Continued from: ORIGENS DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA - A filosofia contemporânea Ocidental - J. M Bochenski
2. A CRISE
A.
Mudança de situação. O final do
século XIX e o início do século XX encontram-se
sob o signo de profunda crise filosófica, cujos sintomas são a aparição de
movimentos contrários às duas posições mais potentes do pensamento moderno, que
são o mecanicismo materialista e o subjetivismo. Esta mudança de situação ultrapassa as fronteiras do campo da
filosofia; podemos até compará-la com a profunda crise com que, na época do
Renascimento, se iniciou toda a nossa cultura moderna. É sumamente difícil
traçar um quadro completo de suas múltiplas e intrincadas causas;
todavia, os fatos síio claros: a Europa nessa época é sujeita a uma profunda
remodelação do pensamento social, tem de enfrentar graves perturbações
econômicas, inovações radicais no domínio da arte e notável revolução em
matéria de religião. Aliás, todos concordam em considerar o início do século XX, não
já como o final de um breve período, senão como a liquidação de toda uma época
histórica muito mais ampla ora conclusa, de sorte que o nosso tempo não
pertence mais à chamada era moderna. Também tem sido defendido, e acaso não sem
motivo, que esta recente revolução é mais radical do que a que se produziu no
Renascimento. Em todo caso, não resta dúvida que se manifesta em todos os
setores da vida uma atitude fundamental diferente, e as lutas e guerras, de que
temos sido vítimas, têm feito todo o possível para acelerar o processo de
decomposição próprio da crise.
Tão profunda transformação da vida espiritual
corresponde evidentemente a mudanças no domínio social e, ao menos em parte, é
conseqüência necessária destas. Contudo, no estado atual da ciência não é
possível perscrutar em seus pormenores estas conexões. Limitaremo-nos,
portanto, a expor as causas espirituais diretas e os fatores desta
transformação. Podemos classificá-los em três grupos. O primeiro compreende
a crise da física e da matemática, que provocou, por um lado, um
grande desenvolvimento do pensamento analítico e, por outro lado, o
desmoronamento de certas posições espirituais típicas do século XIX. O
segundo grupo consta de dois métodos que começam a desenvolver-se neste
momento: o método matemático-lógico e o fenomenológico. Enfim, o terceiro
grupo é constituído por certas mundividências ou concepções do mundo,
entre as quais se salientam o irracionalismo e a nova metafísica realista.
Estes diversos movimentos espirituais encontram-se muitas vezes mutuamente entrelaçados.
Assim, por exemplo, a lógica matemática está intimamente relacionada com a
crise da matemática, ao passo que a crise da física reforça o irracionalismo e,
por último, não raro são os mesmos pensadores que fundam o método
fenomenológico e o novo realismo. Além disso, verificamos que os precursores
da fenomenologia e os da lógica matemática se influenciam reciprocamente.
Apesar
destas conexões, o aparecimento simultâneo de movimentos tão diferentes por sua
determinação histórica e pelo fim que têm em vista representa um acontecimento
sem precedentes na história do pensamento humano. De fato, tais movimentos
operam uma transformação completa da filosofia.
B. A crise da física NEWTONIANA.
A maioria dos filósofos do século XIX considerava
a física de Newton como a imagem
absolutamente verdadeira do mundo. Viam nela o transunto claro da realidade,
na qual tudo se reduz às posições e impulsos de átomos materiais (mecanicismo).
Supondo que pudéssemos conhecer as posições e os impulsos das partículas
materiais num dado momento, acreditava-se que poderíamos deduzir daí pelo
cálculo e segundo leis mecânicas toda a evolução anterior e futura do mundo (determinismo
de Laplace). Os princípios e
até as simples teorias da física eram tidos por absolutamente verdadeiros (absolutismo).
O "dado" mais simples parecia ser a matéria, e a este dado
simplicíssimo devia ser tudo logicamente reduzido (materialismo). Além
disso, a física, a mais antiga das ciências da natureza, encontrara sua
confirmação na técnica, e todavia não haviam dado sinais de vida outros ramos
do saber, principalmente a história, que deviam florescer no decurso do século XIX.
