Países-Baixos, Espanha, Portugal no século XVI – História Universal de Césare Cantu

História Universal de Césare Cantu

CAPÍTULO XXII

Países-Baixos, Espanha, Portugal

Como Fernando, o Católico, Carlos V tinha procurado na conquista da Itália um meio de dominar sôbre a Europa, êle tinha por isso dado importância às armas da Espanha, e tinha aí sufocado a liberdade.

Separada desde então do império, a Espanha procura Conservar essa supremacia, não se apoiando sobre forças estrangeiras, mas sobre a sua situação e sobre o seu próprio gênio. Porém Filipe, cujo pai debalde procurara granjear a afeição dos alemães e dos espanhóis, não obteve mesmo a de seus compatriotas. Longe de ter o gênio cosmopolita de Carlos, êle se mostrou todo castelhano, não falou senão a sua língua, não quis senão a religião e a constituição espanhola. Herdeiro de metade do mundo, marchou de prosperidade em prosperidade durante quarenta anos; teve conselheiros de uma habilidade admirável, capitães de gênio, e de valor a toda prova; a sua infantaria foi a melhor e sua marinha a mais poderosa que houve na Europa. Em toda a parte bateu os revoltosos, conquistou Portugal e ganhou as duas Insignes vitórias de Lepanto sobre os turcos e de São (Quintino sobre os franceses. Suas imensas colônias lhe fizeram haver tesouros inexauríveis. A literatura nacional teve durante o seu reinado, o seu século de ouro. É contudo nele que começam a decadência da Áustria e a deplorável ruína da Espanha.

Êle não pensava em constituir uma monarquia universal, mas antes em lançar a desordem nos reinos que em conquistá-los. Sendo sua intenção tornar-se absoluto em seus Estados e fora deles, menos por meio da guerra do que pelas maquinações da política, e reconduzir a Europa ao catolicismo pela violência, êle aparece nas histórias do tempo como o terror de toda liberdade, o cúmplice de todas as tentativas de despotismo. Êle espalhou pela Alemanha, França e Inglaterra os milhões adquiridos à custa da efusão do sangue americano, para comprar nesses países outras torrentes de sangue cristão. Julgava forte a sua vontade porque era obstinada; e tendo-se posto ao abrigo dos remorsos pela devoção, imaginava o dever a seu modo. A independência religiosa era a seus olhos um crime de lesa-majestade, pelo que a sua principal aliada foi a Inquisição, cujos rigores pareciam justificados ou desculpados pelos males que a heresia tinha introduzido na Alemanha e na França. Assim, em um ato de fé, êle respondeu a um dos condenados que lhe lançava em rosto de tolerar um suplício tão bárbaro: Fá-lo-ia sofrer a meu filho se fosse herege.

Porém o seu zelo em introduzir em toda a parte a Inquisição produziu a revolta dos Países-Baixos, o acontecimento mais importante do seu reinado. O nome de Holanda (Hol-land, pais afundado) indica a natureza desta região, formada da planície que desce para o mar da Alemanha, e se abaixa em vários sítios inferior mesmo no nível do mar. O homem ali está, portanto, destinado a lutar constantemente contra a natureza, dirigindo as águas por uma infinidade de aberturas, para fecundar o solo criado sobre as pedrinhas das praias, e opondo diques poderosos ao oceano, que, nas ocasiões da calmaria, balanceia suas vagas mais alto que os telhados dos industriosos habi tantes. Eles estão ali como em uma cidade sitiada, tendo as suas vedetas atentas, prontas a dar o sinal de fechar as saídas e fugir, se o terrível elemento chega a Fazer irrupção por qualquer ponto. Não há ano algum em que êle não abra passagem por um ou por outro lado; então a desolação se espalha por todo o campo, onde retumbam o grito de alarme e o sino de rebate. E já quem mais se apressa leva os objetos da sua afeição a carregá-los em barcas, e a fugir, vogando por cima das casas e dos jardins onde êle esperara gozar na sua companhia da felicidade. Todos os homens sãos e dirigem ao ponto em que a ruptura se operou, para se oporem à inundação, trabalhando de dia ao ardor do Sol, de noite à claridade de mil faróis, e apressando-se, por meio de novos diques, a fazer retroceder o oceano a seus antigos limites, para recomeçar a lhe disputar palmo a palmo essas glebas pantanosas que êle ameaça constantemente com suas ondas.

Diques imensos construídos de pedras e de troncos de árvores, em um país que não tem florestas nem pedreiras, atravessam o território, onde eles servem de estradas. Por outro lado, os medões de areia invadem os terrenos cultivados; porém o homem os detém opondo-lhes plantações. Os nomes termi nados em dyck e em dam, tão numerosos nestas para-gens, indicam os lugares que ali têm saído das águas; e Luis Guicciardini diz que até 1048 se estipulava a anulação dos contratos para o caso de a propriedade ser levada pelo mar no espaço de dez anos.

Acrescentou-se que três ou quatro vezes em cada século esta inundação se renova, deixando lagos onde existiam jardins e ilhas onde flutuavam navios. Conta-se desde 516 até 1273 quarenta e cinco submersões: a partir dessa época, as mais memoráveis são as de 1287, 1421, 1446, 1552, 1557, 1570, 1659, 1718, 1776, 1825. A de 1287 tragou oitenta mil homens; a de 18 de novembro de 1421 as vagas derramaram-se por uma vasta planície, e submergiram setenta e duas aldeias com cem mil habitantes. Não resta mais do que algumas ilhotas no lugar onde se erguia a cidade de Dordrecht; em 1570 contaram-se cem mil pessoas afogadas; mas desde então os holandeses triunfaram do seu inimigo. Em nossos dias contudo êle pareceu querer revoltar-se, e retomar o que eles lhe têm tirado: em 1776, o mar abriu uma passagem de mais de cem pés de largura na Frisa, e empregaram-se todas as velas dos navios destinados à pesca da baleia para fechar as fugas dos diques. A 3 e 4 de fevereiro de 1825 sobrevieram novos desastres: mais de trinta povoações da Gueldra e da Frisa foram cobertas pelas águas, com quatro ou cinco mil jeiras de terras. Cinqüenta e duas mil pessoas, diz-se, então perderam a vida.

A freqüência dos desastres fêz nascer entre os holandeses o espírito de associação e de socorro mútuo; por isso os cultivadores, reduzidos à miséria pelas inundações, acham imediatamente generosos socorros.

