O ALMIRANTE JACEGUAI

Oliveira Lima

O ALMIRANTE JACEGUAI

O Almirante Jaceguai, por consenso unânime dos profissionais e dos leigos, o mais preparado e culto dos oficiais superiores da nossa Armada, acaba de publicar um outro volume da coletânea que empreendeu sob o título — De Aspirante a Almirante, 1862 a 1902. Chamo-lhe coletânea porque é, com efeito, a obra uma reunião dos seus artigos e estudos esparsos por livros, revistas e jornais, constituindo a sua fé de ofício documentada, e não, como eu também desejaria — o voto já foi formulado pelo Sr. José Veríssimo — uma autobiografia, de uma forma mais direta, pessoal e viva.

Desculpa-se o Almirante Jaceguai no prefácio de não produzir propriamente memórias, por se não julgar capaz de escrevê-las com superioridade, nem se considerar com títulos a ocupar por esse modo com os seus feitos e gestos a atenção da posteridade. A razão, porém, não colhe, porque todos sabem no Brasil que no seu caso o escritor vale o marinheiro e que este, afora sua competência excepcional no nosso meio, conta no seu ativo brilhantes serviços de guerra, entre eles a façanha gloriosa da passagem de Humaitá.

Por tudo isso, por ser um homem representativo a um tempo da sua nobre carreira e da cultura militar brasileira, é que a Academia Brasileira, certamente, se desvanecerá de abrir-lhe de par em par as suas portas na próxima eleição, na qual o Almirante Jaceguai se apresenta candidato. Talvez, modesto como é do seu valor literário e no intuito íntimo de provar seus títulos à cadeira acadêmica que manifestou ambicionar, fêz o autor coincidir com esse ato — ao qual o induziam desde muito vários amigos seus, entre os quais me incluo — a edição do novo volume, que abrange páginas variadas: políticas, técnicas, diplomáticas e históricas.

Consta de fato o volume da conhecida carta aberta a Joaquim Nabuco — O Dever do Momento —, apelo a que o ilustre monarquista obedeceu alguns anos mais tarde; de um trabalho sobre organização naval, formado de artigos altamente interessantes do ano de 1896; da narrativa da primeira missão brasileira à China, na qual o então chefe de divisão Silveira da Mota foi na qualidade de plenipotenciário, sendo comandante da Vital de Oliveira o hoje Almirante Júlio de Noronha, e de um estudo sobre a Guerra do Paraguai, acompanhado de reflexões críticas sobre as operações combinadas da esquadra brasileira e exércitos aliados.

O Almirante Jaceguai não podia, se tal foi sua intenção, aspirar a melhor comprovar sua admissão na Academia Brasileira. Toda a coletânea denota um verdadeiro escritor. O Dever do Momento deve ser lido simultaneamente com a resposta vibrante que logo recebeu e com a profissão de fé política, não menos vibrante, feita dez anos depois pelo Sr. Joaquim Nabuco no banquete do Cassino, para avaliar-se quanto devem ter pesado no espírito do intransigente monarquista as palavras eloqüentes do amigo, defendendo a América republicana das increpações lançadas contra ela, e invocando o seu patriotismo a fim de que prestasse à nova forma de governo do país os serviços a esperar do seu talento e da sua atividade.

As páginas então traçadas c agora reproduzidas são de um publicista consumado, não por certo de um autor sem estilo, como o Sr. Jaceguai injustamente se qualifica, e certo número delas constitui até um valioso capítulo de autobiografia. Ninguém melhor, isto é, mais singelamente e mais expressivamente, até aqui explicou a deposição do regímen monárquico brasileiro e descreveu cominais despretensiosa emoção os sucessos dos últimos dias da estada na sua pátria do imperador e outros membros da família imperial. Dessas ocorrências foi o Sr. Jaceguai, oficial superior da Armada então reformado e afeiçoado pessoal da dinastia, testemunha respeitosa,, e em seu desdobramento desempenhou mesmo um simpático papel. Nas outras páginas a coragem do homem do mar,estendendo-sc ao domínio moral, dá relevo singular ao juízo do intelectual sobre os acontecimentos políticos da sua terra e do seu tempo. Algumas das suas reflexões, tais como as que lhe sugeria o exolisi no da instituição monárquica na América demonstrada pelo desprendimento dos seus representantes de sangue, somente acudiriam à pena de um escritor nato.

