O DRAMA DO ARROMBADO – Conto de fantasma

xaveco, cantada baile

O DRAMA DO ARROMBADO

A tarde fora muito quente e ali por volta de cinco horas começou a escurecer. Alexandrina, que já preparava para ir à casa do tio ver passar a procissão, não pôde esconder o seu desgosto ao ver o tempo incerto, ameaçando chuva. Veio até a varanda, já calçada e de saia branca, e disse à mãe que, sentada numa cadeira de encosto, lia um livro de reza:

— Veja a senhora: eu nunca saio de casa e basta fazer tenção de ir a alguma parte para vir o diabo do tempo atrapalhar os meus projetos. Irra, que isto até parece perseguição!

E, visivelmente irritada, foi debruçar-se à janela do terreiro, onde ficou à espera que a velha dissesse alguma coisa. Esta porém, como se nada houvesse, continuou entregue à sua leitura. Começou Alexandrina a bater com o salto da botina no piso, dando mostras de impaciência.

— Que é que está você a fazer aí? Veja lá se sossega, menina!

— Mamãe, a senhora também não diz nada!

— Que quer você que eu diga? Está zangada por causa do tempo, não é? Mas eu não tenho poder para mandar suspender a chuva.

E Dna. Rosa, erguendo os óculos até a testa, fechou o livro, marcando-o com uma estampa, na página em que ficara a sua leitura. Alexandrina veio sentar-se numa rede no canto da varanda.

— Mas, mamãe, a senhora não acha isto um desaforo até? v

— Figa Xandoca! Nem diga isso! Desaforo chover? Quem manda chuva é Nosso Senhor! Cruzes! Credo! Mais hoje, menina, que é sexta-feira maior…

A pequena nervosa, folheava uns jornais da Corte que estavam sobre a mesa e, ao fim de uns segundos, como serenada, voltou, já noutro tom, meio súplice:

— Mas mamãe, a senhora acha que isto pode ainda passar? Quem sabe se fará até uma noite bonita…

Não chegou a velha a responder, quando bateram à porta do meio. Alexandrina foi abrir.

— É a Carlota, mamãe. Agora que ela voltou de casa! Imagine a que horas vamos jantar… Irra! Já é relaxamento! E eu que ainda tenho de ir buscar a Alice para irmos à casa de tio Luís.

