O que pode a educação

O que pode a educação

Era em uma pequena vila. Tinham dado 4) oito horas da manhã,
quando o senhor professor se dirigiu para a sua escola. I Era costume, quando
êle chegava, estarem já os rapazitos no al- j pendre do edifício à sua espera.
Naquele dia, porém, estava o al­pendre deserto. Êste fato admirou 5)
o professor e não sabia a que atribuir tão completa deserção. Entrou na escola,
sentou-se na sua cadeira e esperou. Bateram nove horas,
-bateram dez, bateram onze e nada de aparecer aluno algum.

Lembrou-se de ir dar uma volta pela povoação e colher es­clarecimentos.

Foi o caso que, nesse dia de manhã, havia chegado à terra um arlequim
com a sua companhia, composta de um cavalo, algutis cães, um burro, um macaco e
ainda outros animalejos. Correr logo a notícia de que iam fazer
habilidades
na praça da vila.

image4Não lhes digo nada; os rapazes, em vez de
irem para a escola, foram os primeiros a rodear os recém-vindos.

Começou a festa pelo cavalo, a quem o diretor dizia:

“Ajoelha0), Sultão.” E êle ajoelhava. “Deita-te ao
comprido.”

E o cavalo deitava-se, estendendo-se o mais que
podia.

“Levanta-te e põe os pés para o ar.”

O cavalo levantava-se, firmava

o pêso do corpo nas pernas
anterio
res e levantava para o ar as posteriores. Depois de o deixar
nesta posição alguns momentos, dizia-lhe:

“Assenta-te.

10 o cavalo assentava-se.

Enfim, fazia ainda muitas outras coisas que admiravam 1) Ia toda a
gente. Chegou a vez do burro. Não lhes digo nada; foi

rir
até
chegarem as lágrimas aos olhos.

Os espectadores, quando viram que o chefe daquela família de animais inteligentes ordenava ao vil animal que viesse ao pé dele,
começaram a fazer troça, porque iriam jurar que o jerico
não lhe obedecia. Mas qual! … os troçados foram êles.

Assim que o chamou e lhe deu o título de amigo, o
burro veio e correr ao pé dêle e começava a sua partida pela seguinte forma:

“Amigo, quantas horas são?”

O burro olhou para êle, pareceu que estava pensando e depois bateu com a
pata no chão uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez
vêzes. E o caso é que eram dez horas! Ficou tu- do admirado!

Mas ainda mais; disse o diretor: “Meu amigo, queres dançar domigo?”

E o burro levantou logo as pernas dianteiras, pôs-se direito nas
detrás e começou a dançar com o amigo ao som duma rebeca, que um dos da
companhia tocava. *

Depois deu saltos, subiu parte duma escada, fêz continências que
aos espectadores: enfim, deixou tudo embasbacado.

Vieram depois os cães; fizeram coisas pasmosas.

Dançaram, fizeram palhaçadas, jogaram às escondidas
uns

com
os outros, semelhavam corridas atrás de um. coelho,
fingiram morrer.
Finalmente, executavam tudo o que o diretor se lembrava de lhes
mandar.

Também um papagaio fêz figura: falou, cantou uma ária, jogou chalaças aos espectadores, arreliou os
rapazes, etc.

Até um urso, de figura repelente e medonha, fêz também

coisas
que os circunstantes não tinham visto fazer senão a criaturas
humanas: jogava o pau com o diretor, dançava, tirava o chapéu, fazia uma
cortesia e solicitava algum vintenzito.

O último a entrar em cena foi o rei dos manhosos, o macaco.

Deixou tudo de bôca aberta. Fazia rir e chorar ao mesmo tempo aquele
brejeiro. Começava pelo fardamento: belo calção, colete e
casaca de sêde encarnada, bordados a ouro; na cabeça um barrete tão rico, que
faria inveja a um paxá [1]) da Turquia. A cara, as
barbas, o olhar inteligente e provocante, a importância

com que passeava de um para o outro lado arrastando a
espada j que lhe pendia da cintura, afetando
ares de general vitorioso, provocavam gargalhadas de todos os lados.

Dizia-lhe um: “Esconde o rabo.” Dizia outro:
‘“Vai fazer a barba.” Gritavam doutro lado: “Perdeste as
botas?”

Era uma risada geral. Chega, porém, o diretor e
brada-lhe :| “Atenção!”

E
o general macaco perfila-se, faz a sua continência militar] e conserva-se
firme.

O diretor desembainha uma espada e perfila-se com o ma-] caco, seu contendor. Trava-se um combate. O macaco mostrou-se tão ágil e
valente na defesa como no ataque.

 

Finda
esta partida de esgrima, introduz a espada na bainha, tira um lenço da
algibeira da casaca e põe-se a limpar o suor da fronte. Admirou tôda a gente!

Depois
disto o diretor mandou-lhe varrer o pavimento, dan­do-lhe uma vassoura encavada
em um pau.

O macaco
olhou para êle, chamou a sua atenção para o nobre fardamento que trazia
vestido, e interrogou-o com o olhar e com

o gesto,
como quem lhe queria perguntar se o mandar-lhe varrer a casa não era
atentatório daquela farda e da sua dignidade.

O diretor fingiu que não o percebia e
ordenou-lhe novamen­te que varresse. Então o macaco começa a dar uma tão
formidá­vel sova no patrão com o pau da vassoura, que, se não lhe aco­dem, quebrar-lhe-ia algum braço.


Deu-lhe sucessivamente ferrinhos, flauta,
pandeiro, cavaquinho e até uma gaita de fole} e tudo êle
tocou, como insigne instrumentista!

Ficou
tôda a gente admiradíssima. Nunca haviam presencia- do uma
coisa assim.

No
final agarrou a bandeja e foi pedir. Àqueles que lhe não davam alguns cobres,
fazia-lhes uma careta muito feia.


passava de meio dia, quando acabou o espetáculo. Tinha ali reunido tôda a povoação.

Na aula da tarde foi a escola concorrida.

O senhor professor fingia que não sabia do acontecimento Da manhã,
e perguntou aos alunos o motivo da falta na aula.

Contaram-lhe as habilidades duns animais que haviam
passado

pela
terra, muitos admirados de que êles pudessem fazer tudo aquilo que tinham
presenciado. E perguntaram ao senhor pro­fessor a razão por que aqueles animais
executavam tôdas aquelas

coisas, e os outros da mesma espécie não o
faziam.

“Porque
receberam para isso a competente educação”, res­pondeu êle.

“Então os animais também recebem educação?”

“Também;
acabais de presenciar a prova disso.”

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores
brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição.
Livraria Selbach.


[1] paxá, ou melhor baxá — palavra persa, título dos
governadores . I1
s províncias e outros grandes dignitários — grão-vizir na Turquia.

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