Assim
(também)
Falava Nietzsche
(Outra Polêmica)
Por: Nelson Castelo
Branco Eulálio Filho
Fortaleza (CE), maio de 2007
Moro
em minha própria casa
Nada
imitei de ninguém
E
ainda ri de todo mestre
Que
não riu de si também[1]
Apresentação
A quadrinha acima, que Nietzsche fez
constar como epígrafe a Gaia Ciência (1881–1882), com a anotação
complementar: “SOBRE
MINHA PORTA”, diz bem do
espírito deste meu escrito. Até mesmo a ácida ironia presente em cada página
não é, como eventualmente possa parecer (já fui “acusado” disso!) uma imitação
de Voltaire. É antes o nascimento de um escrito a partir do espírito
(cortantemente irônico) de Voltaire, com o mesmo sentido que Nietzsche usou no
título de sua obra de juventude, O nascimento da Tragédia [a partir] do
espírito da música, isto é, aquela nascendo do “espírito” desta. Quem leu,
por exemplo, o Dicionário Filosófico e o Cândido do Iluminista
francês, percebe bem o que estou falando.
Por outro lado, embora sem a
pretensão de ser dinamite (considero-me apenas um traque) tenho
consciência que provocará choro e ranger de dentes em mais de um iluminado ou iluminando[2]
nietzscheano. Trazendo para aqui “espírito” de Têmis devo dizer que entre os
“iluminandos”, isto é, aqueles em (ativo) processo de iluminação nos segredos
de Nietzsche, estão incluídos também os simples “simpatizantes”. Afinal de
contas, toda “iluminação” é apenas uma questão de grau e esse “grau”, aqui, não
tem nem valor nem teleologia. Afinal, brasa e chama são apenas aspectos
diferentes do mesmo fogo; uma questão de gradação no mesmo sentido do nome de
certo bloco de carnaval de Ipanema, Rio de Janeiro: “Simpatia é quase amor”. O
pouco original subtítulo “Uma nova polêmica”, além de remeter, numa obviedade
desavergonhada, ao subtítulo da Genealogia da Moral, é também uma
profecia – uma profecia peba, previsível, mas ainda assim uma profecia.
Os tempos dirão.
Meu escrito é do começo ao fim uma
crítica a umas polêmicas posições de Nietzsche e mais ainda aos seus seguidores
enviesados que, ou por simples ignorância (menos provável) ou (mais provável)
para evitar a evidência de contradições entre theoria e praxis,
discurso e prática, tentam escamotear essas posições do filósofo. É até
compreensível; afinal, as posições reacionárias, de direita, de Nietzsche
evidenciam de forma inescapável a contradição flagrante entre essas posições do
filósofo e a postura pretensamente de vanguarda da enorme maioria de seus
seguidores: anarquistas, socialistas, democratas, feministas, defensores da
“democracia racial”, dos fracos e oprimidos, dos pobres, etc. – a fina flor,
enfim, de todas as vanguardas. Pedindo licença a Paulo César de Souza, quero
deixar registrado aqui um comentário seu no Posfácio da edição de Humano,
Demasiado Humano da editora Companhia das Letras:
“A
idealização dos heróis e seres superiores transparece no § 81, no qual a
distância entre um príncipe e um plebeu é considerada tão grande quanto aquela
entre um ser humano e um inseto… Deparamo-nos como o modo de pensar
antiigualitário por excelência. A glorificação da força, já presente no
adolescente Nietzsche (no fascínio pelas sagas nórdicas, que o levou a esboçar
um longo ‘poema sinfônico’ sobre o rei Ermanarique), permaneceriam em toda a
sua obra – de modo que não foi inteiramente descabido o uso que os nazistas
fizeram de suas teorias. Thomas Mann, um grande admirador e herdeiro espiritual
de Nietzsche, seria um dos poucos a reconhecer isto, no ensaio ‘A filosofia de
Nietzsche à luz da nossa experiência’, de 1947”.
Complementarmente
e, por desnecessário, sem pedir licença ao autor, registro aqui uma das
opiniões polêmicas de Nietzsche que mais aprecio (para meus fins): Em Crepúsculo dos Ídolos[3],
falando sobre seu conceito de liberdade, e sintetizando seu “anti” tudo
aquilo tão caro a seus iluminados e iluminandos seguidores, diz o
filósofo: “Liberdade significa que os instintos viris, que se alegram
com a guerra e a vitória, têm domínio sobre outros instintos, por exemplo,
sobre o de ‘felicidade’. O homem que se tornou livre e, ainda mais, o espírito
que se tornou livre, calca sob os pés a desprezível espécie de bem-estar com
que sonham merceeiros, cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas.
O homem livre é um guerreiro”.
Finalmente, meus
caros e improváveis leitores, guardem sempre em mente o alerta do filósofo já
no ocaso de sua vida lúcida (1888) e como que
numa espécie de canto de cisne: “a desproporção entre a grandeza de minha
tarefa e a pequenez de meus contemporâneos, alcançou sua expressão no fato de
que nem me ouviram, nem sequer me viram. Vivo de meu próprio crédito, e quem
sabe é um mero preconceito dizer que vivo?… Basta falar com algum homem
‘culto’ […] para me convencer de que não vivo… Nessas circunstâncias
há um dever, contra o qual se revolta, no fundo meu hábito, e mais ainda o
orgulho de meus instintos, ou seja, de dizer: Ouçam! Pois eu sou tal e tal. Não
me confundam, sobretudo!”[4]
Logo a seguir[5],
afirmou que “a última coisa que eu me prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade.
Por mim não são erigidos novos ídolos; os velhos que aprendam a ter apenas
pernas de argila. Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, já
faz parte do meu ofício.” Guardem, também, o melhor presente que Nietzsche
poderia lhes dar:
“Sozinho vou agora meus discípulos! Também vós, ide
embora, e sozinhos! Assim quero eu. Afastai-vos de mim e defendei-vos de
Zaratustra! E, melhor ainda: envergonhai-vos dele! Talvez vos tenha enganado. O
homem do conhecimento não precisa somente amar seus inimigos, precisa também
poder odiar seus amigos. Paga-se mal a um mestre, quando se continua sempre a
ser apenas aluno. E por que não quereis arrancar minha corroa de louros? Vós me
venerais, mas, e se um dia vossa veneração desmoronar? Guardai-vos de que não
vos esmague uma estátua. Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa
Zaratustra! Sois meus crentes, mas que importa todos os crentes! Ainda não vos
havíeis procurado: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por
isso importa tão pouco toda crença. Agora vos mando me perderes e vos
encontrardes; e somente quando me tiveres todos renegado eu retornarei a vós.”
(Ecce Homo – Prólogo, § 4).
Notícias de um filósofo que está na
moda
“Nesse
dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho que se amorena,
acaba de cair um raio de sol sobre minha vida: olhei para trás, olhei para a
frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez. Não foi em vão que
enterrei hoje meu quadragésimo quarto ano, eu poderia enterrá-lo – o que nele
era vida, está salvo, é imortal. O primeiro livro da Transvaloração de todos os
valores, as canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos Ídolos, meu ensaio
de filosofar com o martelo – tudo isso são presentes deste ano e, aliás, de seu
último trimestre! Como não haveria eu de estar grato a minha vida inteira? – E
por isso conto minha vida.”[6]
Nascido em 15 de outubro de 1844 em
Röcken, localidade próxima a Leipzig na Alemanha, e morto em 25 de agosto de
1900 em Weimar, na mesma Alemanha, o filólogo, filósofo, poeta, músico e
professor da Universidade da Basiléia aos vinte e quatro anos, Friedrich Nietzsche,
está na moda. Nas palavras de Georg Lukács, que o colocava entre os
representantes filosóficos da Destruição da Razão (Die Zerstörung der
Vernunft), Nietzsche é o “fundador do irracionalismo do período
imperialista”.[7]
Martin Heidegger, que apesar da resistência de alguns nietzscheanos em admitir qualquer
forma de ontologia no filósofo, achou que o pensamento de Nietzsche merecia ser
examinado pelo prisma da ontologia existencial. Para ele, Nietzsche foi o
“último metafísico do Ocidente”. Mas
deixemos os epítetos para lá e falemos do homem.
Nietzsche era filho de Karl Ludwig e
Franziska Oehler. Seu pai era pastor em Röcken, e tanto ele como sua esposa,
mãe do filósofo, eram por sua vez filhos de pastores luteranos. Segundo consta
de alguns dados biográficos Nietzsche foi uma criança feliz, aluno modelo,
dócil e leal a quem os colegas de escola chamavam de “pequeno pastor”. Após o
falecimento do pai, em julho de 1849, com apenas 36 anos (por “amolecimento do
cérebro” segundo o diagnóstico da época) quando o futuro filósofo não ainda não
completara cinco anos, teve de mudar-se com a família para Naumburg, pequena
cidade às margens do Saale, em companhia da mãe, da irmã, duas tias e da avó
paterna Erdmuthe Krause. No famoso § 3 de Ecce Hommo Nietzsche informa,
talvez influenciado por uma evidente mitomania, que sua avó paterna passou toda
a sua juventude “na velha e boa Weimar, não sem relação com o círculo de
Goethe”, que seu tio-avô, “o catedrático de teologia Krause, de Königsberg, foi
chamado a Weimar como superintendente geral, após a morte de Herder”, e que
“não é impossível” que sua bisavó paterna “seja a que aparece no diário do
jovem Goethe sob o nome de ‘Muthgen’”. Provavelmente, a partir de uma visão
psicanalítica (pobre), essa convivência desde tenra idade num ambiente
eminentemente feminino, possa de alguma forma ter influenciado o seu difícil
relacionamento com as mulheres, pois Nietzsche é também o misógino que declarou
que “a primeira e última ocupação [da mulher] é gerar filhos robustos”[8]
e que “quando uma mulher tem inclinações eruditas, geralmente há algo errado
com sua sexualidade”[9].
Raiva das mulheres? Ressentimento? Freud explica? Vai saber…
A verdade é que no universo das relações com as
mulheres na fase adulta de sua vida, a experiência do filósofo não
chegou nem perto daquilo que se pudesse chamar de bem sucedida. Em 1875, quando
já tinha 31 anos, numa carta a Malwida von Meysenburg, datada de 25 de outubro
de 1875, Nietzsche escreveu: “Agora gostaria, falando confidencialmente, de ter
em breve uma boa mulher…”[10]
Já no ano seguinte propõe casamento a uma certa Mathilde Trampedach, em Genebra
e é recusado. Nesse particular, seus biógrafos registram pelo menos outros dois
exemplos sintomáticos: O primeiro aconteceu por volta de 1870 (antes, portanto,
da tal Mathilde) quando Nietzsche apaixonou-se por Cosima, a bonita e
inteligente filha de Lizt (1811-1886) que então vivia com seu amigo e ídolo,
Wagner, o genial compositor de Tristão e Isolda que ele conhecera em
1868 e que, tão festejado em O Nascimento da Tragédia no espírito da
Música, de 1871, tornar-se-ia a decepção visceral a quem o filósofo dirigiu
palavras muito duras ao longo de sua obra posterior depois de o célebre músico
tornar-se cristão e admirar o pessimismo de Schopenhauer (outro ídolo caído).
Em 1878 havia
sido publicado Humano, Demasiado Humano e Nietzsche enviara um exemplar
a Wagner com o seguinte comentário: “Este livro é obra minha. Nele trouxe à luz
minha mais íntima percepção dos homens e das coisas, e pela primeira vez
delimitei os contornos do meu próprio pensamento”.[11]
O livro foi mal recebido pelos Wagner que atribuíram o “novo modo de pensar” do
antigo admirador à influência “do judeu” Paul Rée. Wagner publicou um ataque a
Nietzsche sem, no entanto, mencionar seu nome. Nietzsche não deixou por menos,
pois nas “Obras incompletas” da Editora Abril Cultural podemos ler as seguintes
palavras constantes do “Prefácio” datado de 1886:
“(…) Richard Wagner, aparentemente o mais
triunfante, na verdade um romântico em desespero que murchava, prostou-se
subitamente, desamparado e alquebrado, aos pés da cruz cristã… cansado pelo
nojo do que há de efeminado e fanaticamente indisciplinado nesse romantismo, de
toda a mendicidade idealista e seu amolecimento da consciência, que aqui mais
um vez triunfou sobre um dos mais bravos; cansado, enfim, e não em último
lugar, pelo desgosto de uma inexorável premonição – de que eu, depois dessa
desilusão, esteja condenado a desconfiar mais profundamente, a estar mais
profundamente sozinho do que nunca antes… comecei por proibir-me a fundo e
fundamentalmente toda música romântica, essa arte equívoca, grandiloqüente,
abafada, que tira o espírito de seu rigor e alegria e faz crescer toda espécie
de obscura nostalgia, de anseio esponjoso… tal música desenerva, amolece,
efemina, seu ‘eterno feminino’ nos atrai – para baixo!” [12]
Talvez seja o
caso de perguntar aqui, a respeito da acusação de que Wagner teria se
prostrado, subitamente, “desamparado e alquebrado, aos pés da cruz cristã”, por
que Nietzsche deu à sua autobiografia o título de Ecce Homo; por que,
além das incontáveis alusões implícitas ou explícitas ao Novo e ao Velho
Testamentos, como, por exemplo, nas belíssimas palavras iniciais do Prólogo de A
Genealogia da Moral: “Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de
nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como
poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão alguém disse: ‘onde
estiver teu tesouro, estará também o teu coração’..” Esse “alguém” a que se
refere Nietzsche é Jesus Cristo (Mateus 6, 21). Por que escreveu o Zaratustra
no estilo dos Evangelhos e deu a alguns capítulos deste livro títulos como “Da
redenção”, “No monte das oliveiras”, “A ceia” e “Do imaculado conhecimento” e
por que, no limiar da loucura que finalmente o acometeu, assinava textos
estranhíssimos ora como “Dioniso” ora como “O crucificado”? Dizei-me vós, ó
nietzscheanos de quatro costados!
Na época da
paixonite pela mulher do (então) amigo Wagner, Nietzsche e Cosima tinham quase
a mesma idade: ela 30 anos e ele um pouco menos que isso (Wagner já tinha quase
60). A tentativa, frustrada, de seduzir Cosima talvez tenha sido o primeiro
sério abalo na sua autoconfiança – desconsiderando a recusa da tal Mathilde de
Trampedach. O segundo episódio pós-Mathilde, aconteceu em 1882 quando Nietzsche
conheceu Lou Salomé (1861-1937), em Roma, através de Paul Rée. Nietzsche se
apaixona e quer fazer dela sua discípula e companheira; propõe-lhe casamento e
é, mais uma vez, recusado. Ele e Rée rivalizam no amor de Salomé que, no
entanto, só queria amizade. Os três passam a viajar juntos e forma-se entre
eles um “ménage à trois platônico”, na expressão de R.J. Hollingdale[13].
Nessa época a irmã de Nietzsche intervém com intrigas e falso moralismo;
Nietzsche age mal para com Salomé e Rée e é por eles abandonados.
Na esteira
desse quiprocó, Nietzsche briga seriamente com a mãe e a irmã e ao final de
tudo, em novembro, está física e emocionalmente exausto, à beira do suicídio –
dizem alguns. Em carta de 25 de dezembro de 1882, a Overbeck, escreveu sobre
seu sofrimento: “Se não invento a alquimia de transformar esta imundície em
ouro, estou perdido”. A verdade é que, se no início do relacionamento Lou ficou
impressionada com a inteligência do filósofo, no que diz respeito às coisas do
amor (philia) preferiu continuar com Paul Rée frustrando, assim, uma vez
mais, a autoconfiança de Nietzsche. Mais tarde Lou Salomé se tornaria brilhante
discípula de Freud e mulher do poeta Rainer Maria Rilke. Por coincidência ou
não – sabem os deuses – o fato é que a partir de Humano Demasiado Humano,
de 1878, cuja redação havia começado, como anotações, em 1876 – portanto, o
mesmo ano da recusa da tal Mathilde Trampedach à proposta de casamento –
Nietzsche passou a escrever muito sobre as mulheres quase sempre numa atitude de
machismo explícito, ao vivo e em cores (fortes).
Talvez seja possível, nos fazendo uma
vez mais de psicanalista de meia tigela, interpretar essa insistência de
Nietzsche em dar em cima da mulher dos outros, de tomar a mulher dos outros,
como uma manifestação – inconsciente, talvez – da “nobreza” que o filósofo
julgava ter; o “príncipe” que julgava ser; e a quem seria dado esse “direito”
pelo simples fato de ser um “nobre”, um “príncipe”, conforme se pode observar
da leitura do § 81 do Capítulo II, do Primeiro Volume (“Para a história dos
sentimentos morais”) de Humano, Demasiado Humano,[14]
onde se pode ler o seguinte: “Quando o rico toma do pobre um bem (por exemplo,
o príncipe toma do plebeu a amada), nasce no pobre um erro; ele pensa que
aquele tem de ser totalmente celerado para tomar dele o pouco que ele tem. Mas
aquele não sente tão profundamente o valor de um único bem, porque está
habituado a ter muitos: assim não pode se pôr na alma do pobre e está longe de
fazer tanta injustiça quanto este acredita.” A despeito – ou por isso mesmo –
de os “outros” de cujas mulheres Nietzsche dava em cima, ser nada mais nada
menos que Wagner e Paul Rée, e não simples “plebeus”.
