J.M BOCHENSKI – A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA OCIDENTAL –
Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. Fonte: Ed. Herder
Capítulo I – ORIGENS DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
O "homem
moderno", isto é, o homem desde o Renascimento encontra-se pronto
para ser enterrado.
Conde Paul Yorck von Wartenburg
1. O SÉCULO XIX
A. Caráter e
desenvolvimento da filosofia moderna. A filosofia moderna, ou seja, o pensamento filosófico do
período compreendido entre os anos 1600 e 1900, pertence já, por completo, à
história. Uma vez porém que a filosofia contemporânea, a filosofia de nosso
presente imediato procede essencialmente de um confronto com a filosofia
moderna, que se traduz por um antagonismo com ela, mas se apresenta ao mesmo
tempo como sua continuação e esforço para dela se libertar e superá-la, é óbvio
que para bem compreendê-la se requer o conhecimento do passado.
Como
é sabido, sua origem coincide com o declínio do pensamento escolástico, o qual
se caracteriza por seu pluralismo (aceitação de uma pluralidade de entes e de
graus de ser realmente diversos) e por seu personalismo (reconhecimento da
primazia dos valores da pessoa humana), por uma concepção orgânica da realidade
bem como pelo teocentrismo ou olhar dirigido para o Deus criador. Quanto ao
método da escolástica, reduzia-se ele à análise lógica pormenorizada dos
problemas particulares. A filosofia moderna atacou de frente todas estas
características. Seus princípios fundamentais são o mecanicismo, que
destruiu a concepção orgânica e hierárquica do ser, e o subjetivismo, graças
ao qual o homem se liberta de sua ordenação a Deus e desloca para o sujeito o
centro de seus interesses. A filosofia moderna abandona, em matéria de método, a lógica formal. É ela caracterizada — sem dúvida,
com relevantes exceções — pela articulação de vastos sistemas que
descuram a análise.
Devia ser René Descartes (1596-1650) quem
primeiro havia de conferir à nova viragem sua expressão mais completa. Descartes é, acima de tudo, mecanicista.
Admite, sem dúvida, dois graus de ser: o espírito e a matéria; mas,
segundo ele, a realidade não-espiritual é redutível a conceitos puramente
mecânicos (posição, movimento, impulso), e todo acontecimento comporta uma
explicação mediante leis mecânicas, calculáveis. Ao mesmo tempo, é
subjetivista: quer dizer que, para ele, o dado último e o ponto de partida
necessário da filosofia é o pensamento. Acresce a isto o seu nominalismo:
para ele não existe intuição intelectual, mas tão-somente percepção
sensível das coisas individuais. Enfim, Descartes
é adversário declarado da lógica formal. Em rigor de
expressão, não conhece nenhum método filosófico específico e de bom grado
aplicaria a todos os domínios os processos — por êle não sujeitos a análise
filosófica — das ciências matemáticas da natureza.
A
aceitação destes princípios implicava o ter de enfrentar problemas insolúveis:
se a estrutura do mundo é simples agregado de átomos, algo comparável a uma
máquina, como explicar seu conteúdo espiritual? Por outro lado, como chegar
à realidade deste mundo, partindo de um pensamento que deve ser tido como o
único dado imediato? Mas, e esta é a questão primordial, como ê possível
o saber em geral, se unicamente podemos conhecer coisas individuais, quando
esse saber opera constantemente cem conceitos gerais e com leis universais?
O próprio
Descartes resolveu este último
problema, valendo-se da suposição de idéias inatas e de um paralelismo
entre as leis do pensamento e as leis do ser em geral. Seu famoso cogito assegurava-lhe o acesso à realidade, e entre o espírito e a
matéria ele estatuía uma relação de causa e efeito. Um grupo de pensadores,
indevidamente chamados racionalistas, apossou-se de sua teoria das
idéias inatas. Contam-se entre eles
principalmente Baruch Spinoza (1632-1677),
Gottfried Wilhelm Leibniz (16-16-1716)
e Christian Wolff (1679 1754). Um
segundo grupo, os empiristas ingleses, procede mais logicamente: mostrando-se
conseqüentes, aceitam o mecanicismo, estendendo-o até ao espírito, e
associam-no ao subjetivismo e ao nominalismo radical. Esta atitude, já visível
em potência em Francis Bacon de Verulam (1561-1626), logra seu
desenvolvimento sistemático graças a John
Locke (1632-1704), George
Berkeley (1685-1753) e principalmente David
Hume (1711-1776). Para este último, a alma não é mais
do que um feixe de imagens, denominadas "idéias" (the mind is a
bundle of ideas). Só elas são conhecidas imediatamente; as leis universais
nada mais são do que um produto da associação devida ao hábito e, por
conseguinte, carecem de qualquer valor objetivo. Até a existência de um mundo
real se baseia na crença. Só o seu fideísmo preservou Hume de um ceticismo total. Com esta reserva, tudo
nele se torna problemático: espírito, realidade, e principalmente o saber.
