O homem como alma em Platão – História da Filosofia Antiga – Johannes Hirschberger

História da Filosofia Antiga – Johannes Hirschberger

C.  O     HOMEM

Depois de termos consideradoa posição geral de Platão no concernente ao problema ontológico e teorético-epistemológico, voltemo-nos para algunsproblemas concretos e, em primeiro lugar, para o seu pensamento sobre o homem.

α)    O   homem   como   alma

"Ao legislador não podemos, em nenhum ponto, lhe recusar a nossa, fé; e assim será também quando nos assegura ser a alma algo de completamente diferente docorpo e que,  na vida, é justamente a alma, e não outro ser, que nos torna a cada um de nós o que propriamentesomos. Ocorpo, pelo contrário, nos segue a cada um somente como uma espécie de sombra, dizendo-se, por isso, com razão que, sobrevindo a mor te, os cadáveres não são mais do que simulacros dos mortos; pois, o verdadeiro homem é um ser imortal, cujo nome próprio é a alma, que entra na comunhão dos deuses para dar contas de si" (Leis, 959). Também para Platão o homem é uma união do corpo e da alma. Mas como é concebida esta
união? Ela é um laço bem frouxo. O corpo é, para a alma, uma espécie de veículo e, portanto, mantém com ela relações apenas acidentais. Por isso não há um justo equilíbrio.entre ambos; a alma é propriamente o homem, sendo o corpo apenas uma sombra. E, afinal, a união de uma com o oütrò é infeliz. A. alma está encerrada no corpo comonuma prisão, sendo este um lastro para. aquela. "Enquanto estivermos presos ao corpo e a nossa almaestiver conglutinada. com este  mal, nunca poderemos atingir plenamente a verdade do que buscamos. Pois, mil e uma inquietações nos causa o corpo, pelas exigências de sua nutrição, sem falar ainda em toda espécie de paixões eróticas, desejos, temores, e um sem número de imaginações e infinitas ninharias. Em suma, ele nas coloca num estado no qual não temos um momento de quietação. Pois, também as guerras, as revoltas e batalhas são conseqüências do corpo e das suas concupiscências. Porque todas as guerras nascem do desejo de adquirir haveres e bens. E haveres e bens somos forçados a adquirir por causa do corpo, cujas exigências devem ser satisfeitas" (Fédon-, 66 b). Por isso, Platão repete a expressão dos pitagóricos, que consideravam o corpo como o túmulo da alma (σωμα — σημα ). E assim compreendemos a sua exigência, de entretermos a nossa união com o corpo na medida do absolutamente necessário, sem nos deixarmos penetrar por êle e pela sua natureza, mas em nos purificarmos dele "até Deus nos livrar dele completamente". Todo o interesse de Platão pelo homem se concentra, portanto,_ na alma, e a sua antropologia" é, essencialmente, uma psicologia. Ouçam os pois a sua resposta sobre a questão da origem da alma, sua essência e seu destino. Há muita roupagem mitológica na doutrina que nos dá a conhecer, mas o cerne filosófico não é difícil extraí-lo.

b)    Origem   da   alma

A alma recebe a sua existência do Demiurgo, que é quem fornece  "a semente  e  o começo". A   alma humana  não  é tirada da alma do mundo, como parte, defluência  ou broto. São, na verdade, empregadas as mesmas partes componentes das quais resultou, como um "misto", ã alma do mundo: dá um lado, o indivisível. o, eterno e o imutável e, de outro, a realidade mutável; embora não na mesma proporção. Mas as almas humanas são feitas pelo próprio Demiurgo, como êle feza alma do mundo (Tim. 41 ss). E, assim, Platão não é  emanacionista nem panteísta.  Cada alma é algo de individual, cada .uma tem a sua estréia, onde tem a sua morada. e há tantas almas quantas estrelas. Por isso, o Demiurgo as cingiu a um carro, permitindo-lhes, assim, contemplar a natureza do todo e a revelação da lei fatal do destino das coisas. Não é isto nenhuma aplicação astrológica, mas exprime a convicção de PLATÃO, do que a alma, a priori, conhece as eternas verdades e valores e. por isso, pode prescrever ao mundo eà vida, o seu caminho ideal. Também Platão pensa que a contemplação do céu estrelado enche o coração do homem do uma admiração sempre renascente, e lhe dá um pressentimento de normas supra-temporais. Tal o alcance do devir da alma, nas mãosde Deus. Setudo nela tivesse sido obra sua, certamente teria sido ela totalmente divina. Mas isto não pode ser. Por issooDemiurgo a confiou, para a seqüência do seu destino, aos "deuses criados", i. é, á Terra e aos planetas, esses "instrumentos do tempo", para introduzirem a alma na existência, revesti-la de um corpo, nutrir o homem e  deixá-lo crescer,  e,  de novo,  recebê-lo quando deixar  esta vida. Esse foi o nascimento primeiro da alma neste mundo espácio-temporal. Porque outros nascimentos .sucederão a esse. como logo o veremos.