Excessivamente sóbrios, moderados, prezando o trabalho, instruídos e por conseguinte menos inclinados ao crime, inimigos do luxo e de toda profusão inútil, os holandeses gostam do asseio, das coleções de flores e de coisas raras; eles sabem sacrificar o presente ao futuro, e é o que lhes faz empregar grossoscapitais em empresas cujos resultados se farão esperar muito tempo. O holandês contrai em meio das vicissitudes a que está exposto, essa obstinação que o distingue entre os povos da Europa moderna, a habilidade para obter, a perseverança para conservar; é assim que êle tem conseguido fazer do mar, objeto constante de terror para ele, um meio de poderio, e dominar sobre os mais longíquos territórios. Circunstâncias particulares concorreram para a sua prosperidade. Em 1198 Houlloz descobriu o carvão fóssil que o solo ocultava. O pescador flamengo João Heukeltz mereceu uma estátua (1449) por ter achado em 1416 o meio de salgar e de embarrilar o arenque, essa riqueza do país, e posto assim seus compatriotas, nas circunstâncias de abastecer dele o mundo inteiro. Em 1230 uma revolução natural desmembrou a Holanda Setentrional da Ost-Frisa, dantes apenas separada dela por um lago, através do qual passava um braço do Reno. As águas do rio, tendo sido repelidas pelo mar do Norte, submergiram todas as terras situadas ao Norte do lago, que se converteu no golfo chamado hoje Zuyderzée, e ao qual Amster dã deveu a sua prosperidade. As agitações políticas não foram menos vivas nesta região do que os movimentos da natureza. Os governadores do país, colocados pelos sucessores de Carlos Magno eram independentes, com os nomes de condes de Holanda e de Flandres, de duques de Brabante e de Gueldra, sem contar o bispado de Utrecht e a Frisa, que formavam quase um reino. Uma grande parte dos Países-Baixos pertencia ao antigo reino da Lorena, de onde vem ter eles estado reunidos à Alemanha até o momento em que os duques de Borgonha os separaram (1363). Filipe, o Atrevido, filho do rei de França, João I, tendo tido em apanágio o ducado de Borgonha, esposou Margarida, filha de Luís II, último conde de Flandres; e herdou em conseqüência esta província como o Artois, o Franco-Condado, Nevers, Rethel, Malines e Antuérpia (1428); Filipe, o Bom, seu neto, comprou o condado de Narnur (1433); herdou os ducados de Brabante e de Limburgo; obteve de Jacquelina de Baviera, por tratados, os condados de Hainaut, de Holanda, de Zelândia e de Frisa (1443); ocupou o Luxemburgo em conseqüência de uma convenção feita com a princesa Isabel, sobrinha do imperador Sigismundo (1473); e Carlos, o Temerário, juntou-lhe depois o condado de Zutphen.

No princípio, a Holanda tinha sido eminentemente cavalheiresca, e tinha dado a Jerusalém os seus primeiros reis, a Constantinopla o seu primeiro imperador na quarta Cruzada. Porém depois o feudalismo sucumbiu a uma nobreza mercantil; e as cidades, cujos privilégios tinham aumentado com o enfraquecimento dos senhores, fizeram consistir a sua glória no comércio. Cento e cinqüenta navios mercantes entraram no porto da Écluse em um só dia do ano 1468; em Bruges existiam quinze companhias de comércio, independentemente das feitorias hanseáticas. Depois, quando, no tempo de Maximiliano da Áustria, um bloqueio de dez anos arruinou a Écluse, Antuérpia cresceu à sua custa, e passou a ser, em virtude do seu rio, onde podem ancorar os maiores navios, a cidade mais comercial da cristandade; duas feiras, que duravam sessenta dias cada uma, reuniam ali todos os anos grande número de mercadores. Quando as vias do comércio foram mudadas, os portugueses fizeram dela o mercado geral das drogas, que os italianos eram obrigados a lá ir comprar, ao mesmo tempo que os hanseáticos aí traziam os gêneros do Norte; isto foi causa de que a cidade encerrasse em breve cem mil habitantes, de que o seu porto rece-besse em cada dia perto de trezentos navios, de que em cada semana se visse ali chegarem dois mil carros da Alemanha, da França, da Lorena, e que em um mês ela fizesse mais negócios de câmbio do que Veneza em dois anos. Ao comércio juntaram-se as manufaturas de panos de linho, de rendas, de quinquilharias: pelo que país veio a ser dos mais ricos e dos mais povoados do mundo: certas cidades puderam armar até vinte mil homens e no décimo-quinto século contavam-se naque les países trezentas e cinqüenta e oito cidades, duzentas das quais atingidas por muralhas, e seis mil e trezentas aldeias com paróquias, enquanto que no tempo dos romanos não existia, nos mesmos sítios, mais do que umas doze povoações e alguns acampamentos. Os habitantes associavam ao luxo a temperança, e então, como hoje, o asseio, o desejo de tudo ver limpo c brilhante era para eles uma mania. Quando Filipe, o Belo, fêz a sua entrada em Bruges, sua mulher, maravilhada e talvez invejosa dos pomposos enfeites destes mercadores, exclamou: Como assim!? julgava ser eu só rainha, e encontro aqui centos dela. Margarida, mulher de Henrique IV, ficava admirada à vista do palácio do bispo Erard de la Mark, "tão bem dourado e com tantos mármores, que não se pode imaginar coisa mais deliciosa e magnífica".

É assim que os Países-Baixos adquiriram cons tantemente maior prosperidade, quando o casamento de Maria, filha de Carlos, o Temerário, com Maxi miliano, ganhou para a casa de Áustria onze provín-cias, a saber: os ducados de Brabante, de Limburgo, de Luxemburgo, os condados de Flandres, de Hainaut, de Namur, de Artois, da Holanda e de Zelândia, o marquesado de Antuérpia e o senhorio de Malines, Filipe, nascido deste casamento, e Carlos V, seu filho, juntaram-lhes Frisa e Utrecht com Over-Yssel, Gueldra com Zutphen, Groningue e Cambraia; Carlos V jun tou-lhes mais o Franco-Condado e formou de tudo um principado reunido ao império (1548), com o nome de círculo de Borgonha.

Conquanto estes países fossem governados por um stathoudev ou vigário, o laço que os unia era fraco, porque cada um tinha seus Estados a parte, e compostos de uma maneira diferente; porém as três ordens enviavam representantes aos Estados-gerais. Eles gozavam de vários privilégios, entre outros, o de nunca receberem tropas estrangeiras. Além disso, a pragmática de Carlos V estabeleceu (1549) que eles fossem indivisíveis, e os submeteu à proteção do império, assim como à obrigação de paz pública, não obstante deverem ficar soberanos e independentes da jurisdição do imperador e da câmara de Viena.

Durante a infância de Carlos, Maximiliano delegou (1530), para os governar, Margarida, sua filha viúva do duque de Sabóia, que lá residiu até a sua morte. Carlos conhecia bem a importância dos Países-Baixos, e ameaçava de meter Paris no seu Guantes (Gand). Porém estes povos eram zelosos de seus privilégios, e detestavam a gravidade arrogante dos espanhóis, pelo que o imperador debalde os convidou a participar de suas empresas, debalde veio dez vezes residir entre eles, e mesmo pareceu preferi-los à nobreza castelhana; ele sentiu cada vez mais a dificuldade de os reprimir, e de abafar as queixas levantadas por ônus extraordinários, que subiram, realmente a quarenta milhões de escudos de ouro.