Carlota atravessou a sala de jantar, com uma grande cesta enfiada no braço direito. Era uma cabrocha baixinha, atarracada, bexigosa, que havia cerca de seis meses, vinha cozinhando em casa de Dna. Rosa. Tomara-a a mãe de Alexandrina a seu serviço por lhe ter vindo recomendada pela comadre Esméria e lhe parecer uma rapariga sossegada e de bom proceder. O serviço da casa era resumido, pois a família constava apenas das duas, mãe e filha, que, demais, não eram exigentes. Alexandrina; órfã desde os nove anos, andava agora nos seus dezessete. A mãe, Dna. Rosa, era uma boa senhora, como se costuma dizer, religiosa, assídua frequentadora de missas e novenas, muito inimiga de portas e ajuntamentos. O marido fora empregado do governo, não passando de categoria subalterna, posto já tivesse casado maduro e morrido com seus sessenta e pico. Nunca lhe dera, em quinze anos de casados, um só motivo de queixa. Num único ponto divergiam marido e mulher: era no que diz respeito à religião. Carmelino era pedreiro-livre, o que assaz molestava a boa Dna. Rosa, que sentia que um homem daquele, tão bom, de coração tão bem formado, se desse conscientemente a essas ridicularias. Êle, entretanto, nunca privou a mulher de exercitar a sua devoção, às vezes levada ao exagero e esse assunto jamais foi causa de querela entre os dois. Carmelino era tão tolerante que se casara no religioso para satisfazer a noiva e não escandalizar a sua rodinha habitual. Era, de resto, um tímido e um bom, talvez um pouco estróina quando moço, apontando-se-lhe muitas rapaziadas que o malignismo de lugar pequeno não esquecia nem perdoava. Casado, regenerou-se completamente e passou a viver para a famíliía e para a repartição — dois ideais que lhe polarizavam a vida simples e metódica. Morreu de uma congestão, numa noite de aguaceiro forte, ao voltar de um jantar de aniversário em casa dos Sousas. Dna. Rosa fez celebrar uma série de missas por sua alma e não cessou de rezar pela salvação daquele pobre coitado, cuja infelicidade fora não ter encontrado, a tempo, quem o guiasse para o bom caminho. Depois dos sete dias, Alexandrina, toda de preto, foi levada para a escola, como interna. Tinha então nove anos e era uma pequena raquítica, enfezadinha e feiosa. Pouco mais sabia que a cartilha e o b-a-ba. Então, a vida de Dna. Rosa, só com a filha e uma criada, na casa tristonha, outrora animada pela figura bonachona do Carmelino, foi de uma monotonia invencivel. Daí a facilidade com que o velho Pedroso, seu compadre e amigo de Carmelino, conseguiu insinuar-se-lhe na intimidade, entrando de frequentar a casa, primeiro a pretexto de orientá-la no inventário e, depois, sob outros pretextos e até sem pretexto nenhum. A vizinhança rosnava daquelas visitas, mas Dna. Rosa pouco se lhe dava do que dissessem, pois sabia-se bastante sisuda para se precaver contra qualquer viuvada. O Pedroso já era um velho, viúvo também, tendo em sua companhia um casal de filhos, o Álvaro, guapo mo-çoilo, maníaco pelas cavalhadas, e a Alice, interessanle menina, fanática pelos namoricos. A vida de Dna. Rosa decorria assim, sem grandes alegrias nem pezares profundos. Os primeiros domingos de cada mês a filha passava em sua companhia, mas a cada separação, em que a menina punha todo o sentimentalismo doentio que o internato agravara, a pobre senhora sentia despedaçar-lhe a alma em, ímpetos de a reter ao seu lado. Sustinha-a, porém, o receio de que Alexandrina, em casa, pudese fazer coro com a maledicência, suspeitar de suas relações com o Pedroso, perder o respeito que lhe devia, diminuindo assim a autoridade que pretendia exercer sobre a filha. O tempo, em breve, lhe restituiu a menina. O curso terminara e Alexandrina, já mocinha, volveu ao lar. Houve quem aconselhasse a Dna. Rosa que a pusesse na Escola Normal, há pouco criada, mas a boa senhora, esconjurando, exclamara:

— Deus me livre! Se eu sou louca de meter a minha filha naquele meio de perdição, a conviver com rapazes de costumes duvidosos e quase sempre maus! Deixem Alexandrina em casa que eu saberei, com meus sermões, fazer dela uma digna mãe de família, se fôr esse o seu destino. E se não fôr, ficará comigo, alegrando a minha velhice.. .

A procissão do enterro deveria sair às 7 horas, mas ‘ o mau tempo fez que só saísse já quase às 8. Havia desde o escurecer um movimento extraordinário pela cidade. Grupos, quase sempre envergando trajes escuros, se dirigiam para a Catedral ou a procura de casas de conhecidos donde pudessem assistir a passagem do cortejo. À porta e pelas janelas do Comendador Luís Aires, tio de Alexandrina, aglomeravam-se parentes e amigos da casa. Pelacalçada, passeavam as moças em cordão. Eram quatro meninas, todas muito de se ver: Alexandrina, as duas primas, filhas do Comendador e Alice Pedroso, a amiga íntima, a inseparável companheira da Xandoca, desde que, há seis meses, viera para casa, de recolhida do Asilo. Alexandrina era indiscutivelmente a mais bonita do grupo. Estava uma bela e vistosa moça, que nada fazia lembrar do que fora sete ou oito anos passados. Crescera e deitara corpo. Tinha a pele muito clara, cheia de sinaizinhos que a tornavam mais interessante. Os seus olhos castanhos, grandes e pestanudos, boiavam sempre num mar de meiguices. Posto não fosse um modelo plástico, devido a um começo de adiposidade, era de irresistível sedução, que mais aumentava aquele arzinho de ingenuidade, natural ou estudado, que ela deixava transparecer nos jeitos e nas maneiras, como nos olhares e nas conversas. Usava o cabelo em tranças grossas, atadas na ponta por uma fita, vindo-lhe bater à altura dos quadris opulentos. Nessa tarde escolhera um vestido côr de azeitona, debruado de côr de rosa, bem fechado, de mangas compridas, que lhe dava um cunho de distinção e elegância, pondo em realce sua epiderme muito alva. As primas eram extremamente parecidas uma e outra, com a particularidade de se chamarem ambas Maria — uma do Carmo e outra da Glória. A primeira, com ser mais velha, era de menor estatura que a segunda. Alice era a mais feia, ou antes, a menos bonita daquela fieira e supria com a vivacidade e tagarelice o que lhe faltava em beleza para se fazer digna do conjunto. Quando se anunciou a procissão, pelo ruído seco da matraca e apareceram na curva da Mandioca as primeiras tochas rasgando como alfinetes de ouro o sudário da treva, as meninas correram a postar-se na esquina do Beco Alto para verem a passagem do préstito fúnebre. Estavam comovidas e silenciosas. Quando a procissão começou a passar, solene e triste, elas ficaram como que dominadas pela majestade e melancolia daquele imenso cortejo que acompanhava o enterro do Senhor. Passaram, primeiro, as irmandades em alas, carregando tocheiros, num passo lento e comovido. No centro, iam as cruzes e as bandeiras, o guião e o pendão, e os irmãos fiscalizadores da ordem do cortejo, corre-correndo, de opas verdes, os de São Miguel, encarnadas, os de São Benedito, côr de vinho, os do Bom Jesus, mandando cerrar ou abrir as filas, afastando os importunos que se obstinavam em atravessar pelo meio, perturbando a marcha. Vinha em seguida o andor de Nossa Senhora das Dores, no seu manto azul e roxo, alanceada pela dor, e logo após, perto da

