TENSÃO NARRATIVA NO ABISMO
jun 1st, 2005 | Por Nei Duclós | Categoria: CinemaNei Duclós
O Programador do Traço é aquele cinéfilo aposentado que escolhe os grandes filmes da madrugada e que só tem vez na rede quando todos vão dormir, quando os telespectadores, esses coitados, exaustos de tanto esperar, desistem e assim são abandonados pelos vis comerciantes do Mal, que se dedicam a entupir o horário nobre de produtos intragáveis. Podemos imaginá-lo chegando na Rede Globo nos anos 70 e sendo admitido para atender a obsessão do Paulo Perdigão, que exigia a transmissão diária de Shane, o faroeste imortal de George Stevens. Como foi obediente, ficou lá e hoje praticamente vive nos corredores vazios, só como um túnel, como diria Neruda. Mas ele não se atém aos filmes que todos consideram Arte. Sabe escolher, pela milésima vez, Cliffhanger ( ou Risco Total), de Renny Harlin, roteiro de Michael France, de 1993, com Sylvester Stallone, John Lithgow, Michael Rooker e Janine Turner.
ROCHA – A confluência dramática é sintetizada no título, que significa um monte de coisas desaguando no mesmo estuário de revelações. O inglês, língua pragmática, tem dessas coisas. Vamos primeiro retaliar a palavra composta, só para atender a natureza da nossa própria língua. Em geografia, cliff é a rocha que, ao resistir à erosão provocado pelo clima, faz face a um abismo. E hanger é um membro sob tensão que mantém suspenso um outro membro. É exatamente o começo do filme: Stallone (esse Bruce Willis de rosto imutável, essa persona que misteriosamente funciona na tela) está suspenso no abismo formado pela rocha diante do nada e logo em seguida está tentando manter grudada na sua mão a mulher do amigo que inapelavelmente cai, enchendo-o de culpa. Agora vamos pegar a palavra toda, que nos remete a um conceito cultural: cliffhanger é um gênero de filme com cenas de grande tensão, aventura, suspense ou alto drama, com um clímax no final. Esse clímax pode ser alcançado no desfecho de uma seqüência. Era o que chamávamos, quando víamos os seriados nos anos 50, de episódio, ou seja, aquele momento em que tudo parece estar perdido para o mocinho, mas que sempre acaba bem.
De que trata o roteiro? Da segunda chance, claro, o tema recorrente do cinema americano e favorito de Stallone (basta ver as séries Rambo e Rocky). O cenário são um microcosmo da América hostil, as Montanhas Rochosas geladas e sob intensa tempestade.
GANGORRA – O plot (o gancho, o elo narrativo) é o roubo milionário do Tesouro. Traidores da pátria tentam alcançar 100 milhões de dólares perdidos na neve depois de espetacular assalto seguido de acidente de avião. O anti-herói, que fracassou na cena inicial, está tentando fugir, mas é convocado pelo destino (a Mulher). Consegue assim sua segunda chance para conseguir provar que não teve culpa. A luta entre o Bem (os salvadores não ligam para o dinheiro roubado) contra o Mal (uma das maiores encarnações do nefasto, na pele do comediante Lithgow) desenvolve-se no território da insânia total. Talvez nunca o cinema tenha reproduzido tanta maldade, especialmente quando o vilão mata sua companheira (Janine Turner , excelente) a sangue frio. A queda dos protagonistas funciona como uma gangorra. Os bandidos caem para tentar subir até a Fortuna. Os mocinhos sobem para descer ao inferno da tortura.
É um filme sobre profissões com espírito público: o agente que tenta impedir o roubo, realizado por ex-servidores do Estado; os profissionais do resgate que arriscam a vida salvando os outros; o veterano piloto que é pintor amador de quadros e não entende como pode o bem que faz ser retribuído pela extrema vilania. Mas o principal é que jamais, em momento algum, o exagero das ligações narrativas dão bandeira de que estejam fora de lugar. Tudo funciona maravilhosamente. Qual é o segredo?
RECOMPENSA – Tudo vem do roteiro (que teve também a mão de Stallone, segundo os créditos do filme). O herói que tenta fugir, o vilão que quer vingar-se do país, o agente que troca vinte anos de carreira por uma chance de enriquecer, as três malas de dinheiro que são localizadas e perdidas ao longo da trama. Há também as tensões paralelas, que ajudam a inflamar o filme: o companheiro de Stallone (Michael Rooker) que o culpa por ter deixado sua namorada escorregar para a morte, a companheira que cobra atitude, a relação doentia entre a bandida piloto e o chefe dos ladrões, os garotos montanhistas cabeças de vento que são flagrados pelo drama.
Nada se perde, nenhuma cena é em vão. Tudo conflui como um delta pelo avesso, que vem do mar, passa pelas inúmeras raízes e vai correnteza acima até a fonte no alto da montanha. A maioria morre. Fica apenas o trio: o herói, recompensado pela sua atitude, a mulher, recompensada por ter seu homem de volta, o amigo, recompensado por ter a vida e a amizade de volta. É um final feliz, cheio de cicatrizes.
DESAFIO -Acaba a sessão, o Programador do Traço apaga a luz da sua sala. Lá fora, o dia está clareando. Ele assume o volante do seu Challenger, idêntico ao carro de Corrida contra o Destino (Vanishing Point), de Richard Sarafian, obra-prima absoluta que estaria nas mãos da Band. Ele quer aquele filme. Como consegui-lo?