O COTOVELO DE VIDRO

dez 18th, 2009 | Por | Categoria: Contos        

Nei Duclós

I – O telegrama

Ainda existem telegramas. Recebi um o­ntem, que dizia: “cheguei procure hotel centro quarto 93”. Sem assinatura. Ou melhor, com um “pseudônimo”: Argeu Teodomiro Santiago, que é o verdadeiro nome do Cabo Adão. Gelei. O misterioso militar enfim tinha dado as caras. Ia ter de me explicar. Logo agora, perto do lançamento do meu romance.

SAFANÃO NO ELEVADOR – Arranjei duas horas para sair de o­nde estava. Como o trânsito ficou pior depois do Carnaval, decidi pegar um ônibus, senão iria gastar uma fortuna em taxi. Cruzei a ponte nova e desovei na rua Butantã, o­nde fiquei à mercê do barulho do motor (que ocupa lugar dentro do veículo, junto com os passageiros, uma solução da engenharia marota escravagista), e do calor infernal. Em 20 minutos cruzei a Faria Lima. Subi penosamente a Teodoro Sampaio e depois de uma légua de tempo, aportei na Consolação. Também estava tudo engarrafado. Só depois de uma hora e meia cheguei na rua Aurora, o­nde se hospedava aquele sujeito que eu citava tanto e que mal conhecia. Meu tempo já estava praticamente esgotado. Mas aquele encontro não podia ser adiado (não sei porquê, lembrei facão faiscando ao sol, barulho de rifle, canhoneio). Pisei na sujeira da calçada – a mesma de milhares de anos atrás – e me arrisquei na portaria do hotel barato, que despencava em tudo, inclusive no vetusto elevador movido a manivela e que ringia à menor aproximação. Subi até o novo andar, não sem antes levar um susto no sétimo, quando a pouca luz se foi e o elevador, movido a vapor, estacionou para sempre. Como estava munido de toda paciência do mundo, aguardei. Só depois notei que o bicho subiu dois andares quando tudo ainda estava escuro. Alguém puxava o dito pelo cangote. Desconfiei quem poderia ser.

LENÇO BRANCO – Mas a porta abriu e eu não enxergava ninguém. Acendi um fósforo depois de algumas tentativas frustradas, pois costumo guardar os palitos usados dentro da caixa. Fui queimando os dedos por um dos corredores, mas tive de voltar. Era no outro lado, o que dava para uma janela minúscula, gradeada, que lançava uma luz fosca do dia lá fora, abafado e com nuvens pesadas. Finalmente consegui que um dos últimos fósforos iluminasse o número 93, que estava torto, carcomido em seu metal de nenhuma categoria. Fui bater, mas uma chama atrás de mim chamou a atenção:

– 1893, disse uma aparição, que se confundia numa dobra do corredor. A guerra da degola!

– Sr. Argeu! exclamei, no susto.

O outro empertigou-se. Não gostava de ser tratado como civil. Usava ainda farda da Brigada Militar, no tempo em que essa tropa era um exército bem municiado e em ação constante.

– Cabo Adão, às suas ordens, se não for incômodo me chamar assim, disse.

Vi então o reflexo da luz que entrava filtrada pela janela do corredor nos botões outrora dourados da sua farda amarela. Notei também que a vestimenta estava limpa, quase passada e que para completar o quadro faltava apenas um capacete. Mas o que se destacava era o imenso lenço branco pendurado no pescoço.

– Sempre fui chimango, disse. O senhor não tem nada contra os blancos, tem, senhor escritor? Ou prefere os maragatos como aquele…

(deu uma cuspidinha de lado)…

-…teu “general” (sua entonação pedia aspas) Honório de Lemos.

– Sou isento, cabo Adão, disse, me aproximando. Para mim tanto faz.

– O senhor é quem sabe. Mas é bom lembrar que teu tio Waldemar era do nosso lado. Usava também lenço branco naquelas guerras todas.

Talvez por isso cabo Adão me tratasse com um pouco mais de consideração do que Honório. Mas uma dúvida me ocorreu:

– Ué, Honório me falou que o tio tinha lhe curado de um balaço na paleta.