Neste entretanto, as idéias dos inovadores introduziram-se no país com o comércio: Edgar, conde de Ost-Frisa, cedo ali fêz conhecer as obras de Lutero, já bem acolhidas por outros príncipes. Ao mesmo tempo a necessidade de aumentar a população fazia com que lá recebessem de boa vontade os protestantes Fugitivos dos outros países. Carlos assustou-se com as disposições, e longe de se prestar aqui à conivência de que usava na Alemanha, proibiu de ter em casa e de ler as obras dos heresiarcas, assim como de pregar sobre os textos bíblicos ou de os interpretar sem autorização; tudo sob pena de morte, com ordem expressa aos magistrados e aos funcionários de prestarem socorro aos inquisidores. Se devemos acreditar em diferentes narrações, êle mandou queimar, afogar, sepultar vivas, cinqüenta mil pessoas até o ano 1560; porém estamos inclinados a crer que há nisto exageração, apesar de se referirem as circunstâncias e de se citar nomes. Contudo, seus éditos, de extrema severidade, subsistem, e tiveram como de ordinário, por efeito multiplicar os prosélitos, e impeli-los a excessos. Os anabatistas e outros fanáticos excitaram desordens: ao mesmo tempo os negociantes alemães e ingleses fugiam assustados de Antuérpia e dos outros portos; mas afinal a princesa Maria, irmã de Carlos V, que êle tinha instituído regente, obteve que os estrangeiros e os negociantes não fossem sujeitos à justiça da Inquisição.

O nome de Carlos V foi portanto execrado nestas províncias, conquanto elas não pensassem em revoltar-se; porque êle tinha dado grande impulso ao seu comércio, contribuindo para destruir o poderio da liga hanseática, e abrindo-lhes todos os portos do mundo; tinha-as elevado à altura das primeiras monarquias da Europa, juntando-lhes a Borgonha; e tinha reprimido as discórdias civis, que desde tanto tempo punham em hostilidade continuada a Gueldra, a Frisa, Utrecht e Groningue. Além disso, como Carlos nascera na Flandres, a sua glória refletia sobre o país, e nós mesmos temos experimentado quantas apreensões a glória faz sofrer.

Quando Carlos V abdicou a favor de Filipe II (1556), Margarida, duquesa de Parma, irmã natural do novo rei, veio governar os Países-Baixos; mas foi sob a direção absoluta do ministro Antônio Perrenot de Granvelle (1555), bispo de Arras, homem de que o orgulho e o despotismo igualavam à capacidade.

Filipe confirmou as ordens rigorosas de seu pai contra os reformados: Carlos V tinha estabelecido em 1522 no Brabante um inquisidor secular, assistido de alguns eclesiásticos; Clemente VII delegou três para esse fim, e Paulo III os reduziu a dois. Porém eles não eram nem estrangeiros, nem dominicanos; seus decretos pareciam menos arbitrários, o seu processo menos misterioso além de que algumas vezes os nomes produzem mais efeito do que mesmo a coisa. Filipe quis então estabelecer nestes países a Inquisição pelo modelo da de Espanha. Como as cidades se opusessem resolutamente a esta medida, êle mandou ao país tropas estrangeiras, e levantou dinheiro para a sua sustentação. Quando lhe requereram de as retirar, nos termos da constituição, êle procurou esquivar-se a isso, oferecendo o comando desses estrangeiros a Guilherme de Nassau, príncipe de Orange, governador de Utrecht, da Holanda e da Zelândia, assim como ao conde de Egmont, "stathouder" da Flandres e do Artois, que se tinha ilustrado na batalha de São Quintino. Ambos recusaram, e se fizeram o centro da oposição. O conde de Egmont era franco, sincero, belicoso; e o príncipe de Orange dotado de uma alma forte, sob aparências vulgares, como se tivesse esperado a ocasião de manifestar a sua grandeza.

Filipe II era devedor aos nobres holandeses de suas vitórias sobre a França; mas isso não o impedia os maltratar. Depois de se terem arruinado ao lerviço de Carlos V, eles que estavam habituados ao luxo, se achavam, na paz, aviltados abaixo dos burgueses ricos e pisados ao mesmo tempo pelo rei. Além disso, Filipe elevou o número dos bispos de três a dezessete, pondo assim de lado os abades, e multiplicando os tribunais das consciências para lá colocar gente da sua conveniência. Êle fêz dar a Granvelle o capelo de cardeal, e nomear o arcebispo de Malines primaz dos Países-Baixos.

Os católicos e os protestantes reconheceram que Filipe tendia a implantar no país um governo inqui sitorial, no gênero daquele que existia na Espanha, e queixaram-se de que os empregos fossem confiados a espanhóis: uma petição assinada por quatrocentos gentis-homens foi apresentada por conseqüência a Margarida; depois sobrevieram queixas numerosas de todas as ordens: dos eclesiásticos por causa da criação dos novos bispos, do povo por causa da Inquisição, de todos por causa da violação de suas constituições. As queixas não foram ouvidas; mas os que as tinham formulado não as esqueceram, e os rederykers, seus poetas populares, propagavam o ódio contra um governo opressor.

Em meio desta agitação (1559), os reformados publicaram a sua confissão de em trinta e sete artigos, que indicavam uma tendência para o calvi nismo, e que, não obstante admitirem a presença real na eucaristia, proclamavam a igualdade entre os ministros: logo depois, o príncipe de Orange e o conde de Egmont ligaram-se contra Granvelle com o almirante Filipe de Montmorency. Os protestos de amizade para com a Espanha continuavam, é verdade; mas Filipe, que não entendia nada de comércio e que considerava toda queixa como uma rebelião, teimou em não substituir o cardeal ministro. Estes dois senhores declararam por esse motivo que eles se absteriam de assistir daí em diante ao conselho de Estado, para não parecer que eles tomavam parte em atos tirânicos.

Filipe foi portanto obrigado a chamar outra vez Granvelle; mas em compensação ordenou o inteiro cumprimento do Concílio de Trento e das leis inqui-sitoriais de seu pai: Vale mais perder seus súditos do que reinar sobre hereges, dizia êle; pelo que repeliu firmemente as opiniões protestantes, tanto mais que êle bem via que, se concebesse a menor coisa aos holandeses, os espanhóis não deixariam de exigir outro tanto. Êle governou, por conseguinte, com uma crueldade sistemática, desaprovando tanto seu pai, que tinha mostrado tolerância, como a França, que não procedia à maneira dele. Diz-se, além disto, que a rainha de França e a de Espanha (1565), tendo tido uma entrevista em Bayonna, resolveram a exterminação dos protestantes, e concordaram nos meios de a levar a efeito.

Quer assim seja ou não, o príncipe de Orange entendeu-se com doze nobres; e ajustaram um com–promisso com o fim de assegurar a liberdade nacional. Bem depressa uma multidão de gentis-homens, católicos ou reformados se lhes reuniu e se animaram uns aos outros com um novo ardor em diversas assembléias; depois, apresentaram-se em corpo em Bruxelas, vestidos de trajo vulgar e uniforme, para suplicar a

Margarida que suprimisse a Inquisição. Tendo Bar lamont dito à regente: Porventura tendes medo destes pedintes? Eles adotaram o nome de pedintes (gueux), e por sinal distintivo, uma medalha de ouro tendo em um lado a efígie do rei, no outro uma sacola segura por duas mãos, com estas palavras: Fiel ao rei até à sacola. Outros tomaram Uma escudela de pau pendurada por uma fita de prata; mas o conde de Egmont fê-la substituir depois por esta divisa: Con mordia res parvos crescunt.