c)  Essência   da   alma

α) A alma como espírito. — Antes de tudo, queremos frisar o que se conclui do que acaba de ser dito quanto à essência da alma. A alma é, para Platão, conforme resulta imediatamente da sua imortalidade, uma, substância invisível, imateriaj, espiritual, supra-terrena; e isto o é tanto a alma do mundo como a dos homens. E isto deve ser dito pela declaração de que foi o Demiurgo mesmo que a formou; e o que êle formou é uni ser imortal. Só  quando ela é entregue ao "instrumento do tempo", é que se une com o corpo, e só então, nascem as percepções sensíveis. A imaterialidade e a imortalidade são, em particular, o tema do Fédon; a pátria supra-terrestre da alma e sua natureza, o do Fedro.

αα) E a sensibilidade? — Parece contradizer a imortalidade o admitiu Platão uma alma sensível. os deuses criados, na verdade, diz êle, "formaram em derredor da alma o corpo mortal, como uma espécie de veículo, que muniram ainda_ com, outra espécie de alma — a mortal, sede de perigosas e inevitáveis perturbações. Tais o prazer, o máximo sedutor para o mal; depois a dor, que afugenta o bem; em seguida, a audácia e o temor, dois incessantes conselheiros; e a cólera, o grande perturbador dificilmente domesticável; e a esperança, mãe das ilusões. A tudo isto ‘acrescentaram ainda percepções irracionais, e a paixão do amor, que a tudo se atreve, de modo a formarem uma aliança Indestrutível, constituindo assim o gênero dos mortais"   (Tim. 69 c d).

ββ) Unidade da alma? —Falar de outra alma, sensível e mortal, não significa, tenha ohomem mais de uma alma, mas exprime, somente, o que Platão, na República, chama as três partes da alma, São elas: a alma racional ou espiritual (λογιστικον), que se manifesta—no pensamento puro e na contemplação supra-sensível; a _alma irascível. (θιμοειδεσ), à qual pertencem as nobres excitações, como a có1era, a cobiça, a coragem e a esperança; e a alma concupiscível (επιθυμητικον), onde tem a sua sede os instintos da nutrição e do sexo, como o prazer e o desprazer, e a necessidade do repouso. Embora no Timeu estas partes da alma sejam, localizadas na cabeça, no peito e no baixo ventre. Platão, contudo, sóadmite uma única alma humana. O homem compõe-se de uma alma e um corpo e não de almas e corpo. Esta unidade da alma humana é afirmada muito claramente do Fedro; que a compara a uma "força ativa natural que une ao auriga um jugo de corcéis alados" (246ss.). O auriga é a alma espiritual; os dois corcéis são as duas outras partes da alma — a mais nobre é a irascível, a menos nobre é a concupiscível. Mas, se à alma são conaturais essas três partes, parece; por aí, perigar a sua imaterialidade, pois já então a sensibilidade nela se inclui. Mas, por outro lado, é evidente que aalma, para. Platão,  é imaterial. Como pois é isto possível? Evidentemente por ser a alma, para êle. no sentido próprio e estrito, o que designa com o nome de alma espiritual. O Fédon o mostra muito claramente. A alma espiritual imortal, de que esse diálogo trata, já se libertou de toda sensibilidade. Neste inundo isto é certamente impossível, mas assim o será depois da morte. Por onde vemos que, quando Platão fala das duas partes inferiores da alma, pretende, apenas, obviar ao fato de estar a nossa, alma espiritual, unida ao corpo. Os néo-platônicos freqüentemente discutiram se a alma sensível  sobrevive ou não à morte do corpo. Jâmblio resolveu a questão pela afirmativa; Plotino, Porfírio e Proclo pela negativa.  Platão participa desta última opinião, porque a expressão alma sensível, para êle, era apenas  uma imagem na sua concepção de que a alma espiritual pode afirmar-se, não somente como espírito, mas ainda deve elaborar um mundo sensível. "Infelizmente" deve elaborar, como êle naturalmente pensa. Pois, muito de boa vontade, consideraria o homem como um ser puramente espiritual. Mas tem uma idéia bastante objetiva para, compreender que, neste mundo pelo menos, é preciso contar com o corpo e as percepções e desejos sensíveis. Platão não é nenhum materialista ou sensualista. Mas também não se alinha entre os espiritualistas e panlogistas. Mantém-se numa posição média, mas tendendo sempre mais para a alma. espiritual; pois, o sensível, é para êle, algo de obscuro, enigmático, apenas objeto de fé, em todo caso, porém, não um puro ser. Mas omiti-lo de todo, isso não o podia, e daí o admitir a existência de uma "parte da alma" irascível e concupiscível das partes da alma não simboliza outra coisa senão essa passagem do espiritual para o sensível. Ela é uma superação do dualismo, do "chorismos". isto se vê muito claramente no Timeu; onde, expressamente, a alma concupiscível é concebida como princípio de vida (77 ab). Digno seria de saber-se como Platão pode fundir os dois elementos na alma — espírito e movimento.    Que têm ambos esses elementos de comum?

