HIPÓTESE DÁ TRABALHO

dez 13th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

A polícia costuma “trabalhar com a hipótese” de alguma coisa. Sugere esforço em fabricar pensamento, ligar uma atividade silenciosa, pensar, ao suor. No país ágrafo, trabalhar é fazer barulho. Muita gente tem o costume, nos cumprimentos ruidosos, de gritar que “estão trabalhando!”. Só assim poderão escapar do anátema de passar por desocupadas, e de ficar a um passo do encarceramento, como acontecia antigamente, quando prendiam por vadiagem.

Nas obras, vê-se que não basta levantar tijolo e colocar telha, ou cortar cada peça sob o massacre de silvos agudos intermináveis ao longo do dia. É preciso que os aboios entre os pares, os que estão no batente e os que passam, difundam a boa ação que ali se desenvolve.

Certa vez, em São Paulo, levantaram, perto de casa, três edifícios de uma hora para outra. A empresa, bem sucedida, usava blocos pré-moldados. O material, de qualquer tamanho, vinha sob medida. Em compensação, num outro prédio em construção bem em frente onde morava, uma serra elétrica funcionou por três anos cortando tocos de madeira das sete da manhã às oito da noite. Como se o concreto dependesse do desmatamento.

Até que a construtora faliu, deixando por todo o país um rastro de esqueletos urbanos, entre eles o monstro do meu bairro. Esses fantasmas eram os monumentos à incapacidade de planejar, ou seja, de trabalhar sem romper os tímpanos da vizinhança.

Antes dos computadores, o batucar da máquina de escrever fazia parte do mundo reconhecível das virtudes. Hoje, época dos teclados, que deslizam sem que ninguém perceba, ficou mais difícil. Trabalha-se com a hipótese de que você não ocupa seu tempo com algo decente. Você é suspeito, pois passa as horas que deveriam ser dedicadas ao eito sem o hábito de arrastar correntes. E não adianta surrar o equipamento na hora de escrever. Não convence.

É necessário que todos se enquadrem nos lugares comuns da linguagem, como ser chamado de homem-forte de algo importante ou participar de uma força-tarefa. Funciona assim: as idéias prontas são o insumo da inteligência engessada, a que jamais muda e que é transmitida pelos gens. Nascer sabendo significa dispor do destino manifesto de não ter de aprender, como o resto.

É por isso que a servidão cala a boca (para aprender) e a sabedoria usa bota de cano alto (porque sabe). O silêncio é escravo do bater de pés no portal, quando um poderoso anuncia sua presença. A desculpa é sacudir o pó acumulado na caminhada, mas sabemos que é a maneira de deixar claro quem manda. Bater palmas fortemente é outro caminho manjado. Faz parte da cultura da varanda, que serve para chamar os criados. Hoje, ainda se usa muito, principalmente para lembrar que você desligou a campainha da porta da frente. As palmas aos poucos estão sendo substituídas pelo estalar de dedos, que é o chicote auditivo utilizado para alertar os subalternos.

Mas a realidade é outra. Os chefões da máfia, por exemplo, ouvem mais do que falam. E só dão as ordens num sussurro mortal, como Don Corleone, personagem de Marlon Brando no clássico de Francis Ford Coppola, “O Poderoso Chefão”. No fundo, o barulho é a verdadeira servidão. Num país de escravos, onde todo mundo quer ser senhor, o martelar incessante é o recado explícito da falta de liberdade.

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