Filipe estava muito longe de seus súditos para ver suas necessidades com seus olhos; era muito teimoso para apreciar seus pesares; e estava persuadido, Como José II, de que o fogo da rebelião não pode extinguir-se senão com sangue. Tendo a duquesa concedido autorização para enforcar os hereges em vez de os queimar, pareceu-lhe que a dignidade real se achava comprometida.

Não havia longanimidade que pudesse resistir-lhe. Os reformados, cansados de ver as suas reclamações desprezadas, perderam a paciência: associaram-se em número de alguns milhares, pegaram em armas, e lan çaram-se em Antuérpia: vingando-se contra o céu dos maales causados pelos homens, despedaçaram as imagens e as cruzes, devastaram os conventos e levaram em um dia a devastação a quatrocentas igrejas, sem pouparem a maravilhosa catedral e seus setenta altares.

Como semelhantes excessos indispunham os católicos obrigados pelo compromisso, Margarida pôde, fomentando os ódios, enfraquecer a oposição; e a força que ela assim recuperou lhe permitiu de dar largas .à severidade. Dizia-se que iam chegar tropas da Espanha; por outra parte, os luteranos recusaram aos revoltosos os socorros que eles pediam, em razão da diferença de opinião que os separava deles. O príncipe de Orange retirou-se portanto; o conde de Egmont reconciliou-se com a corte, e perto de cem mil habitantes se refugiaram na Alemanha e na Inglaterra, para onde levaram a sua indústria. Filipe pôde então lisonjear-se de ter restabelecido a ordem e a religião.

Porém esta emigração tão numerosa tinha deixado o país despovoado e o comércio definhado; em conseqüência disso, a regente escreveu para a Espanha, a fim de que lhe traçassem as medidas que devia tomar. A questão estava em saber se elas deviam ser ditadas pela clemência ou pela severidade. Fernando Alvarez de Toledo, duque d’Alba, persuadiu Filipe de que os espíritos não se tinham apaziguado senão por medo, que em breve o incêndio rebentaria de novo, e que era preciso por conseguinte empregar meios de repressão, rigorosos. Não obstante a regente predizer que daí resultaria uma longa e terrível guerra, o duque d’Alba reuniu em Genebra oito mil setecentos e oitenta infantes e mil e duzentos homens a cavalo, exercitados em maltratar os italianos, não contando três mil e seiscentos alemães que não valiam mais. Êle escolheu para mestre de campo Chiapino Vitelli, e para comandante da artilharia Gábrio Serbelloni, depois entrou no território dos Países-Baixos com poderes tão extensos, que Margarida pediu demissão.

O duque d’Alba era um dos homens mais eminentes da Espanha: excelente capitão, sem igual na arte de assentar um acampamento, tão pródigo da sua vida como avaro da de seus soldados, era de extrema severidade para tudo quanto dizia respeito à disciplina. Os acontecimentos não o faziam mudar. Habilíssimo em conduzir uma intriga, orgulhoso, sem medo como sem dó, não tendo nem cobiça, nem avareza, nem liberdade com seus inferiores, êle se mostrava des-denhoso com seus iguais, pouco respeitoso para com seus superiores, pelo que foi detestado por Carlos V e por Filipe, aos quais todavia prestou tão eminentes serviços. Deve-se pescar, dizia êle, os salmões e os peixes grandes, mas não as trutas e as sardinhas. Por conseqüência, convidou a jantar o conde de Horn, e mandou-o prender. Imediatamente instituiu um tribunal para julgar, debaixo da sua presidência, todo aquele que tinha tomado parte nas desordens ou se lhe não tinha oposto, que tinha assinado representações contra a Inquisição, recebido em sua casa predicantes refor-mados, ou somente dito que mais valia obedecer a Deus do que aos homens. As condenações não variavam senão da forca para a fogueira, das galés para o esquar-tejamento. A Inquisição da Espanha, que Filipe tinha chamado a decidir, declarou mesmo (decreto sem exemplo) criminoso de heresia, e por conseguinte de lesa-majestade, todo aquele que não era nomeadamente excetuado.

Os condes de Egmont e de Horn entraram no numero das vítimas, não que do julgamento resultasse a sua culpabilidade, mas porque era preciso dar um exemplo estrondoso, e mostrar que não havia medo. Vários outros personagens os precederam e os segui-ram ao suplício’; o filho mais velho de Guilherme de Orange foi preso e mandado para a Espanha, onde sofreu vinte e oito anos de cativeiro. Seu pai mais temido do que êle porque sabia calar-se (1), conseguiu fugir (1568), reuniu tropas e invadiu o país; mas os

(1) O Taciturno está preso? perguntou o cardeal de Granvelle, então em Roma. Como lhe respondessem negativamente: Então nada está feito, prosseguiu êle.

alemães que êle trazia a soldo, por sua insubordinação, e o duque d’Alba, por suas contemporizações, o obrigaram a retirar, o que deu lugar a novos suplícios contra aqueles que tinham feito votos em seu favor. A Flandres ficou abismada no silêncio do terror.

Então o duque d’Alba formou o projeto de não atender a coisa alguma e de exterminar os reformados. Êle levantou em Antuérpia e em Amsterdã fortalezas que aí causaram a ruína do comércio; introduziu o Concílio de Trento e a Inquisição, e quis mesmo lançar uma contribuição fixa de um décimo sobre os bens móveis e de um vigésimo sobre os imóveis. Porém o povo, que tinha tolerado a morte de seus chefes, irritou-se por esta taxa, que, recaindo sobre as menores vendas, multiplicava as vexações, recusou-se a pagá-la e fechou as lojas. O duque d’Alba mandou erigir em Antuérpia uma estátua que o representava pisando aos pés os dois Estados da província; e preparava-se para fazer levantar novas forças, quando o príncipe de Orange o deteve em meio de seus triunfos sangüinários.

Não se deve supor neste príncipe um patriota desinteressado: êle procurava, fazendo-se republicano e protestante, as honras que não tinha podido obter como católico e como cortesão; porém dotado de um golpe de vista justo e observador, sabendo dominar as suas paixões e conservar a moderação em meio dos furores, o seu gênio salvou a Holanda. Procurando em toda parte inimigos para a Espanha, excitou os ciúmes da Alemanha contra a ambição austríaca, e fêz compreender aos reformados de todos os países quão importante para eles era sustentar os flamengos.

