Continued from:

    Ele vai ficar assim grande, assim grande, será uni mujique
e vamos trabalhar juntos.

     
Pára com isso! Repetes essa coisa a toda
hora!

Lipa,
com Nikifor nos braços, chegou até a porta e perguntou:

—  Mamenka,
por que o amo tanto assim? Por que sofro e me entristeço por ele? continuou
com a voz trêmula, enquanto lágrimas lhe correram dos olhos. — Quem é ele? Que
é ele? Levezinho como uma pena, uma coisinha de nada, contudo eu o amo, amo-o
como a um homem feito. Ele não pode fazer nada, dizer nada, mas eu compreendo tudo
que ele quer pelos seus olhinhos.

Várvara
escutava: não era o barulho do trem que chegava à noite à estação? Teria
chegado o velho? Deixou de ouvir ou entender o que Lipa dizia, per­deu até a
noção do tempo; pôs-se a tremer toda, não de medo mas presa de grande
curiosidade. Viu uma carreta cheia de camponeses aproximar-se com gran­de
ruído; eram as testemunhas que regressavam. Quando a telega passou
diante do armazém, o velho operário saltou e dirigiu-se ao pátio. Ela ouviu al­gumas
pessoas cumprimentá-lo e lhe perguntar qual­quer coisa.

—  Cassados
os direitos e os bens, disse ele em voz
alta, e Sibéria com trabalhos forçados por seis anos.

Axínia saiu
da escuridão do armazém, onde aca­bara de despachar uma encomenda de querosene;
tinha ainda uma garrafa na mão, um funil na outra e uma moeda de prata na boca.

   
E onde ficou papacha?  balbuciou
ela.

    Na estação, respondeu o operário. "Quando ficar
bem escuro, disse ele, eu irei para casa".

Assim
que se soube no pátio que Anisim fora con­denado a trabalhos forçados, a
cozinheira, na cozinha, desandou num pranto como se alguém tivesse morrido,
pensando que a ocasião era oportuna para semelhante demonstração.

—  Por
que nos deixas, Ànisim Grigoriviteh, faleãozinho de minha alma?

Os
cachorros lavaram ansiosamente; Várvara, muito aflita, correu à janela e chamou
com todas as forças a cozinheira:

—  Basta,
Stepanida, basta! Não fiques nessa ago­nia, pelo amor de Deus!

Esqueceram
de preparar o sainovar; ninguém podia pensar em coisa alguma. Apenas Lipa de
modo algum podia compreender o que se passava e continuou a brincar com o garotinho.

Quando o
velhote chegou da estação, ninguém lhe fez perguntas; ele saudou a todos e
pôs-se a andar pela casa em silêncio; não quis cear.

   
Não havia uma pessoa que
intercedesse por . ele,  começou Várvara  quando  ficaram  a  sós.  — Eu… eu
te havia dito que procurasses algum figu­rão ; não me ouviste… Talvez uma
petição…

    Fiz a petição, respondeu o velho, com um gesto vago de
mão. Quando foi lida a sentença con­tra Anisim, falei ao senhor que o defendeu.
"De nada adianta, disse ele, é demasiado tarde". E o próprio Anisim
declarou-me: "É tarde demais". E assim por todo canto; quando deixei
o tribunal, fui falar a um advogado. Paguei-lhe adiantado… Vou esperar um
pouco, uma semana, e irei procurá-lo novamente. Deus tenha pena de nós!

O velho recomeçou o passeio pela casa, de
cômodo
 em cômodo; quando chegou de novo perto de Várvara, disse:

—  Não posso estar
passando bem. Minha cabeça anda… às voltas. Meus pensamentos estão emba­ralhados.
..

Fechou a
porta para que Lipa não pudesse ouvir e continuou em voz baixa:

    Meus negócios vão mal. Tu te lembras de que Anisim,
antes do casamento, trouxe para mim rublos e meios rublos novos t Escondi um
pacote, o restante misturei com meu dinheiro… Noutros tempos, quando meu avô
Dmitri Filaviteh era vivo — Deus tenha sua alma em paz! — costumava ir
freqüentemente a negócios a Moscou ou à Crimeia. Tinha uma mulher: e essa
mulher, enquanto o ho­mem estava longe, no seu trabalho, entregava-se a amores
ilícitos. Tiveram seis filhos. E, quando se embriagava, meu avô dava para
pilheriar e dizia: "Nunca sei quais são os meus filhos e quais são os dos
outros!" Que grande pândego era o meu avô! Mas agora também eu não posso
distinguir o di­nheiro verdadeiro do falso, e me parece que é todo falso.

