MAX WEBER E A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO
Publicado no Caderno de Programas e Leituras Jornal da Tarde – O ESTADO DE S. PAULO 05/11/1983
Julien Freund
Desde a sua publicação, em 1904, A
Ética Protestante e o
Espírito do Capitalismo, de Max Weber, provocou enorme controvérsia, que ainda
não se encerrou. Poucos livros, na nascente literatura sociológica, foram tão
debatidos quanto esse, não apenas pelos sociólogos, mas também por
historiadores e teólogos. Não é este o lugar
para, como já fiz em outro texto, entrar no pormenor das interpretações
e críticas que se opõem e contradizem, cada vez com a certeza de refutar o
próprio Max Weber ou algum de seus comentaristas. Também não cabe fazer aqui o
inventário dessa controvérsia. A este respeito, porém, gostaria de tecer uma observação
geral acerca da impressão que me ficou do incalculável número de condenações
suscitadas pelo livro de Weber: deixa-me simplesmente estupefato a maneira como
certas pessoas lêem um autor com tantos parti-pris e às vezes simples má fé,
até mesmo nos meios científicos e universitários.
Alguns conservam
apenas certas passagens da obra e ignoram o resto, fundando assim a sua interpretação
numa leitura truncada; outros simplesmente desconhecem o que Weber disse e repetiu
para que lhe imputassem uma tese que ele explicitamente recusou; ainda outros fazem intervir
acontecimentos que são estranhos ao próprio tema de Weber; finalmente, há quem lhe atribua a vontade de demolir o
marxismo, quando ele declara exatamente o contrário. Só podemos lamentar que
haja críticos que acreditam dar cabo de um autor selecionando apenas algumas
de suas páginas, ou retendo somente as que possam servir ao seu parti-pris. Não
pretendo absolutamente defender Weber contra tudo e todos, pois aconteceu que
ele se enganasse e cultivasse certos mal-entendidos. Não está imune às
críticas. Por sinal, pecaria contra a probidade intelectual quem transformasse
o pensamento de um autor num certo número de dogmas intocáveis, como alguns
marxistas fazem da obra de Marx.
Weber
abriu os flancos, por sua falta, a algumas falsas interpretações, a começar já
belas ambigüidades no título de seu livro. Por um lado, ele não examina o
capitalismo propriamente dito, mas o espírito do capitalismo. Com efeito, não
efetua uma análise, econômica deste sistema
mas se esforça por apreender e explicar às concepções éticas e
religiosas dos homens que promoveram o capitalismo moderno. Chega mesmo a dedicar
longas páginas à definição do que se deve entender por "espírito do
capitalismo", num sentido próximo da sua teoria epistemológica do tipo
ideal. Ademais, não se interessa por todas às formas do capitalismo, mas
unicamente pelo capitalismo moderno de empresa, que surgiu no final do século XVII e no começo do
XVIII. Portanto, exclui as formas rudimentares ao capitalismo nas
outras partes do mundo, por exemplo na China, assim como o capitalismo
bancário do fim da Idade Média ou da Renascença italiana, o dos Pügger ou dos
Médicis. Elimina igualmente as formas que este capitalismo pôde assumir no
período.. contemporâneo, no correr do século XIX. O seu campo de
investigação assim fica perfeitamente delimitado, é o das origens do capitalismo
de empresa no espaço ocidental dos séculos XVII e XVIII.
Mas o título versa sobre o protestantismo, sem
outra menção. Pode assim dar a entender que tratará do protestantismo em geral. Ora, a leitura do livro mostra que ele se prende a investigarão comportamento de
certos protestantes, especialmente dos calvinistas. Uma vez mais, delimita
nitidamente seu campo de investigação. O que examina não é, absolutamente, a
doutrina do próprio Calvíno, nem mesmo a de todos os calvinistas, porém
unicamente a atitude de um ramo do.calvinismo,_a dos puritanos e.r batistas,
assim como a_ de algumas seitas. Além disso, não considera todos os puritanos,
mas apenas os que se lançaram na aventura do capitalismo, nascente. Finalmente,
circunscreve no tempo a sua investigação, pois trata de pessoas que viveram
mais de um século e melo após Calvino. que por isso deram ao calvinismo
originário uma nova inflexão. Uma coisa está clara: o luteranismo parece
descartado dás preocupações de Weber.
Origens do capitalismo
E
no entanto Lutero representa, indiretamente, um papel na análise weberiana.
Até merece um longo parágrafo na Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Mais uma vez, convém fixar o
campo da investigação de Weber. Os luteranos, enquanto pertencem à Confissão
de Augsburgo, não entram na sua problemática, pois foi irrisório, o seu papel
no nascimento do capitalismo moderno. Em compensação, porém, o próprio Lutero
formulou um conceito, o de Beruf (1), determinante para todas as igrejas
protestantes, que também os calvinistas e puritanos herdaram. Deste ponto de
vista, o título da obra, que se refere à ética protestante em geral, não é tão
equívoco quanto alguns pretendem. Para dar clareza ao debate, já de entrada,
assim se pode caracterizar o terreno de investigação de Weber: ele não faz
entrar em conta a doutrina pessoal elaborada pelo próprio Calvino, mas a prática
dos calvinistas posteriores a ele; em compensação, deixa de lado a doutrina
posterior dos luteranos, para incluir a doutrina pessoal elaborada por Lutero.
Depois de assim delimitarmos com a maior
precisão possível o terreno no qual se situa Max Weber, devemos, para a
adequada compreensão do papel de Lutero na análise weberiana, definir da
maneira mais distinta possível o projeto do autor na Ética Protestante e o Espírito
do Capitalismo. Com efeito, não poderemos interpretar opapel que Weber atribui
a Lutero no nascimento do capitalismo moderno se não elucidarmos, previamente,
a perspectiva de conjunto na qual ele se inscreve. Isto me parece ainda mais
indispensável porque numerosos críticos do pensamento de Weber ou
negligenciaram tal aspecto, o que explica alguns de seus contra-sensos, ou o
interpretaram mal, deixando de se referir às passagens em que evoca a doutrina
de Lutero.
Fique claro que não é meu objetivo, aqui, controlar se é
correta ou não a interpretação que Weber propõe de Lutero. Esta questão fica
para os teólogos, e é provável que não selam todos da mesma opinião. Tudo o que
penso fazer é expor tão exatamente quanto possível a maneira pela qual Weber compreendeu (pouco importando eventuais erros teológicos) o papel de Lutero na
sua análise da origem do capitalismo moderno.