A propósito dessa “mania de nobreza”
a que me referi acima, vale registrar aqui uma passagem de Ecce Hommo[15],
onde o filósofo escreve: “[…] meus antepassados eram nobres poloneses: deles
tenho muito instinto de raça no corpo, quem sabe até mesmo ainda o liberum
veto”[16].
Em nota (nº 10), de Ecce Hommo (op. cit.) Paulo César de Souza nos informa
que a pesquisa genealógica traçou a ascendência de Nietzsche até o século XVI,
“encontrando apenas alemães”. Um pouco antes (Nota nº 8), nos informara que o
texto original desse famoso terceiro parágrafo de “Por que sou tão sábio”,
seria parte das modificações pretendidas por Nietzsche, nos últimos dias de
dezembro de 1888. Nos informa, a propósito, que o texto da primeira edição
baseava-se numa cópia do manuscrito feita por Peter Gast, que sempre fizera
este serviço para Nietzsche. Ele (Peter Gast) omitiu algumas passagens que lhe
pareceram excessivamente “exaltadas”, ou injustas e desrespeitosas para com
amigos e parentes. Estas passagens omitidas por Peter Gast foram depois
destruídas pela irmã de Nietzsche. O parágrafo original tem a seguinte redação:
“Vejo como um grande privilégio haver
tido tal pai: os camponeses aos quais pregava – pois nos últimos anos foi
pastor, após ter vivido alguns anos na corte de Altenburg – diziam que um anjo
teria aspecto semelhante.-E como isso toco no problema da raça. Eu sou um nobre
polonês pur sang; não há, em minhas veias, uma gota sequer de sangue
ruim, para não falar de sangue alemão. Quando busco a mais profunda antítese de
mim mesmo, a mais incalculável vulgaridade de instintos, encontro sempre minha
mãe e minha irmã – crê-me aparentado a tal canaille seria uma blasfêmia
à minha divindade. O tratamento que até agora me dispensaram minha mãe e minha
irmã inspir-me um horror indizível: aí trabalha uma máquina perfeitamente
infernal, que conhece com infalível segurança o instante em que posso ser mais
cruelmente ferido – em meus instintos supremos… pois então falta qualquer
foca para defender-me contra vermes venenosos… A proximidade fisiológica
torna possível uma tal disharmonia praestabilita… Confesso que a mais
profunda objeção ao “eterno retorno” , que é o meu pensamento verdadeiramente
abismal, são sempre minha mãe, e minha irmã. – Mas também como polonês sou um
imenso atavismo. Seria preciso retroceder séculos para encontrar esta raça, a
mais nobre que já existiu na Terra, com a mesma pureza de instintos com que eu
a represento. Frente a tudo o que hoje se chama nobless abrigo um
soberano sentimento de distinção – ao jovem imperador alemão eu não concederia
a honra de ser meu cocheiro. Há apenas um caso em que reconheço meu igual –
confesso-o com profunda gratidão. Madame Cosima Wagner é de longe a natureza
mais nobre, e, para não calar uma palavra seque, direi que Richard Wagner foi,
de longe, o homem mais próximo a mim… O resto é silêncio… Todos os conceitos
vigentes acerca de graus de parentesco são um insuperável contra-senso. É com
os pais que se tem menos parentesco: estar aparentado com eles seria o
signo extremo da vulgaridade. As naturezas superiores têm sua origem em algo
infinitamente anterior, e para chegar a elas foi preciso acumular, reter,
reunir, durante muitíssimo tempo… As grandes individualidades são as
mais antigas: eu não entendo, mas Júlio César poderia ser meu pai – ou Alexandre, este Dioniso que se fez homem… No momento em que escrevo, o
correio me traz uma cabeça de Dioniso…” [17]
O Nietzsche que
está na moda é também o filósofo que decretou a morte de Deus e o advento do
além-homem.[18]
Que se insurgiu contra o cristianismo, a democracia e o socialismo. Inimigo de toda e qualquer “moralina”[19]
e de toda “verdade” racional, também era músico, pois como nos informam
os estudiosos e o próprio filósofo nos faz saber no Ecce Homo[20],
um seu Hino à Vida para coro e orquestra sobre letra de ninguém mais
ninguém menos que da russa de São Petersburgo,[21]
Lou Salomé, foi publicado em 1886 pelo editor E.W. Fritzsch. Em Ecce Homo, Nietzsche diz textualmente: “O texto, seja expressamente notado, porque
corre um mal-entendido a respeito, não é meu: é assombrosa inspiração de uma
jovem russa com quem então mantinha amizade, a srta. Lou von Salomé. Quem
souber extrair sentido das últimas palavras do poema perceberá por que eu o
distingui e admirei: elas têm grandeza. A dor não é vista como objeção à
vida: ‘Se felicidade já não tens para me dar, pois bem!, ainda tens a tua
dor…’ Talvez também a minha música tenha grandeza nesse trecho”.
É o mesmo homem que pretendeu que um
dia seu nome estaria ligado “a qualquer coisa enorme, a uma crise como nunca
houve na terra”, como disse na obra, já referida, a que deu o título pouco
modesto de Ecce Homo. É também o admirador de Goethe, de Byron e de
Hölderlin e, como este último, também poeta, pois como nos ensina Mario da
Silva, “No mesmo ano de Ecce Homo, Nietzsche reuniu algumas de suas
poesias sob o título Ditirambos de Dioniso (Dionysos-Dithyrambem),
que dedicou ao ‘poeta de Isoline”, ou seja, o poeta francês Catulle
Mendes; três dessas poesias acham-se em Assim falou Zaratustra: a que o
feiticeiro canta quando Zaratustra o encontra, a que ele entoa a som da harpa
no capítulo intitulado ‘O canto da melancolia’ e o ‘salmo’ intitulado ‘Entre as
filhas do deserto’, cantado pela sombra de Zaratustra após a ceia”.[22]
É curioso observar o fato (a coincidência) de o poeta Friedrich Hölderlin
(1779-1843), que Nietzsche tanto admirava, além de ter o mesmo prenome do
filósofo ter sido vítima, também, do trágico destino da loucura[23]
que, manifestando-se inicialmente em forma de grave crise, tornou-se depois
estado permanente a partir de 1806, vale dizer, durante cerca de metade de sua
vida.
Devo registrar por oportuno, que
imediatamente antes deste trecho que citei, Mario da Silva, após citar
Nietzsche em Ecce Homo [‘Essa obra (Zaratustra) é um caso inteiramente a
si’] nos informe que nela atuou o conceito de Nietzsche sobre o que seja
‘dionisíaco’. Explica que Nietzsche, “após estender-se sobre esse conceito”,
pergunta-se, referindo-se ao espírito de Zaratustra: ‘que linguagem falará um
tal espírito, quando falar consigo mesmo? A linguagem do ditirambo. Eu
[Nietzsche] sou o inventor do ditirambo’. A propósito dessa afirmação de
Nietzsche, Mario da Silva ressalva que “não vale opor-lhe [a ele, Nietzsche]
uma crítica do gênero daquelas que Wilamovitz, um dos mais conhecidos filólogos
clássicos dos tempos de Nietzsche, movia contra Aristóteles, o primeiro que fez
a tragédia grega derivar do ditirambo: ‘explicar a tragédia grega como
proveniente do ditirambo [aqui ele está citando Wilamovitz] ‘parece antes de
mais nada oferecer escasso auxílio, pois uma coisa pouco clara é explicada por
outra totalmente desconhecida’. Esclarecendo que tirou a citação de Einleitung
in die grieschiche Tragödie, “citada por Mario Untersteiner em Le
origini della tragédia e del trágico”, Mario da Silva afirma que:
“Nietzsche não diz em certos momentos de Assim Falou Zaratustra, que
adotou o ditirambo; declara que o inventou”. Logo a seguir, Mario da Silva
acrescenta, entre parênteses, que “Na época, 1888, bem como no ano de 1990, em
que se publicou a referida obra [de Wilamowitz], as afirmações de ambos [de
Wilamowitz e de Nietzsche] não eram descabidas; pois “foi somente em 1897 que o
British Museum deu a conhecer o papiro egípcio, adquirido no ano anterior, que
continha seis ditirambos de Baquílides”.
Nietzsche é também o homem que, na
minha pouco erudita opinião, botou a comportada filosofia (de até então) de
pernas para o ar, despiu-a e martelou-a. Fez dela uma filosofia para “espíritos
livres”, para andarilhos solitários – jamais para modistas ou modeiros.
Assim, o problema é que, como em toda moda, seus adeptos são, por definição de
moda, adeptos de momento, não sabem bem por que a adotaram. Como ocorre
na (controvertida) estética do vestuário, também aqui na “moda Nietzsche” quase
não há reflexão sobre aquilo que, literalmente, se consome – livros, revistas,
“cadernos”, palestras, seminários. Até mesmo algumas figuras “globais” sempre
encontram um tempinho para, entre um e outro brilho da tal “Vênus platinada”,
dar uma lidazinha em alguma coisa do filósofo. Aqui eu me apresso a
esclarecer que estou me referindo à atriz global Luana Piovani, que “deitadinha
de bruços” na sua cama descobriu que “Nietzsche é o fim da culpa” (ver revista IstoÉ/Gente,
de 16.04.07). E não – valha-nos Apolo! – à professora-doutora Márcia Tiburi
que, apesar de aparentemente, numa verdadeira “saia justa”, ter sucumbido aos
brilhos da “Vênus platinada” continua, nas horas vagas das labutas globais,
sendo uma competente professora de filosofia e figura de destaque nos mais
doutos ambientes nietzschianos.
Como não podia deixar de ser, em todo
esse contexto da “moda Nietzsche” há uma multidão de nietzscheanos de “ouvir
dizer”, isto é, aquela forma de conhecimento sobre a qual Espinosa (para
Nietzsche “o mais puro dos sábios”[24])
dizia que “além de ser [uma coisa] muito incerta, não se percebe nenhuma
essência da coisa”.[25] Entretanto, até por um dever de justiça, é imperioso constatar que a
culpa, se culpa houver, não deve ser creditada apenas aos novéis nietzscheanos.
A maioria destes, é verdade, sofre de uma quase natural dificuldade de leitura;
são os filhos da “década perdida”, isto é, a década de 1980, o oco criativo
entre os estertores da ditadura militar e o prenúncio do novo incerto. A época
em que toda uma juventude estéril de idéias e numa “rebeldia” movida a “sexo,
drogas e rock and roll”, sofrendo de um niilismo totalmente anti-Nietzsche,
desacreditou de tudo e buscou novos ídolos que lhes amenizasse o tédio
insuportável que sobrara do vazio de sentido que a ideologia fardada, os
sacerdotes do “deus mercado” financiadores da “Operação Bandeirantes” (OBAN), e
os políticos de ocasião, lhes legaram como a “parte que lhes cabe desse
latifúndio” (Salve, João Cabral de Melo Neto!). Pobres moços! Pobres moças!
Para piorar ainda mais a problemática
existencial-sociológica dessa juventude – na verdade aliados a ela – alguns
professores, invertendo o sentido do termo e talvez por acharem, erroneamente,
que “a coisa mais obscura e inexplicada é vista como mais importante do que a
clara e explicada”[26]
ou, quiçá, por concordarem com Nietzsche na apreciação deste de que “a
juventude é desagradável, porque nela não é possível ou não é razoável ser
produtivo em qualquer sentido”,[27]
mais dificultam que esclarecem as coisas para eles. Não percebem que “o mais
inequívoco indício de menosprezo pelas pessoas é lavá-las em consideração
apenas como meio para nossos fins”,[28]
e estão mais preocupados com fama e autopromoção que na promoção de seus
alunos; esquecendo-se, inebriados, da sentença de Virgílio (Eneida, 4,
174) segundo a qual, “Fama,
malum qua non aliud velocius ullum” (Fama, nenhum outro mal é mais veloz),
como registra Renzo Tosi no seu Dicionário de Setenças Latinas e Gregas.[29]
Nesse afã, pensando ser oráculos de todos os segredos, não se dão conta de que
se trata apenas de “oculto segredo de gabinete ou inofensiva tagarelice entre
anciãos acadêmicos e crianças”,[30]
e omitem de seus alunos-discípulos, quiçá por mera ignorância, tudo o que possa
de alguma forma ofuscar o seu próprio brilho, como por exemplo, o monumental Tratado
de Carl Kerényi sobre o deus Dioniso[31],
onde o autor afirma, dentre outras coisas, que:
“Nietzsche
acreditava que, seguindo uma tradição incontestável, as formas mais antigas da
tragédia grega, tratavam de um modo exclusivo, dos sofrimentos de Dioniso, e
por muito tempo Dioniso foi o único herói da tragédia. Tal suposição é falsa,
pois nunca houve essa tradição direta. Semelhante tese reflete também uma
incompreensão da forma trágica, forma que implicava o caráter fundamentalmente
contraditório de zoé, a base de sua dialética. O mais antigo herói dos
palcos era um inimigo de Dioniso. A fim de que o próprio deus pudesse
encarnar-se em seu inimigo, tal como num animal representante, vítima de
sacrifício, esse representante tinha de morrer – e, antes de morrer, tinha de tentar
matar o próprio deus. E por isso tinha de pagar”.[32]
Na mesma obra, um pouco mais adiante,
o professor Keréniy nos informa que “Não foi pura e simplesmente Dioniso, como
pensava Nietzsche, mas sim Penteu o primeiro herói da tragédia. O Dioniso
sofredor foi outrora chamado ‘Penteu’, ‘o homem das dores’.”[33]
Na mesma página (282) dessa última citação que fiz o autor informa, em nota de
rodapé, que “no parágrafo 10 de A Origem da Tragédia, Nietzsche chega a
essa conclusão [Dioniso como primeiro herói da tragédia] a partir do provérbio Oudèn
pròs tòn Diónyson.” Estas e muitas outras são informações indispensáveis a
todos quantos se pretendem conhecedores de Nietsche – ou pelo menos no que
tange à figura do deus Dioniso em sua obra.
Na obra do professor Kerényi ficamos
sabendo, também, que “os relevos de um pedestal de mármore que se encontra no
Vaticano, talhados provavelmente, com base em um modelo do século II a.C.,
parecem representar os preparativos para uma cerimônia dionisíaca mais secreta,
um rito de sacrifício”.[34]
Ficamos sabendo, ainda, que “a existência de uma maciça religião não-grega de
Dioniso na área entre o lago de Genesaré e a costa fenícia foi atestada pelo
fundador do cristianismo, que andou por aquela região, chegando até Tiro. Ele
extraiu muitas de suas metáforas da vida dos vinicultores, tal como os poetas e
profetas do Velho Testamento haviam feito antes” e que [Jesus] disse de si
mesmo: ‘Eu sou a videira da verdade’.”[35]
Mas, “em tal mundo da uniformidade exterior forçada, [a filosofia] permanece
monólogo erudito do passeador solitário, fortuita presa de caça do indivíduo
[…], uma época em que “todo filosofar moderno está política e policialmente
limitado à aparência erudita, por governos, igrejas, academias, costumes e
covardia dos homens…”[36]
– Palavras de Nietzsche!
Fazer o quê? Nesse meio, é um
empavonamento só! Cada um mais digno que o outro da sentença de Ovídio
constante das Matamorfoses[37]:
“Laudato pavone superbior” (Mais Orgulhoso do que um pavão louvado). E
ai de quem se atrever a dizer qualquer coisa por mais leve que seja, que
contradiga de alguma forma as doutas e transcendentes “certezas” dos mestres
nietzschianos. Longe de mim tal temeridade! Antes disso, e humildemente, repito
o brado de Platão: Valha-nos Apolo! Que transcendência tão divinal![38]
Mas também fiéis ao espírito dos tempos modernos – sapere aude e de
omnibus est dubitandum (“ousar saber” e “deve-se duvidar de tudo”) – que
significou a quebra dos paradigmas “transcendentais” da Idade Média teológica,
teocêntrica e teocrática a nós, os sem medo[39]
das fogueiras acadêmicas e da danação eterna em todos os doutos ambientes
nietzschianos, só nos resta dizer, com pretensão de paráfrase, nada mais nada
menos que umas palavras do “mais nobre dos homens”[40],
o Cristo: Perdoai-os Nietzsche, eles não sabem o que fazem!