Tendo sido aconselhado pelo almirante de Coligny para criar forças marítimas, êle deu, como senhor de Orange, cartas patentes a nobres dos Países-Baixos para capturarem os navios espanhóis que voltavam da América carregados de ouro. Eles pilharam assim, com o nome de pedintes do mar, imensos tesouros, e tornaram-se temíveis sobre o oceano. Guilherme, conde de Marca, seu almirante, apelidado o Javali das Arde-lias, apcssou-se de Briel ou Brille (1572) na ilha de Voorn, chave destas paragens marítimas: esse foi o berço dessa República, formada de pequenas províncias pantanosas, constantemente ameaçadas pelo mar, que lodavia resistiram ao rei mais poderoso do seu século como o mais hábil em política, e embargaram os prodigiosos aumentos, primeiro da casa de Áustria e depois ila de Bourbon.

Imediatamente as cidades se declararam à porfia pilo príncipe de Orange, recebendo com os braços abertos as tropas que vinham livrá-las da décima. Êle íoi proclamado "stathouder" na primeira assembléia K unida em Dordrecht; depois surpreendeu Gertruiden-berg, e ganhou uma vitória naval no Zuyderzée. O mau êxito perdeu em reputação o duque d’Alba, que, velho C adoentado, pediu a sua exoneração. Êle dizia, para (.lar uma prova da sua justiça, que tinha feito executar durante os seis anos do seu governo dezoito mil e seiscentos hereges e rebeldes. Filipe II recompensou-o, csquecendo-o.

Luís de Requesens, que lhe sucedeu, era pelo contrário brando e moderado. Êle fêz derribar a estátua do seu predecessor, e proclamou o perdão no momento em que a nação sentia já não precisar déle. Não pôde levantar dinheiro, e quando quis empregar as armas só obteve reveses. Os habitantes de Leida, que êle sitiava, lhe responderam, quando os mandou intimar para se renderem: iVão conteis com isso enquanto ouvirdes um cão ladrar. Quando os tivermos devorado todos, ainda nos restará o braço esquerdo para comer, ao passo que nos serviremos do direito para combater. Porém o príncipe de Orange rompeu os diques, e as vagas submergiram os espanhóis que sitiavam a cidade. Leida obteve em recompensa, e como indenização, uma universidade, que foi, depois da de Genebra, a segunda dos reformados.

Os mouros e os judeus, saídos dos países subme tidos à Espanha, refugiaram-se nos Países-Baixos. Roterdã c Amsterdã receberam os judeus expulsos de Antuérpia pelo duque d’Alba. Eles aí introduziram indústrias extremamente úteis e especialmente afamadas, entre outras a preparação da cânfora e do bórax, assim como oficinas de tinturaria. Os seguros foram estabelecidos nessas cidades em larga escala, e cons-truíram-se navios até para os próprios inimigos.

O inflexível gabinete do Escurial foi obrigado a travar negociações com a Holanda e com a Zelândia; porém como nem de um lado, nem do outro se quisesse ceder em matéria de religião, elas não produziram resultado algum. No entanto as duas províncias, já libertas, não podiam harmonizar-se sobre o modo de governo; afinal convencionou-se que, enquanto durasse a guerra, a supremacia civil e militar fosse exercida em nome do rei, com a condição única de consolidar a reforma, sem contudo perseguir pessoa alguma por opiniões religiosas.

Tendo Requesens, que geria com habilidade, mor rido neste entretanto, as tropas mercenárias, esse flagelo de todas as guerras, insurgiram-se, reclamando o soldo; elas tomaram Antuérpia e Maestricht e saquea ram estas duas cidades cuja riqueza já descrevemos. Então as províncias cuidaram em procurar a sua segurança em sua união. Os Estados de Brabante, de

 

Fandres, de Artois, de Hainaut, as cidades de Valen-ciennes, Lille, Douai, Orchies, Namur, Tournay Utrecht, Malines, a que em breve se juntou a Frisa,

e por fim Amsterdã, combinaram socorrer-se reci

procamente, desembaraçar-se das tropas espanholas, e reconduzir as coisas ao estado em que se achavam antes da chegada do duque d’Alba. Os Estados recusa-ram receber para governador-geral dom João da Áus tria, bastardo de Carlos V, o vencedor das Alpuxarras e de Lepanto, que Filipe II detestava, apesar de o afagar, salvo se êle despedisse as tropas estrangeiras e aderisse à pacificação de Gand. Logo que êle satisfez ISta condição com o Edito Perpétuo (1577), promete-ram-lhe fidelidade, e êle obteve dinheiro.

Porém este príncipe, que arvorava por insígnia uma cruz com as seguintes palavras: Com êsre sinal venci os turcos, com este sinal vencerei os hereges, impelia ao rigor a corte de Madri, sob aparências pacíficas. Exaltado pela vitória de Lepanto, êle ambi cionava uma coroa; e, protegido pelo papa, tentou Obtê-la em Tunes, na Inglaterra, nos Países-Baixos. Porém, habituado a expedições rápidas, naufragou Contra a política astuta e profunda do príncipe de

Orange. Tendo o rei da França, Henrique III, feito chegar às mãos deste último uma carta violenta de dom João, que tinha sido interceptada, os Estados o proclamaram decaído do seu título, e se prepararam de novo para combater; as fortalezas foram ocupadas

ou desmanteladas, e o príncipe de Orange foi eleito ruward de Brabante, com um poder ditatorial. Seguiu-se uma guerra com resultados diversos, durante a qual dom João, suspeitado por Filipe de se entender Com os flamengos e com os ingleses para formar um principado independente, morreu, naturalmente ou vítiima de um crime (1578). Foi substituído por Alexandre Farnese, que tinha feito, à testa das tropas italianas, o maior mal aos revoltosos.

Filipe II achava-se em dívida de mais de quarenta milhões de coroas a negociantes espanhóis e genoveses; os pedintes do mar, roubavam-lhe de quando em quando alguns galeões da América, cujos tesouros não bastavam para submeter um punhado de pescadores de arenque. Além disso, como desconfiava mesmo dos governadores, a quem conferia plenos poderes, mudava-os amiudadas vezes, e o sistema mudava com eles. É deste modo que primeiro era uma mulher quem governava quando era preciso haver firmeza, que o poder passava depois a mãos inexoráveis quando a indulgência era oportuna.

Os holandeses, tinham unicamente um fim; o seu livramento. Eles tinham por partidários todos os príncipes em cujas cortes Filipe assalariava traidores; seus exércitos eram recrutados, sem prejuízo do país, de todos aqueles que, perseguidos por este monarca, trazia para este asilo o seu ódio e a sua cólera. Desgraçadamente os católicos e os reformados tinham freqüentemente desavenças que degeneravam mesmo em guerra civil entre os gauleses, chefes dos reformados, e os valões, católicos: destas circunstâncias soube tirar proveito Farnese, quqf, tão hábil general como fino político, dirigiu a guerra com talento, ao mesmo tempo que organizava um partido de descontentes, que traziam por sinal distintivo um rosário enrolado no pescoço. Posto que naturalmente brando, êle acreditava, como seus contemporâneos, que o punhal e o veneno podiam ser empregados impunemente; vendo pois que toda esperança de acordo estava perdida, publicou contra o príncipe de Orange um édito pelo qual 0 declarava traidor, inimigo do gênero humano e peste pública, proibindo-lhe o pão, a água e o fogo; acrescen-inicio que Filipe II prometia, sob sua palavra de rei, a quem lho entregasse morto ou vivo, vinte e cinco mil licudos de ouro, a nobreza, e o perdão de todos os seus crimes, por mais enormes que pudessem ser.

