POESIA: O NARRADOR COMO PERSONAGEM

jan 1st, 2012 | Por | Categoria: Ensaios        

Nei Duclós

Gênero literário é como planeta visto do espaço: não aparecem as fronteiras. É preciso, como se dizia, “colocar no papel” para que possamos enxergar as diferenças entre conto, crônica, romance, poesia. O poema minuto, o microconto, o cruzamento entre ficção e ensaio, a prosa poética intensificada pelo derramamento das formas do texto na tela do micro criam uma salada heterodoxa para uma celebração. O tema é bom , revigorado pelas mudanças radicais nos meios, influindo diretamente na natureza das mensagens, em que a mecânica quântica digital inflete sobre o cânone analógico do impresso (clique o mouse na edição “impressa”, por exemplo, é um magnífico paradoxo).

Prefiro abordar o personagem na poesia, um gênero que ganhou força nas mídias sociais. Fernando Pessoa radicalizou ao mostrar que poesia é dramaturgia, a cargo de personagens . Mas a tendência é achar que o poeta fala por seu próprio ethos, que não usa o estratagema teatral para compor seus versos. Há motivos para esse equivoco. O poeta como personagem é uma tentação para o autor. Trata-se de heroísmo, da coragem da fala, do charme da música da palavra, do perfil filosófico que as grandes obras poéticas adquirem. Há sempre uma decepção quando se conhece de verdade o autor. Um Pablo Neruda tão épico usando aquele bonezinho de lã e com cara triste de inverno. Um João Cabral tão contundente em Morte e Vida Severina e sendo tão embaixador na Espanha ou Senegal.

Quem mais aproximou o autor do personagem talvez tenha sido Vinicius de Moraes, que ao criar o Poetinha ofereceu-se em libações e melodias para a massa encantada. Ou mesmo Oswald de Andrade, que amargou exílio duro interno ao radicalizar suas mensagens e brigar com todo mundo. Mas o Oswald doente em casa, um Vinicius que morre na banheira de copo na mão confundem os leitores que precisam maquiar bem a imagem do autor para que fique como a do personagem criado.

A morte precoce ou o desaparecimento de cena ajudam a formar o mito. Os casos mais notórios, Garcia Lorca e Rimbaud, mostram o poeta popular e erudito da Andaluzia sendo fuzilado ao amanhecer, o que tem tudo a ver com a efígie criada em vida. E o poeta radical que desapareceu de Paris para traficar armas na África é o retrato acabado dessa saga do autor que se confunde com o personagem.

Mas o que deve prevalecer é a sinceridade e nisso Borges é imbatível. O velho cego e sedentário criou a bizarria do viajante misterioso e sabemos o tempo todo que existe esse fosso entre o gênio argentino e sua obra. Foram confundi-lo de propósito, colocando-o como um homem de direita, quando deveriam apenas prestar atenção no cidadão sincero que tem suas opiniões, mas voa para muito longe quando nos traz os mais inacessíveis volumes de sua maravilhosa biblioteca.

Temos casos notórios de falsidades, como o poeta veterano que gosta de abrir a camisa e mostrar a medalha no peito viril enquanto olha o olhar sampacu para as pobres vitimas, as leitoras. Ou o jovem poeta que leva vida tradicional, mas encena uma vida aventurosa e transgressora. É fácil confundir os leitores, que esperam sempre encontrar o herói por trás das belas palavras. Mas o que existe de fato é a obra e seu autor, duas realidades que interagem e tem vida própria. Faz parte do ofício, nada tem a ver com falsidade. A obra impõe seus personagens e o verdadeiro autor obedece. Um ator usa técnicas para poder atingir seu objetivo, emocionar. Um poeta faz a mesma coisa. Escreve sem piedade para arrancar suspiros.

Conhecer pessoalmente o poeta pode não ser uma boa pedida. Você não encontrará no sujeito aquilo que teve o poder de arrebatar na leitura. Mas trate-o com consideração. Ele também é fã do que você admira. Seu segredo é mais fundo e implica renúncia, afastamento. Muitas vezes devemos silenciar. A palavra precisa do exílio para não se apropriar do que procuramos dizer tateando no escuro.

Publicado no caderno Plural, do jornal Notícias do Dia, de Florianópolis, dia 26/11/2011.

Deixar comentário