Mas… Alvíssaras! Quiçá por obra, graça e inspiração
do deus-filósofo Dioniso, de quem Nietzsche dizia ser “discípulo”[41],
acontece todos os anos em Fortaleza o “Simpósio Internacional de Filosofia
Nietzsche/Deleuze”. Não é pouca coisa. Para quem gravita em torno da “mais
verdadeira de todas as ciências, a honrada deusa nua, a filosofia”[42],
é um acontecimento de grande importância – aqui
e alhures. Não sei se surgidas do “caos” a que se refere Nietzsche quando
afirmou que “é preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma
estrela dançante”[43]
– ou acreditando na afirmação de Nietzsche que completa a citada frase: “Eu vos
digo: há ainda caos dentro de vós” – a verdade é que ali brilham estrelas de
variadas grandezas: locais, nacionais e de além-mar. Nesse ambiente de rara
erudição e revelação de todos os segredos, “como que se abre diante de nós a
montanha mágica do Olimpo, e mostra-nos suas raízes”.[44]
Desvelam-se ali (quase) todos os segredos do discípulo de Dioniso e eu, simples
meteorito desgarrado nessa luminosa Via Láctea de conhecimento, e embora
admitindo minha monumental burrice, sempre arranjo um jeito de beber, sôfrego,
a sabedoria que jorra como luz de tantos sóis resplandecentes –
desconsiderando, displicentemente, a possibilidade, real, de morrer empanzinado
com tanto saber. Talvez esteja esquecendo a advertência de um meu amigo, o
professor Bosquinho da UECE, segundo quem “mais vale um jumento vivo que
um filósofo morto!” Com a licença do Edinardo eu imploro a todos os pavões
(misteriosos ou não) que me poupem do vexame de morrer tão moço! Ou, mais grave
ainda, a possibilidade, real, de eventualmente me ver na situação retratada em
uma sentença medieval (anônima), segundo a qual “Asinus in scamno se vult
similare magistro” (Um asno na cátedra quer passar por mestre). Que, a exemplo dos pavões do Edinardo, os deuses me
poupem de tamanho vexame! Até porque, como Nietzsche, eu posso dizer[45]:
“Todos nós sabemos, alguns até por experiência, o que é um bicho de orelhas
longas. Pois bem, ouso afirmar que possuo as menores orelhas que existem […]
Eu sou o antiasno par excellence…”
Afinal, ó iluminando nietzscheano, ninguém está
livre das vicissitudes da Academia, e nos mais doutos ambientes ocorrem
situações bem esquisitas. Narro-te uma recente: Na última vez que fui beber a
sabedoria dos referidos sóis resplandecentes, assim que meio escondido numa
platéia não menos solar, presenciei uma situação no mínimo trágica
(considerando o ambiente). Sucedeu de um professor doutor (estrela forasteira)
proferir uma interessante palestra sobre a nossa querida – e para moralistas em
geral, maldita – poetisa Hilda Hilst. Após uma boa hora de falação prá lá de
erudita – e competente, sejamos justos -, o professor-doutor-palestrante-forasteiro
dá por encerrada sua palestra e, em meio a calorosa salva de palmas, entre
“bravos”, “falou e disse” e “muito bem”, coloca-se à disposição para as
perguntas da doutíssima platéia. Tchan, tchan, tchan… (“ouça” aqui a 5ª de
Beethoven).
Ato contínuo, um professor doutor (estrela nativa)
pergunta ao palestrante com a intimidade própria dos pares: “O que você
me diz de a Hilda Hilst estar escrevendo na Veja, essa revista
reacionária, ao lado de uma figura como Diogo Mainardi?!!!” Ouvem-se muitos
“oh!”, “e agora?”, “danou-se…!” Doutas cabeças da platéia viravam-se em
direção ao professor-doutor-inquiridor-nativo em embasbacados gestos de apoio
representados em dulcíssimos sorrisos de admiração e respeito por tão
pertinente pergunta-observação-com-intuito-de-colocar-cascas-de-banana na
brilhante fala da luminosa estrela forasteira. Eu… gelei! Mas nem precisava,
pois o professor-doutor-palestrante-forasteiro empertigou-se, tomou do
microfone e falou uns bons cinco minutos para a doutísima platéia sobre o
“fato” inusitado. Não me contive. Convenhamos, aí também era demais! E como
todo meteorito tem lá seu dia de cometa (loucura), dirigi-me ao
professor-doutor-palestrante-forasteiro e disse-lhe com aquela voizinha
tímida, típica dos inseguros e incompetentes como eu: “Mas professor, quem
escreve na Veja é a Lya Luft! A Hilda Hilst, não somente nunca escreveu
para essa revista como já está morta faz algum tempo!” Impávido, o
professor-doutor-palestrante-forasteiro disse apenas: “Ih rapaz, é mesmo!”
Questionado por mim, o professor-doutor-inquiridor-nativo, disse simplesmente:
“Troquei as bolas”! Foi tudo o que obtive como resposta à minha observação.
Mas, reconheço: douto, é douto – e, afinal, quem sou eu para questionar tão
luminosas estrelas…
Para a doutíssima platéia, devo vos esclarecer, ficou
apenas a “mais que pertinente” pergunta do professor-doutor-inquiridor-nativo e
a não menos “pertinente” resposta do professor-doutor-palestrante-forasteiro
sobre o “fato” de a (enorme, grandiosa, retumbante) poetisa Hilda Hilst estar
escrevendo para uma “revista reacionária tipo Veja”. Devo esclarecer-te,
ó iluminando nietzscheano, que me dirigi a um e outro dos
professores-doutores (palestrante-forasteiro e inquiridor-nativo) de forma
particularíssima, quase num sussurro. Fiz de tal forma que ninguém na
doutíssima platéia ouviu meus comentários. Mas não é difícil imaginar – eu
mesmo presenciei alguns – os calorosos “muito bem”, “parabéns” e que tais,
dirigidos, no intervalo, ao professor-doutor-inquiridor-nativo. Pobres doutos!
Perdoai-os Hilda Hilst, eles nem sabem nem que tu morreste![46]
Perdoai a má fama que te puseram e que permanecerá com verdade “incontestável”
na lembrança daquela doutíssima platéia. Mas vamos pra frente que atrás vem
gente – para palestrar!
Espera; não vos revolteis ainda, pois vou contar-vos
outra: Certa vez, os organizadores do “Simpósio” resolveram, sabe Deus por
quais ecológicos motivos, homenagear uns índios tapeba que vivem perto
de Fortaleza numa situação de dar dó! É uma miséria só! Exangues, desnutridos,
alguns bêbados, meia-dúzia de “índios” cambaleia entre lama e mosquitos na
“reserva”. Fitando o céu que se desdobra em auriverdes e fulgurantes lampejos,
crianças esfomeadas, catarro escorrendo… Choros convulsos… “Meu Deus
salvai-as!” (diria Vinicius de Moraes). Índias mulheres suspendendo às tetas,
magras crianças cujas bocas pretas, regam o sangue das mães. Outras, moças, mas
nuas, espantadas, no turbilhão de espectros arrastadas, em ânsia e mágoas vãs.
(diria Castro Alves). E dá-lhes, FUNAI!
Pois bem, lá pelas tantas, entre uma palestra e outra
de uma estrela dançante, adentra o palco a indialhada decrépita,
dançando também – posto que aqui também estrelas – ao som de tambores e
maracás. Dava pena de ver – era um sonho dantesco aquele palco! Devo dizer-te,
para que bem entendas o espírito da coisa, que a maioria dos “índios” que ali
estavam era formada de velhos e velhas desdentados, com as pelancas
despencando, olhares desesperançados, costelas à mostra… (Oh, Marechal
Rondon, onde estás que não respondes?!) Mas, louve-se isso, em estado de graça
por estarem se exibindo (ou sendo exibidos) – a palavra é essa! – para tão
douta platéia. Entretanto, ó iluminando nietzschiano, se numa situação
hipotética, numa alucinação própria do estado de miséria, uma daquelas (velhas)
“nativas” visse o espectro de Nietzsche e, pensando-o real, lhe pergunta-se:
“Sei que o senhor escreve senhor professor. Não poderia emprestar-nos um de
seus livros?” Certamente, ó iluminando nietzschiano, a pobre tapeba
ouviria a mesma resposta que certa senhora companheira de pensão de Nietzsche,
de saúde combalida, que passava horas estendida numa chaise-longue,
segundo conta Daniel Helévi em seu estudo biográfico Nietzsche (Paris,
1944): “Não, responderia o espectral filósofo, não quero que os conheça. Se
devesse acreditar-se no que eu escrevo, uma criatura enferma como a senhora não
teria nenhum direito à existência!” – Dá-lhes, Nietzsche!
Uma
das estrelas mais cintilantes do Simpósio escreveu um artigo no jornal O POVO
de Fortaleza (CE) edição de 10.06.07, intitulado “Surfar é criar movimento”
onde diz:
“O mar com mil direções
possíveis, não tem começo nem fim; eis porque ele se torna lugar de errância,
espaço no qual o surfista, navegante do efêmero, pode cultivar devires
conjugando-os e assumindo-os perfeitamente.
Nada mais sublime que partilhar com um surfista o experimento do movimento de
captura (Kick out), saída de onda pela crista se jogando atrás da onda,
movimento utilizado quando a onda fecha; ou ainda, quando ele passa por uma
onda grande, subindo pela frente e descendo por trás, (Elevador). Ver o corpo,
as contrações do rosto, para além do gênero, a alegria estampada atestando uma
jubilação sem alarde, é como assistir às núpcias entre os elementos e o corpo
dançarino do surfista, em um balé de fogo, pássaro prateado, onde o limite
torna-se a própria falta de limite.
Algo é precioso para ele: saber pegar a onda em pé numa prancha, pois dá
rapidez ao indivíduo que a monta, como se monta um cavalo indomável. Aqui o
estilo é soberano. O estilo é a linha-artista do surfista, seu charme, seu
feitiço, que não exclui o experimento radical, quando o encontro com o mar é
entregue às turbulências atmosféricas, ao mesmo tempo em que ondas e tubos
gigantes confluem num leito comum engendrando um surfe tempestade, um surfe por
vir: forças positivas da invenção. O charme do estilo não pode, porém, levar o
surfista à imprudência radical: o cuidado de si é sua força maior.
O surfe é a arte do deslocamento, uma cartografia da bela carne em movimento; e
os surfistas atravessam os ares perigosos como um ritual público, mesmo quando
não há platéia. Surfar é dançar, é se deixar imergir pelo sonambulismo virtual,
por um estado drogado abstêmio numa solidão habitada pelas ondas. Pico à vista,
local ideal para ser freqüentado.
Surfar é ter o sentido do equilíbrio/desequilíbrio como guia que faz com que os
acontecimentos da vida, que são as ondas e suas flutuações, não sejam
considerados obstáculos, mas amparo sobre o qual apoiar a prancha e que vai
permitir de se manter em pé e de ficar na crista da onda. Aqui, não há maus
acontecimentos. Tudo é ganho ou onda! Ao olhar os surfistas em mar liso, eles
caem, se levantam na prancha e depois caem, se levantam; e nunca têm medo de
cair, pois sabem que caindo não correm perigo, o único risco é o de se molhar.
O surfe contribui à desconstrução de alguns pontos de vista de Platão:
"O corpo é inimigo do esporte e deve, pois, ser afastado do caminho do
desportista". O corpo é no surfe exatamente o contrário do que afirma
Sócrates em Fédon, de Platão: ele não atrapalha o surfista, não é um obstáculo
que se deve afastar de seu caminho.
O corpo é seu devir, embora haja aqui e ali um culto da performance e dos números,
ou um fetichismo do quantitativo abstrato: mar, ondas, ressaca, ventos,
tempestades. O corpo abre caminhos, inclusive para a filosofia, contrariando,
aqui também, as idéias de Sócrates. O ideal surfista, ao oposto àquele de
Platão, é ter um corpo pleno, não dividido entre corpo para o esporte e corpo
para a vida. Essa dualidade interfere negativamente naquilo que é para o
surfista uma ecologia do espírito.
Para além do mercantilismo de alguns e dos efeitos perversos de uma
profissionalização e competição aceleradas, o surfe, máquina para fabricar
sonhos, é sobremaneira um jogo fabuloso entre o homem e a onda, uma produção,
uma criação do inútil, perfeita definição da arte. O surfista, deus que brinca
com os deuses aquáticos, é alguém que diz sim à vida.
O surfista é um movimento no movimento, dedicado a um certo abandono da idéia
de sua pessoa em detrimento de uma percepção conduzida pela onda. De modo algum
a onda é uma conquista para o surfista. Se ele ganha a onda é que ela aceita
recebê-lo em seus movimentos.
O surfe é um jogo. Mas, se ele é a emancipação de uma condição do corpo, é
sobremodo equipado de um aspecto lúdico intrínseco ao próprio surfe. O surfe só
pode se emancipar mediante duas condições: o surfe é desenvolvimento da alegria
pelo corpo; surfar é criar movimento.
Comunidade bem específica, pensada sobre a recusa de certas regras clássicas
sociais, os surfistas criam um individualismo coletivo que rompe com a tradição
burguesa e se opõe às práticas racionais e mecânicas gerando a seu modo uma
individuação, que é o oposto do individualismo careta, gestor de uma solidão
acompanhada. No surfe, o individualismo é coletivo. O outro não é "meu
pecado original", é a possibilidade de acontecimento, festa!
Para os surfistas, a referência proprioceptiva – sensibilidade própria aos
ossos, tendões, que fornece informações sobre a estática, o equilíbrio, o
deslocamento do corpo no espaço – parece ocupar o lugar da referência social, e
a "física das nuvens", de Popper, substitui a física dos relógios!
O oceano é o livro do surfista, sua prancha uma caneta, e cada onda um poema”.
(os negritos são meus).
Ai de ti, Filosofia!
O articulista – verdadeira Eta Carenae no
ambiente do Simpósio -, qual
um Camões extemporâneo, surfou em ondas nunca dantes surfadas. Assim, “a mais
verdadeira de todas as ciências, a honrada deusa nua, a filosofia” exige os
devidos reparos. Desconsiderando a enorme diferença entre pranchas de surfe e
tratados de metafísica, o articulista afirma que Platão teria dito no Fédon
que “O corpo é inimigo do esporte e deve, pois, ser afastado do caminho do
desportista” (sic). Nada poderia ser mais contrário ao pensamento de Platão
sobre a relação do corpo com a atividade física (ginástica) e, por extensão, do
corpo com o esporte e do corpo com o desportista.
É verdade que
Platão, na obra citada pelo articulista, fala muito mal do corpo como entrave
ao verdadeiro conhecimento; mas o faz no estrito sentido epistemológico e em
perfeita consonância com suas doutrinas metafísicas: o corpo, aprisionando a
alma (psyquê, intelecto), impede esta última de atingir o verdadeiro
conhecimento (o “mundo inteligível”). Mas em nenhum momento do Fédon diz
que o corpo é “inimigo do esporte” e que deva “ser afastado do caminho do
desportista”. Até por uma absoluta falta de uma boa lógica argumentativa.
Talvez apenas a Física Quântica possa explicar em que circunstâncias um
desportista pode praticar seu esporte tendo o corpo – condittio sina qua non
para o esporte – afastado “do seu caminho”. Afinal, seria o mesmo que dizer que
os olhos são inimigos da leitura e que devem ser afastados do caminho dos
leitores…
No primeiro
caso, “o corpo é inimigo do esporte” (sic), implicaria acusar Platão de estar
cometendo, além de uma enorme bobagem, também uma enorme contradição, pois em
várias de suas obras, o filósofo – como de resto toda a Paidéia grega –
faz uma verdadeira apologia de um corpo bem cuidado pela ginástica – vale
dizer, pelo esporte. Nesse sentido, é significativa uma passagem de sua obra
maior A República, onde Platão diz (pela boca de Sócrates), dentre
outras, as seguintes palavras a propósito da formação dos “guardiões” de sua
cidade ideal: “Então que educação há de ser? Será difícil achar uma que seja
melhor do que a encontrada ao longo dos anos – a ginástica para o corpo e a
música para a alma” (A República, 376-e). No segundo caso citado, “o
corpo deve ser afastado do desportista”, aqui, talvez, somente a doutrina
espírita possa explicar isso melhor. Uma maratona de almas… Almas fazendo
ginástica – coisas assim.
Que o
articulista faça sua homenagem à moda de Caetano Veloso (“Menino do Rio”) aos
surfistas é compreensível e louvável. Mas daí a afirmar que “o surfe contribui
à desconstrução de alguns pontos de vista de Platão” (os citados pelo
articulista), vai uma enorme diferença que, até em respeito à reputação do
jornal e aos seus leitores jovens (a maioria dos surfistas é jovem) deve ser
esclarecida. Até para que os surfistas, “ases” no seu esporte, não se tornem
“asnos” em Platão e possam passar incólumes e ao largo da referida advertência
medieval (anônima) segundo a qual “Asinus in
scamno se vult similare magistro” (Um asno na cátedra quer passar
por mestre).
Mas deixemos isso para lá. Não vos importa a vós,
homens do mais puro conhecimento nietzscheano. Devo dizer-te quanto aos
filósofos que o “Simpósio” homenageia que, relativamente a Deleuze, reduz um
pouco a minha quase total ignorância o fato de sabê-lo um filósofo francês
recentemente falecido (1995); o que aprendi sobre ele na leitura de um
excelente especial da revista “Cult” (novembro de 2006) e algumas
leituras fragmentárias dos Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia[47]
(Mille plateaux – Capitalisme et schizophrénie) escrito em parceria com
Félix Guattari, do qual dizem[48]
ser “o mais profundo trabalho político” da
dupla. De sua obra, de resto, tenho apenas “notícias”. Aguçou minha
curiosidade, por exemplo, o fato de Michel Foucault[49]
considerar duas das obras de Deleuze, a saber, Diferença e Repetição e Lógica
do Sentido, dois livros “grandes entre os maiores”. “Tão grandes – diz
Foucault – que sem dúvida é difícil falar deles e muito poucos o fizeram”.
