DOIS FILMES E UM LIMITE PARA A INSÂNIA
ago 17th, 2010 | Por Nei Duclós | Categoria: CrônicasNei Duclós
Filmes americanos mergulham fundo no poço social, mas parecem estar proibidos de sugerir desesperança. Há sempre um happy end para situações limite, para transgressões pesadas, para a aparente perdição dos personagens. A cidadania entra numa espiral de loucura, mas algo acima dela, ou parte indissolúvel dela, serve como amparo, rede de proteção, parâmetro e acaba se impondo. Por mais que se esgarcem as vidas na droga, no crime, na mentira, na indisciplina, na culpa, há sempre um desfecho favorável. Felizmente, em alguns filmes, como os dois que vi nestes dias, sem a babaquice tradicional dessa solução cinematográfica.
Nem sempre o happy end é alienação. Pode ser uma forma encontrada para resgatar as intenções originais que levaram os personagens a se enredarem no erro ou no vício. O policial que se joga numa cadeia imunda e inundada para salvar um preso começa, por força desse evento, a sofrer dores crônicas nas costas e por isso se vicia em sedativos e acaba migrando para o crack, a cocaína e a heroína, numa espiral cada vez mais insana. Ele acaba se aliando a um traficante para descobrir os responsáveis por um massacre de cinco pessoas e também para pagar suas dívidas de jogo na Nova Orleans depois do furacão Katrina.
A mulher abandonada pelo marido jogador e com dois filhos, que ganha pouco numa loja de quinta categoria e precisa terminar de pagar a casa nova, se alia a uma índia siowk na fronteira dos Estados Unidos com o Canadá para contrabandear imigrantes ilegais. Histórias que geraram dois estupendos filmes lançados em 2009. O primeiro é de Werner Herzog, The Bad Liutenant – The Call of New Orleans, com um incontrolável e arrasador Nicolas Cage contracenando com a diva Eva Mendes. E o outro é The Frozen River, da cineasta Courtney Hunt, com Melissa Leo, ambas indicadas para o Oscar.
Os dois filmes contam com a hostilidade da paisagem como definidora do perfil dos seus principais personagens. Na cidade destruída pelo furacão, Nicolas Cage é um inventariante de ruínas, colecionando despojos ao longo de uma investigação criminal que se aprofunda cada vez mais num beco sem saída, onde o mundo oficial dos promotores, políticos e advogados acabam contaminando a investigação e pressionando os agentes para um impasse. Mas a vocação do, policial persiste e mantem sua hegemonia numa vida pessoal que se desviou temporariamente.
E o rio congelado, coração do enclave indígena em território minado da fronteira, é o estado emocional dos habitantes do lugar, em que o filho adolescente perde a confiança na mãe, esta perde a confiança no mundo do emprego, os indígenas desconfiam de pessoas da sua tribo, os policiais estão sempre de olho nos nativos, culpados de nascença. Há famílias, partidas, vidas sem sentido, dor. Mas há mães protegendo filhos e isso acaba salvando vidas.
Tanto Cage quanto Melissa se deixam levar pelo turbilhão de eventos que os empurram para a tragédia. Mas no caminho encontram solidariedade (no caso de Melissa, que abre mão de sua segurança em favor da amiga índia) e amor (Eva Mendes serve de inspiração para o ensadencido Cage romper seu ciclo de demência e enfim encontrar um pouso seguro num relacionamento a longo prazo). A mulher da paisagem gelada acaba presa e o policial de Nova Orleans continua nas drogas, mas pelo menos eles se livram da insânia total em que se meteram. Há limites para a loucura, proporcionado pela solidez nacional, em quem instituições, como a Justiça e a Polícia, funcionam, apesar da corrupção e do preconceito.
Muito diferente do Brasil, onde a violência descamba para o descontrole absoluto (147 mil assassinatos em três anos, segundo estatísticas oficiais), como vimos em Cidade de Deus, Tropa de Elite ou Carandiru. Nós perdemos a forma, a sociedade estabilizada em que as leis funcionam, mesmo quando há caos. Os americanos procuram manter a forma tradicional, apesar das mudanças, fazendo com que todo o tipo de transgressão não ameacem os valores nacionais. Perderam a noção do perigo, pois o que eles estão cavando fora das fronteiras, nas guerras impunes onde se metem, acabam se refletindo pesadamente na estrutura que montaram e que está fazendo água.
Por enquanto funciona, mas pode chegar um momento em que se verão como nós, frente a frente com o que há de pior: nenhum lugar para onde escapar, devorados por nossos erros, sem poder restabelecer a ponte com a paz verdadeira, que é o convívio social e a violência sob controle.