Em fins do
século XIX e começos do século XX, principiou
a. ser posto em dúvida o valor desta concepção física do universo. Não é exato
crer, como sucede a cada passo, que a nova física não conhece mais a matéria,
que rejeita em bloco o determinismo, que, via de regra, não admite proposições
certas, etc, contudo é certo que muitas coisas, que até agora se acreditava
serem absolutamente seguras, se tornaram problemáticas. Assim, por exemplo,
não resta dúvida, hoje em dia, que a matéria, longe de ser simples, é, ao
invés, extremamente complexa, e que seu estudo científico oferece ainda graves
dificuldades. Além disso, parece ser impossível determinar exatamente, a um
tempo, a posição e o impulso de uma partícula material, e, em todo caso, o
determinismo à maneira de Laplace é
indefensável. Se o determinismo em geral já caducou, ou se pode continuar
sobrevivendo noutra forma qualquer, é questão que todavia prossegue sendo posta
pelos físicos mais eminentes. Eis como se expressava o famoso astrofísico Eddington: "Sou indeterminista da
mesma maneira que sou
anti-a-lua-é-feita-de-queijo-fresco…; duas hipóteses são estas que não temos
nenhuma razão de admitir".
Também o mecanicismo
admitiu pelo menos novas formas. Whitehead,
um dos melhores conhecedores da questão, observa atiladamente que a
física antiga figurava o mundo como um prado onde cavalos galopavam em plena
liberdade, ao passo que a física nova o representa como um lugar atravessado
por uma rede ferroviária na qual os trens percorrem uma via de antemão traçada,
e que portanto o novo "mecanicismo" se aproxima muito de uma
concepção orgânica da realidade. Enfim, a elaboração da teoria da relatividade
e da teoria quântica, bem como outras descobertas da física, puseram em dúvida
toda uma série de resultados considerados como absolutamente verdadeiros.
Estas
transformações operadas na física repercutiram na filosofia de duas maneiras.
Do fato de os físicos não chegarem mais a acordo entre si sobre se e em que
medida importa manter intactos o mecanicismo e o determinismo e de não se
pouparem a esforços para captar’ cientificamente a matéria, que de novo mais e
mais se complica, e de terem de admitir a relatividade de suas teorias, resulta
que o mecanicismo e o determinismo não podem continuar apelando para a
autoridade da física e que a explicação do ser pela matéria se torna sumamente
problemática (1).
(1) Vários
cientistas eminentes tiraram destes fatos conclusões ainda mais avançadas, uma
vez que, tendo em vista os resultados obtidos pela física e biologia recentes,
julgam-se obrigados a adotar o espiritualismo, o idealismo e até o teísmo.
Citemos tão-somente os nomes bem conhecidos de Sir Arthur Stanley Eddington (1882-1944), Sir James HOPWOOD Jeans (1877-1946), Max
Planck (1858-1947) entre os físicos e os astrônomos, e de Sir Arthur Thomson (1801-1933) e John Soott Haldane (1860-1936) entre os
biólogos. Contudo, embora seja possível encontrar em suas doutrinas muitos
aspectos justos e interessantes, principalmente quando fazem a crítica do
materialismo, suas conceituações construtivas são, as mais das vezes, tão
caracteristicamente eivadas de ‘diletantismo que os filósofos especializados
lhes atribuem muito pouco crédito. Não resta porém dúvida que tais cientistas
filosofantes exerceram profunda influência sobre as multidões. Do ponto de
vista filosófico, assume grande importância o fato de tais teorias terem podido
ser emitidas por eles, pois íbro mostra
suficientemente quão distantes hoje estamos da mentalidade do século XIX.
Mais
importante é todavia a outra repercussão da crise. Pôs ela em evidência não ser
possível que a filosofia aceite, sem análise prévia, conceitos e princípios
físicos, nem que considere como válidas a priori, desde seu ponto de
vista, as conclusões da física. Sem dúvida, Descartes e Kant foram,
neste particular, vítimas de um equívoco ingênuo. Por outro lado, por meio
destas descobertas a crise da física suscitou o chamado pensamento analítico,
que devia ser algo típico na filosofia do século XX.
C. A crítica da ciência. A situação acima
descrita não é só o resultado de um mero desenvolvimento das ciências.