Incluindo-se entre “os poucos”, sobre Lógica do Sentido Foucault anota
que “deve ser lido especialmente como o mais audaz, o mais insolente dos
tratados de metafísica – com a simples condição de que em lugar de denunciar
uma vez mais a metafísica como o olvidamento do ser, a encarregamos desta vez,
de falar do extra-ser”. E completa, esclarecendo seu comentário: “Física: discurso
sobre a estrutura ideal dos corpos, das misturas, das reações, dos mecanismos
do interior e do exterior; metafísica: discurso acerca de materialidade dos
incorporais, – dos fantasmas, dos ídolos e dos simulacros.”
Em relação a Nietzsche considero-me apenas um neófito.
Não sou especialista em sua obra. Somente comecei a me interessar por ele a
partir de um acontecimento fortuito, ocorrido há mais de vinte anos, quando li,
em um muro de Brasília, duas inscrições. Uma (mais antiga) dizia: “Deus está morto”.
– assinado Nietzsche. Logo abaixo, um espírito de porco escreveu: “Nietzsche
está morto” – assinado Deus. Pensando bem…
Pensei bem!
Detive-me em frente daquelas inscrições como um
Nietzsche olhando para certa formação rochosa denominada “pedra de Surlei”, em
1881, nos bosques à margem do lago de Silvaplana, na Engadina (Suíça). Mas, ao
contrário do poeta-filósofo não tive ali a intuição do “eterno retorno”. Nem a
de Nietsche nem a de Empédocles, pois como vós sabeis, ó iluminando
nietzschiano, os estudiosos de Nietzsche nos ensinam que o filólogo e
helenista Ettore Bignone, que verteu para o italiano todos os fragmentos de
Empédocles e os testemunhos que nos chegaram a seu respeito, faz notar que o
princípio nietzschiano do ‘eterno retorno’ já podia encontrar-se em Empédocles,
não referido ao plano individual, como em Nietzsche, mas ao cósmico”.[50]
Quiçá tenha tido, antes, a intuição de um por assim dizer, para além de bem e
mal que me encorajou a conhecer melhor o homem que, em pleno século XIX,
o século de Hegel, dizer da Filosofia da História deste[51],
de forma jocosa, ser “a perambulação de Deus sobre a terra”.
O homem que num tempo em que ainda se podia ouvir, ao
longe, o crepitar das fogueiras da Inquisição; o tempo da efervescência do
socialismo “utópico” (de Saint-Simon, Fourrier e Orwel) e “científico” (de Marx
e Engels); o século da pregação a respeito da “emancipação” das mulheres; o
homem, eu dizia, que em todo esse contexto teve a coragem de decretar a morte
do Deus cristão[52],
tratar o socialismo como “doença superada”[53]
e dizer sobre as mulheres (como já ressaltei) que “sua primeira e última
ocupação é gerar filhos robustos.”[54]
O homem que, apesar de ter morrido no mesmo ano em que nascia a psicanálise[55],
e de cujas leituras de suas obras Freud disse ter evitado “por muito tempo”
porque seu pensamento [de Nietzsche] concorda “da forma mais surpreendente” com
os achados da psicanálise.[56]
Que havia negado a si mesmo [a ele, Freud] “o enorme prazer da leitura das
obras de Nietzsche”[57],
e a quem creditou a paternidade da expressão [alemã] “das Es” (o id
da psicanálise)[58].
Isso tudo sem falar – e já falando – de pelo menos duas frases de Freud[59]
(a segunda sintomaticamente entre aspas) que são, inegavelmente, uma clara
alusão ao conceito nietzschiano de “eterno retorno” como consta da última parte
do Zaratustra e, ainda, a observação que fez [ele, Freud] num conhecido
escrito[60]
de que Nietzsche mais uma vez antecipara descobertas da psicanálise, bem como
as três alusões que fez ao filósofo na obra que “fundou” a psicanálise[61].
Daí em diante, ó luminando nietzschiano, foi um
duro e sofrido aprendizado para mim. Senti acontecer no mais recôndito de
minhas “convicções”, o crepúsculo de tantos ídolos queridos: a democracia, o
socialismo, o anarquismo, o meu alto conceito sobre as mulheres, as
revoluções… O que, até aqueles dias, a mim me parecia “sólida convicção”, se
desvanecia como bolha de sabão – desfeita não com um sutil alfinete de prata,
mas com o ribombar de toneladas da mais pura dinamite nietzschiana. Tudo o que
era sólido se desmanchava no ar, como já dissera Marx[62]
a propósito da ascensão da burguesia e que eu não havia dado a atenção devida.
Naquela época eu também não conhecia a advertência de
Nietzsche constante de Ecce Homo: “Conheço minha sina. Algum dia meu
nome estará ligado a qualquer coisa enorme – a uma crise como nunca houve na
terra, ao mais profundo conflito de consciência, a uma decisão invocada contra
tudo aquilo que, até aqui, se acreditou, se estimulou, se santificou. Eu não
sou um ser humano, sou dinamite.” Putz grila, Nietzsche! Honesta e
premonitória advertência – minhas bolhas de sabão que o digam.
Quanto a vós, ó iluminandos (e iluminados)
nietzschianos, o que chama minha atenção piscando que nem luz de neon é
o fato de uma parcela considerável de vocês – talvez mesmo a maioria – ser
composta de pessoas ditas de “esquerda”: feministas, socialistas, democratas,
anarquistas, etc. – a fina flor, enfim, de todas as vanguardas. Pessoas para
quem a Revolução Francesa (“essa farsa horrível e, observada de perto,
desnecessária”;[63]
essa “última grande rebelião de escravos”[64]),
foi assim como uma espécie de redenção da humanidade com seu lema “liberté,
egalité, fraternité”. (Qual liberdade, qual igualdade, qual fraternidade? –
dizei-me vós ó deslumbrados cara-pálidas pós-modernos, considerando a situação
dos imigrantes mulçumanos na França?).
A propósito dessa “ultima grande
rebelião de escravos”, vale notar que no capítulo “De grandes acontecimentos”
de Assim Falou Zaratustra há uma alusão a uma estátua derrubada. (“E
essas palavras digo ainda aos derrubadores de estátuas: ‘Não há estultície
maior do que atirar sal no mar e estátuas no chão’.”). Essa frase, segundo nos
informa Mario da Silva, remete à “estátua de Napoleão Bonaparte em trajos de
Júlio César, que encimava – e encima – a coluna Vendôme, em Paris. Durante os dias da Comuna, em 1871, um grupo de communards, instigados pelo
pintor Gustave Coubert, resolveu deitar por terra coluna e estátua; que
voltaram, porém, a ser erguidas, no mesmo lugar, em 1874, e, portanto, lá
estavam de novo quando Zaratustra aludia ao caso. E sabe-se que Nietzsche tinha
profunda admiração por Napoleão”.[65]
Nem tanto pela Revolução Francesa, acrescento eu.
São as mesmas pessoas que aplaudiram, num entusiasmo
quase histérico, a adesão incondicional de Michael Foucault (outro ícone
“osmótico” da juventude sem rumo da década perdida) ao regime dos aiatolás. O
mesmo regime e os mesmos aiatolás (dá-lhes, Khomeiny!) que, pouco depois de
chegar ao poder, provocou uma guerra fratricida contra o Iraque, com um saldo
de mais de um milhão de mortos, que deixou o deserto coalhado de carcaças – de
tanques e de homens. Uma teocracia dirigida por sacerdotes (no caso, mulçumanos
xiitas), ou seja, o mesmo tipo de casta de quem Nietzsche diz[66]
ser “os mais terríveis inimigos porque são os mais impotentes”, pois na sua
impotência “o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa
mais espiritual e venenosa”, ressaltando por fim que “na história universal, os
grandes odiadores sempre foram sacerdotes”. Mas, “como turba de infantes
inquietas”[67]
os luminandos nietzschianos, apenas riem…
São pessoas que, tirando sabe Deus de onde, e
confundindo conceitos derivados dos deuses com os próprios deuses, pretendem
uma situação antitética irreconciliável entre Apolo (para vós, o
“careta”) e Dioniso (o “doidão”), sem vos dar conta do que alertou um
comentador de Nietzsche (tão a vosso gosto) segundo o qual “do mesmo modo que,
na epopéia [na Ilíada], Apolo, o deus brilhante, solar […] torna, por sua
luz, a existência digna de ser vivida, a saudação ao sol, que abre o Zaratustra,
funciona como um hino de louvor a Apolo, apresentando seu personagem
título como indivíduo [naquele momento] apolíneo”.[68]
Pessoas que não se deram à estafante tarefa de ler o que o próprio Nietzsche
tem a dizer sobre ambos os deuses ou, melhor dizendo, sobre os seus (dele,
Nietzsche) conceitos de “dionisíaco” e “apolíneo”, o que faz nos seguintes
termos:
“Com a palavra ‘dionisíaco’ é expresso: um ímpeto à
unidade[69],
um remanejamento radical sobre pessoa, cotidiano, sociedade, realidade, sobre o
abismo do parecer: o passionalmente doloroso transporte para estados mais
escuros, mais plenos, mais oscilantes; o embevecido dizer-sim ao caráter global
da vida como aquilo que, em toda mudança, é igual, de igual potência, de igual
ventura; a grande participação panteísta em alegria e sofrimento, que
aprova e santifica até mesmo as mais terríveis e problemáticas propriedades da
vida; a eterna vontade de geração, de fecundidade, de retorno; o sentimento
da unidade entre a necessidade do criar e do aniquilar.
Com a palavra ‘apolíneo’ é expresso: o ímpeto ao
perfeito ser-para-si, ao típico ‘indivíduo’, a tudo o que simplifica, destaca,
torna forte, claro, inequívoco, típico: a liberdade sobre a lei.
Ao antagonismo desses dois poderes
artístico-naturais está vinculado o desenvolvimento da arte, com a mesma
necessidade que o desenvolvimento da humanidade está vinculado ao antagonismo
dos sexos. A plenitude de potência e o comedimento, a suprema forma de
auto-afirmação em uma fria, nobre, arisca beleza: o apolinismo da vontade
helênica.
Essa contrariedade do dionisíaco e do apolíneo
no interior da alma grega é um dos grandes enigmas pelo qual me senti
atraído, frente à essência grega. Não me esforcei, no fundo, por nada senão
adivinhar por que precisamente o apolinismo grego teve de brotar de um fundo
dionisíaco: o grego dionisíaco tinha necessidade de se tornar apolíneo:
isso significa quebrar sua vontade de descomunal, múltiplo, incerto,
assustador, em uma vontade de medida, de simplicidade, de ordenação a regra e
conceito. O desmedido, o deserto, o asiático, está em seu fundamento: a bravura
do grego consiste no combate com seu asiatismo: a beleza não lhe foi dada de
presente, como tampouco a lógica, a naturalidade do costume, – ela foi
conquistada, querida, ganha em combate – ela é sua vitória.”[70]
A propósito do
“dionisíaco” nietzschiano, vale registrar aqui, por oportuno, uma opinião de
C.G. Jung:
“Todos nós fomos surpreendidos por certas tendências
paganizantes da Alemanha contemporânea, pois ninguém fora capaz de interpretar
a íntima experiência dionisíaca de Nietzsche. Nietzsche – diz Jung – não foi
senão um dos casos entre milhares e milhões de alemães – que na época ainda não
haviam nascido em cujo inconsciente se desenvolveu, no decurso da Primeira
Guerra Mundial, o primo germânico de Dioniso: Wotan. Nos sonhos dos alemães que
tratei naquela época pude ver, com clareza, o surto da Revolução de Wotan, e em
1918 publiquei um trabalho no qual assinalava o caráter insólito do novo
desenvolvimento que se deveria esperar na Alemanha. Aqueles alemães não eram de
modo algum, pessoas que haviam lido Assim falava Zaratustra, e
seguramente os jovens que celebravam sacrifícios pagãos de cordeiros, ignoravam
as experiências de Nietzsche. Por isso deram a seu deus o nome de Wotan e não o
de Dioniso. Na biografia de Nietzsche – continua Jung – encontramos testemunhos
irrefutáveis de que o deus ao qual ele se referia, originariamente, era na
realidade Wotan; mas como filósofo clássico dos anos setenta e oitenta do
século XIX, denominou-o Dioniso. Confrontados entre si, ambos os deuses
apresentam muitos pontos em comum.”[71]
Por outro lado, nos ensina o professor Kerényi[72],
que o adjetivo “dionisíaco” era usado pelos próprios gregos como um
substantivo, no plural, para designar festivais em que eles faziam, ou
experimentavam, coisas condizentes com o deus celebrado: o ‘dionisíaco’ era
vivenciado nas “‘Dionísia”. O singular – diz o professor – era empregado para a
designação de qualquer das particularidades concretas que constituíam o
elemento dionisíaco do festival. O termo fundava sua pertinência tanto na
linguagem com na realidade dos gregos. Entretanto o professor ressalta que
Nietzsche foi o primeiro a introduzi-lo na história do pensamento.
Por não conhecer a citada obra do professor Kerényi,
vós talvez não conheceis também o Prefácio à mesma, feito pelo competentíssimo
professor Ulpiano T. Bezzera de Meneses, professor titular de História Antiga
da Universidade de São Paulo – USP, para quem:
“As interpretações contemporâneas de Dioniso fazem
paralelo com o quadro multiforme [do deus] e se multiplicam escolhendo este ou
aquele traço ou assinalando as polaridades. Nem se contem as mobilizações
ideológicas, de que serva de exemplo a apresentação do ritual dionisíaco como
protótipo sacramental e até mesmo como prefiguração da Eucaristia cristã.
Note-se que todas as correntes no campo dos estudos da religião, do mito e da
mitologia possuem o seu Dioniso. Aqui, porém, só vale apontar uma dessas
leituras, pelo efeito profundo e generalizado que teve, ao provocar, no
entender de muitos especialistas, uma verdadeira ‘destruição de Dioniso como
deus’, para transformálo num feixe de abstrações psicológicas. Trata-se da
formulação de Friedrich Nietzsche (1872), que gira, aliás, mais em torno do
dionisíaco do que de Dioniso propriamente dito. A antítese que ele estabeleceu
entre o dionisíaco, como pulsão irruptiva, desestruturadora, destruidora, e o
apolíneo, princípio de luz, ordem e criação, está hoje desgastada e,
como se pode ver, ignora as polaridades essenciais que estão no interior do
próprio Dioniso. Mas contribuiu, juntamente com alguma colaboração da
Psicanálise, para instituir essa ‘internalização de Dioniso’ como projeção da
psique humana”. [73]
São pessoas, ó iluminando nietzschiano, que a
exemplo (mau exemplo) de alguns dos seus mestres professores-doutores, apesar
do discurso em contrário pretensamente de vanguarda, formam guetos acadêmicos
(no caso, guetos pretensamente iluminados – se me permitem a contradição) onde
se reúnem, amiúde, para comparar, na verdade, não a solidez de conhecimentos,
mas os seus próprios limites. Aqui brilham poucos sóis (de quinta grandeza)
falando, solenes, a partir de seus limites para discípulos mais limitados
ainda, dando razão ao dito popular segundo o qual “em terra de cego quem tem um
olho é rei”. Nesse terreiro acadêmico (ai de ti, filosofia!) somente
podem cantar os “doutores” amigos do rei para embasbacados e compungidos
discípulos, fazendo lembrar a parábola do sabiá e dos urubus contada pelo
eminente professor Rubem Alves.[74]
Pessoas (professores-doutores e discípulos) sempre prontas a pespegar, em
qualquer desavisado que ousar falar ou escrever alguma coisa contrária às suas
doutas convicções, algo parecido a um trecho do texto de excomunhão de Espinoza
promulgada pela comunidade judaica de Amsterdã a 27 de julho de 1656.[75]
Pessoas que, deliberadamente, omitem o “anti” tudo aquilo (socialismo,
democracia, feminismo…) que Nietzsche era – e se orgulhava de ser – e que
hoje deve ser calado sob pena de danação eterna no sacrossanto altar do
“politicamente correto” em relação ao qual, aliás, Nietzsche não estava nem aí.
Entretanto, apesar das tentativas de escamotear – como
se nódoas fossem – as posições, digamos, pitorescas do filósofo, minha
neófita cabeça acha – melhor, tem certeza – que Nietzsche é “anti” tudo aquilo.
