GREVE DE PALAVRAS

dez 13th, 2009 | Por | Categoria: Cinema, Crônicas        

Nei Duclós

A recente greve dos roteiristas expôs o mecanismo da indústria do espetáculo nos Estados Unidos. Tudo parte da palavra, desde as imagens até a piada que parece tão espontânea. Nos making of dos dvds, os atores, pelos menos os mais ricos, seguem scripts. A entrevista sobre o tema do filme ou a carreira do artista bebe na fonte que jorra previamente do verbo especializado.

Situação inconcebível em nosso meio, já que ninguém precisa de roteiro para nada. Aqui se improvisa o tempo todo. Não é costume pagar alguém para saber o que dizer em frente às câmaras. Talvez seja melhor assim. Uma bobagem articulada pode causar mais dano do que uma asneira espontânea.

A maioria dos escritores brasileiros vive em estado de greve permanente e involuntário. Simplesmente não existem, como os agricultores que sofrem o apodrecimento da safra por falta de transporte. Estocam parágrafos e empilham manuscritos, enchendo a sala de papéis ou cds. Há a saída pela porta da Internet, mas nesse mar se perdem produções e talentos. Escrever não é profissão, com raras exceções.

Acabam sempre sendo empurrados para funções avessas ao ofício. Mesmo digitando profissionalmente, passam anos sem gerar uma linha de verdade, deixando latente a vocação, que reclama.  Quando, enfim, nasce a decisão de investir na própria arte, chovem críticas. Como pode abandonar tudo em favor de um sonho?

Nos Estados Unidos, existe hoje um tipo de cinema cult que é o dos roteiristas brilhantes. Grandes estrelas abrem mão de seus cachês para fazer uma ponta em obras de cérebros e talentos privilegiados. É o cansaço da padronização dos roteiros e da venda de Hollywood para as políticas imperiais, o que se tornou praxe depois da vitória do macarthismo. As melhores cabeças não são mais convocadas, a não ser para abrir mão dos originais e deixar que escribas fiéis ao regime sapateiem em cima.

Dizer que William Faulkner, Bertold Brecht, John Fante, entre tantos outros, trabalhavam para os estúdios, é falar em utopia. Hoje temos histórias maquiadas por campanhas publicitárias. Ver um blockbuster dá saudade de um simples noir dos anos 40. Ou mesmo o megaespetáculo concebido para ganhar Oscar cansa o olhar. O histrionismo de celebridades consideradas os melhores do mundo contrasta com a majestade de atores clássicos e inesquecíveis, como Burt Lancaster, que só com o olhar sustentou por um longo tempo seu papel principal de nobre decadente e lúcido em “O Leopardo”, de Luchino Visconti.

Há decadência no cinema. Apesar dos avanços da técnica, estamos hoje menos servidos do que na época do Cinemascope, em que até em minha cidade as telas foram modificadas para que pudéssemos nos deslumbrar com a grandeza dos épicos. Nunca esqueço quando ganhei, em concurso na escola, o privilégio de assistir por uma semana, de graça, as sessões da principal sala do centro. Nesse período premiado, só passou um filme, “Lawrence da Arábia”, a obra-prima absoluta de David Lean.

Exagerei: não só vi várias vezes, como entrava na segunda metade ou saía no fim da primeira. Decorei cada fotograma e cada diálogo (o roteiro é de Richard Bolt). Às vezes, me pego segurando uma pedra depois de uma noite insone murmurando: “Akaba, por terra!”. E saio para conquistar a cidade à beira mar, com os canhões voltados para o lado errado, o dos navios. Invado a fortaleza, como Lawrence, pela improvável face do deserto.

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