-se pois os campos do
Piauí cortando em diagonal o sertão baiano até encontrar o São Francisco e atravessado
este no Joazeiro, prosseguindo pelo sertão pernambucano para entrar no sistema fluvial da capitania do gado, cujas caatingas,
formosas quando em flor, eram intercaladas
de bosques de carnaubeiras onde pousavam araras azuis. Aparece esse sertão cortado de cadeias de montanhas na vizinhança das quais é o clima menos seco e regular,
pelo que o denominam os tabaréus
agreste, em contraposição ao mimoso, que é mais cálido e constante. Predomina o primeiro no Piauí, ao passo que
o segundo prevalece no sertão
pernambucano. Toda a região interior é contudo igualmente exposta a secas prolongadas, e decerto esta
inconstância contribui para dotar de maior atividade e superior resistência a
população sertaneja, naturalmente aventurosa.

Do primeiro bandeirante que se fixou no Piauí, Domingos
Afonso, tinham os jesuítas da Bahia herdado trinta fazendas de criação de gado vacum e cavalar que, pela
expulsão da Ordem, passaram para o domínio da Coroa, a qual as explorava.
Eram as conhecidas fazendas reais, espalhadas pelo território da capitania e
cujo rendimento estava longe de ser avultado, apesar da importância das propriedades, orçando
Spix e Martius
em 1818 o das três inspeções em 18 contos, representados por 3.000 bois a 6.000
réis, preço médio. Muitas reses eram abatidas para consumo do pessoal das fazendas e
muitos novilhos se perdiam pelas ervas venenosas, picadas de insetos,
mordeduras de cobras e morcegos e voracidade

das onças.

Spix e Martius percorreram também aquele caminho
do Joazeiro a Oeiras
que primeiro foi, como outro qualquer do Brasil, trilhado pelos missionários, em seguida
pelos bandeirantes, e então o estava sendo pelos vaqueiros e negociantes de
escravos. Exceção feita de raros proprietários abastados, reinava entre seus
numerosos agregados lastimosa pobreza nas margens do poderoso rio cruzado
pelos dois incansáveis cientistas para sua exploração setentrional. As cheias periódicas
do São Francisco causavam, como as do Nilo, imediata prosperidade, logo, porém, combatida por um sol abrasador, e
tornavam particularmente doentia essa seção, onde abundavam as sezões e os
sofrimentos hepáticos. Uma certa indústria pastoril, um pouco de fumo e
bastante sal das lagoas serviam, posto que não chegando no valor para a
troca por gêneros de primeira necessidade importados de Minas Gerais.

A cachoeira de Paulo Afonso dividia completamente
o tráfico fluvial, sendo as chamadas nevegação de cima e de baixo de todo independentes e suprindo-se os
habitantes do trecho intermédio na vila da Cachoeira, servida pela via terrestre. No seu
curso oriental o São Francisco separava a capitania de Sergipe, uma quase
dependência geográfica e económica da Bahia, de Alagoas, que era ainda em 1808 uma comarca
de Pernambuco, e por inteiro lhe pertencia pela colonização, pela produção e pelos
interesses.

Pernambuco já decaíra da sua preponderância de
capitania que mantivera com aristocrática bravura e aristocrática lealdade a integridade
do domínio
português na América. Estava, porém, em plena importância económica, sendo por
excelência a terra do açúcar e do algodão. Nas suas várzeas úmidas e nas suas
colinas ricas de vegetação de perto da costa, que os recifes anunciavam e de
que no alto mar as jangadas leves davam o primeiro rebate, escravarias numerosas povoavam
engenhos de açúcar; nas terras altas, secas e desprovidas de matas, sertanejos vestidos de
couro pastoreavam
seus rebanhos de gado, enquanto lavradores enfardavam o algodão de que saíam, para a
Inglaterra quase exclusivamente, 80 a 90.000 sacos por ano, pesando, termo
médio, cada saco 160 libras. No porto do Recife ancoravam sempre muitos navios, inclusive
os que faziam comércio com a índia Portuguesa, transportavam negros da costa africana e traziam farinha de trigo,
móveis e outras manufaturas dos Estados Unidos, levando em retribuição açúcar,
melaço e aguardente.82

A cidade, de 25.000 habitantes em 1809, era cheia
de luz, repleta de algazarra. Os seus três bairros, ligados por pontes, lançadas sobre os
largos rios
serenos, comunicavam uma sensação alegre, derivada sem dúvida da alegria do clima,
pois que o aspecto geral não passava de pronunciadamente provinciano, sendo
mesquinhos quase todos os edifícios, vulgares os conventos e templos, nulo o
movimento feminino. A animação que havia revelava-se toda ela mercantil, fornecida
pelos negociantes e negros carregadores, mas era indubitável. Demais, a prosperidade
tinge de cor de rosa tudo em que
toca.