Pelo menos é o que pude deduzir de minhas parcas leituras do “discípulo do
filósofo Dioniso” que prefere “antes ser um sátiro que um santo”.[76]
Essa minha afirmação sobre o “anti” tudo isso que Nietzsche era pode ser
constatada nos trechos a seguir ou, mais completamente, nas citações in
totum constantes do “apêndice” no final deste texto:
“O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase
decrépito despotismo, do qual quer herdar; suas aspirações são, portanto, no
sentido mais profundo, reacionárias”.[77]
“O povo está longíssimo do socialismo como doutrina da
alteração do modo de adquirir a propriedade: e se alguma vez, pelas grandes
maiorias de seus parlamentos, tiver nas mãos o controle do imposto, ele
investirá com o imposto progressivo contra o principado do capitalismo, do
comércio e da Bolsa, e de fato criará lentamente uma situação intermediária,
que se pode esquecer o socialismo como uma doença superada”.[78]
“[…] o movimento democrático é o
herdeiro do cristão. Que, porém, sua cadência, para os mais impacientes, para
os doentes e maníacos (…) ainda é muito lenta e sonolenta, disso testemunha o
clamor que se torna cada vez mais furioso, o cada vez menos oculto arreganhar
de dentes dos cães anarquistas, que agora vagueiam pelos becos da civilização
européia”.[79]
“Nós, que somos de uma outra crença, – nós, para quem
o movimento democrático não é meramente uma forma de degradação da organização
política, mas uma forma de degradação, ou seja, do apequenamento do homem, sua
mediocrização e rebaixamento de valor”.[80]
“A degeneração geral do homem, até chegar
àquilo que hoje aparece aos broncos e cabeças rasas do socialismo como seu
‘homem do futuro’, como seu ideal! – essa degeneração e apequenamento do
homem em completo animal-de-rebanho (ou, como eles dizem, em homem da
‘sociedade livre’)” [81]
“[o anarquista] é porta-voz das camadas declinantes
da sociedade que reclamam com bela indignação por ‘direito’, ‘justiça,
‘direitos iguais’ e com isso ele está apenas sobre a pressão de sua incultura,
que não sabe conceber por que propriamente ele sofre – de que ele
é pobre, de vida. Apenas um impulso causal tem potência sobre ele; alguém tem
de ser o culpado por ele se sentir mal. Também a própria ‘bela indignação’ já
lhe faz bem; para todos os pobres-diabos é um contentamento xingar – dá uma
pequena embriaguez de potência”. [82]
“… o lamentar em nenhum caso presta para algo:
provém da fraqueza. Imputar seu mal-estar a outros ou a si próprio –
como fazem, respectivamente, o socialista e o cristão – não faz propriamente
nenhuma diferença. O que em comum, e dizemos, também, o que há de indigno
nisso é que alguém tem de ser culpado de que sofra – em suma, que o
sofredor se receita, contra seu sofrer, o mel da vingança”. [83]
“O cristão e o anarquista são ambos décadents.
Mas também quando o cristão condena, calunia, conspurca o ‘mundo’, ele o faz
pelo mesmo instinto pelo qual o trabalhador socialista condena, calunia,
conspurca a sociedade: mesmo o ‘Juízo Final’ é ainda o doce consolo da vingança
– a revolução, tal como a espera também o trabalhador socialista, só que
pensando um pouco mais longe…”[84]
“Quando uma mulher tem inclinações eruditas,
geralmente há algo errado com sua sexualidade…”[85]
“Comparando no todo o homem e a mulher, podemos dizer:
a mulher não teria o gênio para o ornamento, não tivesse o instinto para o papel
secundário.”[86]
“A mulher quer ser independente: […] este é um dos
piores progressos no enfeamento geral da Europa. Pois o que não
revelarão essas grosseiras tentativas de cientificidade e autodesnudamento
femininos! […] há tanta coisa pedante, superficial, sabichã, mesquinhamente
arrogante, mesquinhamente irrefreada e imodesta escondida na mulher […] que
até o momento, e no fundo, só o temor ao homem reprimiu e conteve da
melhor maneira.”[87]
“Ai de nós, se um dia o ‘eterno-tedioso’ da mulher –
no qual ela é pródiga – puder aparecer! Se ela começar a desaprender
radicalmente e por princípio sua arte e manha, a graciosidade, do jogo, do
afastar aflições, de aliviar e tomar com leveza, e sua refinada aptidão para
desejos agradáveis! Já se ouvem vozes femininas que – por santo Aristófanes! –
assustam; explicam ameaçadoramente e com precisão médica o que, em primeira e
última análise, a mulher quer do homem. Não é de péssimo gosto que a
mulher se disponha de tal modo a ser científica?”[88]
“A estupidez na cozinha; a mulher como cozinheira; a
terrível leviandade com que se cuida da alimentação da família e do chefe da
casa! A mulher não entende o que significa o alimento: e quer ser
cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura pensante, teria descoberto,
cozinhando há milênios, os mais importantes fatos fisiológicos, e teria também
aprendido a arte da cura! Por más cozinheiras – por total ausência de razão na
cozinha é que a evolução do homem foi mais longamente retardada, mais
gravemente prejudicada: isso pouco mudou em nossos dias. Um aviso para as moças
que freqüentam o secundário.”[89]
“[…] Pensa-se, inclusive, aqui e ali, em fazer das
mulheres livres-pensadores e literatos: como se uma mulher sem religião não
fosse, para um homem profundo e ateu, algo totalmente repugnante ou ridículo -;
em quase toda parte arruínam os nervos delas com a mais doentia e perigosa
espécie de música […] e as tornam a cada dia mais histéricas e mais
incapacitadas para sua primeira e última ocupação, que é gerar filhos
robustos.”[90]
Assim (também) falava Nietzsche! Mas…
Como se não bastasse um conhecimento tão
preconceituoso-ao-contrário e estanque do filósofo, esses aprendizes de
feiticeiros ainda pecam contra a essência mesma da filosofia moderna que,
preparada no Renascimento, inaugurada por Descartes e cuja quebra de paradigma
que representou persiste na contemporaneidade, só é e só pode ser superação de
estágios de conhecimento (e de convicções) determinados por cada momento
histórico. Doravante, nada mais de verdades definitivas! Nada mais de dogmas!
Afinal, se o próprio Deus, esteio do medievo por mil anos, “está morto” e “a
crença no Deus cristão caiu em descrédito”[91],
já não cabem mais, desde então, verdades pétreas. Fazei justiça ao filósofo, ó luminandos
nietzschianos. Não o transformeis em “fundador de religião”; não fazei dele o
que ele não é (não era). Escutai com atenção o que ele mesmo vos disse a
respeito do seu Zaratustra: “Aqui não fala nenhum ‘profeta’, nenhum
daqueles arrepiantes híbridos de doença e vontade de potência que são chamados
fundadores de religiões […] Aqui não fala nenhum fanático, aqui não se
‘prega’, aqui não se exige crença”. [92]
Aprendei a transvalorar valores e ouvi o filósofo:
“A arte ergue a cabeça quando as religiões perdem
terreno. Ela acolhe muitos sentimentos e estados de espírito gerados pela
religião, toma-os ao peito e com isso torna-se mais profunda, mais plena de
alma, de modo que chega a transmitir elevação e entusiasmo, algo que antes não
podia fazer. A riqueza do sentimento religiosos, que cresceu e se tornou
torrente, continuamente transborda e deseja conquistar novos domínios: mas o
crescente Iluminismo abalou os dogmas da religião e instilou uma radical
desconfiança: assim, expulso da esfera religiosa pelo Iluminismo, o sentimento
se lança na arte; em certos casos também na vida política, ou mesmo diretamente
na ciência. Sempre que se nota, nos empenhos humanos, uma coloração mais
intensa e mais sombria, pode-se presumir que o temor de espíritos, aroma de
incensos e sombras da Igreja ali permaneceram.”[93]
Em todo esse contexto de quebras de paradigmas,
produto do inexorável caminhar do tempo que a tudo supera; quando nós
conseguimos pular os muros dos conventos e das abadias; quando Copérnico e
Galileu já haviam conseguido derrubar o dogma aristotélico-cristão do
geocentrismo e colocado a Terra e o Sol nos seus devidos lugares, aí então já
aparecia como ator privilegiado justamente o conhecimento científico, aquela
“irresistível necessidade de conhecimento que torna livre o espírito”, – na expressão
do professor Giacóia – que, ao contrário do que supõe vossa vã filosofia, ó luminando
nietzschiano, Nietzsche soube reconhecer muito bem ainda no início da segunda
fase[94]
(como querem alguns) de sua trajetória filosófica inaugurada com Humano,
Demasiado Humano. Como bem observou um competente comentador de Nietzsche:
“Essa segunda fase na
trajetória filosófica de Nietzsche pode ser caracterizada por uma valorização
do conhecimento científico e um abrandamento da oposição entre arte e ciência
que, com seus diferentes matizes, caracterizava a metafísica de artista do
jovem Nietzsche. Agora, o homem teórico – cujos modelos eram Sócrates e Platão
– não se opõe mais ao artista; pelo contrário, é pensado como seu
desenvolvimento, assim como o próprio artista passa a ser interpretado como
desenvolvimento do homem religioso. O prazer de viver, a satisfação fruída na
contemplação das formas, cultivados na humanidade sob a influência da arte,
desafogam-se na ‘irresistível necessidade de conhecimento’.
Se para o jovem Nietzsche – diz o professor -, o
aprofundamento do conhecimento científico conduzia à proliferação de um saber
erudito e estéril, que sufocava a vida, para o Nietzsche do período
intermediário o conhecimento científico torna livre o espírito e, como herdeiro
da riqueza e da elevação de ânimos produzida pela arte, passa a assumir uma
função transfiguradora, embelezadora da existência.” [95]
Opinião
semelhante tem Roberto Machado quando escreveu que: “é indubitável que desde Humano,
Demasiado Humano, de 1878, e em seguida com Aurora, de 1881,
Nietzsche cada vez mais se afasta da problemática da ‘metafísica de artista’,
que orientava O nascimento da tragédia e, portanto, de Wagner e
Schopenhauer”.[96]
Pertinentes as observações dos professores Giacóia e Roberto Machado.
Entretanto, uma parcela considerável desses
nietzschianos de “ouvir dizer” (dá-lhes, Espinosa!) que conhecem mais de
Virgulino Lampião do que do filósofo andarilho, parece esquecer que, como tudo
o mais, Nietzsche também mudou ao longo de sua trajetória filosófica; e que é
ser mais fiel ao filósofo antes acompanhar esse desenvolvimento, esse conjunto
de auto-superações (que, aliás, deveria servir de exemplo), do que uma errônea
cristalização, uma petrificação do seu pensamento, igualando-o a um
Profeta escrevendo Bíblias pretensamente imutáveis e atemporais. O próprio
Nietzsche é contra isso e certamente, a exemplo de Marx em relação ao marxismo
e de Freud em relação ao freudismo (e do próprio Cristo em relação ao
cristianismo – Nietzsche que o diga), se vivo fosse, admoestaria seriamente
mais de um nietzschiano de espírito dogmático e, portanto, um anti-Nietzsche.
Dir-lhes-ia, do alto dos seus bigodes e dos seus constantes mal-estares, que
“quem ‘explica’ a passagem de um autor ‘mais profundamente’ do que sua intenção
não explicou o autor, mas obscureceu-o”.[97]
No ocaso de sua vida lúcida (1888), e como que numa
espécie de canto de cisne[98],
Nietzsche disse que “a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a
pequenez de meus contemporâneos, alcançou sua expressão no fato de que nem me
ouviram, nem sequer me viram. Vivo de meu próprio crédito, e quem sabe é um
mero preconceito dizer que vivo?… Basta falar com algum homem ‘culto’ […]
para me convencer de que não vivo… Nessas circunstâncias há um dever,
contra o qual se revolta, no fundo meu hábito, e mais ainda o orgulho de meus
instintos, ou seja, de dizer: Ouçam! Pois eu sou tal e tal. Não me
confundam, sobretudo!”[99]
Logo a seguir[100],
afirmou que “a última coisa que eu me prometeria seria ‘melhorar’ a humanidade.
Por mim não são erigidos novos ídolos; os velhos que aprendam a ter apenas
pernas de argila. Derrubar ídolos (minha palavra para ‘ideais’) – isso sim, já
faz parte do meu ofício.” (dá-lhes, Nietzsche! (E me perdoem a repetição).
Como ressaltou o professor Giacoia Junior, o seu
objetivo ao escrever sua (excelente) apresentação de Nietzsche para o “Folha
explica” foi o de “fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as
figuras e o estilo de Nietzsche – não para depois encerrá-los em qualquer
câmara da memória, mas sim para despertar seu interesse e estimulá-lo a seguir
adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche – diz o professor – implica, sobretudo,
pensar independentemente; e por isso, às vezes, também contra
Nietzsche.”[101]
Mais adiante[102],
esclarece que “O mestre é aqui [em A Gaia Ciência], sobretudo, aquele que prepara o discípulo para abandoná-lo, para que este compreenda por si mesmo a
aventura do espírito” pois, ressalta o professor, “Nietzsche acredita que esse
caminho [para a personalidade autêntica] está reservado apenas para aqueles
poucos que têm a ousadia de pensar e responder por si próprios.”
É verdade que o professor Giacoia nos alerta[103]
para o fato de que “é no contexto de um background estético-metafísico”
em relação aos antigos gregos[104]
[…] “que se deve apreciar a crítica do jovem Nietzsche às idéias modernas de
liberdade individual e igualitarismo, à democracia, ao liberalismo, cuja
exacerbação ele via se configurar nos movimentos revolucionários socialistas e
anarquistas”. O professor esclarece, ainda, que “a motivação fundamental” [da
filosofia política de Nietzsche] “deve ser buscada não em alguma identificação
com os interesses de uma classe social ou movimento político, mas na
compreensão da cultura como redenção da natureza e da vida”, alertando, a
propósito, que: 1) “essa mesma observação vale para as fases ulteriores de seu
filosofar” e 2) que “são equivocadas as interpretações que consideram sua obra
uma apologia da aristocracia e da escravidão”.
Tudo bem. Mas a verdade, a verdade que não quer calar
nem que a vaca tussa, mesmo considerando as ponderações do professor Giacoia e,
ainda, uma observação, a meu ver importante, de Norberto Bobbio,[105]
a verdade, eu dizia, é que sobre socialismo e socialistas, anarquismo e
anarquistas, democracia e mulheres, por exemplo, Nietzsche não deixa nenhuma
dúvida sobre sua posição como, aliás, já demonstrei acima e como bem demonstra
a citação abaixo, com que encerro este texto.
Em Crepúsculo dos Ídolos[106],
falando sobre seu conceito de liberdade, e sintetizando seu “anti” tudo
aquilo a que me referi, diz o filósofo: “Liberdade significa que os
instintos viris, que se alegram com a guerra e a vitória, têm domínio sobre
outros instintos, por exemplo, sobre o de ‘felicidade’. O homem que se
tornou livre e, ainda mais, o espírito que se tornou livre, calca
sob os pés a desprezível espécie de bem-estar com que sonham merceeiros,
cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas. O homem livre é um guerreiro”.
Apêndice
Citações de
Nietzsche sobre socialismo e socialistas, anarquismo e anarquistas, mulheres,
Revolução Francesa, professores, etc.
Sobre Socialismo, Anarquismo e Democracia:
Em Humano, Demasiado Humano[107]
(I, §235) Nietzsche escreve que “os socialistas desejam instaurar um bem viver
para o maior número possível. Se a pátria dourada desse bem-viver, o Estado
perfeito, fosse efetivamente alcançada, então, por esse bem-viver, o chão de
que cresce o grande intelecto, e em geral o indivíduo forte, estaria destruído:
refiro-me à grande energia. A humanidade se teria tornado demasiado débil, se
esse Estado tivesse sido alcançado, para poder ainda gerar o gênio”.
Mais adiante na mesma obra (I, §473), diz o filósofo:
“O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do
qual quer herdar; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo,
reacionárias. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como só a teve uma
vez o despotismo, e até mesmo supera todo o passado por aspirar ao
aniquilamento formal do indivíduo: o que lhe aparece como um injustificado luxo
da natureza e deve ser transformado e melhorado por ele em um órgão da
comunidade adequado a seus fins”. (itálicos originais).
Ainda em Humano, Demasiado Humano (II, §292),
escreveu que “Tentam agora as potências políticas explorar o medo ao socialismo
para se fortalecer. Mas no entanto, a longo prazo, somente a democracia tira
proveito disso: pois todos os partidos são agora obrigados a lisonjear ‘o povo’
e a conceder-lhe felicidades e liberdades de toda espécie, com que ele acaba
por tornar-se onipotente. O povo está longíssimo do socialismo como doutrina da
alteração do modo de adquirir a propriedade: e se alguma vez, pelas grandes
maiorias de seus parlamentos, tiver nas mãos o controle do imposto, ele
investirá com o imposto progressivo contra o principado do capitalismo, do
comércio e da Bolsa, e de fato criará lentamente uma situação intermediária,
que se pode esquecer o socialismo como uma doença superada”.
Em Para Além de
Bem e Mal[108]
(§ 202), diz
Nietzsche: “Moral é hoje, na Europa, moral de animal-de-rebanho:
portanto, como entendemos as coisas, somente uma espécie de moral
humana, ao lado da qual, antes da qual, depois da qual, muitas outras morais e,
antes de tudo, morais superiores são possíveis, ou deveriam ser.