banda, que tocava dolente a marcha fúnebre, o caixão do Senhor Morto, todo encoberto de cortinas roxas, de grades de madeira negra, sobraçado ao passo lento, pelos Irmãos do Bom Jesus. Fechava o séquito, atrás da música, a massa compacta, variada e confusa do povo, num borborinho surdo de vozes e de passos. Alexandrina e as amigas resolveram acompanhar a procissão até à igreja e seguiram bem atrás para não serem atropeladas. Ainda assim, Alice, buliçosa e brejeira, gritou, chamando a atenção dos que iam perto do grupo, com um rapazelho atrevido que lhe ferrara um beliscão no braço.

— Seu atrevido! Seu caradura! Veja lá onde está e com quem brinca! Custa crer que há gente desta laia que vem à procissão para fazer sem-vergonhices!

O maroto esgueirou-se, desapontado, por uma esquina. Houve risotas num grupo que ia adiante e as pequenas prosseguiram, pelo meio da rua, mais desafogado que os passeios.

— Vão até a Igreja? Se permitem que as acompanhe… — sussurrou uma voz e melíflua, ao lado delas. Voltaram–se. Era o Álvaro, irmão de Alice, que vinha arrastando a asa à Alexandrina.

Elas não havia porque não o consentissem. Alice aludiu, com malícia, à casualidade do encontro, enquanto apertava o braço de Xandoca, que lhe ia ao lado. Seguiram, conversando em voz alta, até a esquina do jardim. Álvaro convidou-as a visitar os passos.

— Não vai ficar tarde, — ponderou Alexandrina, a mais tímida do grupo, a quem as reprimendas maternas atemorizavam.

— Ora, é coisa de meia hora mais. Faça de conta que estamos na Igreja. Depois nhá Rosa nem desconfia de nada, pois, antes de acabar o sermão de lágrimas e o Senhor Deus, nós estamos de volta…

O argumento venceu o espírito de receio de Alexandrina, aliás desde o princípio inclinada àquela aventura de correr os passos ao lado do namorado. Era para ela um encanto aquela meia liberdade, que só a semana santa lhe trazia, pois a mãe passava quase todo tempo na igreja e deixava-a à vontade com as primas. Desceram a praça, ladeando o passeio pelo lado da esquerda e tomaram pela rua de baixo, estreita e mal iluminada. Álvaro postara-se ao lado de Alexandrina e iam conversando a meia voz, enquanto, adiante, as três outras chalreavam, àlacremente. De um grupo que cruzou com eles, quase ao entrar na rua, partiu uma risadinha, sublinhando a exclamação:

— Olha esse azeite! Que perigo!

Alexandrina fez um muxoxo. Álvaro, que a observação, longe de enfrear, tornara mais corajoso, tomou-lhe, sem que encontrasse resistência uma das mãozinhas entre as suas.

A caminho de casa, Dna. Rosa foi dizendo a filha que não lhe agradavam os modos das sobrinhas, umas rega-teiras e estabanadas que pareciam não ter juízo algum.