A Reforma
introduziu uma nova forma de
conceber a economia (alguns de cujos aspectos, é verdade, já estavam em
gestação nos séculos anteriores), cuja importância os próprios protestantes não
perceberam imediatamente, mas apenas pouco a pouco, na trilha das modificações
que os puritanos introduziram no calvlnismo primitivo. Esta nova forma
econômica é a que chamamos, hoje, capitalismo. Ela, porém, não estava inscrita
no protestantismo originário de Lutero ou Calvino, só tomando corpo entre os
protestantes ulteriores, que à sua maneira aplicaram os preceitos destes dois
reformadores. O engenho da análise de Weber está em mostrar, fundando-se em
textos de época, que esta introdução do capitalismo não obedeceu inicialmente
a uma motivação econômica, porém religiosa. Em outras palavras, o
desenvolvimento da economia não depende necessariamente de transformações
internas a ela, mas estas podem ter uma fonte externa; ou ainda, a economia não
se explica unicamente pela economia. 1
Com efeito, não
devemos esquecer que naqueles
tempos o império da religião era predominante, a descrença constituindo
uma raridade. A religião, profundamente vivida naquela época, não determinou
apenas a ética mas também a conduta prática da vida em todos os domínios,
inclusive — naturalmente — no da economia.
O projeto de Weber
A novidade
introduzida pela Reforma, em particular na sua versão calvinista, dizia
respeito ao ascetismo. Esta atitude foi familiar aos cristãos em todos os
tempos, mas na Idade Média era reservada a uma elite religiosa, a dos monges.
Graças à Reforma passará a governar o comportamento cotidiano de todo crente
que aderiu à nova crença. É a passagem do
que Weber denomina a ascese extramundana (dos monges que fugiam do
mundo para se entregarem à prece e à contemplação) à ascese intramundana,
enquanto prática da vida ordinária dos homens que trabalham neste mundo. Esta
passagem também recebe de Weber o nome de "secularização" do ascetismo,
que o humanista Sebastíen Franck (a quem Weber cita) traduzia nesta forma
típica: a Reforma significa que, no futuro, todo cristão deverá ser monge a
vida toda. Foi, se quisermos, uma espécie de democratização do ascetismo, que
até então era prerrogativa da aristocracia religiosa dos conventos. Já compreendemos,
então, uma das razões para inexistirem mosteiros entre os protestantes.
O
processo descrito por Weber é o seguinte: a ascese dos puritanos na sua vida individual
e familiar opunha-se ao consumo da mais-valia. O que fazer do capital assim
poupado e acumulado, do qual não se gozava pessoalmente? Dar-lhe um uso
produtivo no próprio empreendimento a fim de fazê-lo crescer, sendo este
crescimento racionalmente programado (2). Uma questão se coloca: terá sido
Weber o primeiro a fazer esta análise? Algumas indicações sumárias neste
sentido encontram-se em P. Engels, mas o próprio Weber refere-se explicitamente
a Eduard Bernstein, o autor socialista e marxista que ficou conhecido como
"o pai do revisionismo". Weber tinha relações de amizade com ele e
reconhece que Bernsteirl lhe teria fornecido uma parte da literatura que serviu
de base a esta obra. Contudo, se Bernstein captou bem o mecanismo da acumulação
de capital, Weber considera que não percebeu o outro aspecto, o da racionalização
da vida econômica graças à ascese. Procuremos agora recapitular as diferentes
fases da demonstração weberiana.
A racionalização
Sabe-se
que a crescente racionalização da vida é um dos temas centrais do pensamento
sociológico de Max Weber. O capitalismo introduziu essa racionalização na vida
econômica. Contudo, as primícias desse processo já se encontravam na Idade
Média, e precisamente no contexto religioso. Observemos, porém, que para Weber
o conceito de racionalidade não é inteiramente unívoco, pois contém "um
mundo de oposições". Além disso, a vida pode ser racionalizada em função
de objetivos extremamente diversos e segundo direções extremamente distintas.
Uma destas direções foi a tomada pela ascese na vida religiosa,
particularmente desenvolvida nos mosteiros. Evidentemente, os .monges nem
sequer pensavam em racionalizar a vida econômica, da qual se desinteressavam
devido a seu voto de pobreza, mas tentaram racionalizar a sua vida mesma, na
sua globalidade; a melhor ilustração
disso é a introdução de uma regra, que desde São Bento faz parte da
constituição de uma ordem. Essa é, mesmo, a diferença essencial entre o monarquismo
oriental e o ocidental
O monarquismo oriental
obedeceu a uma tendência mais anárquica. É verdade que os candidatos a esse
tipo de vida renunciavam ao mundo, mas geralmente preferiam a vida arbitrária
do eremita, entregando-se a uma vida religiosa de virtuose que escolhia ele
próprio, a seu critério, as mortificações e até algumas torturas. O monarquismo
ocidental, ao
contrário, está ligado a uma condução metódica da vida. fundada numa
regra comum, exigindo portanto no interior
do convento uma disciplina que rode
até culminar na rigidez militar dos jesuítas. O ascetismo consistia
neste caso em um controle ativo e racional
da vontade, tendo em vista liberar o homem do jugo dos instintos e das
paixões, enquadrando -o numa regulamentação precisa de exercícios e devoções
que pontuavam todas as horas do dia.
Essa
racionalização pela ascese foi herdada por alguns meios protestantes. Foi
sempre estranha aos luteranos, e não foi aceita por todos os calvinistas. Foram
principalmente os puritanos que a integraram em seu estilo de vida, a ponto de
serem comparados, às vezes com
os franciscanos descalços. Por sinal, um enviado de Gênova à
Inglaterra. Fieschl,observou num relatório que o exército de Cromwell lhe dava
a impressão de um capítulo de monges. Contudo,
na transposição do ascetismo produziu-se uma importante modificação, que já
indicamos. Ela é fundamental para compreendermos
o pensamento de Weber. A ascese era praticada pelos monges no
quadro de uma vida longe do mundo (ausserweltliche Moenchsaskese) enquanto o do puritano permanecia diretamente ligada à ação
do mundo, e particularmente ao exercício da profissão que incumbia a cada homem
(innerweltliche
Berufsaskese)
(3). Lutero abria espaço
para a espontaneidade na existência -e para o impulso do sentimento ingênuo, ao
passo que, segundo os puritanos, a vida inteira devia ser moldada de maneira
sistematicamente racional. Compreende-se, assim, que nas cortes dos príncipes
protestantes luteranos fossem tolerados a bebida e até mesmo costumes
grosseiros. Numa família calvinísta puritana, ao contrário, tais comportamentos
viam-se totalmente excluídos: o rigor pessoal de cada um repercutia no conjunto
da família (no sentido amplo), até comprimir toda emoção ou, pelo menos, não a
deixar transparecer. Tem cabimento supor que Max Weber fosse particularmente
sensível a este contraste interno ao protestantismo, não apenas por ser ele
alemão e protestante, mas também por ter nascido numa família de reformados,,
numa Alemanha de maioria luterana. Às vezes me pergunto se um reformado francês poderia ter a intuição de
escrever uma obra como Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Os
puritana em questão são, portanto, antes de mais nada crentes que procuram harmonizar
sua vida cotidiana com suas convicções religiosas, o que os leva a uma conduta
rigorista do ponto de vista moral. Sem
dúvida, como Max Weber não põe dificuldade em reconhecer, o sociólogo
poderia limitar-se a analisar o seu comportamento ético e prático e
negligenciar os seus fundamentos dogmáticos. Uma tal divisão, contudo,
obstaria a compreensão do comportamento dos puritanos e sobretudo das conseqüências
deste. Com efeito, as convicções
religiosas são determinantes no estilo que inauguraram na economia.
