PAZ NA DIFERENÇA

dez 12th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas, Política        

Nei Duclós

Acho graça na argumentação de que a Amazônia pertence ao planeta, e não ao Brasil e a alguns países limítrofes. Nunca vi ninguém dizer que o Grand Canyon é propriedade dos franceses, por exemplo, ou que seja apenas um parque temático intergaláctico. Essencialmente americano, não há dúvida de que tudo lá pertence à bandeira estrelada. Desconfio que, ao dizerem “planeta”, se referem ao Brasil. Por que não vão cuidar da Sibéria? Criem lá uma boa reserva, gerida internacionalmente. Se os russos reclamarem, denunciem a desertificação das estepes. Eles nem vivem lá, se amontoam em Moscou e Petrogrado, por que querem ser donos daquele monte de neve?

A definição de fronteiras assegura o trânsito pacífico dos povos. Ao contrário do que diz a propaganda, o mundo com fronteiras é que pode se dar o luxo de ser uma comunidade internacional. Sem elas, é a terra de ninguém, como acontecia antes das intermináveis guerras que definiram as linhas divisórias dos países. Uma só nação, uma só moeda: essa idéia já está fazendo água na Europa, modelo de convivência fundada na casa da sogra, onde qualquer um tem acesso ao que a população levou séculos para construir.

Os irlandeses deram um sonoro Não num plebiscito recente. É costume o plebiscito ser a mais soberana das eleições. É quando o povo mostra, preto no branco, o que realmente pensa e quer. E se existe alguém que se preocupa com a terra onde vive, esse alguém é o cara confinado na própria nacionalidade. Ele não possui recursos para viajar até os confins. Acostumou-se por gerações a resolver seus conflitos, escudado em parâmetros como a língua, a memória, a casa, o bairro, a aposentadoria. Tirá-lo de lá não significa libertá-lo, já que o nacionalismo não é uma jaula, mesmo que não seja encarado como uma virtude.
O povo sabe o quanto custou de sangue cada retalho do território outrora conflagrado. Conhece, pelo relato dos ancestrais, o esforço para configurar o que chamam de um país. Há exemplos de sobra que, sem isso, não há nada. Etnias sem pátria rolam pelos campos de refugiados. Países artificiais se esfacelam em guerras civis. Nações fundamentalistas são invadidas. Ditaduras se sucedem pesando a mão sobre fronteiras mutantes.

Só existe paz quando as fronteiras estão consolidadas. O Tratado de Versalhes, que humilhou a Alemanha e movimentou as linhas divisórias no coração da Europa retalhada pela Primeira Guerra, resultou na invasão total dos países em conflito. Por isso não adianta sonhar com a paz se houver esse esgarçamento das linhas divisórias, uma fragilidade denunciada inclusive pela construção de muros, como acontece entre México e Estados Unidos. Quando não há garantia de fronteiras, instala-se a barbárie.

Existem fronteiras que são cicatrizes de conflitos insolúveis, como a que separa as duas Coréias. Mas há outras, definidas por águas comuns, como a existente entre nós e a Argentina; e as que oferecem apenas alguns marcos para determinar o espaço de cada nação, como a longa divisa entre o Uruguai e o Brasil. Uma correnteza dividida virtualmente ao meio, ou uma pedra pintada de branco, com alguns números inscritos nela, perdida no ermo, fazem parte do patrimônio de povos que convivem e se respeitam. Esse é o mais alto grau da civilização humana. Está acima das ilusões ditas integradoras, as que substituem a cidadania bem resolvida pela voragem das crises.

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