— Não sei como mano Luís permite essas liberdades! Ah! em minha casa é que eu queria ver isso! Educação moderna… venham com conversa fiada. Eu educo os meus como quero. Não minha filha, aquilo pode parecer muito bom para essa gente de hoje, que não está ligando a nada e não tem escrúpulos nem decência. Onde é que já se viu uma pequena de dezoito anos como a Carmo, andar de vestidos curtos, mostrando os braços e as pernas a quem os queira ver! E a outra, a Glória, que nem tem quinze anos, e já fala em namorados, vai a quanto baile aparece, anda toda se requebrando em saracoteios que, Deus me perdoe, nem parece de gente direita… Você, minha filha, se Deus quiser, nunca há de me envergonhar, fazendo desses papelões! Ah! lá isso não! Para tal não é que tenho dado e vivo a dar conselhos todos os dias… Sabe o que mais? Não fosse parecer soberbia e pouco caso nos parentes eu nem deixaria você andar de cima para baixo com aquelas sirigaitas…

Alexandrina tentava defender as primas dos juízos maternos, fazendo ver que elas eram até bem comportadas, à vista de outras que ela conhecia.

— Cruz! Ave Maria! nem diga isso, meu coração, será que você quer imitar então essas delambidas que andam por aí mostrando o corpo, com a cara cheia de vermelhão e falta de vergonha?

— Eu, não, mamãe.

— Pois então?

— Eu fui criada para freira…

— Já vem você com bobagens. Não gosto de dizede-las, nem chin-chin-chins… Não digo isso, apesar de que você não poderia fazer melhor o meu gosto dessa maneira… Mas eu lhe dei educação diferente da que seu tio Luís está dando às suas filhas. Ah! lá isso dei! Você pode andar com elas, nunca fará a décima parte do que elas fazem. Cada um para o que nasceu…

Alexandrina nada disse. Estava nervosa. Vinha-lhe impulso de chorar. Aquelas palavras da mãe a contrariavam bastante, e ela pressentia, através da resistência materna, o ruir de todos os seus castelos. A conversa com Álvaro, a meio cumplicidade daquela escapada que a mãe não suspeitara, a intimidade que nessa noite começara a estabelecer-se entre ela e o namorado, tudo fizera desvendar-se aos olhos da moça um outro horizonte de liberdade, ao qual até aí era completamente estranha. O seu namoro com Álvaro datava de uns dois meses, tendo começado em casa do tio, que o Álvaro costumava frequentar. As primas foram as primeiras a saber da sua recíproca inclinação e tornaram-se com pouco as suas naturais confidentes, como sempre sucede entre amigas, que se prestam a servir de medianeiras em negócios dessa ordem. Nunca tivera outro namorado e este primeiro amor lhe empolgava a imaginação e arrebatava os sentidos um êxtase de romance sublime. No íntimo lhe vinha surda revolta contra a estúpida reclusão em que a mãe pretendia trazê-la. Não podia só ela, ter a liberdade que tem todas! as moças de sua idade, ir ao pátio da matriz, passear à porta, visitar as amigas e vivia, a bem dizer, enclausurada entre a mãe, sempre às voltas com os seus sabões e pitos por dá cá aquela palha e a criada, bronca como uma porta, com quem nem se podia entreter uma conversa. Uma vez que a sinhá Luísa, vizinha de fronte, dissera a D. Rosa que ela já estava com moça em casa e era preciso cuidado, a mãe saíra com três pedras na mão e gritara-lhe:

— Não peca! Moça é que ela ainda não é…

E que fosse! É cedo para pensar em toleimas. Basta casar na idade em que me casei com o defunto, a quem Deus haja… Antes disso, venha ela para cá de namoricos, que ajustaremos contas!

Xandoca, calada, ouvira a objurgatório materna, com uma profunda humilhação e mais ainda acabrunhada se sentiu quando Dna. Rosa, amaciando a voz, e fitando-a, com estudada ternura, finalizou a sua arenga com estas palavras:

— É preciso saber que minha filha é uma menina de juízo. Não é qualquer dessas assanhadinhas que andam por aí. Desta, nunca, — ouviu? — nunca me virá desgosto. Oh! disso estou certa!