A economia puritana
A
vida do puritano não tem sua significação em si própria, nos seus próprios
interesses, porém na glória de Deus. O mundo não existe por si mesmo, mas
porque foi criado por Deus, ad majorem Dei gloriam. Este é o artigo
fundamental da sua fé: é o homem que existe para Deus, e não o inverso. Essa
glorificação da majestade divina não consiste apenas nas manifestações ocasionais
de culto, mas principalmente nos atos de todos os dias. inclusive—e acima de tudo — no exercício da profissão. A piedade, no
sentido de devoção, é vazia quando se limita a atos pios, pois permanece
estritamente individual, e portanto submetida à emoção pessoal. Ora, a
salvação da alma não depende do fiel, mas apenas de Deus, que dele faz um vaso de eleição, ou não. Aqui se reconhece, em linhas gerais, a doutrina da predestinação
de Calvino, segundo a qual unicamente Deus decide quem será salvo ou não. O
crente não pode penetrar os segredos de Deus, menos ainda influir na sua vontade. Nenhum sacramento, cerimônia, emoção ou
superstição podem ajudar-nos a adivinhar os decretos divinos. A conseqüência é
um desencantamento do mundo, condição para racionalizar-se a vida. Contudo, a
doutrina calvinísta da predestinação periga lançar o fiel na incerteza, pois ele não salva a si próprio, em
princípio, por mais que faça. A doutrina católica do perdão e do arrependimento
é inteiramente oposta. Apesar de haver pecado, o fiel católico pode resgatar-se pela confissão, dispondo o padre do poder das
chaves, e no imaginário popular até pode de
certa forma comprar a sua salvação, acumulando durante a existência boas
obras que serão contabilizadas no dia da
sua morte. A absolvição católica, no fundo, é uma consolação.
A predestinação, ao contrário, expunha o calvinista a uma tensão interna, uma vez que o seu
destino está fixado prévia e independentemente dele, tensão que pode converter-se em angústia. Os pastores, que estavam em contato imediato com os tormentos que essa
doutrina pode gerar, foram obrigados a formular certos compromissos para
poderem reagir eficazmente à angústia que a incerteza quanto à salvação podia
suscitar. Fizeram-no de duas maneiras. Por um lado, ensinavam que
considerar-se eleito por Deus é um dever. Assim se esconjurava a angústia
causada pela incerteza acerca da eleição divina. Aos olhos desta pastoral,
manifestar alguma dúvida a respeito até passava como tentação pelo demônio ou,
pelo menos, como sinal de fé insuficiente. Contudo, como sublinhava o pregador
puritano Bunyan, bastava um pecado para arruinar toda essa certeza. Mas
existem sinais que permitem ao fiel adquirir a certeza da sua eleição; deles, o
principal era o sucesso no seu ofício. Em outras palavras, o êxito profissional
tornava-se uma confirmação (Bewaehrung) da salvação, isto é, da inclusão na categoria dos eleitos. Com efeito, esse sinal
indicava que Deus age em nós para sua maior glória.
Com isso, um certo número de controvérsias, a que nos referimos
inicialmente, perde sentido.
Weber trata não propriamente da teologia de Calvino, mas da pastoral dos
ministros da religião — como Baxter, Bailey, Hoornbeek e outros. Em várias ocasiões
nos adverte contra qualquer confusão a respeito (4). Se volto rapidamente a
esse aspecto do pensamento weberiano é porque tenho a esperança de que os
comentaristas se decidirão a ler a sua obra em vez de escutar em os seus preconceitos ou prevenções Também
gostaria de insistir em outro ponto. Weber indica que os primeiros empresários
eram artesãos que, prosperando, empregaram outros artesãos, seus antigos companheiros
de trabalho que freqüentavam o mesmo templo, à medida que suas fábricas se
expandiam. Quer dizer que, nessa época primitiva do capitalismo, empresários e
operários saiam da mesma camada social, ainda mais porque recebiam juntos o mesmo ensinamento do mesmo
pastor, de modo que eram animados pela mesma convicção acerca do trabalho para
maior glória de Deus. É desse enfoque que a idéia da "origem de
capitalismo" alcança todo o seu sentido. O que Max Weber descreve é o
capitalismo primeiro, o dos iniciadores, e não o subseqüente, marcado pela
separação social entre empresários e operários (5).
Divergindo
da doutrina de Calvino em vários pontos, essa pastoral introduziu modificações
na maneira como se recebiam os princípios da teologia do genebrino. Essas
modificações produziram diversos resultados, tanto no plano da teologia quanto
no da ética e, finalmente, no da economia, desde que a maneira de
conceber o trabalho influencia a economia.
A ascese como vocação
Antes
de mais nada, mas de maneira sucinta, as
conseqüências teológicas. O puritanismo
afastou-se da desconfiança do protestantismo primitivo quanto à santíficação pelas obras. Sabe-se que, devido à sua doutrina da sola fides (6), Lutero atribuiu
às boas obras um papel secundário.
Calvino foi menos categórico, porém
considerava que o valor de tais obras
aos olhos de Deus é uma incógnita
para o homem. Contudo, desde que o
sucesso no trabalho se tornava sinal de eleição e que os frutos deste
trabalho permitiam organizar melhor o
regime social, concebido também como
uma glorificação de Deus, era natural
que a pastoral puritana devesse encontrar a idéia da santificação pelas obras, assim se aproximando do catolicismo. Contudo, permanece importante a diferença
entre as duas versões. Essa santificação para o católico continua sendo
uma
sucessão de atos isolados, que ele executa ao sabor das circunstâncias
e das ocasiões. Para o puritano, ao contrário, é a vida inteira que deve ser
erigida no sistema de uma boa obra, significando ademais que Deus não ama os homens
sem razão. A seus olhos, portanto,
não se trata mais de acumular atos discricionários,
mas de seguir um método que faça da
própria vida um conjunto coerente e racional, fundado numa disciplina permanente da conduta. Em segundo lugar, se o puritano não é juiz de sua salvação,
torna-se porém juiz da certeza de sua eleição.
Disso resulta que se considera capaz de
"controlar" o seu próprio estado de graça. "Da mesma forma, escreve Weber, que controlava a sua própria conduta, o puritano das
gerações posteriores controlava o comportamento
de Deus, cujo dedo enxergava em cada
pormenor de sua vida. Contrariamente
â doutrina autêntica de Calvino, sempre
sabia por que Deus tomava tal ou qual disposição" (7) Era essa atitude,
feita de tanta segurança, que irritava os adversários ou contestadores
do puritanismo. Como quer que fosse, essa vigilância constante dava lugar a uma
espécie de contabilidade moral, sob a forma por exemplo de diários íntimos, que
relatavam o progresso do fiel no caminho das virtudes e da graça, a exemplo
das estatísticas morais de Benjamim Franklin.