Contra uma tal ‘possibilidade’, contra um tal ‘deveriam’, defende-se, porém,
essa moral, com todas as forças: ele diz teimosa e inexoravelmente: ‘Eu sou a
moral mesma, e nada além disto é moral!’ – aliás, com o auxílio de uma religião
que fazia a vontade dos mais sublimes apetites de ainimal-de-rebanho, e os
adulava, chegou o ponto em que, mesmo nas instituições políticas e sociais,
encontramos uma expressão cada vez mais visível dessa moral: o movimento democrático
é o herdeiro do cristão. Que, porém, sua cadência, para os mais
impacientes, para os doentes e maníacos do citado instinto, ainda é muito lenta
e sonolenta, disso testemunha o clamor que se torna cada vez mais furioso, o
cada vez menos oculto arreganhar de dentes dos cães anarquistas, que agora
vagueiam pelos becos da civilização européia: aparentemente, em oposição aos
pacífico-laboriosos democratas e ideólogos da revolução, e mais ainda aos
broncos filosofastros e fanáticos de irmandade que se denominam socialistas e
querem a ‘sociedade livre’; em verdade, porém, unânimes com todos eles na
fundamental e instintiva hostilidade contra toda outra forma de sociedade que
não a do rebanho autônomo (chegando até a própria rejeição dos conceitos
‘senhor’ e ‘servo’ – ni dieu, ni maître, diz uma forma socialista);
unânimes na tenaz resistência contra toda pretensão particular, todo direito
particular e privilégio (isto é, no último fundamento, contra todo
direito: pois quando todos são iguais ninguém mais precisa ‘direitos’);
unânimes na desconfiança contra a justiça penal (como se ela fosse uma
violência contra o mais fraco, uma injustiça contra a conseqüência necessária
de toda a sociedade anterior); mas igualmente unânimes na religião da
compaixão, na simpatia que se estende a tudo que sente, vive, sofre (descendo
até o animal, subindo até ‘Deus’: – a extravagância de uma ‘compaixão por Deus’
faz parte de uma época democrática); unânimes todos eles na gritaria e na
impaciência da compaixão, no ódio mortal contra o sofrimento em geral, na quase
feminina inaptidão para permanecer expectador, para deixar sofrer;
unânimes no involuntário ensombrecimento e abrandamento, sob cujo anátema a
Europa parece ameaçada de um novo budismo; unânimes na crença na moral da
compaixão em comum, como se ela fosse a moral em si, fosse a altura, a
altura alcançada do homem, a única esperança do futuro, o meio de
consolação dos presentes, a grande remissão de toda culpa desde sempre: –
unânimes todos eles na crença em uma comunidade como redentora, no
rebanho, portanto, em ‘si’…” (Itálicos originais, negrito meu).
No parágrafo seguinte (203) da mesma obra escreve o
filósofo: “Nós, que somos de uma outra crença, – nós, para quem o movimento
democrático não é meramente uma forma de degradação da organização política,
mas uma forma de degradação, ou seja, do apequenamento do homem, sua
mediocrização e rebaixamento de valor: para onde temos nós de apontar
nossas esperanças? – Para novos filósofos, não resta escolha; para
espíritos fortes e originais o bastante para dar os primeiros impulsos e
estimativa de valor opostos e transvalorar, inverter, ‘valores eternos’; para
homens do futuro que atem no presente a coação e o nó que coage a vontade de
milênios a novas trilhas. Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade,
como dependente de uma vontade de homem, e preparar grandes riscos e ensaios
coletivos de disciplina e aprimoramento, para com isso por termo àquela
horrível dominação da insensatez e do acaso que até agora se chamou ‘história’
– a insensatez do ‘maior número’ é apenas sua última forma: para isso será
algum dia necessária uma nova espécie de filósofos e detentores do mando, a
cuja imagem tudo o que existiu sobre a terra de espíritos ocultos, terríveis e
benévolos poderia se tornar pálido e anão. A imagem de tais guias é aquilo que
paira diante de nossos olhos: – posso dizer em voz alta, ó espíritos
livres? As circunstâncias para seu surgimento que se teriam, em parte, de
criar, em parte de utilizar; os presumíveis caminhos e provas, graças aos quais
uma alma cresceria a tal altura e poder a ponto de sentir a coação a
essas tarefas; uma transvaloração dos valores, sob cuja nova pressão e martelo
uma consciência seria acerada, um coração transformado em bronze, para suportar
o peso de uma tal responsabilidade; por outro lado, a necessidade de tais
guias, o apavorante perigo de poderem deixar de vir, ou não dar certo, ou
degenerar – esses são propriamente nossos cuidados e ensombrecimentos,
vós o sabeis, ó espíritos livres? esses são os pesados, longínquos pensamentos
e tempestades que passam pelo céu de nossa vida. Há poucas dores tão
sensíveis como ter visto uma vez, adivinhado, sentido, como um homem
extraordinário se extraviou de seu caminho e degenerou: mas quem tem o raro
olho para o perigo geral, de que ‘o homem’ mesmo degenere, quem, igual a
nós, conheceu a descomunal contingência que até agora, em vista do futuro do
homem, jogou seu jogo – um jogo em que nenhuma mão e nem sequer um ‘dedo de
Deus’ tomava parte! – quem adivinha a fatalidade que se esconde na imbecil
inadvertência e venturosa confiança das ‘idéias modernas’, e mais ainda em toda
moral cristiano-européia: esse sofre de uma angústia com que nenhuma outra pode
ser comparada – pois capta com um olhar tudo aquilo que ainda, no caso
de uma favorável reunião e intensificação de forças e tarefas, se poderia
aprimorar a partir do homem, sabe, com todo o saber de sua consciência, como o
homem ainda está inesgotado para as maiores possibilidades, e quantas vezes já
o tipo de homem se postou diante de misteriosas decisões e novos caminhos –
sabe ainda melhor, como sua mais dolorosa lembrança, em que deploráveis coisas
algo de primeira ordem vindo a ser até agora se quebrou, alquebrou, afundou,
tornou-se deplorável. A degeneração geral do homem, até chegar àquilo
que hoje aparece aos broncos e cabeças rasas do socialismo como seu ‘homem do
futuro’, como seu ideal! – essa degeneração e apequenamento do homem em
completo animal-de-rebanho (ou, como eles dizem, em homem da ‘sociedade
livre’), essa animalização do homem em animal anão dos direitos e pretensões
iguais é possível, não há dúvida nenhuma! Quem pensou uma vez essa
possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais do que os outros homens – e
talvez também uma nova tarefa!”
Em Crepúsculo dos Ídolos[109]
(§ 34), tratando de cristãos e anarquistas,
escreve que “[o anarquista] é porta-voz das camadas declinantes da
sociedade que reclamam com bela indignação por ‘direito’, ‘justiça, ‘direitos
iguais’ e com isso ele está apenas sobre a pressão de sua incultura, que não
sabe conceber por que propriamente ele sofre – de que ele é
pobre, de vida. Apenas um impulso causal tem potência sobre ele; alguém tem de
ser o culpado por ele se sentir mal. Também a própria ‘bela indignação’ já lhe
faz bem; para todos os pobres-diabos é um contentamento xingar – dá uma pequena
embriaguez de potência”. Para Nietzsche, “o lamentar em nenhum caso presta para
algo: provém da fraqueza. Imputar seu mal-estar a outros ou a si próprio
– como fazem, respectivamente, o socialista e o cristão – não faz propriamente
nenhuma diferença. O que em comum, e dizemos, também, o que há de indigno
nisso é que alguém tem de ser culpado de que sofra – em suma, que o
sofredor se receita, contra seu sofrer, o mel da vingança”. Arremata com as
seguintes palavras: “O cristão e o anarquista são ambos décadents. Mas
também quando o cristão condena, calunia, conspurca o ‘mundo’, ele o faz pelo
mesmo instinto pelo qual o trabalhador socialista condena, calunia, conspurca
a sociedade: mesmo o ‘Juízo Final’ é ainda o doce consolo da vingança – a
revolução, tal como a espera também o trabalhador socialista, só que pensando
um pouco mais longe…” (itálicos originais).
Sobre mulheres:
“A estupidez na cozinha; a mulher como cozinheira; a
terrível leviandade com que se cuida da alimentação da família e do chefe da
casa! A mulher não entende o que significa o alimento: e quer ser
cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura pensante, teria descoberto,
cozinhando há milênios, os mais importantes fatos fisiológicos, e teria também
aprendido a arte da cura! Por más cozinheiras – por total ausência de razão na
cozinha é que a evolução do homem foi mais longamente retardada, mais
gravemente prejudicada: isso pouco mudou em nossos dias. Um aviso para as moças
que freqüentam o secundário.”[110]
(itálicos originais).
“A mulher quer ser independente: e com tal objetivo
começa a esclarecer os homens sobre a “mulher em si” – este é um dos piores
progressos no enfeamento geral da Europa. Pois o que não revelarão essas
grosseiras tentativas de cientificidade e autodesnudamento femininos! A mulher
tem muitos motivos para o pudor; há tanta coisa pedante, superficial, sabichã,
mesquinhamente arrogante, mesquinhamente irrefreada e imodesta escondida na
mulher – basta examinar sua relação com as crianças! -, que até o momento, e no
fundo, só o temor ao homem reprimiu e conteve da melhor maneira. Ai de
nós, se um dia o ‘eterno-tedioso da mulher – no qual ela é pródiga – puder
aparecer! Se ela começar a desaprender radicalmente e por princípio sua arte e
manha, a graciosidade, do jogo, do afastar aflições, de aliviar e tomar com
leveza, e sua refinada aptidão para desejos agradáveis! Já se ouvem vozes
femininas que – por santo Aristófanes! – assustam; explicam ameaçadoramente e
com precisão médica o que, em primeira e última análise, a mulher quer
do homem. Não é de péssimo gosto que a mulher se disponha de tal modo a ser
científica? Até agora a tarefa de esclarecer foi, por felicidade, coisa de homens,
dom dos homens – ficava “entre nós”; e afinal, com tudo que as mulheres
escreveram sobre “ a mulher”, é lícito duvidar que a mulher queira ou possa
querer esclarecimento sobre si… Se com isso ela não busca para si um novo efeite
– creio que enfeitar-se é parte do eterno-feminino, não? -, então ela quer
despertar temor – quer talvez dominar. Mas não quer a verdade: que
interessa à mulher a verdade! Desde o início nada é mais alheio, mais avesso,
mais hostil à mulher que a verdade – sua grande arte é a mentira, seu maior
interesse, a aparência e a beleza. Vamos confessá-lo, nós, homens: nós
festejamos e amamos precisamente essa arte e esse instinto na
mulher: nós, para quem as coisas são pesadas e que de bom grado nos juntamos,
para obter alívio, a seres cujas mãos, olhares e ternas tolices nos fazem
parecer quase tolice a nossa seriedade, nosso peso e profundidade. Afinal
coloco a pergunta: Alguma mulher já reconheceu profundidade a uma cabeça de
mulher, justiça a um coração de mulher? E não é verdadeiro que, tudo somado “a
mulher” foi sempre mais desprezada pela mulher mesma? – e de forma alguma por
nós? Nós, homens, desejamos que a mulher não continue a se comprometer através
do esclarecer: assim como foi cuidado e atenção masculina para com a mulher que
a Igreja decretasse mulier taceat in ecclesia! [que a mulher se cale na
igreja!]. Foi em proveito da mulher que Napoleão deu a entender à
excessivamente loquaz Madame de Staël: mulier taceat in politicis! [a
mulher se cale na política!] – e penso que é um verddeiro amigo das mulheres
quem hoje lhes diz: mulier taceat de muliere! [a mulher se cale acerca
da mulher!].[111]
“Em nenhuma época o sexo fraco foi tratado com tanto
respeito pelos homens como na nossa – o que é parte da tendência democrática e
seu gosto básico, do mesmo modo que a falta de reverência pela velhice – : como
admirar que logo se abuse desse respeito? Querem mais, aprendem a exigir, por
fim acham quase ofensivo esse tributo de respeito, preferiam a competição por
direitos, até mesmo a luta: em suma, a mulher perde o pudor. Acrescentamos logo
que também perde o gosto. Desaprender a temer o homem: mas a mulher que
‘desaprende o temor’ abandona seus instintos mais femininos. Que a mulher ouse
avançar quando já não se quer nem se cultiva o que há de amedrontador no homem,
mais precisamente o homem no homem, é algo de se esperar e também de se
compreender;o que dificilmente se compreende é que por isso mesmo a mulher –
degenera. Isso acontece hoje, não nos enganemos! Em toda parte onde o espírito
industrial venceu o espírito militar e aristocrático, a mulher aspira à
independência econômica e legal de um caixeiro: ‘a mulher como caixeira’ – está
escrito no portal da sociedade moderna que se forma. Apoderando-se de tal
maneira de novos direitos, buscando tornar-se ‘senhor’ e inscrevendo o
‘progresso’ feminino em suas bandeiras e bandeirolas , ela vê realizar-se o
contrário, com terrível nitidez: a mulher está em regressão. Desde a
Revolução Francesa a influência da mulher na Europa diminuiu, na proporção
em que aumentaram seus direitos e exigências; e a ‘emancipação da mulher’, na
medida em que é reivindicada e promovida pelas próprias mulheres (e não só por
homens de cabeça oca) resulta num sintoma curioso de progressivo
enfraquecimento e embotamento dos instintos femininos. Há estupidez
nesse movimento, uma quase masculina estupidez, da qual uma mulher bem lograda
– que é sempre uma mulher sagaz – se envergonharia gravemente. Perder a
intuição do terreno onde a vitória é mais segura; descuidar o exercício de sua
verdadeira arma; pôr-se a anteceder o homem, chegando talvez “até o livro”,
quando antes praticava a reserva e uma sutil, astuta submissão; combater, com
virtuosa audácia, a crença do homem num ideal radicalmente outro escondido
na mulher, num eterno e necessário-feminino; tentar dissuadir o homem , com
insistência e parolice, de que a mulher deve ser cuidada, mantida, protegida,
poupada como um animal doméstico bem delicado, curiosamente selvagem e
freqüentemente agradável; a procura canhestra e indignada de tudo o que há de
escravo e servil na posição da mulher na presente ordem social (como se a
escravidão fosse um contra-argumento, e não uma condição de toda cultura
elevada, de toda elevação da cultura) – que significa tudo isso, senão uma
desagregação dos instintos femininos, uma desfeminização? Certamente não faltam
idiotas amigos das senhoras e corruptores da mulher entre os doutos jumentos
masculinos, que aconselham a mulher a se desfeminizar dessa maneira e imitar as
estupidezes de que sofre o ‘homem’ da Europa, a ‘masculinidade’ européia – que
gostariam de rebaixar a mulher à ‘educação geral’ e mesmo à leitura de jornais
e à política. Pensa-se, inclusive, aqui e ali, em fazer das mulheres
livres-pensadores e literatos: como se uma mulher sem religião não fosse, para
um homem profundo e ateu, algo totalmente repugnante ou ridículo -; em quase
toda parte arruínam os nervos delas com a mais doentia e perigosa espécie de
música (nossa mais recente música alemã) e as tornam a cada dia mais histéricas
e mais incapacitadas para sua primeira e última ocupação , que é gerar filhos
robustos. Querem ‘cultivá-las’ ainda mais e, como dizem, através da cultura
tornar forte o ‘sexo fraco’: como se a história não ensinasse, do modo
mais premente, que o ‘cultivo’ do ser humano e o enfraquecimento – isto é,
enfraquecimento, fragmentação, adoecimento da força de vontade – sempre
andaram juntos, e que as mais poderosas e influentes mulheres do mundo (por
último a mãe de Napoleão) deveram seu poder e autoridade junto aos homens à sua
força de vontade – e não aos professores! O que na mulher inspira respeito e
com freqüência temor é a sua natureza que é ‘mais natural’ que a do
homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre por baixo d
luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o
caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes… o que, com
todo o temor, desperta compaixão por esse belo e perigoso felino ‘mulher’, é o
fato de ela parecer mais sofredora , mais frágil, mais necessitada de amor e
condenada à desilusão que qualquer outro animal. Temor e compaixão: com esses
ensinamentos o homem colocou-se até agora diante da mulher, sempre com um pé na
tragédia, que dilacera ao encantar. – Como? E isso estaria acabando? O desencantamento
da mulher está em marcha? Está surgindo o entediamento da mulher? Ó Europa!
Europa! Conhecemos o animal com chifres que sempre te atraiu mais, e do qual
sempre existe a ameaça! Tua velha fábula poderia mais uma vez tornar-se
‘história’ – mais uma vez uma imensa estupidez poderia assenhorar-se de ti e
levar-te embora! E embaixo dela não se esconde nenhum deus; não! Apenas uma
‘idéia’, uma ‘idéia moderna’!…”[112]
‘Por que Zaratustra, te esquivas sorrateiro no lusco-fusco?
E que escondes tão cuidadosamente debaixo do manto?
Será um tesouro com que te presentearam? Ou um filho
que te nasceu? Ou segues tu mesmo, agora, porventura, os caminhos dos ladrões,
tu, o amigo dos malvados?’
Na verdade, meu irmão – falou Zaratustra -, é um
tesouro que me deram de presente: é uma pequena verdade, isto que trago comigo.