Aquilo mais lhe doia — a convicção absoluta, inabalável de Dna. Rosa na sua passividade, na sua inércia, na submissão completa da sua vontade, que tirava todo o merecimento da sua virtude. Oh não! por certo que não

seria sempre assim! Ela, em vindo o dia, saberia reagir e fazer valer os seus direitos à vida, ao amor, à liberdade. Muito cedo, muito cedo, vivia a mãe a dizer, quando se lhe falava na hipótese do casamento. Pois não era já moça, e feita na quadra de tomar estado? Casar?… Como devia ser bom viver, livre da tirania materna, com um homem que ela amasse muito, que lhe fizesse todas as vontades, que a acompanhasse ao passeio, à igreja e a toda parte! Usar vestidos compridos, jóias, — e ela já se via com uma linda aliança no dedo, larga e brilhante como a de Cotinha, que casara na semana passada — e poder sair quando quisesse, fazer compras na cidade, a bolsa recheada de notas, toda vez que o marido recebesse o dinheiro no começo do mês… Oh! aquilo, sim, que era vida! E o seu pensamento voou para o Álvaro, que ainda essa noite lhe falara em pedir-lhe a mão, logo que fosse promovido.

Tenaz oposição surgira da parte do Pedroso, como da de Dna. Rosa, contra o namoro. Opunha-se aquele, alegando a pouca idade e inexperiência do filho, mas na realidade porque via outro partido mais vantajoso na Carmosina, filha do rico negociante Olivais, que morria de amores pelo Álvaro, sem que este lhe correspondesse.

Cerca de dois meses haviam corrido após aquela noite, que para a moça se tornara memorável, da visita aos passos. O namoro dos dois fizera progressos consideráveis. Iludindo toda a arguta fiscalização de Dna. Rosa, encontravam-se Álvaro e Alexandrina diariamente, quando ela ia e vinha da oficina de costuras da Maria Caolha, onde estava aprendendo corte e trabalhos. Vai uma tarde — uma tarde fria de junho — o moço lhe disse do seu desejo de apressar o desfecho daquilo que não podia continuar assim. E propôs-lhe francamente, decidido, fugirem, para assim forçar os velhos a anuírem ao casamento.

— Que não é só eles que hão de ter o direito de viver… — disse, irritado, aludindo às relações que não ignorava existirem entre os dois — o seu pai e a mãe de Xandoca.

Esta que, colhida de chofre por aquela idéia, para a sua imaginação romântica uma salvação, não tivera tempo de refletir, assentiu imediatamente e ficou combinado que daí há três dias — na sexta-feira — ela sairia, às dez horas da noite, para encontrá-lo no arrombado. E assim, de fato se fez. Mas essa noite o compadre Pedroso esteve até 9 e meia no gamão em casa do vigário e a essa hora acudiu-lhe ir fazer uma visita à Dna. Rosa. Havia, porém, um lindo luar, apesar do frio e pareceu-lhe inconveniente entrar a desoras pela porta da rua, pelo que, prevalecendo-se de velha combinação existente, se encaminhou pela rua do oitão, tomando rumo do arrombado.

Tinham soado dez horas no relógio grande da varanda, quando a moça, pé ante pé, depois de apagar a lamparina do seu quarto, deitando um chalé escuro sobre o vestido leve de cassa, tiritante de frio e de medo, atravessou o terreiro, pisando de mansinho para não acordar o Feroz que roncava junto ao muro do galinheiro. A grama úmida de sereno ensopou-lhe os pés, calçados apenas, à pressa, em uns velhos sapatinhos de entrada baixa e sem salto… E lentamente, dominando a custo a comoção que a fazia tremer, encaminhou-se para o lado do muro do oitão, ao fundo do qual, abrindo para a rua lateral, que era antes um caminho, de pouco trânsito, havia um arrombado. Seguia, rente com a taipa velha, de paredão socado, com o coração a pulsar desordenado, quando, prestes a chegar ao ponto emprazado, viu que alguém galgava a pequena elevação que formava o montão de terra do arrombado e, sem perceber a sua presença, atravessara o quintal, com rumo à cozinha, escondida ao fundo de uns velhos cajueiros. Xan-doca esteve a ponto d© voltar, tal o susto que lhe veio daquele inesperado e misterioso encontro.

— Quem seria? — pensava. — Ladrão, talvez?

E a mãe, que iria acordar e daria, mais cedo do que esperavam, por sua falta?

Um assobio, porém, longo, fino, reanimou-a, falando–lhe da presença de Álvaro lá fora.

