Índice

Continued from:

CAPÍTULO 3 – MORTO DEUS, DE COMO PENSAR

A marca da Modernidade

Este capítulo comportaria muito bem um subtítulo: De
como, em sendo tão próximo a Nietzsche, não se afastar de Kant.

Michel Foucault, de maneira original, atribuía ao
pensamento de Kant um papel central na fundação da Modernidade. Isso era por
ele bem explicitado em As Palavras e as Coisas com a consideração de que
Kant havia sido o primeiro filósofo a perceber que a forma do conhecimento
caracteriza-se pelo fato de que o sujeito cognoscente, ao levantar-se das
ruínas da metafísica, prescreve-se a si mesmo, consciente de suas forças
finitas, num projeto que exigiria uma força infinita. Kant, assim, transforma a
questão em um princípio de construção de sua teoria na medida em que
reinterpreta as limitações da capacidade finita do conhecimento nas condições
transcendentais de um conhecimento que avança em direção ao infinito. Para
Foucault, o sujeito, sobrecarregado, cai numa forma antropocêntrica de
conhecimento, fato que caracteriza o surgimento das ciências humanas. Nessas,
por detrás de perigosa fachada de um saber de validez universal, opera uma
força disciplinada e dissimulada de pura vontade que deseja ser o poder do
conhecimento. Kant seria, pois, o primeiro crítico do conhecimento que, com sua
análise da finitude, abriu as portas à era do pensamento antropológico e das
ciências humanas, marca da Modernidade.

Foi, todavia, na década de 80, já próximo ao final da
vida, que Foucault indicou no pensamento de Kant um outro aspecto também
original e instigante. Eis que ele descobre, no filósofo de Königsberg, o
contemporâneo que converte a filosofia esotérica em uma crítica do presente. Na
resposta de Kant à pergunta “o que é a Ilustração?”, Foucault vê uma ontologia
da atualidade. Essas considerações Foucault explicitou em conferência, resumida
em texto de 1984 intitulado Qu’est-ce que les Lumières?[91].
Nele, motivado pelo que Kant escrevera em 1784 no jornal Berlinische
Monatschrift em resposta à pergunta Was ist Aufklärung?, Foucault
desenvolve interessante apreciação não somente daquilo que Kant escrevera, mas
também do próprio conceito de Modernidade e do que chama uma “ontologia
histórica de nós mesmos”, tipo de trabalho filosófico que lhe é peculiar e que
vem apresentar-se, por assim dizer, como coroamento de toda uma tradição que
tem suas origens exatamente no Iluminismo.

O ser da filosofia moderna

Para Foucault, será com este texto de Kant que importante
questão entra discretamente na história do pensamento, questão à qual a
filosofia moderna não conseguiu responder e da qual nunca conseguiu se livrar:
o que é este acontecimento que se chama Ilustração ou Esclarecimento ou Lumières
ou Aufklärung e que determinou em parte o que nós somos, o que nós
pensamos e o que nós fazemos hoje? Foucault coloca no próprio ser da filosofia
moderna a questão. É ela que tenta responder à questão lançada, eis que já se
vão dois séculos: Was ist Aufklärung?

Foucault observa que certamente não foi essa a primeira
vez que o pensamento filosófico procurou refletir sobre o próprio presente,
tendo este, entretando, sido tomado, na tradição cristã, por três maneiras
principais: a) o presente tomado como pertencente a uma certa idade do mundo
distinta das outras por algumas características próprias ou separada das outras
por algum acontecimento dramático como, por exemplo, o pertencer a uma
revolução do mundo onde as coisas se põem ao avesso (República de Platão); b) o
presente interrogado para nele decifrarem-se signos anunciadores de um
acontecimento próximo, à feição de uma hermenêutica histórica (Agostinho); c) o
presente analisado como ponto de transição em direção à aurora de um mundo novo
(Vico).