Concorreram também para criá-la diversos pensadores que, muito antes de a crise
se desencadear, haviam analisado e em certo sentido posto em dúvida os métodos
das ciências da natureza. Decisiva nesta crítica da ciência foi a interferência
de filósofos franceses, como émile
Boutroux (1845-1921, De la contingence des lois de la nature, 1874;
De l’idée de loi naturelle, 1894), Pierre
Duhem (1861-1916, primeira obra de importância: Le mixte et Ia
combinaison chimique, 1902) e Henri
Poincaré (1853-1912, La science et l’hypothèse, 1902).
Paralelamente
aos esforços desta escola surgem os trabalhos do empiriocriticismo, o qual
arrancando de uma posição positivista chega a conclusões ainda mais radicais.
RIchard Avenarius (1843-1896) publicou entre 1888 e 1890 sua Kritik
der reinen Erfahrung (Crítica da experiência pura) e Ernst Mach (1838-1916) trouxe a público
em 1900 sua obra principal, na qual faz uma crítica extremamente penetrante do
valor absoluto da ciência.
A
crítica da ciência defrontou-se tanto com o valor das idéias
quanto com as teorias científicas. Análises demoradas e Investigações
históricas mostraram que umas e outras são em grande parte de natureza
subjetiva. O sábio não se contenta com dissecar arbitrariamente a realidade,
senão que opera constantemente com conceitos que despontam em sua mente. No que
tange às grandes teorias, em derradeira instância elas nada mais são do que
instrumentos cômodos para ordenar a experiência: "nem verdadeiras nem
falsas, mas úteis" (Poincaré). Note-se
que nenhum destes críticos franceses, nem sequer Poincaré, era convencionalista (*). O que eles queriam era a
prova de a ciência’ se encontrar muito longe do ideal de infalibilidade que no
século XIX comumente lhe era atribuída. Os empiriocriticistas
alemães foram ainda mais além e professaram um relativismo muito chegado ao
ceticismo.
(1)
O "convencionalismo" é a teoria segundo a qual os conceitos
científicos são fruto de uma
"convenção", e, por conseguinte, são "convencionais".
Em
suma, a ciência perdeu aos olhos dos filósofos grande parte de sua autoridade,
e isso contribuiu para acelerar o processo de decomposição aberto pela crise
Interna da física. De ora avante não mais seria possível defender a concepção
newtoniana do universo, a qual constituía a pressuposição fundamental do
kantismo e de todo o pensamento europeu até então.
D. A CRISE DA MATEMÁTICA E A LÓGICA
MATEMÁTICA. O desenvolvimento da matemática provocou igualmente, em fins
do século XIX, uma crise que não devia ser menos profunda nem menos
prenhe de conseqüências do que a -da física. Entre as muitas descobertas recentemente
levadas a efeito no domínio da matemática, repercutiram de modo especial na
filosofia a da geometria não-euclidiana e a teoria dos conjuntos de G. Cantor (1845-1918). Estas duas
descobertas mostraram que muitas coisas, que anteriormente eram sem hesitação
aceites como simples pressuposições da matemática, não comportam, de fato,
nenhuma certeza, e chamaram a j atenção para a análise exata de noções
aparentemente simples bem como para a estrutura axiomática dos sistemas. No
domínio da teoria dos conjuntos descobriram-se — precisamente no final
do século XIX — os chamados paradoxos, ou seja, contradições
deduzidas de postulados aparentemente simples e evidentes, mediante
demonstrações corretas. Tudo isto parece ter abalado os fundamentos da
matemática.
Mantém
íntima relação com esta crise o revivescimento da lógica formal, e precisamente
na forma da chamada logística, lógica simbólica ou matemática. Como já
dissemos, a lógica formal havia sido muito descurada pela filosofia moderna, ao
ponto de naquela época ter decaído num estado verdadeiramente
"bárbaro". Entre os filósofos eminentes daquele período, só Leibniz foi um lógico notável; os
restantes muitas vezes nem sequer conheciam os elementos da lógica formal — Descartes e Kant são disso exemplos clássicos. Mas, em 1847, apareceram,
independentemente uma da outra, as obras de dois matemáticos ingleses, Augustus de Morgan (1806-1878) e Georgbs Boole (1815-1864), que passam
por ser as primeiras publicações da lógica matemática contemporânea, Estes
trabalhos foram continuados por Ernst
Schröder (1841–1902), Giuseppe
Peano (1858-1932) e, principalmente, Gottlob Frege (1848-1925),
pensador e lógico emérito. Não obstante, a lógica matemática continuou sendo
pouco mais que desconhecida dos filósofos até princípios do século XX. Só
depois que Bertrand Russell se
encontrou com Peano em 1900 e
publicou, em 1903, seus Principies of Mathematics, é que pelo menos a
filosofia anglo-saxônica se interessou por este gênero de investigações. Em
1910-1913, apareceu a obra monumental Principia Mathematica de Whitehead e Russell, a qual apressou de maneira significativa o
desenvolvimento da nova disciplina.