O capítulo de 1896 sobre as condições então características da Marinha brasileira oferece, além do seu constante atrativo derivado da própria natureza do assunto — as coisas do mar cativam facilmente a imaginação de cada povo —, interesse particular neste momento, em que felizmente cogitamos de readquirir a supremacia naval que outrora nos coube neste continente e sem a qual se não concebe, muito mais nas circunstâncias presentes do mundo, o exercício do prestígio exterior para uma nacionalidade.

O poder marítimo supõe entretanto, como o Almirante Jaceguai não tem cessado de repeti-lo no seu continuado afã pelas coisas da sua profissão, o qual nunca esmoreceu, qualquer que fosse sua posição, na atividade ou na reforma, material e pessoal adequados, e sobretudo os modos de renovar e ampliar durante a luta os meios postos cm ação, a saber, arsenais, estabelecimentos industriais e gente afeita à vida oceânica e ao manejo dos complicados navios modernos.

É sabido que das populações dadas à pesca sai a melhor marinhagem. O preparo, se em parte cabe à previdência administrativa, aproveitando as condições naturais sobre que se enxerta, cabe, pois, em parte não menor, ao cultivo das disposições nacionais que porventura existam para a atividade marítima. Tanto mais se nos impõe aliás o dever de zelar a instituição naval, quanto, herdeiros de glórias marítimas, possuímos nossas próprias tradições, c na nossa curta história de nação independente, a qual conta menos de um século, já temos tido não poucas vezes de recorrer aos elementos da Marinha de Guerra, seja para manter do extremo Norte ao extremo Sul a unidade nacional, seja para reprimir agressões externas c tiranias incômodas, como no Paraguai e no Prata.

A cultura do Almirante Jaceguai empresta nesta parte da sua obra grande sedução às suas observações de caráter técnico ou profissional, menos abordáveis, ou menos atraentes para o comum dos leitores. As recordações e as comparações históricas a cada momento acodem, despojando as outras da sua possível aridez e duplicando o valor dos dados concretos por meio dos conceitos abstratos daquilo que se denominou na Inglaterra, a propósito dos famosos trabalhos do Capitão Mahan, a filosofia da história naval.

Neste domínio restrito e especial se patenteia ainda como é o Almirante Jaceguai dotado de qualidades de escritor, porque, além da competência científica e do feitio prático de que são revestidas suas ponderações, assumem elas na exposição uma concisão e uma clareza notáveis — qualidades que são a meu ver as primordiais do estilo, e que há entre nós decidida tendência a descurar, substituindo-as pelos recursos do vocabulário abstruso e da sintaxe caprichosa.

A nitidez literária ajuda poderosamente a sugestão produzida pela sincera análise das nossas deficiências em matéria de organização naval, e pelas impressivas previsões do autor no tocante a uma-guerra sempre possível, e na qual, no caso de conservar-se a atual inferioridade naval, estaríamos expostos às mais valiosas perdas e às mais dolorosas afrontas, com o maior alcance e o pior efeito, não só sobre a nossa pretensa hegemonia continental, como sobre a própria solidez da estrutura política e a coesão nacional de uma federação composta, nas suas palavras, de Estados separados pelo mar, sendo que o que o mar separa só a marinha pode unir.

O autor não é apenas um crítico. O seu papel ficaria até apoucado, dada a "sua alta patente militar, a mais alta da hierarquia, se às censuras se não juntassem as propostas, se à demolição não correspondesse a reconstrução. Tal não acontece com o ilustre almirante. Pelo contrário, graças à sua prática do ofício, à sua copiosa leitura e ao seu incessante labor, as contribuições literárias do Sr. Jaceguai têm o merecimento de ser ao mesmo tempo repositórios de curiosas informações e programas de meditada reorganização.

Sua descrição, por exemplo, da transformação naval do Japão — feita quando poucos eram os que lhe ligavam toda a sua importância — é tão completa e nutrida de fatos, que não é de surpreender para quem a vê tão conscienciosamente apoiada, a fé absoluta que o Almirante Jaceguai exibia na vitória japonesa, e que muita vez me externou desde o rompimento das hostilidades com a Rússia, no recente conflito tão gloriosamente culminante em Tsushima. Em 1896 o autor, porém, já relembrava que ao Governo de Tóquio "muito mais o preocupava em sua política naval, a instrução náutica e militar do pessoal do que a aquisição de numerosa esquadra ou de navios de proporções colossais".

A reflexão nada perdeu na sua valia e vem perfeitamente de molde quando os poderes públicos se ocupam com o entusiasmo que vai felizmente distinguindo a nossa vida política e mesmo social, até aqui mais apática do que convinha, de restituir ao Brasil a sua relativa supremacia marítima.

Rio, julho de 1907

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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