Mas é rebelde como uma criancinha; e, se não lhe
tapasse a boca, gritaria com toda força.
Caminhava eu, hoje, sozinho, quando, na hora em que o
sol se põe, encontrei-me com uma velinha, que assim se dirigiu à minha alma:
‘Muitas coisas Zaratustra disse também a nós,
mulheres, mas nunca nos falou da mulher’.
E eu lhe respondi: ‘Da mulher, só se deve falar aos
homens.’
‘Fala da mulher a mim também’, disse ela; ‘ sou velha
bastante para esquecer logo as tuas palavras.’
E eu fiz a vontade à velinha e assim lhe falei:
Tudo, na mulher, é enigma e tudo, na mulher, tem uma
única solução: chama-se gravidez.
O homem, para a mulher, é meio: o fim é sempre o
filho. Mas, que é a mulher para o homem? Duas espécies de coisas, quer o
verdadeiro homem: perigo e divertimento. Quer, por isso, a mulher, como o mais
perigoso dos brinquedos.
É preciso que o homem seja educado para a guerra e a
mulher, para o descanso do guerreiro; tudo o mais é estultície.
Não gosta o guerreiro de frutos demasiadamente doces.
Por isso, gosta da mulher; há ainda um travo amargo na mais doce das mulheres.
A mulher compreende a criança melhor que o homem, mas
o homem é mais criança do que a mulher.
No verdadeiro homem está oculta uma criança, que quer
brincar. Ânimo, mulheres, descobri, pois, a criança no homem!
Um brinquedo, seja a mulher, puro e delicado,
semelhante à pedra preciosa, iluminada pelas virtudes de um mundo que ainda não
nasceu.
Que a luz de uma estrela brilhe em vosso amor! Que a
vossa esperança seja: ‘Possa eu dar à luz o super-homem!’
Que haja coragem em vosso amor!Deveis investir com o
vosso amor contra aqueles que vos inspiram medo.
Que a vossa honra consista em vosso amor! No mais, pouco
a mulher entende de honra. Mas que a vossa honra seja sempre amar mais do que
sois amada e, nisso, nunca ficará atrás.
Que o homem tema a mulher, quando ela ama: é capaz de
todo o sacrifício e qualquer outra coisa não tem, para ela, valor.
Que o homem tema a mulher, quando ela odeia: porque,
no fundo da alma, o homem é apenas malvado, mas a mulher é ruim.
Que odeia a mulher mais que tudo? Assim falou o ferro
ao imã: ‘Eu te odeio mais que tudo, porque atrais, mas não és suficientemente
forte para atrair-me a ti’.
A felicidade do homem chama-se: eu quero. A felicidade
da mulher chama-se: ele quer.
‘Vê! O mundo acaba de atingir a perfeição!’ – assim
pensa toda mulher , quando obedece com a força inteira do seu amor.
E obedecer, deve a mulher, e achar uma profundidade
para a sua superfície. Superfície é o gênio da mulher, uma epiderme movediça e
borrascosa numa água pouco funda.
Mas a alma do homem é profunda, seu caudal ressoa em
cavernas subterrâneas; a mulher adivinha-lhe a força, mas não a compreende.
Respondeu-me, então, a velinha: ‘Muitas coisas gentis
disse Zaratustra, especialmente para as que são bastante jovens para isso.
Estranho é que Zaratustra pouco conhece as mulheres e,
ainda assim, tem razão a seu respeito! Será que isso acontece porque, à mulher,
nada é impossível?
E agora, como agradecimento, recebe uma pequena
verdade! Afinal, sou suficiente velha para dá-la.
Enrola-a e tapa-lhe a boca, senão essa pequena verdade
gritará com toda a força.’
‘Dá-me a tua pequena verdade, mulher!’, disse eu. E
assim falou a velinha:
‘Vais ter com mulheres? Não esqueças o chicote!’
Assim falou Zaratustra.”[113]
Sobre a Revolução Francesa:
“Como sucedeu recentemente, em plena luz dos tempos
modernos, com a Revolução Francesa, essa farsa horrível e, observada de perto,
desnecessária, na qual os espectadores nobres e entusiastas de toda a Europa
interpretaram à distância os seus próprios arrebatamentos e indignações, por
tanto tempo e tão apaixonadamente que o texto desapareceu sob a
interpretação: assim também uma posteridade nobre poderia mal-entender o
passado inteiro, e desse modo tornar insuportável a visão dele. – Aliás: isto
já não aconteceu? Não fomos nós mesmos essa ‘posteridade nobre’? E não foi
precisamente agora que, na medida em que o percebemos – isso acabou?”[114]
“[…] A ‘ilustração’ irrita: o escravo quer o
incondicional, ele só compreende o que é tirânico, também na moral; ele ama
como odeia, sem nuance e até o fundo, até a dor, até a doença – seu enorme
sofrimento oculto se revolta contra o gosto nobre, que parece negar
o sofrer. O ceticismo em relação ao sofrimento, no fundo somente uma pose da
moral aristocrática, concorreu em não pequena medida para a última grande rebelião
de escravos, que teve início com a Revolução Francesa”.[115]
[1]
– Nietzsche, Epígrafe de A Gaia Ciência. Obras incompletas. São Paulo:
Abril Cultural, 1978; p. 187.
[2]
– Os termos estão sendo usados no mesmo sentido que se diz mestre e mestrando,
doutor e doutorando.
[3]
– Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, § 38. (itálicos
originais).
[4]
– Ecce Homo. (Prólogo, § 1) – Obras incompletas. São Paulo: Abril
Cultural, 1978 (grifo meu).
[5]
– Ecce Homo. (Prólogo, § 2) – Obras incompletas. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
[6]
– (Nota entre o Prólogo e o § 1 de Ecce Homo). No ano seguinte, em
janeiro de 1889, em Turim, Itália, o filósofo sofreu o acesso de loucura que o
condenaria a vegetar durante os onze anos de vida (biológica) que ainda lhe
restavam. A expressão “biológica” aqui é importante, pois remete a uma profecia
(inconsciente?) do próprio Nietzsche em relação a si mesmo. No § 6 do Prólogo
do Zaratustra, Zaratustra diz ao funâmbulo moribundo: “A tua alma estará
morta ainda mais depressa do que o teu corpo; portanto, não receies nada!” Foi
exatamente o que aconteceu com Nietzsche!
[7]
– Apresentação de Mário da Silva ao Zaratustra. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977 – pág. 7.
[8]
– Além do Bem e do Mal (§ 239) – São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[9]
– Além do Bem e do Mal (§ 144) – São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[10]
– Cf. “Sumário Cronológico”, elaborado por Paulo César de Souza e constante da
Edição de Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[11]
– Cf. Posfácio de Paulo César de Souza à edição de Humano, Demasiado
Humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Cf. também (com pequenas
alterações) no “Sumário Cronológico” do mesmo Paulo César de Souza constante da
edição de Ecce Homo da Editora Cia. das Letras, op. cit.
[12]
– Humano, Demasiado Humano. Segundo Volume (1879-1880) – I “Miscelânia
de Opiniões e Sentenças” § 3. São Paulo: Abril Cultural, 1978 – pág. 125.
[13]
– Cf. “Sumário Cronológico” de Paulo César de Souza – op. cit.
[14]
– Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978 – pág. 98 (o itálico é de
Nietzsche). A mesma passagem é referida por Paulo César de Souza na citação que
fiz na página 3 precedente.
[15]
– (“Por que sou tão sábio”, § 3) São Paulo: Companhia das Letras, 1975.
[16]
– Essa expressão remete ao direito de vetar leis que possuíam os nobres da
assembléia polonesa.
[17]
– Cf. Nota (nº 8) de Paulo César de Souza em Ecce Hommo (“Por que sou tão sábio”). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[18]
– A palavra alemã é Übermensch. Entretanto há controvérsias sobre a
tradução dessa palavra como “super-homem”. Roberto Machado, por exemplo, diz no
seu Zaratustra – Tragédia Nietzschiana (Rio de Janeiro: Zahar, 1997 –
pág. 45): “considero ‘super-homem’ a melhor tradução para Übermensche”. Já
Rubens Rodrigues Torres Filho, tradutor das Obras Incompletas de
Nietzsche (São Paulo: Abril Cultural, 1978 – pág. 375 – nota de rodapé),
prefere “além-do-homem” e refere-se à expressão ‘super-homem’ como “malfada
tradução”. Na pág. 228, (nota de rodapé), o tradutor faz um erudito “comentário
léxico” sobre a palavra Übermensch que todos os doutos nietzschianos
deveriam ler. A propósito deste último comentário meu e, por extensão, das
controvérsias sobre a aludida tradução vale a pena ler o que escreve Paulo
César de Souza numa nota (nº 31) de Ecce Homo (São Paulo: Companhia das
Letras, 1995): “Utilizamos aqui a tradução tradicional ‘super-homem’, apesar
das restrições que Rubens Rodrigues Torres Filho faz ao termo [no volume dos
‘Pensadores’]. Ele propõe a palavra ‘além-do-homem’, que pode ser mais fiel à
idéia de Nietzsche, mas deixa a desejar formalmente – o que se torna claro
quando no texto é aproximada ao adjetivo übermenschlich (sobre-humano).
Über = sobre, além de; Mensch = ser humano. As traduções em língua inglesa
usaram superman e overman, a tradução francesa surhomme, a
espanhola superhombre. Em português, não soa bem dizer ‘sobre-homem’ ou
‘supra-homem’. Só nos resta satisfazermo-nos – provisoriamente, talvez – com
‘super-homem’” (Cf. Nota de Paulo César de Souza, em Ecce Homo. op. cit)
.
[19]
– “Moralina”: neologismo criado por Nietzsche a partir da ‘judaína’ de Paul de
Lagarde, erudito conhecedor das religiões orientais”. (Cf. Nota [nº 17] à
edição de Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 – “Por que
sou tão inteligente”).
[20]
– Ecce Homo (“Assim Falou Zaratustra”, § 1). São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
[21]
– Uma nota de rodapé em um dos “Breves Escritos” de Freud (de 1937), dedicado a
Lou Andreas Salomé informa que “Lou Andréas-Salomé nasceu em São Petersburgo em 1861”. (Cf. Edição Standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XXIII, pág. 315).
Já o volume da coleção Os Pensadores dedicado ao filósofo (São Paulo: Abril
Cultural, 1978 – Tradução do citado Rubens Rodrigues Torres Filho e consultoria
da professora Marilena Chauí) na apresentação de sua “Vida e Obra” (pág. VIII),
refere-se a Lou como “uma jovem finlandesa”.
[22]
– Cf. Apresentação de Mario da Silva a uma edição de Assim Falou Zaratustra.
op. cit. pág. 15.
[23]
– Cf. Reale e Dario Antiseri, História da Filosofia: (Vol. III, Do
Romantismo até nossos dias). São Paulo: Paulus, 1991 – pág. 33.
[24]
– Cf. de Humano, Demasiado Humano. (§ 475) – São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
[25]
– B. de Espinosa, Tratado da Correção do Intelecto. São Paulo: Nova
Cultural, 1989 – pág. 48.
[26]
– Nietzsche, Humano, Demasiado Humano. (§ 532).
[27]
– Nietzsche, Humano, Demasiado Humano. (§ 539).
[28]
– Nietzsche, Humano, Demasiado Humano. (§ 524).
[29]
– São Paulo: Martins Fontes, 1996 – pág. 4.
[30]
– Considerações Extemporâneas (II, § 5º). Obras incompletas. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[31]
– C. Kerényi, DIONISO – Imagem arquetípica da vida indestrutível.
São Paulo: Odysseus, 2002.
[32]
– C. Kerényi, DIONISO – Imagem arquetípica da vida indestrutível.
op. cit. pág. 278-279.
[33]
– C. Kerényi, DIONISO – Imagem arquetípica da vida indestrutível.
op. cit. pág. 282.
[34]
– C. Kerényi, DIONISO – Imagem arquetípica da vida indestrutível.
op. cit. pág. 218.
[35]
– C. Kerényi, DIONISO – Imagem arquetípica da vida indestrutível.
op. cit. pág. 221-222.
[36]
– Considerações Extemporâneas (II, § 5º). Obras incompletas. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[37]
– Cf, Renzo Tosi, op. cit. pág. 788.
[38]
– Platão, A República (509 c).
[39]
– Título do Livro V de A Gaia Ciência.
[40]
– Humano, Demasiado Humano (§ 475). São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
[41]
– Ecce Homo, Prólogo (§ 2). Obras incompletas. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
[42]
– Considerações Extemporâneas (II, § 5º). Obras incompletas. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[43]
– Assim Falou Zaratustra. (Prólogo, § 5) Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1977;
[44]
– O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (§ 3). Obras
incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
[45]
– Nietzsche, Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 – pág. 55.
(“Por que Escrevo Tão Bons Livros”, § 2).
[46]
– “Morreu pra ti, admirador ingrato! Pois ela continua viva no meu coração”!
(Disse-me uma voz)
[47]
– São Paulo: Ed. 34, 1997. Vol. 5
[48]
– Apresentação de Michael Hardt à referida edição dos “Mil Platôs”.
[49] – Cf. Michel Foucault, Nietzsche, Fred & Marx. São
Paulo: Editora Princípio, 1997 – pág. 45 ss.
[50]
– (Cf. a apresentação de Mario da Silva a uma edição de Assim Falou
Zaratustra. op. cit. – pág. 14).
[51]
– Considerações Extemporâneas (II, § 8). Obras incompletas. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[52]
– “A fé no Deus cristão deixou de ser plausível”. A Gaia Ciência (V, §
343). Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
[53]
– Humano, Demasiado Humano (II, § 292). Obras incompletas. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[54] – Humano, Demasiado Humano (II, § 239). Obras incompletas. São
Paulo: Abril Cultural, 1978.
[55]
– "Pode-se dizer que a psicanálise nasceu com o século XX, pois a
publicação em que ela emergiu perante o mundo como algo novo – A
Interpretação dos Sonhos – traz a data de 1900…” (Cf. S. Freud. Uma
Breve Descrição da Psicanálise. Edição Standart das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 Vol. XIX,
pág. 215).
[56]
– “Li Schopenhauer muito tarde em minha vida. Nietzsche, outro filósofo cujas
conjecturas e intuições amiúde concordam, da forma mais surpreendente com os
laboriosos achados da psicanálise, por muito tempo foi evitado por mim,
justamente por isso mesmo; eu estava menos preocupado com a questão da
prioridade do que em manter minha mente desimpedida”. (Cf. S. Freud. Um
Estudo Autobiográfico. 1996 op. cit., Vol. XX, pág. 62).
[57]
– “Em anos posteriores neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das obras
de Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer
espécie de idéias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas da
psicanálise. Tive, portanto, de me preparar – e com satisfação – para renunciar
a qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação
psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo
reconheceu por intuição. (Cf. S. Freud. A História do Movimento
Psicanalítico. op. cit., Vol. XIV, pág. 26).
[58]
– Dissertando sobre a natureza inconsciente do ego, e referindo-se ao
Dr. Gerorg Groddeck diz Freud em uma nota de pé-de-página que “O próprio
Groddeck, indubitavelmente, seguiu o exemplo de Nietzsche, que utilizava
habitualmente este termo gramatical para tudo que é impessoal em nossa natureza
e, por assim dizer, sujeito à lei natural”. (Cf. S. Freud. O Ego e o Id.
Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 – Vol. XIX, pág. 37). Numa outra obra, e
tratando de assunto análogo, Freud escreveu que, “Percebemos não termos o
direito de denominar ‘sistema Inc.’ a região mental alheia ao ego, de
vez que a característica de ser inconsciente não lhe é exclusiva. Assim sendo,
não usaremos mais o termo ‘inconsciente’ no sentido sistemático e daremos
àquilo que até agora temos assim descrito um nome melhor, um nome que não seja
mais passível de equívocos. Aceitando uma palavra empregada por Nietzsche e
acolhendo uma sugestão de George Groddeck, de ora em diante chamá-lo-emos de
‘id’. (Cf. S. Freud. A dissecação da Personalidade Psíquica. In. Novas
Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (conferência XXXI). op. cit.
Vol. XXII, pág. 77).
[59]
– “E, finalmente, há o retorno constante da mesma coisa – a repetição dos
mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até
dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem.” (Cf. S. Freud.
O Estranho. Edição Standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 – Vol. XVII, pág. 252).
A outra frase, devidamente aspeada, é a seguinte: “Essa ‘perpétua
recorrência da mesma coisa’, não nos causa espanto quando se refere a um
comportamento ativo por parte da pessoa interessada, e podemos discernir
nela um traço de caráter essencial, que permanece sempre o mesmo, sendo
compelido a expressar-se por uma repetição das mesmas experiências”. (Cf. S.
Freud. Além do Princípio do Prazer. op. cit. Vol. XVIII, pág. 33).