A lógica
matemática exerceu dupla influência na filosofia. Em primeiro lugar, mostrou
ser uma espécie de instrumento muito precioso para a análise dos conceitos e da
demonstração, instrumento capaz de ser aplicado, segundo a opinião de seus
representantes, até a domínios que não são matematizáveis, uma vez que a
chamada lógica "matemática" só é matemática "por sua
origem", mas, na realidade, opera com conceitos que não são matemáticos,
mas inteiramente gerais. Em seguida, as investigações lógico-matemáticas
reconduziram ao plano da atualidade muitos velhos problemas da filosofia, como,
por exemplo, os problemas do terceiro excluso, da evidência dos axiomas, da
gramática filosófica (hoje denominada "semiótica") e, acima de tudo,
o problema dos universais.
E.
O método FENOMENOLÓGICO. Partindo
de teses filosóficas muito diferentes e tendo em mira intuitos diversos, um
segundo movimento contribuiu para romper com o século XIX e para
construir a filosofia contemporânea: a fenomenologia. Em rigor de expressão, o
termo "fenomenologia" convém ao método e à doutrina de Edmund Husserl, mas aplica-se igualmente
a todo um grupo de pensadores que representam tendência análoga. O fundador
deste movimento é Feanz Brentano (1838-1917).
Antigo frade dominicano, abandonou a Ordem e, mais tarde, a Igreja, mas
continuou sempre influenciado, em mais de um aspecto;- pelo pensamento aristotélico-tomista,
como é fácil verificar pelo seu objetivismo, alto apreço da análise
pormenorizada e lógica. Numerosos foram seus discípulos, dos quais três
assumiram relevante importância : Kazimierz
Twardowski, Alois Meinong e Edmund
Husserl. Kazimierz Twardowski (1866-1938), embora não sendo lógico, foi
o fundador da escola lógica polonesa, destinada a desempenhar importante papel
no desenvolvimento da lógica matemática. Alois
Meinong (1853-1921) fundou a chamada "teoria do objeto" e uma
escola, pequena mas muito influente.
O mais eminente dos discípulos
de Brentano, Edmund Husserl (1859-1938)
foi quem elaborou o método fenomenológico propriamente dito. Este método, que
consiste principalmente na análise da essência do dado, do fenômeno, passou a
ser, sobretudo após a segunda guerra mundial, o método filosófico mais
espalhado, a par do método lógico-matemático. A diferença capital entre a
fenomenologia e a lógica matemática consiste em que a primeira renuncia
completamente à dedução, ocupa-se pouco com a linguagem (malgrado o exemplo do
próprio Husserl) e não analisa os
fatos empíricos mas só as essências. Vale a pena relembrar que a obra capital
de Meinong, Ueber die
Annahmen, apareceu em 1902, ao passo que as Logische Untersuchungen de
Husserl, uma das obras mais
influentes da primeira metade do século, vieram a lume em 1900-1901.
Bastante
aparentado ao método fenomenológico é o método chamado "análise" de
G. E. Moore (1873- ), que em Russell se converteu na análise lógico-matemática.
Em Moore manteve sempre caráter
distinto. Em sua obra Principia Ethica, vinda a lume em 1903, Moore aproxima-se muito do método de Meinong e parece ter sido influenciado
por ele até certo ponto. A influência de Meinong
fêz-se sentir também sob vários respeitos na obra de Russell, ao passo que a lógica
matemática posterior recebeu muitas sugestões de Husserl.