O príncipe respondeu a este manifesto com uma longa apologia, e fêz com que os Estados promulgassem Uma espécie de declaração dos direitos do homem, llgnificando que o povo não era feito para o príncipe, nas o príncipe para o povo; que o soberano que tra-i.iva seus súditos como escravos podia ser expulso, principalmente quando se procedeu segundo a decla-pação legal dos Estados do país, reduzido a não poder • li íender a sua liberdade de outro modo. Por conseguinte, o rei da Espanha era proclamado decaído da oherania, como violador dos tratados e como tirano.

O príncipe de Orange não se persuadiu um momento que lhe fosse possível pôr de acordo as nove províncias, diferentes de religião. Contentou-se, portanto (1579), de reunir as do Norte do Meuse, cuja Crença era a mesma. Em conseqüência disto, as províncias de Gueldra ou Zutphen, da Holanda, da Zelândia, de Utrecht, de Frisa e de Groningue, menos .1 cidade deste nome, confederaram-se para sempre, com a promessa de se socorrerem mutuamente, de não fazerem paz nem guerra, e de não levantarem contribuição alguma senão de unânime consentimento. Quanto à religião, cada uma delas pôde tomar as medidas que mais lhe convieram, salva todavia a liberdade, de todos, mesmo dos católicos: restituíram-se aos frades e aos sacerdotes os bens que lhes tinham sido tirados. Estas cinco províncias, cujo número subiu depois a sete pela junção do Over-Yssel e da cidade de Groningue, formaram a República das Províncias Unidas, onde o príncipe de Orange esperava provavelmente substituir a sua dinastia àquela cuja destituição acabava de ser pronunciada.

Porém, a soma prometida, ou o fanatismo, tinha impelido mais de um miserável a atentar contra a sua vida, de cujo número foi o biscainho Jaureguy, que trazia consigo um papel contendo o seguinte: "A vós Senhor Jesus Cristo, Redentor e Salvador do Mundo, Criador do céu e da terra, se me concederdes a graça de me fazer escapar da morte depois de ter efetuado o meu projeto, prometo oferecer uma bela armação, um manto, uma lâmpada, uma coroa, à bem-aventurada Virgem de Bayonna; uma coroa à de Aranzosu". Guilherme sucumbiu afinal aos golpes do franco-contês Baltasar Gérard, homem afeto ao seu serviço, que comprou, com o próprio dinheiro de seu amo, as pistolas com que o matou. Posto a tratos, o assassino confessou que tinha procedido por ordem expressa do duque de Parma, e por instigação ora de um franciscano, ora de um jesuíta (1): talvez que a acusação não fosse fundada a respeito de nenhum deles, e contudo ela fêz com que lhes tomassem horror, Os Estados da Holanda confiaram então o governo a um conselho presidido por Maurício, filho do príncipe assassinado; e prepararam-se para uma resistência desesperada em um país cortado por uma infinidade de braços de mar e de rios. No entanto, Farnese continuava felizmente a guerra, e as tropas mercená rias prosseguiam em suas devastações; porque parece ivnlmente que "quase todas as nações da Europa tinham querido à porfia dar-se ponto de reunião, e Correr aos funestos campos da Flandres como a uma pública de combate, para se abandonarem à sua cólera a e a seu ódio, para se medirem de ferro em punho uma contra a outra, com uma obstinação sempre em aumento". O cerco de Antuérpia, a quem resistiu por espaço de um ano completo com muita habilidade Frederico Gianibeli de Mántua (1585), e que termi-neu com uma capitulação honrosa, é especialmente digno de memória.

(1) Era o refúgio ordinário dos acusados lançar o crime sobre outros. Por morte do Delfim, filho de Francisco I, em 1536. Mon-tecuccoli, seu copeiro, confessou, na tortura, que o tinha envenenado por instigação de Antônio de Leyva, do marquês de Gonzaga e de Carlos V.

A República, depois de ter perdido diferentes pro-vincias, perdeu a confiança em si mesma, e ofereceu-se a um príncipe estrangeiro. Ela já se tinha dado ao duque de Anju, que não tardou a cair em descrédito, e foi despedido. Ofereceu-se então ao rei de França Henrique III, que não aceitou. Elisabete da Inglaterra fêz outro tanto; mas, protetora como era de todos os reformados, por aversão a Filipe II, e nutrindo a esperança de se apossar desse território prometeu socorros. O conde de Leicester, seu favorito, levou-lhos efetivamente, e foi nomeado "stathou-der" (1586). Isto foi um gracejo deplorável, porque este chefe incapaz entregou tudo às intrigas e às facções: êle deixou os espanhóis ganharem superioridade e cometerem horríveis devastações, ao passo que descontentou todo mundo, exceto o vulgo e os predicantes, com cujo apoio contava para chegar ao poder supremo; porém, afinal, desacreditado e amaldiçoado geralmente, tomou o partido de se retirar. A Holanda escapou assim a um laço perigoso e mais terrível que a guerra declarada; daí resultou para ela a vantagem de a Inglaterra entrar em luta aberta com a Espanha; e, perseguindo constantemente esta potência, a Inglaterra contribuiu para a fortuna dos holandeses.

Maurício de Orange fêz mudar a sorte das armas (1590), principalmente logo que, pela morte de Far nese, a Espanha deixou de ter um general de mérito igual para opor a este valente adversário. Causa extrema admiração ver os esforços então feitos por um país pequeno, quando se pensa que êle sustentava vinte mil infantes, dois mil cavalos, numerosa marinha, e que, apesar disso, o comércio o fazia prosperar como nunca. Amsterdã engrandeceu-se consideravelmente; a Holanda e a Zelândia contavam mais de setenta mil marítimos; todos os anos saíam quatrocentos navios com bandeira estrangeira para traficar em Lisboa, em Cadiz, em Lucar e em outros portos da Espanha e Portugal. Filipe II queria excluir os holandeses, porém dissimulava-o pelo interesse de seus Estados, onde eles traziam os cereais da Polônia e os outros gêneros do Norte. Contudo, logo que Filipe III julgou feri-los no coração, proibindo a seus súditos todo o comércio com eles, os holandeses proibiram a qualquer outra potência o tráfico que lhes era proibido, o que reduziu a Península a uma grande miséria. Tendo Portugal sido unido à Espanha, os holandeses assaltaram as ricas colônias que aquele reino possuía no ultramar. Cornélio Houtman conduziu a Java quatro navios, e tomou esta ilha; Jac-ques von Nok ali fundou a Companhia das índias Orientais, e foi desse modo que proibições imprudentes deram em resultado, como vimos em nossos dias, a ruína daqueles que as tinham feito.