BALAÇO – Cabo Adão sorriu-se todo. Mostrava com isso que sabia mais, apesar de eu ter tido encontro cara a cara com Honório, como está descrito no meu novo romance.

– Ele foi nosso prisioneiro e a bala era minha. Te assustaste?

O branco de susto da minha cara contrastava com o ambiente. Já estava cansado daquelas aparições.

– O que o traz a São Paulo, cabo Adão?

O militar fechou a cara em sua posição de sentido (coisa que fazia sempre, jamais relaxava).

– O senhor me convocou. Vim cuidar dos que querem faltar ao lançamento do seu romance.

Meti a mão na cabeça. Por que eu invento essas coisas?

– Era brincadeira, rapaz…Ninguém pode ser obrigado a ir!

Cabo Adão fechou mais ainda a cara. Não acreditava em e-mail, não admitia defecção, não gostava de ser convocado em vão. Estava, ainda, em guerra.

– Quer dizer que o senhor me convocou à toa?

– Foi meu jeito de dizer que gostaria de ver todo mundo lá. Usei uma metáfora da fronteira.

Cabo Adão intensificou sua cara de estranhamento. Vi que tinha enorme ruga vertical em cima do olho, que atravessava até o topo da testa preta-mulata, olhos amarelos-terra, sombrancelhas finas, rosto meio ovalado e puxado, como se um índio tivesse laçado uma escrava fugida. Me olhava desconfiado, mas não perdia o respeito:

– Estarei de plantão. Pode deixar que, para os mais renitentes, eu entrego pessoalmente o convite.

Que enrascada! Imaginei algum pobre convidado, recebendo tarde da noite o papel timbrado da editora pela mão do guerreiro que fatalmente colocaria o pé no vão da porta que se abririria, só para garantir a presença. Falei:

– Estamos ainda confirmando data, hora e local. E ainda não imprimimos o convite.

– Não faz mal. Eu espero.

E desembrulhou um pacote amassado, marrom, o­nde tinha uma boa quantidade de fumo de corda e com sua faca que tirou da cintura, de trás,começou a fazer um palheiro.

Quando acendeu, lembrei de outro parente meu, o tio Antenor. O pescador de beira de rio. O cara-massada. O sem-dentes contador de causos. O pai de dezenas de filhos e marido de várias esposas. O rei do desalinho. Tio Antenor agora era apenas lembrança, palavra que o rio Uruguai sopra, prometendo novas aparições.

– Escuta aqui, disse Cabo Adão, meio sem cerimônia ( o que não era do seu feitio). De que trata afinal o teu livro?

E me olhou com aquele rosto impenetrável, parede de sombra em meio à escuridão do corredor do hotel, ereto como um marechal, concentrando naquele perfil toda a majestade perdida de um povo. Fiquei, por alguns instantes, completamente mudo antes de responder.

II – O lenço branco

A casa era pequena, mas bem planejada por um oficial da Marinha. Os ventos podiam fazer escândalo na vizinhança, mas nossas portas não batiam. Copa e cozinha eram a mesma peça, e a sala um cotovelo todo ajanelado que dava para a praia de São José, cidade grudada a Florianópolis. Lá mergulhei mais uma vez na literatura, enquanto a família compartilhava esse trabalho e um espaço privilegiado de areia, mar e árvores que davam limões, ameixas e bananas.

LUA DE PRATA – Sentei em frente à Olivetti rodeado pela paisagem: pescador que embocava seu fino e comprido barco no rastro do sol recém nascido, lua grande de prata que subia, fazendo ruído silencioso de lua cheia. Resgatei o tempo em que estive perto dali dez anos antes, saído de Porto Alegre, quando me reuni com alguns amigos para dividir a mesma casa. O que não esperava era o papel que coube a cada um no texto, que saiu assim, de primeira, como dizem em Uruguaiana. As memórias tornaram-se apenas insumo e ponto de partida.Os personagens ganharam vida própria e me conduziram para inúmeras revelações. Descobri nossa extrema precariedade, fruto de dupla exclusão. Primeiro, estávamos fora do mercado (isso em 1972, época em que acontecia a história, e também em 1981, quando escrevi aquele relato ficcional, o que diz tudo sobre a crise permanente que se abate sobre nossa profissão). Segundo, estávamos fora das decisões do centro do país. Praticamente fugimos para a ilha, nossa descoberta daquele tempo, mal imaginando que um dia aquilo iria virar moda, não só entre gaúchos, mas também entre paulistas, e agora, mais do que nunca, um imã para povos do mundo inteiro. A revelação maior foi deixar que cada personagem mostrasse a integridade específica de vidas diferentes da minha. Mesmo o personagem que é baseado em mim ganhou uma forma totalmente diversa do que eu imaginava. Isso significou um alívio para a carga que caía nas minhas costas. Por meio daquelas pessoas irreais descobri um pouco mais do que somos. Podem chamar de psicanálise, mas prefiro literatura mesmo. Naquele cotovelo de vidro, escrevi inteira a primeira parte do romance Universo Baldio.