Já então as residências se espalhavam sob a forma de chácaras pelos
arredores, notando-se a mesma tendência de fugir, passado o ardor do dia e do negócio, dos
pitorescos bancos de areia que formavam a antiga Mauricéia, para as margens
arborizadas dos rios sinuosos que entre eles vinham desaguar mansamente. Aquelas
casas não tinham pretensões arquitetônicas, mas envolviam-se em fragrantes pomares,
abrigavam-se à sombra de mangueiras, jaqueiras colossais, toucavam-se de rosas, cravos e
jasmins. Já
existia então também o mesmo núcleo de ingleses, que na fidalga educação tradicional da
melhor classe da população enxertavam certa franqueza e liberdade de bom tom. A
convivência, quiçá maior e mais agradável do que noutro qualquer ponto do
Brasil, denunciava-se amplamente pela dança, música e jogo, suas expressões
habituais. As procissões e solenidades do culto na cidade — algumas de ressaibo
teatral como o Descimento da Cruz, representado ao vivo por personagens de carne e osso —; as festas de igreja
com o realce profano de jogos, arraial, patuscadas e fogos de artifício nos
subúrbios, atraíam todas grande concorrência sem indicarem infalivelmente
fervor religioso. Constituíam antes meras diversões a que a população andara sempre afeita.

Olinda, completamente deposta dos foros de capital,
servindo quase somente de estação de recreio, continuava a ser a cidade dos conventos,
se bem que
se achasse em progressivo e rápido abandono a vida monástica. Refere Koster que
no seu tempo já passava por uma cousa rara a cerimónia da entrada em ordem
regular de um noviço, educando-se de preferência os rapazes para o
comércio, o exército ou qualquer outra profissão secular e esvaziando-se
gradualmente os mosteiros. Eram de resto os frades os primeiros a não se
atribuírem grande respeitabilidade, sendo mesmo o geral do clero reconhecidamente dissoluto.

Apesar da incontestável valia econômica de Pernambuco,
não se pode
dizer que fosse de opulência ou sequer de fartura a aparência, quer agrícola, quer social, da
região pela qual se estendia a capitania general. Koster percorreu a cavalo, mais
em busca de saúde que de impressões exóticas, todas as capitanias nortistas até o Ceará,
e da leitura das suas descrições sinceras e despretensiosas como as que mais o
forem, deriva-se uma sensação melancólica. As recuas de matutos encontrados pelos caminhos, tangendo os magros
cavalinhos que transportavam suas cargas escassas; as choupanas indigentes ao
lado de raros casarões, cujos proprietários viviam mais fidalga do que
inteligentemente e com mais fausto do que conforto; as plantações muito pouco
variadas; os engenhos de modelos absolutamente primitivos; o manifesto atraso agrícola
e industrial, tudo se congregava para dar a
ideia, que mais acentuada hoje nos fere, de pobreza fundamental, contra a qual em
vão contendiam as.ilusões de uma prosperidade fictícia dependente exclusivamente do braço
escravo, subidas ocasionais e passageiras de preços e os esforços de resistência já quase
passiva do sentimento de grandeza
heróica.

O clima francamente tropical, escancarando os casebres de
taipa, sem ladrilho,
nem portas, nem janelas, que agachavam seus tetos de palha diante do solar do engenho,
rebocado e caiado de branco, com grossas paredes que repeliam o sol; dispensando
as camas, substituídas por esteiras ou pelas redes muitas vezes estendidas, nas
noites de claro luar, entre dois postes do alpendre, tornava o aspecto da vida mais incerto
ainda do que no Sul, onde a estação fria enxotava a gente para o interior das
habitações. O
calor sem tréguas dava a esta terra brasileira um tom mais decidido de acampamento nómade, ao
mesmo tempo que diminuía a taciturnidade dos seus habitantes, cujo moral —
quer dizer ignorância, noção exagerada de pundonor e fatalismo — se não
diferençava sob os outros pontos do dos caipiras de São Paulo e Minas e do dos gaúchos do Rio Grande.