Neste entretanto (1596), os Estados contrataram com Elisabete e com Henrique IV uma aliança ofensiva e defensiva, o que lhes fêz tomar lugar entre as potências européias como República independente. O valor de Ambrósio Spínola conseguiu, é verdade, res taurar por alguns instantes a bandeira espanhola nos Países-Baixos; porém a penúria das finanças não permitiu de continuar semelhantes esforços com a constância necessária. Ostende (1604) resistiu três anos e três meses a Spinola, que ali perdeu oitenta mil homens contra sessenta mil holandeses. A batalha naval (1607) que depois foi dada no estreito de Gibraltar, e na qual morreram os dois almirantes, foi o último ato desta guerra.

Na esperança de facilitar a conciliação com uma mudança de nome, Filipe III tinha cedido os Países-Baixos como feudo a Isabel, filha de Filipe II, casada com Alberto da Áustria. Este príncipe convencionou com eles, como com um país livre, uma trégua de doze anos, reconhecendo a independência das Províncias Unidas (1609), e concedendo-lhes a liberdade do comércio e da navegação nas possessões espanholas, na Europa, mas não na índia. Este último ponto era essencial para a Holanda, porque os grandes homens da revolução tinham reconhecido que ela não podia esperar a sua grandeza senão do mar; pelo que proclamaram pela primeira vez no mundo a liberdade dos mares (mate libemm). Logo que a obtiveram, a despeito da constituição espanhola, a Europa concebeu uma alta idéia de um povo que até ali só conhecera como comerciante; e foi esse o primeiro exemplo de uma liberdade adquirida com esforços continuados.

A República abrangia então sete províncias confederadas e soberanas, desiguais em extensão, em força, em encargos, mas não em direitos públicos, e que unha cada uma delas voto nos Estados-gerais, como

se chamava a assembléia de Haia, onde cada uma delas podia enviar tantos deputados quantos quisesse Porém eles não eram representantes, e de cada vez deviam receber um mandato especial dos Estados da sua província, o que produzia delongas e tornava impossível o segredo. A Holanda suportava cinqüenta e sete centésimos dos encargos públicos, e escolhia sempre entre seus deputados o advogado, nomeado depois grande pensionario, que era considerado como o primeiro personagem da União, pelo menos depois do "stathouder".

A soberania não residia portanto nos Estados-gerais, mas nos eleitores, que de cada vez conferiam ao "stathouder", alma do governo, os direitos que êle foi chamado a exercer. Porém posteriormente em Leicester, e até 1747, deixou de haver "stathouder" geral. Maurício de Nassau, que dirigiu a República por espaço de trinta e oito anos (1621), e depois dêle seus sucessores não tomaram senão o título de capitães e de almirantes generais da União.

Esta revolução era menos o resultado do impulso religioso do que da política e da ambição dos príncipes de Orange. Logo que ela triunfou nas províncias valonas, estabeleceu-se aí uma República, em que nem a liberdade política, nem a liberdade dos cultos tiveram nada a ganhar, e em que houve sempre uma luta de despotismo entre o "stathouder", os Estados e as regências municipais. Os católicos eram absolutamente opri midos, mesmo em províncias inteiras, como no Brabante Setentrional, a tal ponto que se achavam nas piores disposições e tinham saudades da dominação estrangeira.

No momento em que os reformados teriam podido gozar enfim da paz, ela foi perturbada pelas questões religiosas, que são inevitáveis desde o momento em

que se deixa o campo livre à razão individual. Lutero tinha pelado para a liberdade cristã contra a autori dade; mas de que maneira? Negando a liberdade moral do homem, pondo-o em uma dependência total de Deus, para o subtrair à independência dos homens que se diziam representantes de Deus. Uma vez negado o livre arbítrio, cessava desde logo a utilidade dessas obras expiatórias de que se tinha feito abuso; e toda a hierarquia que se estendia do simples fiel até Deus achava-se destruída. Estabelecendo o princípio de que Deus faz tudo em nós, e que as obras são supérfluas para a salvação, Lutero estabeleceu, ou com pouca diferença, a predestinação e a fatalidade.

Ora este dogma podia conduzir à indulgência ou à severidade, e é para esta última que tendeu Calvino. Tendo nós sido criados por Deus bons ou maus, eleitos ou reprovados, não se faz mais do que obedecer a seus decretos tratando cruelmente aqueles que êle rejeitou. Por conseqüência, êle estabeleceu a reforma sobre princípios técnicos; e, ainda que partindo da revelação individual aplicada às Santas Escrituras, êle veio de uma maneira diferente a restabelecer a autoridade e a reconstruir a igreja, sendo porém a crença na Escritura um efeito da Graça, e o dom de bem entender o privilégio dos eleitos. Nestes termos Calvino publicou um catecismo, e fêz-se da predestinação uma arma contra seus adversários, o que concorreu muito para a organização e para a defesa da igreja reformada. Ela se achou dominante nos Países-Baixos, onde perseguiu não só os anabatistas e socianos, mas lambem os luteranos, e essa liberdade tão altamente proclamada foi em breve convertida em intolerância. O antigo princípio da reforma devia alevantar-se contra uma tal tirania, e êle constituiu de algum modo uma

terceira religião protestante. Jacques Hermensen ou Armínio, educado em Genebra e na Itália, tinha sido ministro da igreja de Amsterdã, depois professor em Leida (1560-1609), cheio de entusiasmo e cobiçoso de saber, foi convidado por alguns eclesiásticos de Delft para refutar a doutrina da predestinação, Êle sustentou portanto que Deus tinha resolvido, desde a eternidade, que aquele que renunciasse ao pecado e se confiasse em Jesus Cristo gozasse da vida eterna, enquanto que os pecadores endurecidos se condenavam, por isso que Deus não obriga ninguém a renunciar ao pecado e a persistir na fé; mas Francisco Gomar, também professor de Leida, pretendeu que Deus tinha predestinado os homens à perdição e à salvação, do que resultava que uns eram arrastados a fazer o bem, e outros dados ao mal: opinião que era a de Calvino e de Bèze, como a outra era a de Erasmo e de Melanchton.

Armínio tentou, portanto, contra a igreja reformada o que Lutero tinha ousado contra a igreja católica, negando o direito de condenar irremissivehnente os que diferem de crença, recusando admitir que Deus tenha estabelecido de tempo imemorial, que aqueles que renunciassem ao pecado e se confiassem a Jesus Cristo seriam absolvidos, enquanto que os pecadores endurecidos seriam condenados.

Imediatamente o país se dividiu em arminianos e em gomaristas: com os primeiros estavam as pessoas tolerantes, que tinham necessidade de campo livre para a inteligência, e a que se chamava universalistas porque abriam a graça de Deus a todos os homens; os particularistas, seus adversários, subdividiam-se de novo relativamente ao tempo em que Deus tinha dado a fatal sentença. Uns sustentavam com Calvino que

Deus tinha destinado a salvação e a perdição desde a eternidade, e por conseguinte antes do primeiro pecado (suptalapsarii), de tal sorte que o homem não poderia de modo algum escapar; os outros, detestando essa horrível idéia de Deus, punindo com a culpa, diziam que êle não tinha determinado, mas permitido .1 queda de Adão; e que o homem ficou sujeito, por causa dessa queda, à condenação de que Deus resolveu preservar certas almas que êle favorecia com uma praça especial (sublapsarü).

