A FAZENDA AZUL
dez 17th, 2009 | Por Nei Duclós | Categoria: Contos, CrônicasNei Duclós
Visitei o Pampa num sonho. O horizonte como a linha estaqueada entre dois moirões invisíveis; o pasto coberto de flores azuis de um abril imaginado; alguns tufos de árvores de escassa presença em relação à majestade da paisagem, mas generosas na sombra sobre dois viventes. Eles aparentavam aquela idade em que tudo foi posto de lado, menos a dignidade de continuar entre o que resiste. Conversavam dividindo um chimarrão que, pelo gosto com que era sorvido, parecia feito de erva especial, das que não se fazem mais, fruto da colheita de índios migrantes, especialistas na escolha da essência do sabor e do aroma. Um deles me pareceu o anfitrião: tinha o rosto coberto por grossos óculos de grau e sombra. Era acompanhado por chapéu de feltro, colocado no chão, ao lado do tronco do umbu onde se sentava. Era calvo e olhava seu interlocutor com a cabeça levantada, como fazem os homens do pampa, em sinal de admiração e respeito quando ouvem alguém importante, não pelo cargo que ocupa, mas pelo carisma que projeta entre os raios grossos que caíam da tarde luminosa.
– Então esta é a famosa Fazenda Azul, doutor Chagas e Silva, disse o outro homem, de cabelo penteado para trás, duas entradas na fronte, e que usava uma camisa quadriculada de lã e uma bombacha fina, com os botões abertos no tornozelo. Dizia isso enquanto descalçava a sandália de marca Roda que fazia seu conforto naquela conversa prazerosa.
– Sempre à sua disposição, governador. A Fazenda Azul é propriedade não minha ou de minha família, mas como o sr. mesmo disse pelo rádio naquele 1961 em pé de guerra, ela é patrimônio da Legalidade.
– Foi o que falei agradecendo o seu gesto grandioso, Dr. Chagas e Silva. Mas parece que riram de mim e do senhor quando dei essa notícia no rádio.
Chagas e Silva era o mais notório milionário virtual da fronteira. Visto como um mendigo pela população inteira, visitava diariamente a agência do Banco do Rio Grande do Sul e reclamava de uma ordem de pagamento que esperava há tempos do Rio de Janeiro, fruto de venda de um lote de gado de primeira linha. Os bancários faziam parte da algazarra que se instalava no banco. Fingiam que procuravam, davam gritos de uma sala a outra, corriam falsamente pelos corredores, para então dar a má notícia: não, doutor Chagas, ainda não tinha chegado. Ao que então nosso herói fazia uma de suas célebres invectivas, em que se vangloriava de suas posses, o que o colocava entre os grandes potentados da campanha. Dizia isso sofrendo o embate do riso alheio, abafado nuns, explícito em outros.
Discursar era com ele. Tinha vocação para a oratória, criado que foi naquele pedaço de chão e de História, em que tudo era decidido no verbo, eventual emissário de bala. Atraía a molecada que gostava de puxar sua bengala, tirar-lhe o chapéu da cabeça e chutar pela calçada, o que o deixava furioso. Investia contra os bárbaros que não reconheciam sua posição e importância. Por isso causou estrago quando convenceu o governador Leonel Brizola de que podia contar com a Fazenda Azul no esforço que estava fazendo para impedir o golpe da direita e garantir a posse de João Goulart.
– O doutor Chagas e Silva lá de Uruguaiana, disse o comandante. Colocou à disposição as suas terras e o gado da Fazenda Azul. Esse é o gesto de um patriota, pois se a luta for longa, precisamos do apoio de todos, não só do povo, mas das classes produtivas, dos estancieiros, que tem no doutor Chagas uma de suas figuras mais proeminentes.
– Pois te digo, dr. Chagas, continuou Brizola na conversa que eu presenciava sem ser visto, já que eu era dono do sonho, o narrador onipotente que tudo provê e jamais é notado. Acredito que sua oferta foi decisiva para a Legalidade.
– O senhor está sendo generoso, governador. A Fazenda Azul é uma das maiores e melhores do mundo, mas jamais poderia decidir aquela parada.
– É como estou lhe dizendo. Essa vida na eternidade nos faz pensar. Pois cheguei à conclusão (e nesse altura Brizola dá aquele sorriso no olhar que encantava os compatriotas e contemporâneos) que sua adesão foi fundamental. Raciocine comigo: como é que os pelegos, os tubarões, os gorilas iriam peitar uma revolução que tinha como aliado um grande estancieiro? Eles contavam com as pessoas de posses para fazer a lambança. Quando ouviram eu anunciar que um homem como o senhor tinha aderido, simplesmente desistiram. Foi aí que começamos a ganhar a guerra.
Chagas e Silva nada respondeu, pois estava com os olhos cheios de água boa, daquelas que lavam o espírito e o carregam para o os campos do bem querer. Ele chorava porque finalmente alguém confirmava que tinha acreditado nele. Simplesmente o governador tinha lido suas palavras, emitidas por telegrama à sede do movimento de resistência, no Palácio Piratini. Confiara na palavra de um homem, coisa que as pessoas jamais faziam, apenas fingiam para melhor aproveitar a verve de um louco. Com o reconhecimento de Brizola, Chagas e Silva deixara de ser um mendigo e alcançara a cidadania.
-Muito obrigado, governador. Sei que o senhor fala com o coração, como é do seu feitio. Mas suas palavras fazem descansar esta alma arriada, depois de tanto sofrimento.
– Viemos de longe, doutor Chagas, e nada nem ninguém irá nos abater.
Levantaram-se então, e saíram os dois, a pé, pelo campo vasto. Eram seguidos pelos quero-queros, os cachorros, as ovelhas desgarradas e algum boi que berrava mais para fazer barulho do que por necessidade. Chagas e Silva era acompanhado por sua bengala, na qual se apoiava e de vez em quando ainda tinha o toque amigo da mão do interlocutor no seu braço. Brizola contava causos de sua longa vida para aquele personagem tão atirado no mundo e que eu tinha visto pela última vez num entardecer perdido, num acidente de carro. Vi Chagas e Silva sendo socorrido, com todos ao redor, penalizados. Era não só uma pessoa conhecida e famosa na cidade. Era o proprietário da famosa Fazenda Azul, que agonizava depois de um choque no trânsito. Tentara atravessar a rua olhando para o alto, esperando que lhe dessem passagem. Não deram.
Mas agora, ao lado do seu amigo de luta, ele acompanhava o passo das nuvens, rasgando o pasto azulado de tanta flor, neste abril sem manchas, que nos abraça não só pela memória, mas pela alegria de imaginar a vida que tivemos e que é nossa única posse, neste descampado que Deus criou para nos colocar à prova.
Passaremos no teste? Não sei. Mas acredito que aqueles dois viventes continuam rasgando o pampa com seus passos, conversando a fala dos justos, guerreiros que foram do bom combate, semeadores da paz, que só se consegue com a luta honrada da verdadeira coragem.