[60]
– “Um amigo chamou a minha atenção para o fato de que o ‘criminoso em
conseqüência de um sentimento de culpa’ também já era do conhecimento de
Nietzsche. A preexistência do sentimento de culpa e a utilização de uma ação a
fim de racionalizar esse sentimento cintilam diante de nós nas máximas de Zaratustra
‘Sobre o Criminoso Pálido’. Deixemos para uma futura pesquisa a decisão quanto
ao número de criminosos que devem ser incluídos entre esses ‘pálidos’.” (Cf. S.
Freud. Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa. op. cit. –
Vol. XIV, pág. 348).
[61]
– A obra é A Interpretação de Sonhos. (Die Traumdeutung). Na
primeira parte desta obra (volume IV de suas obras completas), falando da
relação entre pensamentos oníricos e sonhos, diz Freud: “A intensidade dos
elementos de um não tem nenhuma relação com a intensidade dos elementos do
outro: o fato é que ocorre uma completa ‘transposição de todos os valores
psíquicos’ – na expressão de Nietzsche – entre o material dos pensamentos
oníricos e o sonho”. Na segunda parte (volume V das obras completas), diz o
fundador da psicanálise: “Podemos calcular quão apropriada é a asserção de Nietzsche
de que, nos sonhos, ‘acha-se em ação alguma primitiva relíquia da humanidade
que agora já mal podemos alcançar por via direta’; e podemos esperar que a
análise dos sonhos nos conduza a um conhecimento da herança arcaica do homem,
daquilo que lhe é psiquicamente inato”. (Cf. S. Freud. A interpretação dos
Sonhos. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud. op. cit. Vol. IV, pág. 355 e Vol. V pág. 578). No mesmo
volume V das suas obras completas, num escrito intitulado Sobre os Sonhos
(pág. 674) Freud volta a insistir no fato de que “o que chamei de deslocamento
onírico poderia ser igualmente descrito – na expressão de Nietzsche – como ‘uma
transposição dos valores psíquicos’”.
[62]
– “Tudo que é sólido se volatiza, tudo que é sagrado é profanado, e os homens
são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões, sua posição na
vida, suas relações recíprocas”. (Manifesto do Partido Comunista.
Petrópolis: Vozes, 1988 – pág. 69).
[63]
– Para Além do Bem e do Mal (§ 38). São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
[64]
–Para Além do Bem e do Mal op. cit. (§ 46).
[65]
– Cf. a apresentação de Mario da Silva a uma edição de Zaratustra. op. cit.
pág. 19.
[66]
– Genealogia da Moral (I, §7). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[67]
– Castro Alves, O Navio Negreiro (Tragédia no mar) – 1ª parte.
[68]
-Roberto Machado, Zaratuatra – Tragédia
Nietzschiana. op. cit. pág. 39-40 (Grifos meus).
[69]
– Mutatis mutantis, seria interessante um cotejamento entre os conceitos
de “Eros” em Platão (O Banquete, ou Symposium); o de “instinto de
vida” ou “instinto de autopreservação” em Freud e esse “ímpeto à unidade” a que
se refere Nietzsche. “De acordo com a nossa hipótese – diz Freud – os instintos
humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir – que
denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido que Platão usa a palavra
‘Eros’ em seu Symposium…” (Cf. S. Freud, Why War?. Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. op. cit. pág. 202-203).
[70]
– O Eterno Retorno (A Vontade de Potência § 1050 – textos de
1884-1888) in Sobre o Niilismo e o Eterno Retorno (1881-1888). Obras
incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (negritos meus).
[71]
– Cf. C.G. Jung, Psicologia e Religião.
Petrópolis: Vozes, 1987 – pág. 32-33.
[72]
– C. Kerenyi. DIONISO – Imagem arquetípica da vida indestrutível. op. cit.
pág. 118.
[73]
-.Ibdem, “Prefácio” de Ulpiano T. Bezerra de Meneses. (negritos meus).
[74]
– Estou citando de memória, mas o sentido é o
exposto a seguir: Os urubus resolveram aprender a cantar. Contrataram os
melhores professores – professores-doutores – e passaram a reunir-se,
diariamente, sobre um telhado, para as aulas (teóricas e práticas). Era aquela
canseira… Os professores dando aulas, ensinando técnicas e mais técnicas.
Mas, apesar de tanto esforço dos corpos docente e discente, o máximo que os
urubus conseguiam era uma séria de sons guturais do tipo “Grr, Grurrr, Gorr”, e
outros assemelhados. Uma coisa horrível. Mas os urubus não estavam nem aí. (nem
os professores-doutores!). O certo é que, passados dois anos de grandes
esforços, dois anos de bunda na cadeira, digo, de penas no telhado, chegou o
grande dia da formatura. Foi uma festa! Todos reunidos (alunos e
professores-doutores) num grande rega-bofe. Os discursos de sempre; orgulho
pingando, empáfias mil. Diplomas de doutor sob as asas. Desde então os
urubus se reuniam sobre o telhado, duas vezes por semana, para “cantar”: “Grr.
Grurrr. Gorr” – e vamos nós, pois elite é elite e quem pode, pode; e quem não
pode se sacode. Certo dia enquanto os urubus estavam reunidos “cantando”, eis
que pousa próximo a eles, numa quina do telhado, um desgarrado sabiá.
Inadvertidamente, sem saber que estava “usurpando” espaços alheios, o sabiá,
natureza pura, soltou aquele canto maravilhoso! Estupefatos com tanta
insolência, os urubus, indignados com aquela intromissão, interrompem o canto
do sabiá e, dedos em riste dirigidos à pobre ave canora, gritam em uníssono
(voz de barítono): “TENS DIPLOMA???????”, “ÉS
DOUTOR??????”, ‘‘FIZESTES PESQUISA?????” O sabiá toma um susto, interrompe seu maravilhoso canto e, assustado,
ao tempo em que balança a cabeça para um lado e para o outro, responde baixinho
num balbuceio quase inaudível: “n…ã…o, sen…nhor..” Os urubus (voz de
barítono), gritam em uníssono: ENTÃO CALE
O BICO, SEU PÁSSARO DESPREPARADO!!!!!!!!!!!
[75]-“Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos,
excomungamos, expulsamos, execramos, e maldizemos Baruch de Espinoza… Maldito
seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja quando se deita e maldito
seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando
regressa… Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita,
que ninguém lhe preste favor algum, que permaneça com ele sob o mesmo teto ou a
menos de quatro jardas… que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele”. (Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978).
[76]
– Ecce Homo (Prólogo – § 2). Obras incompletas. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
[77]
– Humano, Demasiado Humano. (Primeiro Volume, Cap. VII, § 473). Obras
incompletas, São Paulo: Abril Cultural, 1978
[78]
– Humano, Demasiado Humano. (Segundo Volume, Capítulo II, § 292). Obras
incompletas, São Paulo: Abril Cultural, 1978.
[79]
– Para Além de Bem e Mal (Cap. V, § 202). Obras incompletas, São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[80]
– Para Além de Bem e Mal (Cap. V, § 203). Obras incompletas, São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[81]
– Para Além de Bem e Mal (Cap. V, § 203). Obras incompletas, São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
[82]
– Crepúsculo dos Ídolos (§ 34). Obras incompletas, São Paulo: Abril Cultural,
1978. (itálicos originais).
[83]
– Crepúsculo dos Ídolos (§ 34). Obras incompletas, São Paulo: Abril Cultural,
1978. (itálicos originais).
[84]
– Crepúsculo dos Ídolos (§ 34). Obras incompletas, São Paulo: Abril Cultural,
1978 (itálicos originais).
[85]
– Além do Bem e do Mal. (§ 144). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[86] – Além do Bem e do Mal. (§
145). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[87]
– Além do Bem e do Mal.
(§ 232) – São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[88]
– Além do Bem e do Mal.
(§ 232) São Paulo: Companhia das Letras, 1992 – (itálicos originais).
[89]
– Além do Bem e do Mal. (§ 234) – São Paulo: Companhia das
Letras, 1992 (itálicos originais).
[90] – Além do Bem e do Mal. (§ 239). São Paulo: Companhia das Letras, 1992
(itálicos originais).
[91]
– F. Nietzsche, A Gaia Ciência. (§ 343 – Livro V – Nós, os sem medo).
Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Vale registrar aqui, por
oportuno, um outro trecho de Jung: “Ao dizer ‘Deus está morto’ Nietzsche
anunciou uma verdade válida para a maior parte da Europa. Os povos sofreram sua
influência, não porque ele tenha constatado tal fato, mas porque se tratava da
confirmação de um fato psicológico universalmente difundido. As conseqüências
não tardaram em aparecer: o obscurecimento e a confusão trazida pelos ‘ismos’ e
a catástrofe. Ninguém soube tirar a conclusão do que Nietzsche
anunciara. Não se ouve nela algo de semelhante à antiga frase: ‘O grande Pã
está morto’ que marcava o fim dos deuses da natureza?” (Cf. C.G. Jung. Psicologia
e Religião. Petrópolis: Vozes, 1987 – pág. 93)
[92]
– Ecce Homo (Prólogo, § 4).
[93]
– Humano, Demasiado Humano (§ 150). São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
[94]
– Apesar de algumas respeitáveis opiniões (Giacoia, Jr., Roberto Machado, Karl
Löwith, Eugen Fink; os dois últimos citados por Roberto Machado em Zaratustra
– Tragédia Nietzschiana, Rio de Janeiro: Zahar, 1997 – pág. 19), talvez
seja mais correto dizer “no início” de sua trajetória (verdadeiramente)
filosófica, pois como bem observou um tradutor do Zaratustra (Mário da
Silva), na apresentação de sua tradução da obra (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1977), “O pensamento filosófico de Nietzsche encontra-se
esparso nos livros que foram impressos ou que ele deixou prontos para a
impressão […] a partir de Humano, demasiado humano (Menschliches,
Allzumenschliches), depois que seu ensaio sobre O nascimento da tragédia
do espírito da música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geist der Musik),
escrito quando já obtivera, muito jovem, uma cátedra de literatura grega na
Universidade de Basiléia, se lhe valera os elogios, não desinteressados, de
Richard Wagner e um contrato editorial, o tornara, ao mesmo tempo, um réprobo
da cultura oficial, alguém definitivamente morto para a filologia clássica, no
ambiente professoral alemão, onde ele tencionava, ao menos no início,
conquistar um lugar ao sol como filólogo e helenista. E, na mesma forma que lhe
é adequada, ou seja, a prosa diretamente reflexiva, expositiva, discursiva,
raciocinativa, aforística, etc., ou, indiretamente, como ângulo crítico pelo
qual lançar um olhar para os mais diferentes assuntos, esse pensamento veio
adquirindo mais nítida consciência de si e, também maior virulência, polêmica à
medida que as contingências da vida de Nietzsche, por um lado, e, por outro, o
afirmar-se cada vez mais intransigente da sua vontade de ser si mesmo, o
tornariam mais solitário, mais reduzido ao monólogo interior do que ao diálogo
com quem quer que fosse, já desesperado que alguém pudesse compreende-lo e
decidido a dizer desabridamente o que julgava sua missão dizer. Assim, se em O
viandante e sua sombra ( Der Wanderer und sein Schatten), mais tarde
incorporado a Humano, demasiado humano, em Aurora (Morgenröthe,
Gedanken über die moralischen Vorurteile) e em A gaia ciência (Die
fröliche Wissenschaft) ele ainda surge como que atenuado pelo desejo de não
causar demasiado escândalo (menos nalguns pontos dos prefácios, que, porém, são
de data posterior à das primeiras edições) já o mesmo não se pode dizer das
obras escritas depois de Assim falou Zaratustra e, precisamente, Além
de bem e do mal (Jenseits von Gut und Bose), Sobre a Genealogia da Moral
(Zur Genealogie der Moral), O crepúsculo dos ídolos
(Götzen-Dämmerung oder: Wie man mit dem Hammer philosophiert) e O Anticristo
(Der Antichrist. Fluch auf dem Christntum). Este último, de resto […] devia
constituir o primeiro dos quatro volumes do projetado Ensaio de uma
transmutação de todos os valores. (Deixemos de lado – diz o tradutor entre
parênteses – O caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, e Ecce
Homo, obras, essas, que, por seu caráter ou limitadamente planfetário ou
excessivamente autobiográfico e auto-incensador, pouco ou nada acrescentam ao
fundamental pensamento nietzschiano, do mesmo modo que as Considerações
inatuais e outros escritos anteriores a Humano, demasiado humano).
Negritos meus.
[95]
– Giacoia Jr, O. Nietzsche. São Paulo: PubliFolha, 2000 (Folha explica)
p. 44.
[96]
– Roberto Machado, Zaratustra – Tragédia Nietzschiana. Rio de Janeiro:
Zahar, 1997 – pág. 18.
[97]
– Humano, Demasiado Humano. (Parte II, cap. II, § 17). Obras
incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Ressalte-se, a propósito que eu
não estou “explicando” passagens de Nietzsche. Estou explicitando-as.
Trazendo-as à luz.
[98]
– “Nesse dia perfeito, em que tudo amadurece e não é somente o cacho que se
amorena, acaba de cair um raio de sol sobre minha vida: olhei para trás, olhei
para a frente, nunca vi tantas e tão boas coisas de uma vez. Não foi em vão que
enterrei hoje meu quadragésimo quarto ano, eu poderia enterrá-lo – o que nele
era vida, está salvo, é imortal. O primeiro livro da Transvaloração de todos os
valores, as canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos Ídolos, meu ensaio
de filosofar com o martelo – tudo isso são presentes deste ano e, aliás, de seu
último trimestre! Como não haveria eu de estar grato a minha vida inteira? – E
por isso conto minha vida.” (Nota entre o Prólogo e o § 1 de Ecce Homo).
No ano seguinte, em janeiro de 1889, em Turim, Itália, o filósofo sofreu o
acesso de loucura que o condenaria a vegetar durante os onze anos de vida
(biológica) que ainda lhe restavam. A expressão “biológica” aqui é importante,
pois remete a uma profecia (inconsciente?) do próprio Nietzsche em relação a si
mesmo. No § 6 do Prólogo do Zaratustra, Zaratustra diz ao funâmbulo
moribundo: “A tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo;
portanto, não receies nada!” Foi exatamente o que aconteceu com
Nietzsche!
[99]
– Ecce Homo. (Prólogo, § 1) – Obras incompletas. São Paulo: Abril
Cultural, 1978. (negrito meu).
[100]
– Ecce Homo. (Prólogo, § 2) – Obras incompletas. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
[101] – Oswaldo Giacoia Junior. op. cit. p. 14. (itálico original)
[102] – Oswaldo Giacoia Junior. op. cit. p. 51.
[103] – Oswaldo Giacoia Junior. op. cit. p. 39-40.
[104]
– Notadamente os pré-socráticos.
[105]
-“Um dos temas recorrentes da crítica à democracia, que percorre toda a
história do pensamento político, das famosas páginas da República de
Platão até Nietzsche, é a incapacidade do vulgo de manter os segredos que são
necessários à melhor condução da coisa pública” (N. Bobbio. Teoria Geral da
Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Org. por
Michelangelo Bovero. Rio de Janeiro: Campos, 2000 – p. 388). Na mesma obra (p.
306), Bobbio cita a seguinte passagem de Nietzsche (in Al di là del bene e
del male): “… o socialismo é a moral de rebanho pensado até o fim: ou
seja, o princípio ‘direitos iguais para todos’ levado à conseqüente ‘pretensões
iguais para todos’; logo, ‘um rebanho e nenhum pastor; logo ‘a ovelha é igual à
ovelha’”. Na mesma obra (pág. 304), Bobbio se refere a Nietzsche como “o
príncipe dos escritores não igualitários” e, mais adiante, (pág. 350)
ressalvando tratar-se [Nietzsche] de um “autor que não aprecio”, entende que o
filósofo “possa ter razão quando escreveu: ‘Se u mundo tivesse um objetivo, ele
já teria sido alcançado (…) O dado de fato do espírito como um devir
demonstra que o mundo não tem um objetivo.’”. Um pouco mais à frente, tratando
de guerra, Bobbio diz que “E quando se trata de ‘inversão de valores’ Nietzsche
é insuperável” e cita, na seqüência, uma passagem de Humano, Demasiado
Humano (Umano, troppo umano): ‘Por ora não conhecemos outros meios
[além das guerras] mediante os quais se possam comunicar a povos que vão se
enfraquecendo a rude energia do campo de batalha, o profundo ódio impessoal, o
sangue frio homicida com boa consciência, o ardor geral na destruição
organizada do inimigo, a soberba indiferença para com as grandes perdas, para
com a própria existência das pessoas queridas, e o sombrio, subterrâneo abalo
da alma, de modo igualmente forte e seguro, como o faz toda grande guerra.’”
[106]
– Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, § 38. (itálicos originais).
[107]
– Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978
[108]
– Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
[109]
– Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978
[110]
– Para Além de Bem e Mal (§ 234). São Paulo: Companhia das Letras, 1992
[111]
– Ibdem, (§ 232)
[112]
– Para Além de Bem e Mal (§ 239). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
(itálicos originais)
[113]
– Assim Falou Zaratustra. “Das mulheres, velhas e jovens”. (Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977 – negrito meu).
[114]
– – Para Além de Bem e Mal (§ 38). São Paulo: Companhia das Letras,
1992. (itálicos originais).
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