Observaram Spix e Martius que o mineiro lembrava muito
mais o alegre
pernambucano do que o tristonho paulista. O orgulho e a sobriedade seriam traços comuns a
todos os brasileiros de descendência mais ou menos europeia, mas eram pelos dois
viajantes consideradas qualidades privativas dos pernambucanos e extensivas aos
mineiros, a inclinação por uma forma romanesca de viver e a predileção pelos vestuários
e produtos estrangeiros,
quer dizer, o espírito de aventura e o de novidade, a fantasia imaginativa e a fácil receptividade moral.

Em Pernambuco derivariam em boa parte estas qualidades
das condições
da vida, cuja incerteza como que se refletia no contraste, muito característico da
região, entre as várzeas férteis, regadas pelos rios, e os tabuleiros arenosos e
áridos, de vegetação crestada pelas secas que periodicamente assolam o sertão
vitimando homens e animais. As alternativas de abundância e privação,
marcadas pelas chuvas ou pelas longas estiadas, independentes portanto do
esforço individual, tingiam naturalmente de despreocupação, de indiferença, o caráter do
povo que ora via em redor de si a fartura, ora enxergava a miséria, sem poder contribuir no
mínimo para
modificar-lhe as circunstâncias. Tudo, facilidades de vida, bem-estar, repouso, dependia
tão somente nessa zona das variações climatéricas.

As chuvas podiam trazer a fertilidade e mesmo a
abastança. Riqueza, porém, riqueza verdadeira, contínua, incontroversa, não a possuía
semelhante extensa seção que, no seu litoral ubérrimo, produzia apenas um açúcar muito mal
fabricado — pois que os métodos defeituosos por que era obtido só podiam
fornecer um produto bastardo — do qual já se queixavam os importadores europeus
e que apenas achava consumo porque não existia então açúcar de beterraba, e nos
seus altos tabuleiros o algodão que as fábricas inglesas recambiavam
manufaturado em tecidos, apurando o melhor do lucro. E quanto mais para o norte
se caminhava, menos condições de real prosperidade se iam descortinando. Abafam
alguns vales sob uma vegetação luxuriante que espelha a fortuna, mas na paisagem
sertaneja de campos e serrotes, é a inconstância que de ordinário se mira nas
lagoas, salobras algumas delas, que fazem as vezes de rios de águas perenes e
onde vai beber um gado não raro magro e doente. Koster descrevia o aspecto
geral da capitania do Rio Grande do Norte, por exemplo, como "’o de uma região mediocremente produtiva ao
sul de Natal, e de todo estéril ao norte dessa cidade, com exceção das margens
do Po-tengi e das terras vizinhas".

Contrastando com este
cenário de secas periódicas, estendendo-se pelo sertão do Ceará até alcançar o
do Piauí, terras cujo povoamento se fora entretanto fazendo regularmente, posto
que distinguindo os seus habitantes um fácil espírito migratório, desdobrava-se
a vastíssima planura amazônica. Anunciava-a a capitania do Maranhão, uma terra
caracteristicamente tropical banhada por grossos rios, pelos quais e pelos
igarapés que o ligavam desciam em pequenas canoas, na falta de estradas
terrestres, os variados produtos do solo, abrangendo desde o açúcar, o algodão e
o arroz até o fumo, o café e os cereais.

O Maranhão não via de
fato circunscrito à capital o seu incremento agrícola e daí económico e social.
Caxias, o antigo arraial das Aldeias Altas, contendo no seu termo 30.000 almas
e devendo sua prosperidade à cultura do algodoeiro, iniciada no século anterior
pela Companhia do Maranhão e Grão-Pará, e à energia dos seus habitantes, muitos
deles reiníco-lass, era um dos raros pontos florescentes do interior do Brasil:
chegava a exportar 25 a 30.000 sacos de cinco a seis arrobas cada um. A
capitania toda ela ou pelo menos a
parte entre matas ocupada pelas fazendas, pelas missões, pelas igrejas e pelos
povoados à margem do Itapicuru, dava uma certa. impressão de abastança. A sua população orçava, como a
da Bahia, pelas 200.000 almas, almas cristãs deve entender-se, porque das pagãs
não se poderia fazer cálculo.