F. O irracionalismo vitalista. Tanto a
lógica matemática quanto a fenomenologia são, antes de mais nada, métodos e
não doutrinas dotadas de conteúdo. Ambas brotaram de uma reflexão sobre os
fundamentos das ciências e procuram de novo estabelecê-los mediante um método
racional. Neste particular ambas as direções são pluralistas e opõem-se à tendência
para construir sistemas. Por suas análises puseram a descoberto e desfizeram
muitas grosseiras simplificações do século XIX. Além disso,
ambas as direções — pelo menos em seus inícios — são realistas. Em Moore como em Husserl manifesta-se certa simpatia para com o platonismo,
simpatia de uma nova espécie. Convém todavia reter que nem a lógica matemática
nem a fenomenologia — pelo menos em seus princípios, nas Logische
Untersuchungen e nos Principia Mathematica — representam doutrinas
filosóficas propriamente ditas.
Pela
mesma altura, aparecem dois movimentos filosóficos novos em seu conteúdo: o
lrracionalismo vitalista e a nova metafísica realista. Uma das conseqüências da
crise espiritual daquela época foi a prodigiosa extensão das tendências
irracionalistas, que caracterizam o final do século XIX e o dealbar
do século XX. Kant havia negado que o conhecimento racional pudesse
alcançar um mundo situado além da experiência, permanecendo todavia, segundo ele,
o mundo empírico sujeito a leis racionais e calculáveis. A critica da
ciência e a crise da física parece haverem demonstrado claramente que tal
não acontece, e com isso generalizou-se a dúvida kantiana acerca do valor da
razão. Durante o século XIX, a razão fora identificada com a razão mecanicista das
ciências: a crise que esta sofreu arrastou consigo uma crise do racionalismo.
Contudo
não é esta a única fonte das novas tendências. Embora paradoxalmente, também o
empirismo concorreu de modo notável para o desenvolvimento das mesmas, quando
sua concepção mecanicista do mundo’ se transferiu para o domínio da vida e
tomou então a forma do darwinismo. Coisa .estranha neste início
de século, a doutrina, segundo a qual todo ser superior se explica pelo
inferior, foi aplicada juntamente com seu princípio fundamental à psicologia
e à sociologia. Em conseqüência, toda a vida consciente, incluindo
a razão, tinha que ser reduzida a elementos inferiores e subordinada às leis
da evolução dos seres vivos: nada mais de estável, nada de imutável, nenhum
princípio eterno permanecia de pé, unicamente um ímpeto vital ao serviço da
evolução da vida.
Enfim,
as mesmas causas que, no princípio do século XIX, provocaram
o aparecimento do romantismo, agora reforçadas pela influência da tradição,
voltaram a desempenhar seu papel: a imagem monista e determinista do mundo,
traçada pela ciência antes de 1900 era tão provocante que suscitou o protesto
de toda uma série de pensadores, que se sentiram chamados a salvar os
direitos da vida, da pessoa humana e os valores espirituais.
liste
protesto ergueu-se de maneira imprevista e vigorosa, principalmente em dois
filósofos, James e Bergson, que se colocaram a frente
deste movimento filosófico. Vivia ainda SPENCER, o mais típico representante do
empirismo mecanicista, quando apareceram quase ao mesmo tempo Les donnés
immédiates de la conscience (1889) e os Principies of Psychology (1890).
pouco depois seguidos de Matière et Mémoire (1896) e Will to believe
(Vontade de crer) (1897). Os dois pensadores exerceram até nossos dias tal
influência que nos sentimos obrigados a ocupar-nos demoradamente deles (nos
capítulos 11 e 12). Bastará observar aqui que tanto um como outro são
irracionalistas declarados e que no centro de sua filosofia situam a idéia da
vida. A eles se deve que o irracionalismo, que durante o século XIX fora
somente uma corrente de segunda categoria, tenha ressurgido a ponto de se
tornar uma das posições diretrizes do pensamento.