Ao mesmo
tempo, o progresso das ciências da natureza havia suscitado a formação de uma imagem
materialista do universo, que se foi ampliando tanto mais que não havia então
filosofia alguma capaz de lhe oferecer resistência. O materialismo, já
preconizado por Thomas Hobbes (1588-1679),
foi-se desenvolvendo mais e mais na filosofia de Etienne Bonnet (1720-1793), Julien
Offray la Mettrie (1709-1751), Paul Heinrich Dietrich von Holbach (1723-1789), Denis
Diderot (1713-1784)
e Claude Adrien Helvetius (1715-1771).
B. Kant. Nesta situação desesperada,
verdadeira catástrofe do espírito, se encontrou envolvido Immanuel Kant (1724-1804). Propôs-se a
tarefa de salvar o espírito, a ciência, a moral e a religião, sem por isso
renunciar a nenhum dos princípios fundamentais do pensamento moderno. Começa
por aceitar, em parte, o mecanicismo que, em seu entender, reinava no mundo
empírico, inclusive no pensamento subjetivo. Mas este mundo é, para êle, o
resultado de uma síntese operada pelo sujeito transcendental a partir da massa
informe das sensações. Donde se segue que as leis da lógica, da matemática e
das ciências da natureza regem este mundo, uma vez que o pensamento as introduz
nele e sustenta a estrutura fundamental das mesmas. Sucede porém que o espírito
não está submetido a estas leis, uma vez que não procede do mundo fenomênico,
senão que é, antes, o legislador, o manancial de tais leis. Assim se
salvaram, a um tempo, a ciência e o espírito. Só que, desta maneira, se
torna Impossível o conhecimento da coisa em si, o conhecimento do uma
realidade em si existente pura além dos fenômenos: o conhecimento permanece
circunscrito ao domínio da intuição sensível, e, fora da sensação, "as
categorias são vazias". Donde se infere a carência de solução para os
momentosos problemas do ser e da vida humana: no plano do conhecimento a
metafísica é impossível. Sem dúvida, Kant
se defronta com os problemas da existência de Deus, da
imortalidade e da liberdade, que, segundo êle, constituem os três problemas
básicos da filosofia; mas resolve-os por meios extra-racionais, mediante os
postulados da vontade.
Portanto, a
filosofia kantiana é uma síntese dos dois elementos essenciais da filosofia
moderna: o mecanicismo e o subjetivismo. Deve sua configuração a um conceitualismo
radical: o sujeito transcendental, enquanto princípio plasmador, cria o
conteúdo inteligível do mundo, conteúdo que, por outro lado, se resolve em
puras relações. Sendo assim, a realidade fica separada em duas zonas: o mundo
empírico, fenomênico, sem reserva sujeito às leis da mecânica; e o mundo da
coisa em si, do númeno, que é racionalmente incognoscível. Kant conferiu ao pensamento moderno sua
forma mais autêntica e sua expressão mais completa, ao mesmo tempo porém o
introduziu numa senda fatal.
Será
difícil exagerar a influência do kantismo na subseqüente evolução do
pensamento filosófico. Ele domina o século XIX e, não
obstante a reação em contrário verificada no final desse século, muitos são os
filósofos que até nossas dias se têm mantido fiéis a suas diretrizes. As
principais correntes do pensamento do século XIX derivam
também do kantismo como de seu manancial. Por haver contestado a possibilidade
de toda metafísica racional, Kant só deixava
abertos ao conhecimento dois caminhos: ou elaborar a realidade com os métodos
da ciência e, em tal caso, a filosofia convertia-se numa síntese dos resultados
das diversas ciências particulares; ou estudar os processos pelos quais a
realidade deriva dos princípios constitutivos do espírito e, neste outro caso.
a filosofia se convertia em análise da gênese ou devir da idéia. E, de fato, as
duas grandes correntes filosóficas do século XIX desenvolvem
ambas possibilidades. O positivismo e o materialismo limitam a tarefa da
filosofia a uma síntese científica, ao passo que o idealismo elabora sistemas,
nos quais tenta explicar o mundo como o produto de um movimento do pensamento.