    Pois olha, eu nunca me engano! Deus tenha pena de ti!

    Quando compro uma passagem na estação, pego três
rublos, mas começo logo a pensar: "Serão falsos ? E sinto-me
apavorado. Ah, não vou bem…

     
Bem se diz, estamos todos nas mãos de
Deus… Oh, querido! querido! consolou Várvara, sacudindo a cabeça. Devemos
lembrar também, Petrovitch… Os tempos estão maus e para todos os efeitos já
não és um homem moço… Deveras morrer; cuida então de que não façam mal a teu
neto. Ai! receio muito que prejudiquem Nikifor; certamente o prejudica­rão. Seu
pai, pode-se dizer, é como se não existisse; a mãe é muito jovem e amalucada.
Se deisasses um pedacinho de terra, por exemplo Butioldno, para o menino. Faze
assim, Petrovitch. Pensa no caso, in­sistiu Várvara. Ele é um bonito garoto;
sinto pena dele. Olha, vai amanhã e assina um documento. Para que esperar?

—  Ia
esquecendo o neto, disse Tzibukin. Devo ir vê-lo. Dizes então que o menino está
bem ? Ora viva, Deus permita que ele cresça e se desenvolva.

Abriu
a porta e chamou Lipa com o dedo. Ela veio com a criança nos braços.


Lipinka, se quiseres alguma coisa é só pedir, disse ele. E trata de comer…
tristezas não resol­vem … trata de te manteres bem…

Ele fez o sinal-da-cruz sobre o menino.

—  E
cuida do neto; embora o filho não esteja aqui, o neto está.

Lágrimas
rolaram por suas faces; deixou esca­par um soluço e saiu. Pouco depois foi
deitar-se e adormeceu profundamente, depois de haver passado sete noites de insônia.

 


 

VII

O velho foi
em curta visita à cidade. Alguém con­tou a Axínia que ele fora ao tabelião
fazer um testa­mento, pelo qual legava Butiokino — esse Butiokino onde ela
havia estabelecido a sua olaria — a seu neto Nikifor. Contaram-lhe a coisa
certa manhã, enquanto Várvara e o, velho estavam sentados de­baixo das bétulas
junto da porta, tomando chá. Ela fechou a porta do armazém que dava para a rua
e a que abria para o pátio; juntou todas as chaves que tiniia e jogou-as aos
pés do velho.

—  Não trabalharei mais
para ti! gritou, pondo–se a soluçar inesperadamente. Tornei-me não uma nora
mas uma criada! Todo o povo caçoa de mim: "Vejam só, dizem eles, que bom
burro de carga Tzibukin arranjou!" Não preciso viver de teus salá­rios!
Não sou pobre, não sou escrava, tenho pai e mãe!

Sem enxugar
as lágrimas, virou para o velho os olhos inflamados pelo ódio e pelo despeito;
a face e o pescoço estavam rubros e todos os músculos rete-sados pelo esforço
que fazia ao gritar:

—  Não
quero servir-te nem mais um momento! Cansei-me! Trabalho o dia todo, à noite no
armazém, contrabandeando vodka, eis o que tenho a fazer, enquanto
os’lucros são para a mulher do convicto
e
sua cria. Ela é a senhora aqui, a grande dama, e eu a criada! Dá tudo isto aqui
para a mulher do fal­sário, mete-lhe pela goela a dentro, que eu me vou embora!
Trata de arranjar outra tola que te sirva e aos teus, Herodes dos diabos!

O velho
nunca em sua vida tinha repreendido ou punido os filhos, nunca alimentara o
pensamento de que alguém em sua família poderia falar-lhe rude­mente ou
portar-se de maneira indelicada com ele; e agora sentia-se tão aterrado que
saiu a correr para dentro de casa e escondeu-se atrás do aparador. E Várvara
ficou como petrificada, sem poder sair do assento, a agitar as duas mãos como
se estivesse afu­gentando um enxame de abelhas.