SENTIDO – Cabo Adão ouviu meu relato acima na sua postura habitual, a de sentido. Fiquei curioso com a maneira cerimoniosa com que me tratava, como se me devesse algo.

– Por que o senhor é tão sério, Cabo Adão? E o que me intriga é que certamente é muito mais velho do que eu mas aparenta ter trinta anos no máximo.

O militar tinha colocado parte do seu rosto fora da sombra enquanto acendia outro palheiro, já na posição de descansar.

– Nós, da Brigada, somos preparados para tudo, disse. E tratamos todos com o maior respeito. Somos legalistas, por isso usamos o lenço branco. Defendemos o governo, seja quem for. Prefiro o tacão do Estado do que a degola das revoluções…

E me olhou, quase de maneira desafiadora. Seu rosto mulato quase escuro de índio de cabeça ovalada tinha no alto um curtíssimo pixaim bem cuidado. Sobrancelhas muito finas, boca firme, falava como quem emitia ordens, mas, paradoxo total, num tom de quem só obedecia.

– O senhor se sente em dívida comigo, cabo Adão?

– Devo favores ao seu tio que me salvou na guerra de um monte de ferimentos. E fui amigo do teu pai. Mas o que devo mesmo são as palavras que ouvi do teu tio no dia em que fui humilhado por um tenentinho lá no Rio de Janeiro.

Lembrei então da história que Waldemar Ortiz contava quando eu era pequeno. De que um anspeçada (aquele militar que fica entre o soldado e o cabo), por ser analfabeto, recebeu uma reprimenda no Rio, em plena revolução de 30, diante da tropa. Waldemar perfilhou-se e respondeu ao oficial. Disse o velho tio:

– Esse homem lutou comigo em quatro revoluções. Merece mais respeito. Na hora de matar, ninguém perguntou se sabia ler.

Isso foi dito, claro, depois que a tropa tinha dispersado, um frente ao outro. Mas Cabo Adão tinha escutado tudo.

– Quem é da sua família manda e não pede, disse cabo Adão.

Fez um longo silêncio, recolheu-se novamente para o canto. Eu estava cansado de ficar de pé naquele corredor, cercado por ruídos de elevador e teto velho.

– Não tem um lugar para a gente sentar e conversar? perguntei.

Cabo Adão apagou o palheiro num velho cinzeiro abandonado no canto. Acocou-se para fazer isso. Depois levantou-se, de cabeça erguida, como sempre:

– Vamos ficar de pé. Não é hora de descansar. Me conte agora sobre a segunda parte do romance, aquela em que aparece o caudilho.

Dito isso, olhou mais uma vez ao redor, como se estivesse escutando o barulho da espada do general Honório raspando algum andar acima, o­nde certamente se aquartelava a tocaia dos maragatos.

III – Rumo ao rio Pinheiros

Cansados do sufoco no corredor do hotel da rua Aurora, saímos, o militar Argeu e eu, do centro de São Paulo a bordo de um caidíssimo Jardim Maria Luiza, que poderia nos deixar no Largo da Batata. De lá, rumaríamos para o rio Pinheiros, o­nde o ínclito personagem queria ver as margens daquilo que um dia foi um rio e hoje é alguma coisa perto do esgoto. Ele aproveitou a viagem para falar o que achava do “Doutor” Getúlio Vargas.