No
plano ético, a conseqüência foi o rigorismo
da ascese puritana, cuja origem se encontra precisamente nas crenças e
práticas religiosas. Weber reconhece que
outros autores já abordaram esse tema, e situa a sua originalidade no
evidenciamento do caráter racional desse tipo de ascetismo. Ele é igualmente
governado pela preocupação de glorificar a majestade de Deus. A ascese
calvinista reside essencialmente na labuta, no
"trabalho sem descanso em seu ofício". A atividade temporal
assim se torna caução e confirmação da eleição espiritual, graças à disciplina imposta pelo trabalho. Weber precisa,
contudo, que essa disciplina não deve ser comparada à dos jesuítas, porque
estes nunca estabeleceram ligação intrínseca entre a atividade temporal e a
certeza da salvação. No fundo, este ascetismo deixa-se resumir na fórmula:
"Deus ajuda a quem se ajuda" (8).
No
que consiste a racionalidade deste ascetismo?
Negativamente, significa o recalcamento da subjetividade do sentimento e
da efusão religiosa, assim como a impersonalidade da prescrição ética. O
puritano não trabalha para si mesmo, para o gozo que possa ter, mas para maior
glória de Deus. Daí a necessidade de controlar seus impulsos, suas emoções,
desejos e ímpetos. Todavia, tal atitude não exclui a satisfação do indivíduo, que
porém só pode consistir na certeza da salvação. Para tanto Baxter chega a
recomendar que nos guardemos de toda
expansão na amizade, que desconfiemos de todo
ardor na ajuda ao outro ou na solidariedade. Spangenberg pretende
seguir o versículo do profeta Jeremias: "Desgraçado o homem que confia no
homem". O puritano não deve ter outro confidente além de Deus. Assim, o
calvinismo não conhece tensão, como a kierkegaardiana, entre o indivíduo e a
moral. Como o trabalho é o meio para glorificar a Deus, perde toda conotação
pessoal. Nestas condições se compreende que o puritano se mostre hostil à
contemplação e à mística, pois são elas formas de ociosidade que favorecem a
efusão irracional, e também ao quietismo, que encoraja a fuga para fora do
mundo, no sentido da ascese extra-mundana. O místico entende estar em comunicação
com Deus (9), enquanto o puritano, ao
contrário, se considera apenas como o instrumento de Deus que está
destinados a glorificar, por melo do seu trabalho, a cria
ção: não passa de administrador dos bens
adquiridos por seu trabalho.
Positivamente,
esta atitude é racionalizadora em seu metodismo, que introduz a coerência entre
a fé e a atividade temporal entre o dogma e a prática. Todo ato assim se
inscreve na lógica do anterior; e o conjunto dos atos, num sistema global da
vida. Tal coerência só é possível sob a condição de que o crente não tome posse
ele próprio dos frutos do seu trabalho,
isto é, que não se faça de dono a
gozá-los. Com efeito, este último comportamento conduziria, a longo prazo, ao ócio e às tentações da carne, ao desperdício
das capacidades que Deus concedeu ao homem para que este O glorifique. O principal
pecado consiste justamente em desperdiçar o tempo, o que significa, gastá-lo em
outras coisas, dedicar-se a ações inúteis e imorais. Por conseguinte os
pregadores puritanos não condenavam apenas o luxo ou a preguiça mas também.a
exemplo de Baxter ou Sanford, a vã tagarelice e até mesmo os transportes
amorosos no seio do casamento A acumulação da riqueza não é proibida se ela
resulta do trabalho, pois o que se condena não é a aquisição racional de bens,
mas o seu uso irracional. Isso quer dizer que a riqueza não libera o indivíduo
do imperativo de trabalhar, pois ambos são modos de glorificar a Deus, ainda
mais por ser o lucro sinal de eleição. "Trabalhai então para serdes ricos
para Deus, declarava Baxter, não para a carne e o pecado." E Weber assim
comenta este comportamento: "Aquele que sabe, melhor que o seu próximo,
empregar para a glória de Deus o que possui não está absolutamente obrigado por
amor ao próximo a repartir seu bem com ele" (10).
Pobreza
e lucro
Está evidente que tal Berufsaskese pelo
trabalho entra em contradição com o ascetismo da pobreza, sobretudo o dos
monges que fazem voto neste sentido. Sem dúvida, há no mundo os que são pobres
por condição. O puritanismo os aconselha a serem capazes de suportar o seu
estado. Em contrapartida, rejeita como "doença" o fato de se forçar
à pobreza e de felicitar-se ou glorificar-se por ela. O homem não tem de
glorificar a si próprio, mas somente a Deus. Por mais forte razão, os puritanos
recusam a mendicância.
Esta ética ascética do trabalho não podia deixar de
repercutir tanto no consumo dos bens quanto na sua produção. A parábola do
servidor despedido porque não fizera frutificar a moeda que seu senhor lhe
confiara servírá de justificativa para a busca do lucro, que passa não apenas
por permitido, mas ainda por um dever ético e religioso. "Se este Deus,
escreve Weber, que o puritano vê agindo em todas as circunstâncias da vida,
mostra a um de seus eleitos uma ocasião de lucro, é de propósito. Portanto, o
bom cristão deve responder a este apelo." (11) Deste ponto de vista, o
puritanismo produziu uma ruptura na mentalidade tradicional que nem Lutero nem
Calvíno chegaram realmente a reprovar: suprimiu a desconfiança face ao desejo
de aquisição e da crematística. A partir de agora o lucro deve ser considerado como
desejado por Deus, sob a condição de não o convertermos em objeto de gozo. Gomo
bom administrador da fortuna desejada por Deus, o empresário deve empregá-la
para fins úteis, que serão diversas maneiras de glorificar a Deus. Em outras
palavras, o novo estilo teve um duplo efeito: econômico e social.
O efeito econômico foi o que recebe maior ênfase
por parte dos intérpretes de Weber: não se podendo valer dos produtos do seu
trabalho a título de possuidor a gozá-los, o puritano investiu o lucro no seu
negócio, para desenvolvê-lo como bom intendente do seu único dono, a saber,
Deus. A audácia do projeto de Weber consiste, portanto, em mostrar-nos que o
novo desenvolvimento econômico não obedeceu a motivos puramente econômicos,
mas também a motivações religiosas e éticas. Em outras palavras: sinal da
bênção divina, a economia se tornará também bênção para os homens, no sentido
de uma economia da abundância.; Contudo, Weber detém-se apenas no primeiro
aspecto, salvo para notar que esta concepção puritana "velou no seu
berço o homo economicus moderno" (12). Evidentemente, dada a natureza humana, era de se esperar
que se desviassem as intenções dos primeiros empresários puritanos. Disso
tinha perfeita consciência o metodista Wesley, promotor do revival:
perguntava se o aumento das riquezas e bens não acarretaria, inversamente, uma
debilitação da religião. Não Obstante, declarava: "Não impeçamos os homens
de serem diligentes e frugais. Exortemos todos os cristãos a ganharem e a
pouparem o que puderem, em outras palavras, a se enriquecerem". Mas, ao
mesmo tempo, recomendava aos seus fiéis que dessem
sob outras formas o que tivessem adquirido. Preconiza, portanto, uma
racionalização sociai a partir da racionalização econômica. Porém, observa
Weber, um tal projeto era estranho a Lutero, fiel à indiferença paulina, pois,
ainda que timidamente, implicava uma reforma social.