    Que quer dizer tudo isso? Batiuchka! mur­murou,
horrorizada. Como pode berrar dessa ma­neira? Ai, ai! Mais baixo, mais baixo!

    Vocês deram Butiokino para a mulher do con­denado,
continuou Axínia a gritar. Podem dar-lhe tudo. Não quero nada de vocês,
desgraçados! São todos da mesma laia! Já vi muita coisa aqui, vocês roubam todo
mundo, o viajante, os próprios ladrões, os velhos, os moços! E quem vende vodka
sem li­cença? E quem derrama moeda falsa? Encheram um cesto com moeda
falsa!

Curiosos
começaram a agrupar-se junto ao portão escancarado e assistiam ao que se
passava dentro do pátio.

—  Que
todos vejam! berrava Axínia. Eu sou a desgraça de vocês, não é assim? Vocês
coram com vergonha de mim, pois não? Sentem-se humilhados com a minha
conduta?   Oh,  Stepán! — chamava pelo marido surdo — dentro de um minuto deixa­remos
esta casa, vou para onde estão meu pai e mi­nha mãe, não quero continuar a
morar com a família de um convicto.  Vamos, depressa!

A
roupa branca estava pendurada no pátio; ela puxou uma saia branca e uma
camisola suas, ainda molhadas, e meteu-as nos braços do surdo; atiran-do-se
frenèticamente sobre a roupa que não lhe per­tencia, rasgou-a, jogou-a ao chão
e pisou em cima.

    Ai, ai! Batiuchka! Yê se a fazes parar! — gemia
Várvara. — Para que tudo isso? Deixa-a ficar com Butiokino, deixa-a por amor de
Cristo!

    Que mulher! — diziam no portão. — Que… mu-u-u-lher! 
Está fora de si!

Axínia
correu para a cozinha onde se estava lavan­do a roupa. Lipa lavava, enquanto a
cozinheira ti­nha ido ao regato enxaguar algumas peças. O cal­deirão fervia ao
fogo, a bacia tinha também água fervente, e até a cozinha estava cheia de
vapor. So chão havia um montão de roupa por lavar e num banquinho, no meio
dela, para não se machucar caso caísse, agitando as pequeninas pernas
cor-de–rosa, estava Nikifor. No momento exacto em que entrava Axínia, Lipa
retirava do monte de roupa suja uma camisa, metia-a na bacia e já esticava o
braço para apanhar na mesa um canecão com água fervente.

—  Dá-me isto aqui!
ordenou Axínia com um olhar de cólera e retirando a camisa da bacia. — Não
podes tocar na roupa que me pertence, és a mulher de um criminoso e deves saber
qual é o teu lugar!

Lipa olhou para ela, fria de terror, sem
compre
ender
direito o que queria dizer; mas num relance surpreendeu-lhe o olhar que
lançou ao menino, e então compreendeu tudo e transformou-se em pedra.

— Tiraste a minha terra… isto é para
ti!

Assim
dizendo, Axínia apanhou a vasilha com a água fervente e derramou-a em cima de
Nikifor.

Ouviu-se neste momento
um urro selvagem, como nunca se tinha ouvido em Ukleyevo; ninguém pen­saria
que uma criaturinha franzina como Lipa pu­desse dar semelhante grito. Em
seguida o silêncio pesou sobre o pátio. Axínia voltou para casa sem uma
palavra, sorrindo tão inocentemente como an­tes. O surdo andou algum
tempo pelo pátio com a roupa branca nos braços, depois começou a pendurá–la
calmamente na corda. Até voltar do regato a cozinheira, ninguém teve coragem de
ir à cozinha ver o que havia acontecido.

VIII

Levaram
Nikifor para o hospital, onde morreu durante a noite. Lipa não esperou ali até
que a fos­sem buscar, mas enrolou o pequenino cadáver num lençol e carregou-o
consigo. O hospital era novo, datando de muito pouco tempo a sua construção;
tinha janelas largas e ficava numa colina; o reflexo do sol poente nas vidraças
quase lhe dava a apa­rência de se estar incendiando. Ao pé do hospital ficava
uma aldeiazinha. Lipa desceu a estrada que conduzia ao vilarejo e sentou-se à
beira de um açude. Uma mulher aí levou um cavalo para beber; o ani­mal recusou
a água.