C. O
romantismo. No começo do século XIX entrou
em cena novo fator, que mais tarde deveria representar seu papel: o romantismo. Trata-se de um
movimento complexo e difícil de definir. Podemos todavia dizer, sem demasiado
simplificar as coisas, que seu característico essencial consiste numa exaltação
da vida e do espírito; a qual se explica por uma reação vigorosa contra as
doutrinas mecanicistas. Kant propusera-se
eliminar as conseqüências de tais doutrinas pelas vias racionais. Restava,
todavia, outro caminho a seguir: renunciar à razão. Compreende-se que poetas e
outras personalidades de gênio, enfastiados pela secura da descrição
científica do mundo, se tenham erguido contra a ciência racional e lhe tenham
oposto o sentimento, a vida, a religião e outras coisas idênticas, com a
afirmação de existirem outras vias de acesso à realidade, que não só as
preconizadas pela ciência.
Contudo,
o romantismo não é necessariamente irracionalista; não faltam sequer ocasiões
em que êle se arvora em defensor acérrimo da razão. Nunca porém deixa de dar a
devida ênfase a tudo quanto seja movimento, vida e evolução. As filosofias dos
séculos XVII e XVIII
haviam propugnado, sem exceção, uma
concepção estática do mundo. Para o mecanicismo a máquina do mundo é uma
estrutura grandiosa estabelecida de uma vez para sempre, engrenagem monumental
na qual nada se perde e nada de novo se produz. O romantismo concentrou, com
toda energia, seus ataques contra semelhante imagem do mundo, e este protesto
lhe granjeou o haver exercido influência muito profunda no transcurso do
século XIX.
D.
Correntes principais. Um
distintivo particularmente característico do século XIX é a
tendência, invulgarmente forte, para construir sistemas: a síntese prevalece
sobre a análise. No dealbar do século, essa tendência exprime-se principalmente
no idealismo alemão. Se Kant havia
posto em destaque a função criadora do espírito, essa idéia. amplia-se e em sua
extensão alia-se com a idéia do devir preconizada pelo romantismo. Daí se
originam os sistemas idealistas de Johann
Gottlieb Fichte (1762-1814), de Friedrich
Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) e, especialmente, de Georg WiLhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Este último concebe a
realidade como o desenvolvimento dialético da razão absoluta que, através da
tese e da antítese, avança para uma nova síntese. À filosofia hegeliana é um
racionalismo radical, se bem que totalmente romântico mercê de seu caráter
dinâmico e evolucionista.
O
lugar ocupado por este idealismo não tardou em ser preenchido por uma série de
sistemas oriundos das ciências particulares. Deve ser mencionado em primeiro
lugar o materialismo alemão, de Ludwig
Feuerbach (1804-1872), de Jakob
Moleschott (1822-1S93), de Ludwig
Büchner (1824-1S99) e de Karl
Vogt (1817-1895). Estes negavam até a existência do espírito e eram
partidários de um determinismo radical. Importa mencionar em seguida o positivismo
fundado na França por Auguste Comte (1798-1857),
seguido na Inglaterra por .John Stuart
Mill (1806-1873) e na Alemanha por Ernst
Laas (1837-1885) e Friedrich Jodl
(1848-1914). Para todos eles a filosofia nada mais é do que síntese das
ciências, interpretando-se a ciência com critério mecanicista. Estas duas
tendências foram fortemente estimuladas pela doutrina de Charles Darwin (1809-1882), o qual, em
sua famosa obra Da origem das espécies pela seleção natural (1859)
explicava a evolução das espécies num sentido puramente mecanicista. / Por esta
forma a idéia romântica e hegeliana da evolução adquire base científica, não
mais posta em discussão, mas recebe também uma interpretação mecanicista.
Converte-se em doutrina dominante e conduz ao evolucionismo monista, do
qual Thomas Henry Huxley (1825-1895)
e sobretudo Herbert Spencer (1820-1903)
são os representantes típicos que mais se salientam, ao passo que Ernst Haecket, (1834-1919) devia ser o
vulgarizador mais conhecido.
Durante
os anos 1850-1870 tinha-se a impressão de que o evolucionismo mecanicista e, as
mais das vezes, francamente materialista, haveria de manter sua preponderância
na Europa. Contudo, por alturas de 1870 manifestou-se um retorno ao
idealismo, primeiramente na Inglaterra com Thomas Hill Green (1836-1882) e Edward Caird (1835-1908), seguidos por importante escola, em
seguida na Alemanha com um neokantismo representado por Otto Liebmann (1840-1912), Johannes
Volkelt (1848-1930) e pelas escolas de Marburgo e de Baden, que criaram
centros de ensino organizados. Na França, Charles
Renouvier (1815-1903) ensina um neocriticismo; outro Importante
idealista francês é Octave Hamelin (1856-1907).