Raros comentaristas de Weber perceberam que ele credita aos
primeiros empresários puritanos a iniciativa do que chamamos de questão
social, por sinal num sentido utilitarista que os economistas liberais vulgarizarão
mais tarde. Não é o menor dos paradoxos que a conduta rigorista e ascética dos
puritanos tenha sido uma das fontes do utilitarismo. O fato de contribuir para
uma organização melhor da sociedade constituía, aos olhos destes pioneiros, uma
outra maneira de celebrar a glória de Deus, criador do mundo mas também da
ordem social. Esta obra respondia, ao mesmo tempo, à impersonalidade da
racionalização puritana, no sentido de que o crescimento econômico era posto a
serviço da utilidade social geral, portanto impessoal. Inscrevia-se no sistema
dos comportamentos metódicos que se diferenciavam da fragmentação das boas obras
do catolicismo (esmola, dom, etc.) em atos isolados. Weber considera
sintomático que os pregadores puritanos tenham substituído, nas suas
justificações, a simbólica jurídica tradicional pela simbólica comercial, concebendo
a sua pastoral segundo os procedimentos "de uma exploração
comercial" (13). Baxter, por exemplo/explicava a invisibilidade de Deus
através da imagem do comerciante que trata por correspondência, com um
estranho a quem nunca viu. O mesmo pregador insistia nas virtudes da divisão do
trabalho, com uma eloqüência que as vezes faz pensar na de Adam Smith, porque
ela condiciona uma produção quantitativa e qualitativamente superior, em
proveito do bem geral, isto é, do bem impessoal do maior número. Recorria,
portanto, à motivação utilitária.
Esta maneira de ver dos pregadores inspirou a conduta de
todos os seus fiéis, tanto dos operários quanto dos empresários. Para uns e
outros, o labor industrioso constituía um dever face a Deus. A religião do
trabalho terminou determinando o comportamento de todos; os sindicatos a
herdarão no século XIX. É
toda imagem do trabalho que desde então se vê modificada. Com efeito, a
indústria moderna, apesar das lutas que gerou, só foi possível a partir da
concordância inicial no piano religioso, entre operários e empresários. As
duas categorias participavam igualmente da. "edificação do cosmos
prodigioso da ordem econômica moderna" (14)
Weber
insiste no fato de que esta mentalidade foi unicamente a dos agentes
(operários como empresários) do capitalismo primitivo, pois, posteriormente,’
mudaram as coisas, devido ao declínio das convicções religiosas. Mais tarde,
com efeito, "o ardor pela busca do reino de Deus começava a diluir-se
gradualmente na fria virtude profissional; a raiz religiosa definhava,
cedendo lugar à secularização utilitária" (15) E Weber acrescenta:
"Hoje o espírito do ascetismo religioso escapou
da gaiola — definitiva mente? Quem poderia
saber… Seja como for, o capitalismo vencedor não precisa mais deste apoio,
desde que repousa numa base mecânica" (16). Mas é inegável que um dos
elementos fundadores do espírito do capitalismo moderno foi este empenho numa
conduta metódica e rigorosa, por razoes religiosas, e que por isso mesmo foi
também uma das fontes da civilização moderna. Gostaria de insistir nesta
conclusão de Weber, pois ela
pouparia numerosos mal-entendidos do lado de seus intérpretes.
A noção de Beruf
Até aqui, nossa análise deu pouca consideração a Lutero, exceto para opor,
ocasionalmente, o luteranismo e o calvinismo. Parece, então, que a doutrina
luterana não terá desempenhado um papel no advento do capitalismo. À primeira
vista, tal observação pode parecer adequada, sobretudo .se levamos em conta
algumas observações de Weber. Por um lado,
o capitalismo teve o seu berço na Holanda e na Inglaterra, antes de
emigrar para a América, isto é, nos países ditos reformados, embora Weber
considere que "reformado" não é absolutamente sinônimo de
"calvinista". A Alemanha luterana manteve-se
à parte do movimento, e quando o espírito capitalista penetrou nela foi
sob impulso da minoria reformada. Por outro lado, Weber pensa que, sem o
calvinismo, o protestantismo não passaria de uma religião confinada no norte da
Europa. Se conseguiu implantar-se em quase todas as partes do mundo, foi graças
ao espírito expansionista do calvinismo.
E
no entanto o papel do próprio Lutero — não
o do luteranismo — não foi nulo, nem sequer
negligenciável. É verdade que Lutero não contribuiu.para o surgimento
positivo e o histórico do capitalismo enquanto sistema econômico — mas elaborou uma maneira de conceber a ética que
influenciou o espírito do capitalismo. É neste sentido que dissemos, acima, que a noção de "ética protestante",
que figura no título da olra de Weber, não é tão incongruente quanto alguns o
pensam. Compete-nos então, se quisermos fazer uma avaliação correta do
pensamento de Weber, mostrar por que Lutero não foi diretamente, porém
indiretamente, uma das fontes do espírito capitalista.
Várias
vezes, nas linhas que precedem, aludimos ao obstáculo que a doutrina de Lutero
constituiu para o surgimento da economia capitalista. Esta tem por fundamento a empresa levada
racionalmente a cabo, com base num comportamento racional e metódico dos agentes econômicos. Com efeito
— é esta a idéia cardeal da tese de Weber —
a racionalidade econômica não é intrínseca ao desenvolvimento da
economia, mas é introduzida de fora, graças à atividade dos homens que adotaram
uma conduta racional, neste caso devido a
motivos éticos inspirados por uma pastoral religiosa. Ora, esta
racionalidade da conduta não se encontra na doutrina de Lutero. É por isso que
o luteranismo não era capaz de imprimir um novo rumo à economia.
Por
um lado, com efeito, Lutero abre espaço à espontaneidade e à emoção ingênua na
condução da vida. Ele sofria o que hoje chamamos de "estados d’alma".
Em todo caso, não excluía a união mística,
como mostram as suas referências ao místico re-nano Tauler. É que Lutero
tinha uma consciência viva do pecado
original, o que significa que ele sentia intensamente a indignidade da
criatura causada por este pecado, contrastando assim com a certeza que os puritanos
tinham da eleição divina. Por conseguinte, a idéia de uma possível danação
eterna fazia parte da experiência religiosa do luterano. Em outras palavras, o
mundo de Lutero conservava o encantamento. Deste ponto de vista, Lutero estava
mais perto do catolicismo que os calvinistas, isto é, era mais tradicionalista.