Ora, para Foucault, a maneira pela qual Kant coloca a
questão da Aufklärung é bem diversa, não tratando-a nem como uma idade
do mundo à qual se pertence, nem como um acontecimento do qual se percebem os
signos, nem como a aurora de uma realização. Kant define Aufklärung de
uma maneira negativa como Ausgang, “saída”, “resultado”, concernindo a
questão à pura atualidade. Ele não procura compreender o presente a partir de
uma totalidade ou de um acabamento futuro; ele procura uma diferença, a
diferença em relação ao ontem.

Nesse sentido, segundo Kant, a saída que caracteriza a Aufklärung
é um processo que nos resgata do estado de minoridade, entendendo por tal um
certo estado de nossa vontade que nos faz aceitar a autoridade de qualquer um
que se põe a nos conduzir nos domínios que devem convir à razão[92]. Quando um
livro nos toma o lugar no entendimento, ou quando um diretor espiritual nos
toma o lugar da consciência ou ainda quando um médico decide em nosso lugar
sobre nosso regime, aqui, à feição das três críticas, Kant exemplifica o estado
de minoridade. Aufklärung é, pois, definida pela modificação da relação
preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso da razão ¾ saída essa apresentada por Kant, segundo Foucault, de maneira ambígua ¾ e entendida como um feito, um processo em desenvolvimento, uma tarefa,
uma empreitada, uma obrigação. Observa Foucault que, desde o primeiro parágrafo
do texto de Kant, é o homem, ele mesmo, o responsável pelo seu estado de
minoridade, devendo conceber que não poderá sair desse estado senão por uma
mudança que operará sobre si mesmo. De uma maneira significativa, Kant sugere
um lema, uma senha para a Aufklärung: Aude saper[93].
Trata-se de um processo no qual os homens participam coletivamente e um ato de
coragem no plano pessoal.

Nesse ponto Foucault aponta uma dificuldade que diz
respeito à palavra Menschheit[94] utilizada por Kant: é a espécie humana que
deve aí ser compreendida? Aufklärung é uma mudança histórica que toca à
existência política e social de todos os homens na superfície da terra? Ou se
trata de uma mudança que afeta aquilo que constitui a humanidade do ser humano?
O que é esta mudança? Para Foucault, a resposta de Kant é de um certo modo
ambígua, aparentemente simples mas muito complexa.

Para Kant, são duas as condições essenciais para que o
homem saia de sua minoridade: condições de natureza espiritual e de natureza
institucional, ética e política, devendo-se distinguir quanto às primeiras
aquilo que diz respeito à obediência e aquilo que diz respeito ao uso da razão.
Para caracterizar brevemente o estado de minoridade, Kant cita a expressão
corrente “obedeça, não raciocine”, sendo esta a forma de como se exerce a
disciplina militar, o poder político, a autoridade religosa. E observa que a
humanidade se tornará maior não propriamente quando não tiver mais que
obedecer, mas quando se disser: “obedecei, e vós podereis raciocinar o tanto
que quereis”. Aí a palavra räzonieren teria a conotação de raciocinar
por raciocinar como, por exemplo, ao “pagar seus impostos, mas poder raciocinar
o tanto que quiser sobre a fiscalização” ou ainda ao “garantir, quando se é
pastor, o serviço de uma paróquia, de conformidade com os princípios da igreja
à qual se pertence, mas raciocinar como se deseja diante dos dogmas
religiosos”.

Uma outra distinção que faz Kant diz respeito ao que
chama uso privado e uso público da razão. O uso privado da razão é
exemplificado quando se é peça de uma máquina, isto é, quando há um jogo a
jogar na sociedade e funções a exercer, quando se deve aplicar regras e seguir
fins particulares, não se tratando propriamente de uma obediência cega e
bestial mas de fazer uso da razão de forma adaptada às suas circunstâncias
determinadas, devendo se submeter a seus fins particulares, não se podendo aí
fazer um uso propriamente livre da razão. Já o uso público da razão se daria
quando se procura ser razoável não como peça de uma máquina mas quando se
raciocina como humanidade. Nesse sentido Kant indica que existe Aufklärung
quando ocorre a superposição do uso universal, do uso livre e do uso público da
razão.