Mas esta orientação não consegue impor-se absolutamente de modo exclusivo, de
sorte que até ao final do século continuam sobrevivendo, a par dela, poderosas
tendências positivistas e evolucionistas.
Polo que, podemos
assinalar três períodos no desenvolvimento do pensamento europeu no
decurso do século XIX: idealismo, cientificismo evolucionista, coexistência
de ambas as correntes. A despeito de todos os antagonismos, estas duas
correntes apresentam em comum certos traços essenciais: a tendência
sistemática, um racionalismo sublinhado relativamente ao mundo empírico, a
recusa a penetrar no domínio da realidade, enfim a tendência monista que
pretende fundir o ser pessoal humano no absoluto ou na evolução universal.
Racionalismo, fenomenismo, evolucionismo, antipersonalismo monista e a
edificação de grandes sistemas conferem, em larga escala, sua fisionomia ao
século XIX.
E. Correntes
secundárias. Contudo, o idealismo e o evolucionismo positivista não são as únicas correntes que dominam o
pensamento da época. Paralelamente a elas se desenvolvem duas outras
tendências, menos importantes e aparentemente sem grande influência, mas que,
não obstante, representam potentes realidades: o irracionalismo e a metafísica.
O irracionalismo,
oriundo do romantismo, ergue-se a princípio contra o racionalismo
hegeliano. Seu porta-voz é Arthur
Schopenhauer (1788-1860), para quem o Absoluto não é a razão, mas uma
vontade cega e irracional. A par dele, o dinamarquês
Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855),
pensador religioso, leva ainda mais longe o ataque contra o racionalismo.
Anteriormente, na França, uma tendência análoga, voluntarista e irracionalista,
embora menos pronunciada, havia tido seu representante em François Pierre Maine de Biran (1766-1824).
Mais
tarde, o irracionalismo defronta-se com o racionalismo procedente das ciências
particulares; apóia-se então na teoria da evolução de Darwin. Seu mensageiro profético é Friedrich Nietzsche (1844-1900), que proclama a preeminência
dos impulsos vitais sobre a razão e preconiza a revisão de todos as valores e o
culto do super-homem. No evolucionismo origina-se igualmente a filosofia de Wilhelm Dilthey (1833–1912). Dilthey ensina a primazia da história e
a relatividade de toda filosofia. O relativismo, numa forma original,
encontrou ainda um representante na pessoa de GEORG Simmel (1858-1918).
A
outra corrente secundária do pensa monto filosófico do século XIX é constituída
pela metafísica. Os filósofos metafísicos pretendera que podem ter
acesso a ura mundo situado para além
dos fenômenos, e não raro é lícito descortinar neles tendências para um
pluralismo metafísico, unidas a uma compreensão mais ampla dos problemas do
homem concreto. Não se constituem escolas de importância e os pensadores
permanecem mais ou menos isolados. Citemos, na Alemanha, Johann Friedrich Herbart (1776-1841), Gustav Theodor
Fechner (1801-1887), Rudolf Hermann Lotze (1817–1881)
e Edüard von Harttmann (1842-1906).
Mais tarde, surgem, com certas variantes, Wilhelm
Wundt (1832-1920), Rudolf Eucken (1846-1926)
e Friedrich Paulsen (1846-1908).
Na França,
os adeptos da metafísica são Victor cousin
(1792-1867) e seus discípulos (Paul
Janet, 1823-1899). Com os sistemas de Felix
Ravaisson-Molien (1813-1900) e Jules
Lachelier (1832-1918 — para citar somente os mais importantes — a
metafísica assume configuração mais sólida. Pelo contrário, nenhuma tendência
de relevo se manifesta neste domínio na Inglaterra.
Tanto os
pensadores irracionalistas quanto os metafísicos desta época, bem como os
filósofos anteriormente mencionados, se atem à posição de Kant. O irracionalismo procede, em
parte diretamente da doutrina kantiana, segundo a qual os problemas metafísicos
não são acessíveis à razão e, por outra parte, sua oposição ao racionalismo
kantiano é que lhe serve de guia. Tampouco faltam influências de um empirismo mecanicista
de cunho darwiniano, especialmente em Nietzsche. O mesmo se diga, apesar das
aparências em contrário, dos metafísicos desta época. Todos compartilham na
convicção de um dualismo do mundo fenomênico e da coisa em si, além de que a
maior parte deles se filia também ao mecanicismo. Seja como for, importa
sublinhar que estas duas correntes, de importância afinal assaz relativa, não
resistem a um confronto com o idealismo e o empirismo, que representam, no
campo da filosofia européia do século XIX, as duas forças
predominantes.