Era
São Luiz do Maranhão, com seus numerosos filhos do Reino e seus
não menos numerosos filhos d’África, um centro que se
havia de breve revelar tenaz e violentamente lusitano na
cor política e nas tendências imaginativas; mesmo porque o
elemento português, preponderante na administração, no comércio e em toda vida ativa,
facilmente sobrepujava o elemento nacional, reduzido comparativamente em número e
molemente conchegado
nas plantações sobre o remanso do trabalho escravo. Spix e Mar-tius, que foram
os únicos viajantes estrangeiros a transitar nessa seção extremo setentrional
do país, a qual cuidadosamente estudaram como as demais, observaram não só tal antagonismo
mais pronunciado e mais promissório de dificuldades, como a feição refinada e
culta da sociedade local, distinguindo-se em particular o sexo feminino pela sua
independência mental e educação
esmerada.

Parecia o Pará a melhor comprovação de que o Brasil
daqueles tempos
era o negro. Na ausência de outro trabalhador, era ele o esteio de toda riqueza. O Maranhão
crescia, com o mesmo clima e recursos quiçá não iguais aos do Pará, pelo grande
número de escravos que importava e que Spix e Martius calculavam em 1818 em 80.000. A
extinta Companhia de Comércio favorecia aliás muito a agricultura, não só fornecendo empréstimos aos lavradores,
como cedendo a baixo preço os negros trazidos pelo tráfico. Ao lado o Pará vegetava,
com seu solo feracíssimo, seus majestosos rios navegáveis, seus variados artigos de
produção natural, suas comunicações francas com as vizinhas terras espanholas,
sem braços, porém,
para valorizar todas essas condições de fortuna, pois que a fonte quase única de trabalho
provinha dos descimentos em que se empregava parte da pequena guarnição do Rio Negro
e de que resultava a introdução de obreiros
remissos e indóceis.

A impressão de Spix e Martius, ao receberem
permissão para visitar detidamente o Grão Pará e subir o Amazonas e quaisquer dos seus tributários até as
fronteiras, foi a de irem penetrar numa terra incógnita. Até aí o Brasil se lhes
apresentara bastante imperfeito, mas existia do sul ao norte e do litoral ao centro,
apesar das soluções de continuidade, a base de uma nacionalidade de algum
modo homogénea, deparava-se com o material de uma cultura de caráter mais europeu do que
exótico. Tratava-se agora contudo de uma exploração apenas iniciada através de
uma dilatada região, cujo aspecto quase não diferia nos começos do século XIX do que tinha sido no século XVII, habitada por numerosas
tribos indígenas e com raros povoados que, com suas denominações saudosamente
portuguesas, figuravam de atalaias perdidas da civilização. A própria natureza
mudava um tanto de aparência. Os coqueiros ralos, cujas hastes finas balizam no norte o
horizonte sem o cerrarem, eram substituídos por uma vegetação toda ela mais densa,
mais escura, mais pujante, e com tudo isso menos hospitaleira. As primeiras
páginas do último volume das viagens de Spix e Martius, dedicado à região
amazônica, respiram decidido panteísmo poético, traduzem os transportes da absorção
quase mística no seio da natureza
criadora.

Calculava-se a população da Amazónia, no ano de 1820, em
83.500 habitantes
civilizados ou contados como tais, sendo 68.500 no Pará, e 15.000 no Rio Negro. A
cidade de Santa Maria de Belém pela sua relativa antiguidade, posição quase
marítima, situação de entreposto de todo género para as extensas terras
regadas pelo poderoso sistema fluvial de que formava a chave, e condição de
último núcleo de povoação da costa subindo-se para o norte, oferecia alguma
importância, que o marquês de Pombal grandemente procurara estimular. Pelo lado
da população o traço característico do centro do antigo estado do Grão-Pará era a forte
proporção de
índios, não só aldeados e ocupados na pesca e na agricultura como no serviço doméstico
e exercendo misteres diversos, sobretudo de remadores e carregadores. Eles como
que imprimiam a toda a comunidade o cunho do seu espírito a um tempo passivo e rebelde,
esquivo às leis e regulamentos da administração e resignadamente fatalista. A população
de
descendência europeia, em grande parte de origem insulana, distinguia-se pelo seu sossego e
abstenção de paixões. Spix e Martius relevam a sua fieugma a par da vivacidade
do pernambucano, do génio prático do baiano, da fina urbanidade do maranhense, da cortesia
cavalheirosa do mineiro e do
humor bondoso do paulista.