Ora, Foucault vai observar que concebe-se o uso universal
da razão como aquele fora de todo fim particular e que isto seria tarefa do
sujeito enquanto indivíduo. Concebe-se também que a liberdade desse uso possa
ser assegurada de modo puramente negativo pela ausência de toda perseguição
contra ele. Mas como assegurar o uso público dessa razão? A Aufklärung,
vê-se, não deve ser concebida simplesmente como um processo geral afetando toda
a humanidade. Ela não deve ser concebida somente como obrigação prescrita aos
indivíduos. Ela aparece agora como um problema político. Como o uso da razão
pode tomar a forma pública que lhe é necessária? Como a audácia de saber poderá
se exercer à luz do dia, dado que os indivíduos obedecerão também exatamente
que possível? Nesse sentido Kant propõe ao monarca de seu tempo, Frederico II,
em termos velados, um tipo de contrato: “despotismo racional com a razão
livre”, em que o uso público e livre da razão autônoma será a melhor garantia
da obediência, isto sob condição de que o princípio político ao qual se deve
obedecer seja ele mesmo conforme a razão universal.

Foucault sublinha a ligação que existe entre esse breve
artigo de Kant e as três Críticas[95]. Será precisamente na Aufklärung, no
momento em que a humanidade vai fazer uso da própria razão sem se submeter a
nenhuma autoridade, é precisamente nesse momento que a Crítica é necessária
para definir as condições nas quais o uso da razão é legítimo para determinar
aquilo que se pode conhecer, aquilo que se deve fazer e aquilo que é permitido
esperar. A Crítica é, nesse sentido, o guia da razão tornada maior na Aufklärung.
Inversamente, Aufklärung é idade da Crítica.

É exatamente sob o aspecto mencionado acima que Foucault
lança a sua hipótese: a de que o pequeno texto de Kant Was ist Aufklärung
encontra-se na dobra da reflexão crítica e da reflexão sobre a história. No
fundo, trata-se de uma reflexão de Kant sobre a atualidade de sua própria
empreitada. Nesse sentido, escreve Foucault:

Mas me parece que é a primeira vez que um filósofo liga
assim, de modo estreito e do interior, a significação de sua obra em relação ao
conhecimento a uma reflexão sobre a história e a uma análise particular do
momento singular em que escreve e a causa pela qual escreve. A reflexão sobre “o
hoje” como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica
particular me parece ser a novidade deste texto.[96]

A Modernidade

É encarando dessa forma que a Foucault parece poder-se
reconhecer o ponto de partida: o esboço daquilo que se poderia chamar a atitude
da Modernidade. Nesse sentido, Foucault pergunta se não se pode encarar a
Modernidade antes como uma atitude do que como um período da história, por
atitude querendo ele referir-se a um modo de relação com a atualidade, uma
escolha voluntária que é feita por alguns, uma maneira de pensar e de sentir,
uma maneira também de agir e de se conduzir que marca uma pertença e que se
apresenta como tarefa e como empreitada. Trata-se, lembra Foucault, um pouco,
sem dúvida, daquilo que os Gregos chamavam de éthos.

Por conseguinte, antes de se querer distinguir o “período
moderno” das épocas “pré” ou “pós-modernas”, eu acredito que valeria mais à
pena procurar como a atitude de modernidade, depois que ela se formou, se
encontrou em luta com as atitudes de “contra-modernidade”.[97]

Para caracterizar brevemente esta atitude Foucault cita
Baudelaire, nele reconhecendo em geral uma das consciências mais agudas da
Modernidade no século XIX. Modernidade como descontinuidade do tempo, ruptura
da tradição, sentimento de novidade, vertigem. É nesse sentido que Baudelaire
falava de “o transitório”, “o fugidio”, “o contingente”. Tomar uma certa
atitude em consideração ao movimento, resgatar qualquer coisa de eterno que não
está nem além nem aquém do instante presente, mas nele mesmo ¾ atitude que permite apoderar-se do que há de “heróico” no momento
presente. A Modernidade não é um fato de sensibilidade ao momento fugidio, é
uma vontade de “heroicizar” o presente. Nesse sentido Baudelaire escrevia que
“não tens o direito de menosprezar o presente.” Mas essa heroicização é
irônica, não se tratando de sacralizar o momento que passa, não se tratando de
recolher uma curiosidade fugitiva e interessante, esta uma atitude de flânerie[98]
que se contenta em abrir os olhos, de prestar atenção e de colecionar
recordações. Ao homem da flânerie Baudelaire vai opor o homem da
Modernidade:

Ele vai, ele corre, ele procura. Com certeza, este homem,
este solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do
grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado que aquele de um puro
vadio, um objetivo mais geral que vai além do prazer fugidio da circunstância.
Ele procura aquela coisa que se nos permitirá chamar de Modernidade. Se trata,
para ele, de resgatar da moda o que ela pode conter de poético na história.[99]

Trata-se de uma transfiguração que não é anulação do
real, mas jogo difícil entre a verdade do real e o exercício da liberdade, onde
as coisas “naturais” se tornam “mais que naturais”, as coisas “belas” se tornam
“mais que belas” e as coisas singulares aparecem “dotadas de uma via
entusiástica como a alma do autor”. Trata-se de obstinação em imaginar o
presente, imaginá-lo de outra forma que ele não é, e transformá-lo, e não
destruí-lo, mas captando-o no que é. A Modernidade baudelairiana é um exercício
cuja extrema atenção ao real é confrontada com a prática de uma liberdade que
de uma só vez respeita e viola o real. Todavia, a Modernidade é também um modo
de relação que deve-se estabelecer consigo mesmo, ascetismo indispensável. Ser
moderno não é aceitar-se a si próprio tal como se é no fluxo dos momentos que
passam; é tomar-se a si como objeto de uma elaboração complexa e dura. Sob
esse aspecto, Baudelaire lembra o “dandismo”[100], dedicando a
esse respeito páginas sobre a natureza “grosseira”, “terrestre” e “imunda” e a
revolta indispensável que suscita uma “doutrina da elegância” imposta sobre
ambiciosos e humildes, numa disciplina mais despótica que a mais terrível das
religiões: o ascetismo do dandi que faz de seu corpo, de seu comportamento e
paixões, de sua existência, uma obra de arte. O homem moderno, para Baudelaire,
não é aquele que parte para a descoberta de si mesmo, dos seus segredos e da
sua verdade escondida, mas sim aquele que procura inventar-se a si mesmo (grifo
nosso); esta Modernidade não libera o homem em seu ser próprio; ela o
constrange à tarefa de elaborar-se a si mesmo. Enfim, Baudelaire não concebe
que possam ter lugar na sociedade ou no corpo político, mas somente num lugar
outro que chama arte, esta heroicização do presente, este jogo da liberdade com
o real para sua transfiguração, esta elaboração ascética de si.

Ora, com todas essas considerações, Foucault quer
salientar o enraizamento da Aufklärung a um tipo de interrogação
filosófica que problematiza a relação com o presente, o modo de ser histórico e
a constituição de si mesmo como sujeito autônomo. De outra parte, pretende
chamar atenção que o fio que nos prende à Aufklärung não é o de uma
fidelidade a elementos de doutrina, mas antes à reativação permanente de uma
atitude, um éthos filosófico que poderia se caracterizar como crítica
permanente de nosso ser histórico.

Esse éthos Foucault caracteriza negativamente observando
que não se trata de dizer que se deve ser a favor ou contra a Aufklärung. É
necessário fazer a análise de nós mesmos como seres históricamente
determinados, de uma certa parte, pela Aufklärung, em estudos que serão
orientados na direção dos limites atuais do necessário, em direção ao que não é
mais indispensável para a constituição de nós mesmos como sujeitos autônomos.