"Faltavam-lhe por completo o estímulo do controle constante de si
mesmo", escreve Weber, "a regulação metódica da vida pessoal que a
pesada doutrina calvinista implica. Um gênio religioso como Lutero podia viver
sem problemas nesta atmosfera de abertura ao mundo e de liberdade tanto tempo
quanto o seu impulso lhe permitisse" (17). Compreende-se, nestas
condições, que Lutero desconfiasse do ascetismo, de uma sistematização da
conduta e de uma racionalização metódica da existência. O fiel tinha, para
ele, direito a gozar a vida, desde que a fé permanecesse intacta. Assim, ao contrário dos calvinistas, a doutrina
de Lutero não excluía o arrependimento e a regeneração da alma que se
extraviara, simplesmente porque não fornecia nenhuma segurança acerca da certitudo
salutis ou da possibilidade de ser um santo que tivesse atingido a
perfeição. Tal contraste Weber resume da seguinte maneira: "Os calvinistas acusam os luteranos de sentirem ‘um verdadeiro
terror só de pensarem em se tornar santos’ (Moehler); os luteranos, em
compensação, censuram aos calvinistas a sua ‘submissão ser-vil à lei’, assim
como a sua arrogância" (18). A novidade ou modernidade de Lutero consistiu
em rejeitar a idéia salvação pelas obras,seguinte a de contabilização
das boas ações.Nada podia irritar mais a Lutero do que o uso das
indulgências, que não constituía um abuso menor, mas o mal profundo da Igreja.
As obras, isto é, os frutos do trabalho, pelo contrario, constituem, aos olhos
do puritano, um dos sinais da eleição. O
sucesso no mundo, sob a forma de uma organização econômica e social,
opunha-se ao sentimento de Lutero, que se mantinha fiel à autoridade política e
indiferente a toda inovação que não fosse religiosa. De um
angulo mais geral, "a tendência à disciplina ascética, aos
olhos de Lutero, era suspeita de constituir uma santificação pelas obras",
o que o levou, e sua Igreja com ele, a repetir com ênfase crescente esta idéia" (19). É verdade que
Lutero proferiu imprecações contra os privilegiados da fortuna seus contemporâneos,
especialmente contra os Fugger (20), mas
não o fez em nome da idéia de austeridade ou de ascetismo, e sim com base na
doutrina tradicional a respeito das aquisições injustas e ilícitas. Com
efeito, Lutero praticamente’ não estava a par dos escritos econômicos de sua
época, como por exemplo os de Antonino de Florença, que contestava os
argumentos acerca da
esterilidade do dinheiro. Afinal, como observa Weber: "Em
numerosas declarações contra a usura e o juro em geral, Lutero exprime
sem qualquer equívoco, sobre a natureza da aquisição capitalista, convicções
que, comparadas às da escolástica tardia, de um ponto de vista capitalista são
francamente atrasadas" (21). Para dizer a verdade, Calvino nào tinha mais
conhecimentos a este respeito que Lutero. O que é uma razão a mais para não
confundirmos a doutrina de Calvino com a posterior pastoral dos puritanos.
A
contribuição de Lutero
Aclaremos mais uma vez qual é a ética de Weber.
Não dirige a atenção para a origem da economia capitalista enquanto prática
econômica recém-introduzida no circuito empírico das trocas e da produção, mas
para o espírito do capitalismo, quer dizer, a mentalidade que favoreceu a
inovação capitalista. Por sinal, os pastores puritanos também não conheciam a
literatura econômica do seu tempo, e no entanto influenciaram o espírito da
nova economia com sua pregação. É no mesmo sentido que devemos compreender a
contribuição de Lutero para o espírito do capitalismo.
Vimos que importância os primeiros empresários
atribuíam ao ofício, que consideravam como uma vocação: estavam tomados pela.
certeza de que Deus os chamara a determinado ofício, para que o fizessem frutificar
com vistas à maior glória divina. Ora, foi Lutero o primeiro a elaborar esta
maneira de conceber o ofício, com o vocábulo de Beruf, que tem a dupla
conotação de profissão e vocação. É difícil, aliás, traduzir este termo em
outras línguas por uma palavra que possa respeitar o seu duplo sentido. O
próprio Weber observa-o: nas outras línguas "não existe nenhum vocábulo
com matizes adequadas a designar o que nós, alemães, denominamos Beruf"
(22). Foi por meio dessa noção que Lutero pesou no espírito do capitalismo,
embora os calvinistas e purita nos a tenham recebido bem tardiamente apenas no
correr do século XVII.
Foi traduzindo a obra de Jesus ben Sira que Lutero
deparou com a noção de Beruf, para traduzir os termos ergon e ponos,
que significam a ocupação contínua a que um homem se dedica. Será exata a
tradução? Weber considera que ela mais reflete a interpretação do tradutor do
que o sentido original. Pouco importa, porém; o fato é que o vocábulo veio a
tomar-se corrente nos meios luteranos, antes de emigrar para outros países
protestantes, recebendo, por exemplo, a denominação de calling em inglês. Somente as línguas latinas ficaram de fora, não tendo ainda conceito único para
exprimir a noção de Beruf na sua dupla conotação de profissão e vocação.
Com essa noção, Lutero pensava atribuir valor
positivo à atividade cotidiana e temporal enquanto expressão da vida moral, ao
contrário do catolicismo que valorizava mais a vida monástica e os atos
descontínuos e excepcionais de caridade, ou as boas obras. Desde então a labuta puramente tem
poral adquiria dignidade igual à da tarefa espiritual. Talvez Lutero tenha
sofrido a este respeito a influência do místico Tauler, que já considerava como
equivalentes as vocações espiritual e mundana. Desimcubir-se corretamente do
trabalho profissional passou então a constituir um dever e uma maneira de viver
que agrada a Deus. Foi uma profunda mudança na mentalidade da época, pois, como
nota Weber, "tal valorização da vida neste mundo, considerada com –uma
tarefa a cumprir, teria sido impossível na pena de um autor medieval"
(23). De resto, é verdade que o pensamento de Lutero variou acerca dessa questão
no correr da sua vida, especialmente em conseqüência da Guerra dos Camponeses,
pois constata-se um retorno à concepção tradicional após esta agitação.
Contudo, estas considerações só valem para estudarmos a evolução do pensamento
pessoal de Lutero, pois o luteranismo mais tarde vulgarizou a noção de Beruf,
que, retomada pelos puritanos, tornar-se-á, como vimos, um dos conceitos-chave
da sua ética.
Constatamos acima o quanto a ética puritana era severa e rigorista. Contudo , se é verdade
que o capitalismo nascente foi acima de tudo obra dos calvinistas, a contribuição
destes não foi exclusiva. Outros retomados empenharam-se na mesma via, de
maneira menos característica: pietistas, metodistas e batistas. Weber
consagra-lhes um certo numero de páginas. Eles abrandaram e temperaram a
rigidez puritana, incluindo na sua doutrina elementos de proveniência luterana,
em especial a abertura de um espaço para a espontaneidade e o sentimento davida.