—  Que mais
queres? disse a mulher, com brándura e admirada.  Que é que há contigo ?

Um
rapazinho de camisa vermelha estava acoco-rado limpando as botas de seu pai.
Mais nenhuma outra alma era vista quer na aldeia, quer na co­lina.

—  Ele não
quer beber… disse Lipa, olhando
para o cavalo.

Então
a mulher e o garoto foram embora e não se via mais ninguém. O sol escondeu-se
atrás dum brocado de púrpura e ouro, enquanto compridas nu­vens rubras e
lilases, esgarçando-se por todo o céu, pareciam observá-lo. Em algum ponto
distante uma
garça fez um ruído tristonho e surdo, como uma vaca
presa no curral. O grito dessa misteriosa ave era ouvido todas as primaveras,
mas ninguém sabia que espécie de ave era, nem onde vivia. Por cima do hospital,
junto ao açude, nas moitas, atrás do povoado e por todo o campo em volta, os
rouxinóis dobravam o canto. O cuco contava a idade de al­guém, atrapalhava-se
sempre na contagem e reco­meçava de novo. As rãs, contrariadas, chamavam umas
às outras e podiam ser ouvidas distintamente as palavras: "ie-te-takova,
ie-te-tahova!"
(e você também, e você também!). Que barulho havia ali!
Parecia que todas aquelas criaturas gritavam e can­tavam de propósito, para que
ninguém pudesse dor­mir naquela noite primaveril; para que todos, mes­mo as
mal-humoradas rãs, pudessem apreciar e gozar cada minuto dessa noite; pois
vivemos apenas uma vez!

Lipa não se
lembrava há quanto tempo estava sen­tada à beira do açude, mas quando se
levantou o argênteo crescente da lua brilhava no firmamento, no meio de uma
infinidade de estrelas. Tudo dormia no vilarejo e não havia uma luz sequer por
aquelas paragens. Eram doze verstas até a casa, ela porém não calculava
se tinha ou não forças para lá chegar, nem se ia ou não para lá. A lua ora
fulgia diante dela, ora à direita, o mesmo cuco berrava com sua voz cavernosa e
a rir zombeteiramente: "Olá, para onde vais?"

Lipa
caminhava tão depressa que perdeu o lenço da cabeça. Olhava o céu e pensava.
Onde estaria a pequenina alma de seu filhinho?  Estaria a segui-la ou já se
encontraria lá no alto, entre as estrelas, não pensando mais em sua mãe? Oh!
como se está só no meio dos campos à noite, entre essas cantigas quando a gente
não pode cantar, entre esses inces­santes gritos de alegria quando a gente não
pode sentir alegria… Quando as estrelas espreitam do alto, parece que lhes é
indiferente que seja aqui na terra primavera ou inverno, e se a gente está viva
ou morta… Quando se está opresso pela amar­gura, é pior ficar-se sozinho. Se
pelo menos sua mãe estivesse com ela, ou o "Muleta", ou a cozi­nheira,
ou mesmo um mujique

—      Bu-u-u-! berrava a cegonha.  Bu-u-u-u-u!
Então, inopinadamente, uma voz humana pronun­ciou com clareza:

—  Põe os arreios neles, Vávila.
A poucos passos adiante, em um lado da estrada,

ardia uma fogueira — ou
melhor, brilhavam algu­mas brasas, formando um clarão vermelho. Uris cavalos
davam a impressão de que mastigavam; as silhuetas de duas carroças podiam ser
vistas na es­curidão; numa havia um barril, na outra diversos sacos e ao lado
de ambas estavam dois homens. Um dos homens acabava de atrelar um cavalo, o
outro permanecia imóvel, de pé junto ao braseiro e com as mãos nas costas. Cães
começavam a latir em volta das carroças. O que se ocupava com o cavalo, parou e
disse:

—  O ruído é de alguém que vem pela
estrada.

—      Charik, quieto! berrou o outro para o cachorro.
Pela voz, poder-se-ia perceber que o outro era ve­lho. Lipa deteve-se e saudou:

—  Deus os guarde!

O
velho dirigiu-se a ela e disse, após pequena pausa:

   
Boa noite!

   
Esse cachorro não morde, senhor?

   
Não, esteja tranqüila, ele não
morde.

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