Por outro lado, na crítica de nós mesmos, Foucault alerta
que devemos evitar confusões sempre muito fáceis entre o Humanismo e a Aufklärung.
Não se deve esquecer que a Aufklärung é um acontecimento ou um conjunto
de acontecimentos e de processos históricos complexos que se situaram em um
certo momento do desenvolvimento das sociedades européias. O Humanismo é
outra coisa. É um tema, ou um conjunto de temas que reapareceram várias vezes
através do tempo nas sociedades européias. Esses temas, sempre ligados a
julgamentos de valor, evidentemente sempre variaram muito em seu conteúdo,
assim como os valores a eles associados. Para Foucault, existiu um humanismo
que se apresentava como crítica do cristianismo ou da religião em geral;
existiu um humanismo cristão em oposição a um humanismo ascético e muito
teocêntrico (séc. XVII); no século XIX existiu um humanismo desconfiado, hostil
e crítico em relação à ciência; e um outro que localizava, ao contrário, sua esperança
nesta mesma ciência; o marxismo foi um humanismo, o existencialismo, o
personalismo também; houve tempo em que se sustentavam até os valores
humanistas representados pelo nacional-socialismo e em que os estalinistas se
diziam humanistas. Foucault considera a temática humanista por si mesma muito
flexível, muito diversa, muito inconsistente para servir de eixo à reflexão.

Depois do século XVII, observa que ela apoiou-se sobre
certas concepções de homem emprestadas da religião, da ciência e da política.
Assim, o humanismo serve para colorir e justificar as concepções de homem às
quais ele se obrigou a recorrer. Ocorre que Foucault crê que se pode opor a
esta temática o princípio de uma crítica do que ele chama uma criação de nós
mesmos em nossa autonomia. Em outras palavras, trata-se de um princípio que se
situa no coração da consciência histórica em que a própria Aufklärung se
dá. Deste ponto de vista, Foucault vê mais uma tensão do que propriamente uma
identidade entre Aufklärung e Humanismo. E, para ele, a confusão
parece perigosa e historicamente inexata. Foucault crê que no século XVIII
muito raramente a Aufklärung é considerada como um Humanismo,
muito embora a questão do homem, da espécie humana, do humanista, tenha sido
importante na ocasião. Por outro lado, ao longo do século XIX, ele observa que
a historiografia do humanismo do século XVI foi sempre tida como distinta e
algumas vezes explicitamente oposta às luzes e ao século XVIII. Foucault
conclui, portanto, que deve-se escapar da confusão histórica e moral que
mistura o tema do humanismo com a questão da Aufklärung, propondo, em
contrapartida, uma análise de suas relações.

Ontologia de nós mesmos

Mas Foucault também busca um conteúdo mais positivo ao
que pode ser um éthos filosófico constituído em uma crítica daquilo que nós
dizemos, pensamos e fazemos através do que chama uma ontologia de nós mesmos.
Trata-se aqui de entender o que a caracteriza: uma atitude limite. Não se trata
de um comportamento de rejeição visando escapar da alternativa do dentro e do
fora, mas de que deve-se ser ou ficar nas fronteiras; a crítica é bem a análise
dos limites e a reflexão sobre eles. Trata-se de buscar no que nos é dado como
universal, necessário, obrigatório, qual é a parte daquilo que é singular, contingente
e devido a constrangimentos arbitrários. Trata-se, em suma, de transformar a
crítica exercida na forma da limitação necessária em uma crítica prática na
forma da superação possível. Aqui, a crítica vai se exercer não mais na
pesquisa de estruturas formais que têm valor universal, mas como estudo
histórico através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir
reconhecendo-nos como sujeitos daquilo que fazemos, pensamos e dizemos. Nesse
sentido, esta crítica não é transcendental e não tem por fim tornar possível
uma metafísica: ela é genealógica na sua finalidade e arqueológica no seu
método. Arqueológica ¾ e não mais
transcendental ¾ no sentido em que
ela não procurará resgatar as estruturas universais de todo o conhecimento e de
toda ação moral possível, mas sim tratar os discursos que articulam aquilo que
nós pensamos, dizemos e fazemos como se fossem acontecimentos históricos. Será
genealógica, por outro lado, no sentido de que ela não deduzirá, da forma
daquilo que nós somos, aquilo que nos é impossível fazer e conhecer, mas que
resgatará, da contingência que nos fez ser o que nós somos, a possibilidade de
não mais ser, fazer ou pensar aquilo que somos, fazemos ou pensamos; ela não
procura levar a metafísica a se tornar ciência, mas lançar tão longe e tão
largamente quanto possível o trabalho indefinido da liberdade.