A riqueza da região é tal pela variedade dos
géneros de consumo que, não obstante a pouca indústria dos paraenses de então, em
grande parte dependentes
para seu comércio exterior dos produtos agrícolas e extrati-vos de rio acima —
Cametá no Tocantins, Gurupá, Santarém no Amazonas e capitania do Rio Negro —
os trapiches ofereciam regular movimento. A borracha, que começava apenas a ser extraída
por pobres seringueiros e alguns raros fazendeiros, provinha das matas nas proximidades da cidade e na ilha de
Marajó, onde existia também a indústria pastoril: o gado era porém de qualidade
inferior pelas condições climatéricas de excessiva umidade, exposição às
chuvas torrenciais e às nuvens de mosquitos, terror inspirado pelos jacarés e outras
circunstâncias desfavoráveis à criação.

Ao tempo da estada de Spix e Martius já os
soldados de polícia usavam grosseiros casacos tornados impermeáveis pela
aplicação de uma ténue camada de borracha que se deixava secar ao sol, e os próprios dois exploradores os
utilizaram nas suas jornadas em paragens em que tinham sido bem antes precedidos pelo
seu compatriota, o jesuíta Samuel Fritz, Com efeito, da Fortaleza da Barra do
Rio Negro subiram eles pelo Soli-mões até Ega, a antiga missão daquele jesuíta depois
crismada em Tefé, atingindo Spix o presídio de Tabatinga na fronteira e no Rio
Negro a vila de
Barcelos, e alcançando Martius no Japurá a cachoeira do Araracoara na fronteira
da Nova Granada, para ainda juntos subirem até certo ponto o Madeira e visitarem os índios mundurucus e
maués.

A Fortaleza da Barra, para onde fora transferida de
Barcelos em 1809 a capital da que ia ser província de São José do Rio Negro, encerrava
3.000 almas
no lugar — que nem vila era — e termo, pois que desta gente parte não residia
nas modestas habitações urbanas, de tetos de palma conquanto providas algumas de móveis
importados: vivia nas fazendas e pescarias da margem do rio, congregando-se
somente por ocasião de alguma festa de igreja. O lugar, cuja excelência topográfica levou
Spix e Martius a vaticinarem o
grande porvir de Manaus, tinha então suas autoridades civis e militares, mas não tinha ainda médico, nem
boticário, nem mestre de primeiras letras. Por falta de numerário, o dízimo e
outras contribuições pagavam-se em
géneros da terra, potes de manteiga de ovos de tartaruga, farinha de
mandioca, criação, fumo, guaraná e castanhas do Pará.

O administrador Gama Lobo aí estabelecera nos fins do
século XVIII
uma fiação
de algodão e uma olaria, empregando os índios mansos a pequeno salário por
conta do governo, declinando todavia depressa ambas as fábricas. Um pouco mais de
animação mostravam as cordoarias de piaçaba, cujas amarras e cabos se usavam no arsenal
do Pará e se exportavam para as Antilhas, e cuja matéria-prima era em parte
comprada aos espanhóis da
fronteira em São Carlos do Rio Negro.

A população de todo o Brasil assemelhava-se afinal de norte a sul e de leste a oeste. Pode dizer-se que era
homogénea pela aparência resultante
das mesmas origens e cruzamentos, pelas indústrias pouco variadas e distribuídas por zonas determinadas, e pelas
feições salientes do caráter. Por
este lado a uniformidade dentro da diversidade, indispensável para manter a
coesão de uma sociedade que tendia a evoluir e cuja atividade se dispersava em ocupações diferentes, dava um
desmentido à latente inclinação
separatista que tinha estado alimentando durante o período colonial a direta dependência administrativa das
capitanias em relação à metrópole distante.