d) Destino da   alma

α) Encarnação. — Uma concepção particularmente típica do pensamento platônico é a sua doutrina da transmigração das_ almas. Depois de ter a alma saído das mãos do Demiurgo. é ela entregue ao "instrumento do tempo"; vive a sua primeira encarnação sobre a nossa, terra.  Este primeiro nascimento é igual para todos, para nenhuma alma ficar prejudicada. Ao cabo desta primeira vida, apresenta-se a alma, junto com o corpo, ao tribunal dos mortos, para dar contas da vida nesta terra Conforme o juízo, entrará ela no campo dos bem-aventurados ou será transladada para lugares de castigo no mundo subterrâneo. Mil anos durará esta sua peregrinação, seguindo-se-lhe então o seu segundo nascimento.

β) Escolha do caminho da vida. — Cada alma já esco-lhe, ela própria. o seu gênero de vida futura. Do além irrompem as almas, no prado dos asfódelos para escolherem cada qual a sua sorte, e, solenemente, um arauto anuncia: "Efêmeras almas! Este é o começo de um novo período mortal para toda a vossa mortal linhagem. A vossa sorte vos será determinada por nenhum demônio; vós próprias havereis de escolher o vosso demônio; a que tiver sorte de eleger primeiro, escolha logo o gênero de vida onde deve permanecer irrevogavelmente. A virtude não é propriedade de ninguém. Conforme a honrardes ou a desprezardes, assim dela recebereis mais ou menos. A culpa é de quem escolhe. Deus é inocente" (Rep. 617 d). Na escolha da forma de vida está_o verdadeiro perigo do homem. Poderá um escolher um destino que lhe aparece como belo ou magnífico (a tirania) para depois descobrir que ele implica vir a matar os seus próprios filhos. Queixa-se então—da divindade, e a culpa. Mas Deus é inocente, pois nós mesmos escolhemos o nosso demônio. A virtude não é propriedade de ninguém; i. é to dos podem adquiri-la.    Quem não o fêz é por ter sido vencido pela "sem razão e pela, cobiça".    Pois a eleição estava nas suas mãos, porque a alma, na sua vida anterior, conduziu-se e   formou-se   de  modo   tal,   que  pré-determinou   o  seu  modo atual de agir.    A maior parte faz a sua escolha  de acordo com  a sua anterior vida habitual  (Rep. 620a).    É por auto- determinação  que um   homem,   no  seu   segundo  nascimento, recebe  a  natureza  de  uma  mulher;  pois já  antes  deixou  a sensibilidade dominar a razão, tornando-se feminino.    Se Ajax se decide por um leão, é por ter antes vivido como um animal rapaz; se Tersites se faz mono, é que, antes, o charlatão já era um mono.    Tudo vem  a dar nisto:  que,  no  decurso da nossa vida, o auriga do carro da nossa alma, espírito e razão,  tome as rédeas nas mãos e domine, para dirigir, reta e acertadamente,   na nossa vida,  tudo quanto há em nós de  irracional e emocional — sentimentos, estados de ânimo, paixões e desejos.    "Armado  desta  convicção,  como  de uma  couraça de  aço devemos entrar no Hades, para, também lá, estarmos mundos de inabalável serenidade de ânimo contra a ânsia das riquezas e de outros males, e não nos aconteça cairmos na. violência dos tiranos e outras ações semelhantes e, assim, nos preparamos males insanáveis"  (Rep. 619 a).    Na medida em que a alma, no decurso da vida, contemplou as eternas Idéias e verdades,  e se apropriou mais  ou  menos  delas,  alcançará nas   suas futuras encarnações um grau mais elevado ou baixo de vida.

