LONDRES, A CAPITAL DO MUNDO

A CAPITAL DO MUNDO

Oliveira Lima

Bruxelas, março de 1908

A sensação que uma vez se experimentou de Londres e que nunca mais se desmancha, antes pela continuação se confirma e robustece, é em primeiro lugar a da segurança, da garantia relativamente perfeita que cada um ali encontra para o seu viver, para os seus gostos, para os seus atos, para as suas fantasias mesmo, contanto que respeitem a independência e o conforto dos outros. Por esta feição logo se verifica tratar-se, nessa, da terra por excelência das liberdades civis e do cultivo individual, o qual também facilmente descamba no egoísmo.

Por outras feições, pela sua grandeza tranqüila, pelo seu fausto de bom gosto, pelo cosmopolitismo dos seus recursos, pela multiplicidade das suas condições dé^existência em que cada círculo comporta uma economia completa, separada e todavia harmônica com as demais, sente-se verdadeiramente que se está em Londres, na capital do mundo.

Não se passa ano algum sem que a Inglaterra tenha a sua guerra colonial, pequena ou grande. Os seus interesses estendem-se a todo o planeta, o seu domínio cobre não pequena parte dele, a sua bandeira tremula onde quer que descansemos a vista. Depois da árdua campanha do Transvaal, seguiu-se a da Somalilândia, agora a do Afeganistão, e apesar de não possuir serviço militar obrigatório, cuja implantação despertaria as mais vivas repugnancias, a nova Roma vai debelando as insurreições, subjugando povos e raças, englobando colônias e levando de vencida todas as resistências, como a antiga por alguns séculos o conseguiu com a sólida organização das suas legiões de veteranos.

Há um traço pronunciado na fisionomia londrina e que indica, mais fortemente talvez do que outro qualquer, esta posição assumida nos nossos dias pela metrópole que os romanos encontraram aldeia no gênero das lacustres à beira do Tâmisa e que cercaram da sua cintura de pedra, cujo resistente tecido perdura ainda na velha city, oculto sob os edifícios de construção ulterior e é de quando em vez posto a descoberto nas escavações a que se procedem para as demolições, reconstruções e abertura de novas artérias

que canalizem o excesso da circulação e corrijam a pletora sempre em aumento. É aquele traço o. interesse, não só abstrato como concreto, tomado por Londres nas coisas de fora.

Ela é, ninguém o ignora, o grande mercado, a fornecedora máxima de capitais, a bolsa universal. Com toda a sua riqueza e toda a sua arrogância, os Estados Unidos não podem ainda dispensar a fortuna britânica, que entra numa boa proporção nas suas empresas e constitui parte considerável do seu jogo financeiro. Semelhante interesse estende-se, porém, por igual às coisas do espírito.

Tive disto impressão muito nítida num jantar a que assisti há um mês do Clube Geográfico, sociedade anexa ou funcionando ao lado da Real Sociedade de Geografia, mas muito mais restrita do que esta. Quantos se sentavam à mesa tinham não só percorrido outros continentes como devotado sua inteligencia a assuntos estrangeiros.

O presidente, Sir George Goldie, sucessor no cargo do americanista Markham, governou colónias da África; defronte de mim achava-se o sábio que decifrou e explicou as inscrições e textos maias do Yucatán; a meu lado o Major Watson, que viu cair morto cm Khartoum o bravo e famoso Gordon; a pouca distância o intrépido caminhante que mais alto tem subido na cadeia do Himalaia, tirando fotografias-únicas que numa anterior conferência da Sociedade foram servidas em projeções luminosas; longe, um filho do grande Darwin, o que fêz preceder sua genial concepção da origem das espécies da viagem no Beagle ao redor do mundo, preparo prático do naturalista para a síntese filosófica de maior repercussão no século XIX.