Nas cidades os elementos que avultavam eram o
comerciante, o religioso e o servil, tanto dos serviços domésticos como dos de utilidade pública. Eram de cor e
muitos deles escravos os vendilhões que de camisa, ceroulas e saiote de algodão
grosso, ofereciam pelas portas cambadas de caranguejos e siris em cordas, como
o eram os remadores que, com o jaquetão de baeta posto por cima dos seus riscados,
transportavam em canoas para algumas vilas as pipas d’água precisas para bebida e limpeza dos habitantes, ou os
artesanos que, de troncos nus, sovelavam calçado, recortavam sola para selins e
batiam folha-de-flandres nas lojas e oficinas escuras.

Nos campos, já se sabe, encontravam-se os lavradores,
proprietários ou agregados, os mineiros e os criadores de gado: a gente do sul,
plantadores
ou caçadores de ouro, com escravos bastantes para o trabalho rural, as lavagens de areias e
cascalho e os transportes em carros e sobretudo em bestas, serviços também executados
por numerosos homens livres; a gente do norte, senhores de engenho e cultivadores do
litoral e terras imediatas, com fartas escravarias; os vaqueiros dos sertões, com limitadas
turmas de
escravos. Predominavam os homens livres entre este elemento pastoril, assim como entre
os pescadores jangadeiros e canoeiros de toda a costa.

Em toda essa sinfonia de buréis castanhos, gangas,
casacas azul ferrete, madapolões encardidos e couros moles, as notas mais
claras e estridentes
eram as fornecidas, dentre as capas de pano de cor, pelos timões femininos de viva seda
lavrada, de veludo carmezim ou azul luminoso; as mais sombrias e tristes pelos
de baeta azul escura ou preta que, com suas mangas dependuradas de que se não fazia uso,
envolviam todo o corpo e cobriam
até a cabeça.

No moral da população nacional são concordes todos os
exploradores
e viajantes estrangeiros em destacar dois traços que lhe deviam ser comuns — a cortesia e a
hospitalidade. Moradores das cidades como dos campos testemunhavam para com os
forasteiros delicadeza e agasalho, se bem que se ressentissem prontamente de desatenções
e exibissem fácil e até feroz
ciúme.

Em resumo transmitia o Brasil então como hoje ainda, a
impressão de
uma sociedade em formação, sem característicos acentuados e fixados. Fora da estreita faixa
da costa, e aí mesmo, dava outrossim a sensação de uma terra que aguarda para
ser fecundada e cumprir seu destino o esforço do homem. Tinha este esforço que ser
gigantesco porque a própria exuberância da vida animal e vegetal representa um
atraso para a sua realização, e enquanto ele se não exercia permaneciam por
povoar e por desbravar as extensões sem fim, campos risonhos e férteis entre montes enrugados e alterosos e
matas frondosas e inquietadoras sobre rios caudalosos e revoltos. Era toda uma
natureza por vencer, e para mais indomável a quem não dispusesse das energias
proporcionadas. O país nas suas condições dominantes não podia oferecer grandes
oportunidades, sendo falhas as suas ligações, de tão difíceis e arriscadas, e
emperrado o seu progresso, de tão
árduo e penoso.

Entre o Maranhão e São Vicente, a parte tradicional e histórica, vivia a nova nacionalidade
de uma agricultura rudimentar nos métodos,83 escassa na variedade,
cada dia de mais difícil colocação porque a extensão da produção não andava na
razão direta da extensão do consumo, e não eram constantes as crises coloniais que
favoreciam o açúcar, nem contínuos os períodos de guerra anglo-americana que
favoreciam o algodão. O café, manancial de futura abundância, ainda se não
espalhara, nem como cultivo nem como extração. Para o interior o traço
principal já deixara de ser o mineiro, aparecendo muito crescido o número dos vadios, indivíduos que esperavam a
sorte de outra ocupação rendosa e entretanto não desprezavam muitos deles o
ofício de malfeitor.84 A feição não se tornara por completo pastoril, por
mais aconselhada que fosse esta tendência pela natureza dos terrenos altos,
de pastagens excelentes, e pelas exigências crescentes da alimentação em época de
custosos abastecimentos. Outra indústria só em embrião existiria. Em qualquer
terreno prevaleciam o atrasado, o
incompleto, o provisório.


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