G. Revivescência da metafísica realista. Paralelamente
àquela cristaliza-se outra corrente e, decerto, mais profunda: voltam de novo o
realismo e a metafísica, os quais pela primeira vez quebram o quadro dos
princípios kantianos que até ent5o dominavam toda a filosofia. £ difícil pôr a
descoberto suas raízes e causas profundas, porque as bases de uma nova
metafísica são, na verdade, complexas e numerosas. Podemos asseverar em termos
muito gerais que, por alturas de 1900, começam a esgotar-se os recursos do
kantisimo: já não bastam nem satisfazem, e o pensamento procura outras
soluções. Primeiramente manifesta-se uma tendência para um realismo
"crítico", que todavia não .renuncia à posição kantiana. É
professado, por exemplo, por Alois Riehl
(1844-3924). Mais tarde, a escola de Würzburg, fundada por Oswald Külpe (1862-1915), seguido por
brilhante plêiade de pensadores, dá novo e enérgico arranque na mesma direção.
Mas o autêntico movimento renovador do realismo, do mesmo modo que o método
fenomenológico, procede de Brentano e
de seus discípulos, principalmente de Meinong
e Husserl. é certo que Husserl nunca chegou ao realismo e
menos ainda à filosofia do ser; mas o fato de ele haver desviado a atenção dos
problemas estéreis da teoria do conhecimento para a análise do dado foi de
suma importância para o novo realismo e para a metafísica; a influência de Meinong foi igualmente muito apreciável
neste sentido.
Fora
desta linha, a metafísica realista ganha terreno em muitos outros
domínios, sob a pressão de diversos fatores espirituais. O tomismo, que
experimentou um renascimento por alturas de 1880 (encíclica Aeterni Patris, 1879),
organizou-se numa grande escola que cedo havia de converter-se numa das mais
poderosas: em 1893 foi fundada La Revue Thomiste, órgão da Universidade de Friburgo na Suíça, e em 1894 a Revue Néoscolastique de Philosophie, em Lovaina. Professa ele o
realismo imediato e a metafísica tradicional. Mas não se encontra isolado: em
1903 publica Moore, na
Inglaterra, seu Célebre artigo Refutation of idealism, e propugna, em
acordo com Russell, uma filosofia
aparentada ao platonismo. Em França, Boutroux
e Bergson confessam-se,
por outros motivos, partidários do realismo. Na Alemanha, é sobretudo a
doutrina de Hans Driesch (1867-1941)
que por seu caráter aristotélico chama a atenção.
Esta
corrente neo-realista não desfruta da popularidade do irracionalismo, mas nem
por isso é menos decisiva: a metafísica, movimento secundário e indistinto no
século XIX, converte-se numa das doutrinas mais influentes da
época.
H. Retorno à especulação. Pluralismo. Sob
a influência dominante do positivismo, a filosofia acalmara muito em fins do
século XIX. Talvez a maioria dos filósofos receasse fazer-se
notada por algo original, e o resultado foi que na maior parte das
universidades se passou a ensinar um certo historicismo, simples inventário das
doutrinas do passado. Um dos traços mais significativos do início do século XX é
o retorno à. especulação sistemática, que se manifesta de igual modo nas
escolas irracionalistas e entre os metafísicos.
Mas a
característica mais profunda e decisiva é, sem dúvida, o retorno ao pluralismo
personalista. Se o século XIX em quase todas as suas manifestações se orienta para o
monisrno, quase todos os movimentos de fim de século são, pelo contrário,
pluralistas, isto é, acentuam a diversidade dos graus do ser e uma pluralidade
de entes autônomos. Este pluralismo encontra sua mais radical expressão em James, o qual chega a confessar
simpatia para com o politeísmo; manifesta-se porém mais ou menos por toda a
parte, entre os fenomenólogos, os neo-realistas ingleses, os tomistas. A pessoa
humana recupera seus antigos direitos e cada vez mais se vai convertendo em
centro do interesse filosófico. Com isso, os grandes problemas do espírito
começam a apaixonar verdadeiramente o pensamento. Se o século XIX foi
uma época predominantemente monista e materialista, a crise de 1900 anuncia o
predomínio de um personalismo espiritualista fundamentado em amplíssimas bases.
Certamente,
por alturas de 1900 estas idéias ainda estão longe de ser geralmente
aceitas. O primeiro quartel do século assiste até a um retorno passageiro
das velhas tendências. Contudo as idéias novas não recuam; pelo contrário vão
atuando e, após a primeira guerra mundial, impor-se-ão à maioria dos pensadores
europeus.