Meu anfitrião mesmo, o Coronel George Earl Church, vice-presidente da Sociedade, colaborador da Enciclopédia Britânica e, no dizer da Catión, de Nova York, a maior autoridade viva em assuntos americanos, foi o primitivo concessionário da estrada de ferro Madeira-Mamoré — empreendimento que então falhou — e tomara antes parte na guerra de Secessão e na campanha mexicana ultimada em Queretaro, percorrendo depois disso grande parte da América do Sul, todo o seu litoral e não pouco do seu interior. A nenhum dos convivas deixavam de ser familiares assuntos outros que os da sua terra, e neste cosmopolitismo mental se não extraviava, o que é o essencial, a preocupação nacional, correspondente à consciência da superioridade britânica.

Do jantar saímos para uma conferência em que o erudito arquivista do conselho do condado de Londres mostrou pelos mapas, com o auxílio do transparente e da lanterna, a evolução da vastíssima cidade, concentrada primeiro nas suas muralhas em forma de meio círculo cujo arco fôsse constituído pela linha do rio, expan-dindo-se depois, incorporando hortas, prados e herdades, e crescendo, crescendo, ao ponto de formar ela só um condado e figurar na carta da ilha, com sua mancha vermelha, como um coração palpitante que seria desproporcionado se não fôsse antes o coração do maior Jmpério humano.

Os vestígios das anexações campesinas ficaram nos verdes parques singelos, de uma simplicidade que surpreende os que só conhecerem os “bosques” parisienses antes de lhes fazer sentir todo o encanto da sua despretensão.

O inglês, e este outro traço responde ao pronunciado pendor idealista que realça o muito positivo imperialismo britânico, não despreza pelo amor do presente o passado. A rotina, de que o culpavam seus primos do “outro lado” quando, ainda não penetrados dessa reverência, é uma expressão de tal e persistente carinho pelas coisas idas, do qual fornecem a melhor documentação as cidades universitárias inglesas, onde se preparam as gerações da política e da administração e onde se elabora o melhor da produção intelectual do país.

Almocei em Cambridge, num dos últimos dias da minha recente estada na Inglaterra, com o autor de uma nova Vida de Canning e agregado do St. Peter’s College, Harold Temperley, com quem me pusera justamente em relações nossa comum admiração pelo grande estadista inglês do primeiro quartel do século findo, que revolucionou pacificamente a política exterior britânica e tão importante papel desempenhou no reconhecimento político da América Latina.

O Sr. Temperley, em quem aquela admiração chega ao fanatismo, habita na Peter’s House o mesmo aposento onde no século XVIII o poeta Gray compôs seus versos melancólicos. É bem o ar do passado que se respira no pátio do edifício, fechado pelas paredes de cantaria de lavores enegrecidos, como na sala de reunião toda forrada de madeira^ entalhada e em cuja lareira, com bronzes de há seis séculos, arde o fogo alegre e convidativo que é a base da sociabilidade.

O respeito de todas as tradições, a guarda de todas as antiguidades, digamos mesmo a superstição de todas as velharias, não exclui o modernismo do retrato de Lorde Kelvin (o grande físico Thompson que acaba de falecer) na sala de conferências, entre os retratos dos personagens de peruca, representantes de outras épocas e de outras fases de cultura.

A velha universidade, que ainda é regida por um fidalgo ilustre pela casa e ilustrado nu política, o Duque de Devonshire, transforma-se, acompanhando o progresso, sem perder o seu caráter. Pelas ruas estreitas da cidade, sobre que projetam sua sombra as fachadas arrendadas dos colégios que da outra banda recebem ar e luz dos parques espaços, forrados de uma relva incomparável; na nave imponente da igreja de King’s College, reputada o mais formoso exemplar do gótico perpendicular britânico, em cujos muros se abre ainda sob a patina do tempo a rosa dos Tudor, são outros homens que agora se congregam, homens que em muitas coisas pensam e agem diversamente dos contemporâneos de Henrique VII e do Cardeal Wolsey, mas que conversam desse passado, que prezam, veneram e enaltecem, quando serve a estabelecer a continuidade histórica que empresta ao composto nacional o fundamento da sua fortaleza espiritual e da sua grandeza moral.

Bruxelas, março de 1908

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.


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