E Foucault prossegue observando, para que não se trate de
um sonho vazio de liberdade, que esta atitude histórico-crítica deve ser também
uma atitude experimental, no sentido de abrir um domínio de estudos históricos
e se pôr à prova da realidade e da atualidade para, de uma só vez, fixar os
pontos onde a mudança seja possível e desejável e para determinar a forma
precisa dessa mudança. Para tal, esta ontologia histórica de nós
mesmos
deve desviar-se de todos aqueles projetos que pretendem ser globais
e radicais. De fato, sabe-se, por experiência, que a pretensão de escapar ao
sistema da atualidade criando programas de constituição de uma outra sociedade,
de um outro modo de pensar, de uma outra cultura, de uma outra visão de mundo,
não levaram senão às mais perigosas tradições. A esse respeito, Foucault
prefere as transformações bem precisas que puderam ter lugar, desde há alguns
anos, num certo número de domínios relativos a nossos modos de ser e de pensar,
às relações de autoridade, relações de sexos, ao modo pelo qual percebemos a
loucura e a doença. Ele prefere estas transformações, mesmo que parciais,
feitas na correlação de análises históricas com atitudes práticas, às promessas
de um homem novo, características dos piores sistemas políticos do século XX.

Assim, Foucault caracteriza o éthos filosófico próprio à ontologia
crítica de nós mesmos
como uma prova histórico-prática dos limites que nós
podemos superar, e, portanto, como trabalho de nós sobre nós mesmos, na medida
em que somos seres livres.

O trabalho filosófico

Todavia, Foucault admite a objeção de que, limitando-se a
este gênero de estudos ou de provas sempre parciais e locais, possa existir o
risco de se deixar determinar pelas estruturas mais gerais, sobre as quais não
se tem nem a consciência nem o domínio. Quanto a isso, considera que se deve
renunciar à esperança de chegar a um ponto de vista que pudesse nos dar acesso
ao conhecimento completo e definitivo daquilo que pode constituir nossos
limites históricos. Deste ponto de vista, a experiência teórica e prática que
fazemos de nossos limites e de sua superação possível é sempre, ela mesma,
limitada, determinada e, portanto, sempre em vias de recomeçar.

Mas isso não significa que todo o trabalho não possa ser
feito senão na desordem e na contingência; este trabalho tem a sua
generalidade, sua sistematicidade, sua homogeneidade e seu risco. Isto está
indicado por aquilo que se poderia chamar de “o paradoxo das relações da
capacidade e do poder”. Sabe-se que a grande promessa ou a grande esperança do
século XVIII estava na crença em uma capacidade técnica agindo sobre as coisas
e, simultaneamente e proporcionalmente, na liberdade dos indivíduos uns em
relação aos outros. Ora, na história das sociedades ocidentais, a aquisição
dessas capacidades e a luta pela liberdade constituíram-se em elementos
permanentes, de forma que as relações entre a crença nessas capacidades e a
crença na autonomia não se revelaram tão simples como se acreditava durante o
século XVIII.

O risco, pois, diz respeito a conseguir-se ou não separar
a crença nessas capacidades e a intensificação das relações de poder. No que
tange à homogeneidade do trabalho, Foucault observa que trata-se de tomar como
domínio homogêneo de referência não as representações que os homens se dão
deles mesmos, não as condições que os determinam sem que eles o saibam, mas o
que eles fazem e da maneira como o fazem, isto é, considerando as formas de
racionalidade que organizam as maneiras de fazer (aquilo que se poderia chamar
seu aspecto tecnológico), e a liberdade com a qual os homens agem nesses
sistemas práticos, reagindo àquilo que fazem os outros, modificando até um
certo ponto as regras do jogo, no que se poderia chamar de a vertente
estratégica dessas práticas. A homogeneidade dessas análises histórico-críticas
é, portanto, assegurada por aqueles domínios das práticas com sua vertente
tecnológica e sua vertente estratégica.