γ)  Tabela de valores das formas de vida. — Platão traça uma tabela de valores das várias formas de vida, muito instrutiva para se compreender a sua. valoração dos homens. A alma que mais contemplou as verdades eternas se encarnará no corpo de um filósofo ou servidor da beleza, ou das Musas, ou do Eros..   A segunda, se encarnará no corpo de um rei fiel cumpridor da lei,   A terceira, no de um bom estadista, chefe-de-família ou negociante.   A quarta, na de um ginasta amante do esforço, ou de um hábil representante da arte médica.     A quinta vem à terra para viver a vida  de um vidente ou de  um sacerdote sacrifícios.    A sexta  terá,  em  partilha,  a vida   um poeta.   A sétima a de um artíficie ou lavrador. A oitava, a de um sofista ou demagoga     A nona,  a de um Após a alma, depois, da primeira   encarnação, ter EScolhido, ainda por nove vezes,  o destino de   sua vida, torna Ela, passados dez  mil   anos,   â   sua   primeira   estréia,   donde veio. Só o filósofo, depois de ter escolhidopor três vezes a mesma vida, volta, após três mil anos, à sua pátria estelar. E então começa de novo a peregrinação, "A alma do homem é semelhante à água que vinda do céu sobe de novo ao céu para tornar  a cair sobre a terra,  assim numa peregrinação perpétua".

δ) Sentido da doutrina da metempsicose. — PLATÃO não deu, nunca, uma prova estrita da metempsicose. Com ela êle não faz senão nos repetir" o antigo mito, animado de um alto "ethos" e “athos", envolvendo-o na roupagem definha inigualável forma artística. Era, para êle, a tradição pitagórica donde deriva o andamento do seu pensar, um fundamento suficiente? Ou não deu tanta importância à doutrina da transmigração das almas, só lhe importando evidenciar a liberdade da vontade e a consciência da responsabilidade? Liberdade e responsabilidade são, na_ verdade, as duas grandes idéias filosóficas, que o mito encerra. "Tu mesmo és o autor da tua sorte e do teu caráter", poderíamos pôr, como título, ao mito da metempsicose. O pensamento de Platão nos desperta o conceito de Kant sobre o caráter inteligível. A amostra da vida a ser escolhida, e em que se deve irrevogavelmente permanecer, outra coisa não é senão a essência e o caráter de um homem. Que o caráter significa uma certa necessidade parai o agir do homem, Platão bem o viu quando disse que êle deve, irrevogavelmente, permanecer no caminho da sua vida.. Mas o caráter mesmo. segundo êle, é escolhido. Enquanto que, pelo caráter inteligível de Kant, não vemos como possamos ter qualquer influência na sua formação, e a liberdade, que êle deve assegurar, por sua vez, se   torna   ilusória,   PLATÃO declara,   expressamente,   que nós mesmos fazemos o oque somos; não é o demônio quem nos escolhe, mas nós o escolhemos a ele, pois está em nosso po der proceder dêste ou daquele modo. O primeiro nascimento foi igual para todos, sem a escolha de uma amostra de vida. Então podia cada um escolher a verdade ou a virtude que quisesse. Mas logo foram adensando-se, aos poucos, as decisões em torno de um núcleo pessoal, com um peso cada vez mais acentuado, de maneira a cada ura vir a traçar o seu próprio gênero de vida. A liberdade, porém, se faz sempre sentir nesse gênero de vida. E, assim, o determinismo não encontra, em Platão nenhumponto de apoio; éle é um adepto da liberdade da vontade, e, portanto, também um pronunciado arauto da consciência da nossa responsabilidade. Ele a proclama com seriedade, e uma elevação moral, como os grandes profetas das religiões mundiais. Os mitos escatológicos na Górgias (524 ss.), no Fédon (107 ss.) e na República- (614 ss.), pertencem aos mais puros monumentos da moralidade humana, e não os podemos ler sem nos sentirmos comovidos e enobrecidos.

e)    Conduta   da   vida

Se tais destinos estão em jogo, naturalmente importa, antes de tudo, orientar devidamente a vida. Pois. Platão não era, somente, um moralista, teórico, mas também fixou regras práticas de vida.    Todos as homens querem ser felizes.