SALA E COZINHA – “O senhor sabia”, falei ao cabo Adão, que sentava ao meu lado, no fundo do despencado coletivo, sem que ninguém se desse conta da sua presença…”que pouco se sabe sobre essas guerras que ensangüentaram o país de 1893 a 1930? Por que será que acontece isso?” O brigadiano tocou a ponta do lenço branco num gesto típico e olhou para fora (o caos do barulho, calçadas pôdres, gente demolida, cansada de ter pressa).

– Lembro que eu voltava para casa e enfrentava o ponto de interrogação da família, que não entendia minha ausência por tantos meses. Precisava contar tudo em detalhes para tentar convencer mulher e filhos. Mas não adiantava. Já corria a versão de que não havia guerra, apenas escaramuças, coisas sem importância, invenção dos homens para ficar longe de casa e churrasquear de graça. Naquele tempo, a informação vinha a cavalo ou no máximo telegrama. O que pegava mesmo era o boca-a-boca. O pior é que eu vinha às vezes de uma batalha como a do Ibirapuitã, no Alegrete, em 1923, quando morreram pelo menos 200. O pasto ficou vermelho. Nem sei como escapei daquilo. A metralha do Lulu Aranha era imparcial: ceifava todo mundo. Aquilo foi a guerra. Vi atos de coragem que nunca mais se repetiram. O general Flores da Cunha dando uma carga de cavalaria em cima da ponte foi uma coisa tremenda. Se acham quie isso tudo foi um passeio, pior para os historiadores.

– Acho que estes são espécies de patrões dos fatos: só cuidam das grandes linahs e tendências, do atacado da história, da parte teórica, e deixam o varejão à mercê dos contadores de histórias das províncias. Ou se têm acesso às fontes, não lêem direito. Ao contrário dos ingleses, que cuidam de tudo. Para alguém falar de fábrica por lá, tem de sujar a mão de graxa. Aqui, não. Expulsam os fatos para a cozinha e ficam na sala falando asneira.

– O senhor tenha calma, disse o Cabo Adão. O senhor tem falado coisas sobre Getulio Vargas que nem sempre é verdade. O velho caudilho tinha seus méritos e um deles foi pacificar o Rio Grande. Juro que se não fosse ele eu tinha passado o Honório na faca.

MORTANDADE – Uma gargalhada ouviu-se lá na frente do ônibus.Lembrei meu encontro do Honório na Mooca, como está descrito no romance que lanço dia primeiro de abril. Seria ele?

– Mas o velho pagou pelos seus erros, que foram muitos. Confesso que fiquei impressionado quando ele driblou americanos, nazistas e fascistas, na época em que eles se dedicavam à mortandandade mútua. Mas ao mesmo tempo inventou um monte de novos coronéis, deu sopa para o azar. Acabou dando um tiro no coração, pois um guerreiro jamais deixa seu destino nas mãos alheias. Foi um ato de guerra o 24 de agosto de 1954. Meteu uma bala no peito para não deixar colocarem a mão nele. Homem de valor. Mas sua herança é pífia. Esse tal de Brizola é um trapalhão. Abraçou-se com tudo que é inimigo. É por isso que o teu trabalhismo é uma causa perdida.

Silenciei. Costumava ser um ouvido atento e uma língua afiada. Diante de uma fonte como aquela, nada tinha a dizer. Estava cansado demais.

– E aí, insistiu o cabo Adão (já estávamos perto do fim da linha). Do que trata a segunda parte do teu romance?

Falei a história do cara que estava aborrecido na metrópole e encontrou o fantasma de Honório. Cabo Adão não se impressionou muito. Contei mais detalhes. Ele ficou escutando. Tínhamos descido do ônibus e chegamos na ponte da Eusébio Matoso. Descemos até a beira do rio. Cabo Adão acocou-se e olhou para a água imunda.O cheiro era insuportável. De repente ameaçou levantar-se diante do ruflar de asas de uma garça. Ao mesmo tempo, seu ouvido captou, longe (vi pelo gesto brusco da cabeça) o tchibum de uma capivara.

– Tem ainda capincho e garça nesta joça, disse ele. Nem tudo está perdido.

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