O CONSELHEIRO AZEVEDO CASTRO

O CONSELHEIRO AZEVEDO CASTRO

Oliveira Lima

Na personalidade deste homem sobremodo honrado que acaba de falecer em Londres, onde há 26 anos exercia as funções de delegado do Tesouro Nacional — hoje Federal, e nem por isso menos nacional, pois que os Estados o oberam como dantes — havia dois aspectos capitais a considerar. O Conselheiro Azevedo Castro era um funcionário exemplar pela assiduidade, pela diligência, pela correção e pela probidade (nunca estas palavras foram empregadas com maior propriedade), e era também um suscetível amenizado pelo amor dos livros.

Como funcionário nunca existiu quem fosse mais, devia talvez escrever tão escrupuloso quanto êle. Num país como o nosso, onde a seriedade da vida pública não é infelizmente o que conviria que fosse, a sua norma de proceder era preciosa como sugestão e como modelo. Encarregado de negociar todos os últimos empréstimos da União, cabendo-lhe por isso, se as quisesse receber, comissões que não seriam em suma ilegais nem indecorosas, metido em todos os negócios financeiros do Brasil no exterior no derradeiro quarto de século, sabem todos que jamais se aproveitou da sua situação e das suas gestões para auferir lucros pessoais, mesmo do modo mais lícito, como o do emprego atilado e seguro das suas economias.

É que a lei e o decoro permitem coisas que a consciência não tolera quando a orienta a honestidade. E o Conselheiro Azevedo Castro era neste sentido o mais consciencioso dos homens. Consciencioso significa aqui desinteressado, superior à influência do dinheiro, a que tão poucos resistem, seja para satisfazerem as próprias paixões, seja para poderem comprar as consciências dos outros e criarem sua reputação de grandes homens.

De uma feita, logç no início das suas funções de delegado, recebeu o Conselheiro Azevedo Castro de Lorde Rothschild, chefe da casa que desde a Independência é nossa agência financeira, a comissão de um empréstimo sob a forma de um rolo de títulos da recente emissão. Devolvendo-os com gentileza, escreveu o nosso patrício que só lhe era dado aceitar uma bandeja de uvas das estufas do banqueiro, o qual se submeteu, maravilhado de tamanha isenção.

Aceitando essa comissão, o intermediário não defraudaria porventura o Estado — depende de quem lucrou com a renúncia — mas defraudaria em todo o caso o seu capital de probidade. Isto bastava para ditar-lhe semelhante atitude, que aliás não assumia com intenção espetaculosa. Se acontecia chegar alguma vez a ser impertinente, é porque o tom condizia com a sua natureza geralmente polida, posto que com uns laivos suspicazes e ásperos.

Nessa natureza havia porém lugar para sentimentos de uma afeição que alcançava a ternura. O Conselheiro Azevedo Castro era um amigo leal e devotado, como costumam ser os homens chamados de poucos amigos. Pelo Visconde de Taunay, por exemplo, seu carinho foi fraternal: a memória dele foi-lhe invariavelmente querida, e pouco antes de morrer ainda dava prova da constância deste sentimento, mandando intitular "Coleção Taunay" a livraria que ofereceu à nossa Biblioteca Nacional.

Era uma livraria escolhida a sua, de bons autores, estrangeiros mais do que nacionais, nas melhores edições e em volumes primorosamente encadernados. Os livros foram-lhe companheiros de eleição, enquanto os pôde ler, para o que soía madrugar. Quando a vista entrou a negar-se a demasias, embarcou-os todos para o Rio de Janeiro, onde êle próprio não mais voltara. Foram para dizer à sua velha cidade natal que o coração do filho distante não deixara de ser muito brasileiro, se bem que o espírito se lhe tivesse tornado mais cosmopolita no estrangeiro.

Também em Ealing, arrabalde londrino, onde por muitos anos residiu e onde eu freqüentes vezes lhe fui visitar a biblioteca, sua vila intitulava-se "Carioca". Era ainda a saudade que despontava e que sua reserva, a qual mais se acentuara ao contacto da fleuma inglesa, não consentia se manifestasse mais expansivamente.

O Conselheiro Azevedo Castro era muito mais um ledor do que um escritor, ou por outra não era propriamente um escritor. Nos seus tempos de político conservador, em que fêz parte da Câmara dos Deputados e presidiu a província do Rio Grande do Sul, militou na imprensa. Em Londres publicou uma brochura In Memoriam do Visconde de Taunay e a conhecida edição do poeta português Garção, lindamente impressa em Roma.