α) A verdadeira felicidade. — Mas, adverte Platão, buscam sempre a felicidade por caminhos transviados. Mas, a buscam conforme as exigências dos desejos naturais, da parte Inferior da alma, fazendo-a consistir nas riquezas, no bem estar, no prazer e nas paixões. Mas nisso não pode consistir n verdadeira felicidade. Homens dessa natureza são sempre uns insatisfeitos," consomem-se nos seus desejos, por serem escravos das paixões, tornando-se assim os seus próprios carcereiros. Pensam outros poderem tornar-se felizes pela cobiça e a busca do poder. É a parte irascível da alma neles predominante.  São algo melhores que os primeiros. Mas o que apenas conseguem, na melhor hipótese, é se tornarem valoro-nos soldados ou uns bons esportistas, ou, outras vezes, e fre-quentemente, uns empreendedores dinâmicos e coroados de sucesso. A verdadeira felicidade só existe onde se tem em vista e se realiza a verdade e o valor. Orgulha e soberba são maus conselheiros; ainda piores, porém, os desejos. Só a razão Cria consegue a verdadeira felicidade, pois só ela indica o caminho da verdade.

β) A nossa primeira tarefa. — o caminho para a felicidade pressupõe as Idéias eternas. Por isso a ignorância é a verdadeira doença da alma. Saber e contemplar a verdade é a verdadeira saúde psíquica. Se rastrear o pensamento de Deus, manifestado na criação, e se conhecer a ordem divina, então encontrará a alma o alimento de que necessita. Ainda mais, por aí ela se iguala à riqueza interior de Deus, cuja natureza se exterioriza nas suas Idéias e na sua atividade criadora;  e com ele se assemelha.   "Semelhança com Deus, tanto quanto fôr possível, i. é, santificar-se o homem e justificar-se, fundado na inteligência e na sabedoria" (Teet. 176 b), é o seu alto destino. Protágoras tinha dito ser o homem a medida de todas as coisas. Platão diz: "Deus é a medida de todas as coisas"  (Leis, 716 c). Toda a concepção moral se resume num ethos do real, da verdade e da retitude. Ele condena tanto o prazer e a paixão como a cobiça e o orgulho, guias completamente cegos. O arbítrio subjetivo, com sua insaciável avidez, (πλεονν εχειν), tem que calar-se. É aqui que se aplica a norma relativa ao Estado: "Fazer cada um o seu dever" (τα εαντον πραττειν). Mas este devemos conhecê-lo com clareza; por isso, aprender, e aprender sempre, é a nutrição da alma.

γ) O homem harmônico. — Mas isto não vem a cair no tão censurado intelectualisino? Platão fala a linguagem que lhe é própria, sem dúvida. Mas, na realidade, não é nenhum intelectualista. Quem faz do Eros o objeto de dois diálogos, o Simpósio e o Fedro, e considera, na sua República-, a coragem e o domínio sobre si próprio como as virtudes fundamentais da comunidade, tem consciência muito clara de que o homem não pode ser feliz só por meio da ciência. Platão decide-se, e em seu favor fala a mais madura experiência da vida, por uma harmônica e equilibrada formação de todo o homem. Uma travação desajeitada entre as forças da alma e do corpo é algo de não belo e não bom para o todo. Uma alma forte pode provocar a doença num corpo fraco, tanto por um inconsiderado esforço no aprender e indagar, como também pela cobiça e pela paixão. Inversamente, pode uma educação unilateral do corpo arruinar a alma e o espírito, levando-o a pensar mal, o que é a máxima doença do homem. Por isso, quem aprende e estuda não deve olvidar a ginástica; quem, de outro lado, cultiva o corpo, não deve também deixar o espírito em plano inferior; do contrário, não merecerá o nome de homem verdadeiramente educado. Platão também sabe. que o homem precisa de alegria e felicidade, e de uma certa soma de prazeres. Nas Leis e no Filebo os toma em consideração e se decide por uma ‘"vida mista de inteligência e prazer. Mas Platão tem, além disso, consciência muito clara de que nenhum princípio irracional pode erigir-se num princípio ético, isto é, no guia da nossa vida, chame-se isto sangue ou raça, honra ou orgulho, instinto ou sentimento, vontade de poder ou humanidade de senhores.    O carro da alma sempre há de dirigi-lo a razão, e só ela. Só ela deve ter as rédeas nas mãos. Deve ela governar tudo, mesmo o sentimento da honra, do prazer e do gozo. Os cirenaicos, com o seu hedonismo, pospuseram a dignidade moral; e os cínicos, com a rudeza da sua virtude, a necessidade de se ser feliz. "Platão foi o primeiro a nos ensinar como o homem pode ser, ao mesmo tempo, bom e feliz (ωζ αγαθοζ τεκαι ενδαιμον αμα γιγνεται ανηρ), diz Aristóteles no elogio fúnebre de seu mestre.