No que tange à sistematicidade dos trabalhos, Foucault
observa que esses conjuntos práticos se dão em três grandes domínios: o domínio
das coisas, o domínio da ação sobre os outros e o domínio das relações consigo
mesmo, o que caracteriza três eixos: o eixo do saber, o eixo do poder e o eixo
da ética. A sistematização de uma ontologia histórica de nós mesmos comportaria,
pois, as seguintes questões: 1) Como nós somos constituídos (ou nos
constituímos) em nosso saber? 2) Como nos constituímos como sujeitos que
exercem e sofrem relações de poder? 3) Como nos constituímos como sujeitos
morais de nossas ações?

Finalmente, no que tange à generalidade dos trabalhos,
Foucault observa que tais estudos histórico-críticos, apesar de bem
particulares, no sentido de que eles têm por objeto sempre um material, uma época,
um conjunto de práticas e de discursos determinados, eles têm sua generalidade,
na medida em que têm sido recorrentes, ou seja, reaparecem e se reproduzem.
Assim é o caso do problema das relações entre razão e loucura, doença e saúde,
crime e lei, o problema e o lugar a atribuir às relações sexuais, etc. A esse
respeito, deve-se fixar que aquilo que sabemos, as formas de poder que se
exercem e a experiência que desenvolvemos de nós mesmos não constituem senão
figuras históricas determinadas por uma certa forma de problematização que
define os objetos, as regras de ação, os modos de relação consigo mesmo. O
estudo de problematizações ( daquilo que não é nem constante antropológica nem
variação cronológica) é, portanto, o modo de analisar, na sua forma historicamente
singular, questões de alcance geral.

Foucault conclui o texto Qu’est-ce que les Lumières?
escrevendo o seguinte:

Eu não sei se em algum tempo nos tornaremos
maiores. Muitas coisas de nossa experiência nos levam a crer que o
acontecimento histórico da Aufkärung não nos tornou maiores; e que nós não o
somos ainda. Entretanto, me parece que se pode dar um sentido a essa
interrogação crítica sobre o presente e sobre nós mesmos que Kant formulou
refletindo sobre a Aufklärung. Me parece que encontra-se aí mesmo um modo de
filosofar importante e eficaz que se desenvolve já há dois séculos. (…) Eu
não sei se hoje deve-se dizer que o trabalho crítico implica ainda a confiança
do Iluminismo; ele necessita, eu penso, sempre de um trabalho sobre nossos limites,
quer dizer: um labor paciente que dá forma à impaciência da liberdade. [101]

 

Foucault nos aponta para o que chama uma ontologia
crítica de nós mesmos
. Mas esta, certamente, ele ressalva, não deve ser
considerada uma teoria, uma doutrina, nem mesmo um conjunto permanente de saber
que se acumula. Deve-se, sim, concebê-la como uma atitude, um éthos, um
caminho filosófico, onde a crítica daquilo que nós somos é, a uma vez, análise
histórica dos limites que nos são postos, e indagação de sua superação possível.
E esta atitude filosófica deve se traduzir em um trabalho que comporta estudos
diversos que têm sua coerência metodológica na pesquisa arqueológica e
genealógica de práticas visadas, simultaneamente, como tipo tecnológico de
racionalidade e jogos estratégicos de liberdades; têm sua coerência teórica na
definição das formas historicamente singulares nas quais foram problematizadas
as generalidades de nossa relação com as coisas, com os outros e com nós
mesmos; e têm sua coerência prática no cuidado de colocar a reflexão
histórico-crítica no âmbito das indagações das práticas concretas. Eis aí como
Foucault define o seu trabalho filosófico.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.