No árcade do século XVIII o que o seduzira principalmente fora, penso, a correção da língua. Êle mesmo timbrava em ser um purista, cultivando a linguagem castiça e o estilo severo. As notas daquela edição comemorativa dão fé de tal preocupação e também da intensa admiração do anotador pelo Imperador D. Pedro II. Sua moralidade prestava à do soberano a homenagem que esta merecia e que estimaria receber.

A educação clássica que lhe inspirava o gosto pelos mestres literários transluz ainda na versão das epístolas e evangelhos de um Manual de "Missa que o Conselheiro Azevedo Castro publicou em Tournai não há ainda dois anos, com a aprovação do nosso cardeal-arcebispo, e que é um primor tipográfico. Este gênero de publicação, pouco comum entre leigos, depõe bastante em favor dos seus sentimentos católicos, que eram acrisolados e que só podiam haver-se afervorado nesse meio britânico, tão fundamentalmente sério, tão idealista e tão religioso.

Por tudo se vê que era uma individualidade interessante, dotada de um delicado espírito, a que desapareceu do rol da representação do Brasil no exterior, e representava o país em predicados que a este é indispensável cultivar para o perfeito prestígio da nossa nacionalidade. Porque não basta ter recursos, riqueza, cultura, intelectualidade. Tudo isto, quando mesmo nos sobejasse, se achará votado a um precário destino se os filhos da terra não vierem a primar em virtudes mais sólidas do que aquelas que lhes servem comumente de ideal, se não forem notoriamente sizudos, dignos e íntegros. A reputação de um povo é feita da soma, se quiserem da média das reputações dos que o compõem.

A advertência pode revestir um aspecto de banalidade acaciana, porque os lugarcs-comuns da moral são os mesmos desde tempos imemoriais, mas não deixa por isso de tocar num ponto sensível e de ser de toda importância para o bom nome brasileiro. Ah! quem dera que no Portugal demagógico lograsse fazer-se ouvir o inefável "conselheiro"! Êle diria que a justiça se achincalha e se rebaixa ao nível de cesarismos hispano-americanos como os de Barrios e Castro, quando magistrados se vêem removidos em condições muito parecidas com um exílio, por discordarem suas sentenças das intenções do poder executivo; que a grandeza de um país se diminui com a alienação dos documentos mesmo suntuarios do seu passado como no caso dos coches históricos da casa real; que o capote e a carabina do Buiça têm seu lugar marcado no quarto dos horrores da galeria de Madame Toussaud, ao lado da faca de Louvei ou das bombas de Orsini, mas que só por uma perversão moral inconcebível podem ser exibidos, como troféus gloriosos, num museu revolucionário oficialmente inaugurado com banquetes de crianças.

Tudo isto diria muito floridamente, mas muito sensatamente o entre todos excelente Conselheiro Acácio, cuja espécie aliás se não extinguiu no cataclismo revolucionário, antes floresce na república com os pataratas da liberdade, que não são nem mais ridículos nem menos do que os turiferarios da autoridade.

O Conselheiro Azevedo Castro tinha por certo de "conselheiral" o bom senso, a boa razão, o desejo de ver as coisas deste mundo reguladas pela eqüidade e melhoradas pela bondade. O homem de bem que ele era até a raiz dos cabelos não só vexaria com o qualificativo, mesmo que quisesse alguém torná-lo pejorativo, porquanto a sua ombridade pairava alto sobre a inconsciência, que assim pode ser tachada a disposição para a condescendência e os acomodamentos, a qual debalde pretenderia arrastar aquele caráter tão inteiriço à baixeza das suas transações.

Os interesses ilegítimos que êle contrariou em vida podem querer estabelecer em volta da sua memória a conspiração do silêncio — o silêncio em face do túmulo que os egípcios consideravam o sacrilégio supremo. O defunto não extraía do tesouro cuja guarda lhe andava confiada aquilo com que se remuneram as loas e se edifica a popularidade. 0 melhor elogio do Conselheiro Azevedo Castro não precisa porém de encher colunas de jornais nem de ser fervido e refervido em "a pedido", como o clã do poeta Tolen-tino’ está na dificuldade que se sente em encontrar um sucessor que não desmereça do funcionário zeloso e honradíssimo que o Brasil perdeu e que, pelo seu proceder, tanto fazia em prol do crédito nacional.

Bruxelas, 1911

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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