— Perdido por cem, perdido por mil… O que tem de ser traz força. Vamos… Se é minha sina: onde der que aleije… Sou dele mesmo, custe o que custar…

Não esperava Dna. Rosa, aquela noite, a visita do Pedroso. Estranhou-lhe, por isso, a chegada e, mais ainda, o modo misterioso, reservado, com que, logo ao entrar, o velho a interpelou:

— Temos novidade cá pela vizinhança… se não é, parece. Ao passar pelo arrombado vi um vulto do lado de fora, embuçado, com jeito assim de esperar por alguém.

Dna. Rosa riu-se, zombando dos vãos temores de Pedroso, posto, no íntimo, secreto pressentimento a mortificasse e como o compadre esgueirasse a vista no rumo do quarto da Xandoca, sussurrou:

— Aquela? Santinha! a esta hora dorme com os anjos… Mas aquele arrombado era, de tempos atrás, a sua preocupação e se não fizera ainda levantar o muro era simplesmente por falta de um dinheirinho disponível e (causa principal, que ela se não confessava) por facilitar as visitas extraordinárias do amigo. E quando acendia o fogareiro para preparar um chá de erva-cidreira, pois começava a sentir a sua dorzinha no coração, contou ligeiramente a Pedroso, a história do arrombado.

— Aquela casa fora antigamente de um português rico que morrera na Rusga, tanto que muita gente supunha haver ali ouro e jóias enterradas. O certo é que a casa, depois disso, ficou a modo que amaldiçoada. Contavam que no lugar do arrombado fora morta uma escrava por ciúmes da patroa, viúva do boava, a qual, crudelissimamen-te, a fizera atar a um poste e queimar-lhe, a ferro de engomar, todo o corpo. Coisas feias dos tempos da escravatura… A infeliz ao expirar, dissera que daquele lugar, tão certo como ser ela inocente, viriam grandes desgostos a todos os moradores da casa.. E assim tem sido. A minha bisavó, que comprou a casa dos herdeiros do boava, viu o filho mais velho enforcar-se numa árvore que existia ali junto do arrombado. Paixão contrariada, dizem uns; infelicidade no jogo, afirmam outros… Sei lá, uma desgraça enorme é que foi, pois o rapaz era uma pessoa muito séria e de juízo e perdeu a cabeça de uma hora para outra, entrando nesta casa. Meu avô morreu de um ramo de ar que apanhou de manhã cedo, junto do arrombado, quando ia ver uma briga na esquina. Minha tia Rosa, depois de sair pelo arrombado com o capitão Teles, que a abandonou, ficou louca, e louca morreu. Minha mãe adoeceu do peito desde uma vez que saiu a noite, para tocar uns cachorros que estavam a fazer alarido perto do arrombado. Eu… você sabe, foi por ali que começamos. O defunto era vivo: essa noite houve serão no serviço e…

— Uma noite como a de hoje, fria e de luar —interrompeu, evocativo Pedroso. — Há quanto tempo!

— É a idade da Xandoca, um ano mais… — esclareceu Dna. Rosa. — E sabe? dizem que toda vez que uma desgraça acontece na casa, ouve-se um grito — o grito da moça — no lugar onde ela foi injustamente torturada…

Pedroso, no intuito de mudar o rumo à conversa, que lhe não agradava, perguntou à comadre:

— E Xandoca, Rosinha, já desvaneceu do Álvaro?

— Se não desvaneceu, há de desvanecer, meu velho. Demais, você bem sabe, eles não podem casar um com o outro.

E, ameigando a voz, baixinho, só para êle:

— Seria um horror: pois eles são irmãos…

Nessa hora, um grito agudo, fino, estridulo feriu a noite silenciosa, no rumo do arrombado. A pobre senhora caiu estatelada sobre a borda da cama. Pedroso, numa intuição terrível, entreabriu a porta da alcova, que deserta, ostentava, intato, o leito virginal de Alexandrina. Correu o velho até a janela que dava para o terreiro. Um frio intenso e cortante vinha de fora. A crescente, em forma fal-cular, subia, por trás do morro fronteiro. Fundo, mortal silêncio pairava em todo o arredor.

Apenas, longe, além do arrombado, onde havia umas poças de água de chuva, se ouvia, lento e monótono, o coaxar das rãs e melancólico tantan dos sapos leiteiros…

José de Mesquita: No Tempo da Cadeirinha. Edição da Academia Matogrossense de Letras (Estante Matogrossense, Vol. V), 1946, pp. 43-62.

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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