Numa certa medida,
o pietismo reforçou o
ascetismo calvinista, mas, ao mesmo tempo, e muito mais flexível no que diz
respeito à dogmática. Manifestou desconfiança pela Igreja dos teólogos,
considerando até que os predestina dos podiam estar sujeitos a erros
e a pecados. Por um lado, portanto, aproximava-se do calvinísmo ao recomendar o
ascetismo e a integração das boas sob a condição de que fossem realizadas para
a maior glória de Deus. Por outro, e avizinhava-se do luteranismo admitindo a
regeneração de uma alma que se extraviasse provisoriamente e repugnando a
solidão de um "eu" puramente racional, amputado de toda
sensibilidade. Sem dúvida, as boas obras nào eram absolutamente necessárias
para a salvação, mas tornavam-se necessárias desde que se adquirisse a certeza
desta, porque quem abrisse mão delas não seria realmente salvo.
Encontra-se esta mesma mistura incerta no metodismo. Como o
próprio nome indica, defende este uma condução sistemática da vida.
característica do puritanismo, mas também concede grande importância à espontaneidade
na prática religiosa, chegando mesmo a aprovar o êxtase. Até considera que
podemos alcançar a consciência da perfeição já besta vida. embora tal objetivo
seja difícil de se atingir, de modo que não é possível realizá-lo a não ser
perto da morte. Contudo, como no luteranismo, a graça pode ser sentida
internamente, o que quer dizer que a conduta virtuosa e rígida não é bas-tante;
mas, como o calvinista. o metodista aceita
a prática das boas obras, embora não sejam causa de estado de graça, apenas
meio para reconhecê-lo.
Weber considera os batistas não como uma igreja, mas como
um conjunto de seitas que. na maior porte nasceram na Europa nos confins do
luteranismo. O fundamento espiritual destas seitas diverge em profundidade
da doutrina calvinista, na medida em que se referem (pelo menos as primeiras
comunidades históricas) ao pneumatismo da Igreja primitiva e repousam na
regeneração do fiel através de um segundo nascimento pelo batismo. O aspecto
pneumático da sua doutrina faz que não concebam a Bíblia como fonte única da
revelação, pois esta é permanente, no sentido de que o Espírito Santo pode agir
cotidianamente em cada crente e conceder-lhe o espírito profético. Tais seitas,
porém, aproximam-se. do calvínismo porque, por um lado, integram na prática as
boas obras, por outro, preconizam a impregnação da vida pelas virtudes ascéticas.
Em suma, o homem deve agir neste mundo — embora diversas seitas recusem praticar
o Juramento ou fazer o serviço militar, mas nunca fazendo deste mundo a finalidade
da existência.
Como de hábito, Max Weber esmaltou a sua análise de
considerações epistemológicas, que fazem parte integrante do texto e que é
necessário levar em conta durante a leitura para captar o seu método de investigação.
É este aspecto, aliás, que irrita os numerosos pseudo-sociólogos que fazem da
sociologia uma arma de combate ideológico, desprezando a lógica interna de uma
ciência. Em particular, Weber não abordou a noção de capitalismo com o parti
pris do sectário que começa lançando sobre o sistema econômico a culpa por
todos os pecados da terra. Deste ponto de vista ele até é mais fiel a Marx que
os soi-disant marxistas contemporâneos que povoam as universidades, pois um
dos mais belos elogios do capitalismo está justamente assinado por Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista. É verdade
que, em certos meios, existe o costume de se ler Marx tão mal quanto Weber.
Contudo, os preconceitos atuais nunca chegarão a obliterar o fato de que o
capitalismo não somente transformou a economia em profundidade, mas também deu
nova fisionomia à civilização (este é um ponto no qual Weber insiste várias
vezes). Além disso, o socialismo nasceu do capitalismo, o que quer dizer que
não seria compreensível o socialismo sem o capitalismo e que talvez o fim deste
também signifique o fim daquele. O socialismo não é o contrário
do’capitalis-mo, como se crê, mas tem este em seu coração.
A atitude científica de Weber consiste em reconhecer que o
capitalismo é um fenômeno histórico de primeira grandeza. Isso posto — e como
não o reconhecer, a não ser de má fé? — indaga-se acerca da origem deste
capitalismo moderno. Também é in- discutível historicamente que ele nasceu em certos
meios religiosos que, por preconizarem uma conduta ética racional, introduziram
essa racionalidade na gestão econômica. Assim criaram um espírito novo, uma
nova mentalidade, que favoreceu a eclosão do capitalismo moderno. É isto o que
Weber denomina o espírito do capitalismo. Em todo caso, é esta questão e apenas
ela que o interessa n‘A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Em outras obras, especialmente na sua notável Wirtschaftsgeschichte (História
da economia), já não se ocupa tanto com o espírito do capitalismo, mas com a
maneira pela qual o capitalismo, enquanto instituição concreta, implantou-se
material e historicamente no Ocidente. Não ignora absolutamente as contradições
do capitalismo, mas tampouco o converte em uma salada ideológica, sabendo,
sociólogo sagaz e lúcido, que toda instituição humana (inclusive o socialismo inevitavelmente
comporta contradições. Existe um duplo erro espitemológico que se deve evitar.
Consiste o primeiro em acentuar as contradições de um sistema para melhor
dissimular as de outro.
O segundo
está em criticar um sistema a partir de
outro, por exemplo, criticar o socialismo a partir do capitalismo ou o
inverso, pois as contradições do capitalismo não são as que se lhe pode imputar
a partir do socialismo, mas as suas
intrínsecas, no sentido de que a doutrina capitalista não é totalmente
harmoniosa em si mesma.
O espírito do capitalismo
É no
mesmo espírito que Weber aborda a análise
do protestantismo e de suas diversas formas históricas e empíricas: o
luteranis-mo, o calvinismo, assim como suas diversas fisionomias, por exemplo o purítanismo ou o metodísmo. Em nenhum
momento tenta avaliar ontologicamente estas diversas religiões, proclamando por exemplo a superioridade
do calvinismo sobre c luteranismo, ou o contrário. Esse tipo de avaliação
compete aos crentes, não ao pesquisador. O
problema deste é apreender no que tais doutrinas convergem e no que divergem quanto à ética,, e ao comportamento
econômico, em que pontos se aproximam do catolicismo ou deles se afastam. Todas
comportam, ademais, contradições. É por isso que escreve, à p. 188: "Não devemos esquecer que o puritanismo
continha um mundo de contradições". Esta noção de contradição está ha
própria base da distinção que estabelece entre a doutrina de Calvino e a
pastoral dos pregadores calvinistas posteriores. Uma das passagens mais
características se encontra à p. 105, quando mostra a dupla orientação da
pastoral puritana, para superar as dificuldades e as contradições da doutrina.