f)    Imortalidade

Os pensamentos de Platão sobre a imortalidade da alma constituem a conclusão da sua doutrina sobre, o homem. Acham-se desenvolvidos sobretudo no Fédon, ao qual se deve acrescentar o Fedro 245 c, a República. 608 d e as Leis 895 f. Três são os argumentos que aduz. Primeiro, a imortalidade resulta da existência dos conteúdos a priori do pensamento, que, não provindo da experiência da nossa vida terrestre, já devem ter sido adquiridos antes, e isso pressupõe uma vida anterior da alma. Este argumento, estritamente falando, conclui apenas a preexistência da alma. Mas a sua pós-existência resulta da reflexão ulterior, de que todo devir e perecer supõem uma transição entre estadas opostos: ao. sono sucede o despertar; ao despertar, o sono; ao frio, o calor; ao calor, de novo o frio, etc. Poderíamos, assim, conceber a preexistência da alma como um sono, a que deve corresponder um despertar, de novo sucedido pelo sono, e assim indefinidamente. E, com isto, estaria assegurada a imortalidade. Além disso, a alma deve ser imortal por ser simples. Um cessar de existir só é possível onde há uma separação de partes, e esta só existe nos corpos. O não ser a alma dessa espécie resulta da sua afinidade com as idéias. As Idéias são algo de "uniforme", sempre iguais a si mesmas, E oconhecem um "fluxo e um refluxo", como acontece com os corpos. São simples. Ora, a alma é o lugar de conhecimento das Idéias; portanto, devemos concluir que ela, estruturada do mesmo modo, é também simples. Finalmente, a imortalidade da alma resulta da sua essência, Alma, segundo d indica o seu conceito, significa vida. Ora, esta é auto-movimento. Mas o auto-movimento deve ser imortal; pois, o cessar dele acarretaria  o   cessar   de  todos  os  demais  movimentos,   que, em última análise, se reduzem ao auto-movimento, ao psíquico. Ora, se tal se desse, o céu, na sua totalidade, e o processo do mundo, em geral, cairiam na inércia. Donde devemos concluir que a alma é algo de imortal.

g)    Influências

As provas platônicas da imortalidade da alma prestam o flanco a objeções. O último modo de raciocinar é um argumento que lembra a prova do argumento ontológico. Quanto à primeira e segunda provas, não são cogentes, por só chegarem a uma conclusão analógica. Todavia, essas reflexões de Platão ficaram imortais. Pensadores que lhe sucederam voltaram sempre a elas, melhorando-as e buscando-lhes novos fundamentos. Sob uma forma- ou outra, elas sempre vêm à. tona, até em nossos dias. Mas a sua concepção, que realmente veio a exercer influência, é a. de que o homem é, essencialmente, a alma; e de que a sua verdadeira pátria não é este, mas o mundo do além. Esta tese do platonismo encontra-se com a do Cristianismo. Quando Tomás de Aquino, servindo-se de conceitos aristotélicos, concebe a felicidade eterna (visio beatifica) como vita contemplativa, êle se socorre apenas das palavras, e não do espírito, de Aristóteles, que põe a felicidade do homem neste mundo. Mas, é_ bem certo que é nos mitos escatológicos de Platão, e particularmente no Fédon, que se afirma a crença — oriunda dos pitagóricos, como já sabemos — de que só depois da morte teremos a plena visão da verdade, e que só poderá tornar a alma perfeitamente feliz, depois de ter vivido bem e passado, com êxito, por um justo juízo. A palavra de Agostinho, sobre as relações entre o Platonismo e o Cristianismo, recebe a sua mais plena verdade à luz da concepção do homem: "Nunca ninguém esteve tão próximo de nós como os Platônicos" (De civ. Dei, VIII, 5).

h)    Bibliografia

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