Mas Weber também precisa como a pastoral finalmente conseguiu vergar a
doutrina primitiva e a sua dogmática, modificai do, portanto, no correr do
tempo, a fisionomia desta religião. Com efeito, toda religião se desvia, ao
passarem os séculos, do seu princípio original. Poderíamos acrescentar que, no
fundo, .a ideologia moderna, à sua maneira, no contexto moderno, é como que um
remanejamento da antiga pastoral, com o fim de tentar camuflar as contradições
dá doutrina que lhe serve de base.
—É claro que não se poderia
atribuir a Calvino o nascimento do
capitalismo — nem a emergência, no século XVII, do puritanismo. Weber
insiste a esse respeito: "É por isso que devemos admitir que os
efeitos da Reforma sobre a cultura, em
grande parte — ou mesmo, de nosso ponto de vista particular, na parte preponderante —, tenham sido conseqüências
imprevistas, não desejadas, da obra dos reformadores — conseqüências às vezes
muito afastadas de tudo o que eles se propuseram a atingir, às vezes até mesmo
em contradição
com tais metas" (24). A história é feita de conseqüências não previstas e
não desejadas, quando as comparamos com as Intenções dos agentes. O ascetismo
pregado pelos pastores puritanos não era policial nos seus princípios, e no
entanto, como observa Weber, "a
vigilância absolutamente policial sobre a vida das pessoas, nas igrejas
calvinistas estabelecidas, comparava-se à da Inquisição" (25). Outra
conseqüência paradoxal, reside no fato de que, embora o purítanismo, como toda
religião cristã, fosse atraído pela transcendência, para a ação ad majorem Dei
Gloriam, na realidade, porém, contribuiu em ampla medida para a secularização
do mundo moderno, orientando a civilização "para este mundo" (26).
Chegamos assim ao fundamento do pensamento epistemológico de Weber, que ele
expôs com maior clareza no seu estudo sobre Die Objektivitaet sozialwissenschaftlicher
und sozialpolitischer Erkenntnis (27). Na sociologia, importa considerar que toda atividade pode ser
tanto condicionante quanto condicionada, simultaneamente ou na sucessão do
tempo. A religião pode condicionar a
economia, assim como pode ser condicionada por esta última; a ética
pode condicionar a política ou por ela ser
condicionada. A ideologia consiste em privilegiar unilateralmente um
destes dois movimentos, proclamando por exemplo que toda a vida social seria
condicionada pela economia, de modo que a
religião, a moral ou o direito não passassem de meras superestruturas da
economia. Seria travestir a realidade histórica não reconhecer o império
que" exercia a religião sobre os
espíritos, no século XVI, no qual
a fé foi tão intensa que suscitou as guerras de religião. A economia não passou
de um papel secundário nesta questão. Não esteve ausente dela, mas não
constituí a sua explicação globalizante.
Por isso Weber nunca cessou suas advertências. "Está fora de
questão sustentar uma tese tão pouco razoável e tão doutrinária, que
pretendesse que o espírito do capitalismo(…) não passaria de resultado de
certas influências da Reforma, chegando mesmo a afirmar que o capitalismo enquanto sistema econômico é uma criação
dela (28)." ‘
Ou
ainda, "temos dç nos livrar da idéia de que a Reforma pode ser deduzida
como historicamente necessária, a partir de transformações econômicas" (029). Ou, finalmente: "Será
necessário protestar que o nosso desígnio não é, absolutamente, substituir uma
interpretação causai e estritamente materialista da história por uma interpretação
espiritualista da civilização e da história, que não seria menos unilateral
que a outra? (30). Infelizmente, comentaristas em excesso não levaram
em conta essas precau ções,
embora tão explícitas.
A
primeira condição para a leitura cien tífíca
de uma obra, como agora a de Weber. é que a compreendamos com suas
próprias categorias e não a partir de outras que lhe sejam exteriores, ou de um
a priori que desfigure o seu pensamento. Esta confusão está na base de certas
controvérsias inúteis} que terminam dando em nada do ponto de vista científico.
Isso posto, seria estúpido negar que também existem contradições no pensamento
de Weber, mas só conseguire mos extraí-las e delimitá-las se nos dermos ao
trabalho de conhecer bem o que ele disse e escreveu efetivamente, em vez de lhe
atribuirmos dizeres que não são os seus. Este é até o primeiro dever da
probidade íntelec tual.
(Tradução de Renato Janine Ribeiro)
Notas
(1) Vocação ou profissão.
(2) Veja-se o texto "Dit protesrantische Ethik und dar
Geist des Kapiralismus", In Max Weber, Gesammelte Aufsaetze zur
Religionssoziologie, Tubinga, Mohr, 1947, t. I, pp.
192-193. Não havando outra menção, as
referencias no correr do artigo são a esta obra. (N. do T.: Existe uma tradução
brasileira, por Maria Irene Symrecsányi e Tomás Szmrcsányi, dasta obra da Webar: A Ética
Protestante e o Espirito do Capitalismo, São Paulo, Pioneira, 1968.
Dois capítulos dela foram incluídas no
volume Weber de Os Pensadores, editora Abril; uma nova edição do
livro foi lançada este ano pela Editora Universidade da Brasilia.)
(3) Ibid. p. 117.
(4) Entra outras, à p. 89 nota 1, à p. 106
nota 1. p. 123, ou, ainda, è p. 163.
(5) E neste sentido que se deve entender a frase de Weber:
"As indústrias então nascentes foram, na maior parte, obra de
novos-ricos", p. 50.
(6) Isto é, a doutrina de que a salvação se dá apenas
pela fé (N. do T.).
(7) Ibid,, p.123.
(8) Ibid., p.111.
(9) Weber, porém, não exclui que a mística possa constituir uma
fonte de racionalidade, mas uma mística diferente em sua natureza da do calvinista. Ver
as pp. 107-106.
(10) Ibid.. p. 175, nota 2.
(11)
Ibid., pp. 175-176.
(12) Ibid., p. 195.
(13) Ibid., p. 124.
(14)
Ibid., p. 203.
(15) Ibid. p. 197.
(16)
Ibid., p. 204.
(17) Ibid , p. 127.
(10) Ibid., p. 122, nota 2.
(19)
Ibid, p. 79.
(20) Importantes banqueiros alemães do século XVI; entre outros investimentos financiaram em 1519 a eleição de
Carlos V como imperador Romano-Germânico, que
mais tarda condenaria e tentaria perseguir Lutero (N. do T.).
(21)
Ibid., pp. 73-74. (22)
Ibid., p. 63.
(23) Ibid., p. 80
(24) Ibid., p. 82.
(25) Ibid., p. 161.
(26) Ibid., p.82.
(27) Veja-se Max Weber, Gesammelte Aufsaetze zur Wis
senschaftslehre, Tubinga, Mohr, 1951, p. 162.
(28) Die protestantische Ethik und der Geist des
Kapitalis-mus, p. 83.
(29) Ibid., p.83.
(30)
Ibid.,
p. 205.
O
Autor — Julien Freund é sociólogo,
tradutor e introdutor das obras de Max Weber na França. Leciona
na Universidade de Strasbourg.
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