Tal era a questão teológica; mas após ela vinha n questão social. Se, efetivamente, aprofundarmos mais a revolução dos Países-Baixos, acharemos que ela não foi provocada pelo ódio contra a antiga religião, por isso que os principais motores dessa revolução eram católicos, e que a maioria das províncias se conservou tal, não se pensou sequer no princípio em se separarem do rei de Espanha, porque os editos mais hostis ao seu poder foram promulgados em seu nome. A dominação estrangeira desagradava, o que não impediu os revoltosos de procurarem em toda parte um estrangeiro para soberano. No fundo, eram as magistraturas das comunas que queriam prevalecer sobre o poder central (1610): depois de terem derribado o poder de Filipe II, elas fizeram oposição a Guilherme de Orange, reduziram seu pai a uma condição inferior àquela que êle tinha tido durante o reinado de Espanha, e finalmente aboliram o "estatuderato".

Neste momento, o mesmo príncipe combatia debaixo de nomes teológicos. Os gomaristas eram o partido popular; os sábios e os ricos seguiam a bandeira de Armínio, com todos aqueles que, detestando a unidade e o despotismo calvinista, preferiam o federalismo, isto é, uma conciliação entre a autoridade espiritual e o poder temporal, mediante um acordo amigável entre cada cidade.. Mais fracos, os armi nianos apresentaram uma representação aos Estados para serem ouvidos em sínodo; os outros lhes dirigiram uma refutação, de onde lhes veio o nome de representantes, e contra-representantes. Os Estados ordenaram-lhes o silêncio; mas as seitas religiosas não se aplacam assim por decreto. Pelo contrário, elas se irritam mais: os representantes foram excomungados; os outros, sustentados por Maurício, quiseram estender a reforma do governo da cidade, nomeando os magistrados. duas seitas converteram-se pois em partidos políticos, um republicano e o outro orangista.

Os chefes dos primeiros eram Grotius e João Olden Barneveldt, advogado da Holanda, e um dos maiores homens desta revolução. Propendendo sempre para a paz, como Maurício para a guerra, êle tinha alcançado com seus conselhos a trégua de doze anos, depois recuperado Frisingue, Briel e Ramekens, últimos restos da dependência estrangeira. Enquanto Maurício abraçava o partido popular com os gomaristas, na esperança de fazer prevalecer a monarquia sobre o federalismo, Barneveldt queria, com o auxílio dos arminianos, apoiar sobre cada cidade a liberdade da República, e preservá-la da servidão por meio do fracionamento. Pregações violentas sustentavam a inimizade entre os dois rivais; um era acusado de ambição tirânica, e o outro de unia avareza mercantil. Os gomaristas pediam em altos brados a convocação de um sínodo, os armi nianos não o queriam, e a União parecia próxima a dissolver-se.

Cada um alegou no sínodo de Dordrecht (1618) a autoridade da Santa Escritura, sem chegar a esta-belecer outra coisa, senão que ela era uma revelação insuficiente, por isso que não tinha esclarecido positivamente os pontos essenciais. O sínodo foi por conseguinte não só o apogeu do protestantismo, mas também o princípio da sua decadência, porque desde então êle perdeu em cada dia parte do seu poder doutrinal. Os representantes foram condenados como corruptores da religião e autores de um horrível escândalo, e excluídos em conseqüência disso das funções eclesiásticas e acadêmicas. Grande número deles fugiram para o Holstein, onde edificaram Frederickstadt; outros para a Inglaterra, onde a sua fé triunfou, aceita como foi pelos metodistas.

O arminianismo, aproximando-se dos sentimentos católicos, e estabelecendo por dogma a salvação de indos por meio da redenção, emancipou de novo as opiniões da influência do despotismo, e conduziu à tolerância: êle se conciliou assim com as outras seitas, enquanto o calvinismo as horrorizava; e, propagando o sentimento da igualdade entre os homens, aplanou o caminho para a filosofia.

Maurício, não disfarçando mais a sua tirania, mandou prender os chefes do partido adverso, destituiu os representantes, e ordenou de se proceder contra eles. Barneveldt era sobretudo o objeto do seu ódio; reunindo-se portanto aos Estados-gerais, êle o fêz apreender e conduzir ao cadafalso, sob os protestos habituais. Grotius, que tinha defendido caloro-samente a liberdade dos mares, foi preso para sempre no castelo de Lovenstein, do qual o partido contrário ao príncipe de Orange tomou o seu nome; êle se ocupou aí em refutar a opinião dos orangistas, a saber que a soberania reside nos Estados-gerais, e em demons-trar que portanto a resistência não era crime de Estado.

Porém a opinião pública acabou por prevalecer, e os representantes aplaudiram-se de ter impedido Maurício de se apoderar da dominação suprema.

Em meio destas desordens, a República das Províncias Unidas continuava a engrandecer (1621). No momento em que a trégua ia expirar, a Espanha ordenou a Ambrósio Spínola de sitiar Breda, tendo este general representado que era impossível tomar esta praça, recebeu da corte esta resposta lacônica: Marquês, tomarei Breda. El-Rei (1625). Spínola fêz tudo quanto pôde, e uma imensidade de pessoas morreram por causa dessa obstinação real; porém Breda não abriu suas portas senão por capitulação, depois de se acharem ambos os partidos igualmente exaustos de forças. Os cercos de Maestricht e de Bois-le-Duc não foram menos notáveis. Maurício recuperou, durante a guerra, a glória e a influência que tinha perdido durante a paz. Este longo período, em que todos estiveram em armas, trouxe grande aperfeiçoamento à estratégia, principalmente no que respeita ao ataque e à defesa das praças.

A Inglaterra e a França sustentavam os Países-Baixos por ódio à Espanha; o novo mundo mesmo era levado a fogo e sangue pelas dissensões do antigo. A fim de arruinar o comércio da Holanda com a Alemanha, Spinola concebeu o projeto de um canal sobre o Reno e o Mosa, com proibição aos barcos de subirem o Reno para lá de Rhinberg; porém a dificuldade de defender a passagem obrigou a renunciar a este plano. Os holandeses, mais felizes, engrandeceram-se com suas conquistas no Brasil, e continuaram a tirar aos portugueses as suas possessões, enquanto Portugal esteve debaixo da dependência da Espanha.

Finalmente, abriram-se negociações no congresso de Munster, e convencionou-se que a Espanha renunciaria às Províncias Unidas e ao que elas tinham conquistado nos Países-Baixos espanhóis. Pelo que respeita às possessões das duas índias, cada um devia ficar na posição atual, mas os espanhóis e os portugueses não deviam alargar a sua navegação mais do que então faziam. Além disso, os Estados foram autorizados a fechar o Escaut, os canais de Sas, de Zwin e outras embocaduras, condições aviltantes para a Espanha, que privava assim seus súditos das vantagens que lhes ofereciam os ricos de seus territórios, tornava inútil o porto de Antuérpia, e escravizava os países que lhe restavam. Os habitantes das Províncias Unidas obtiveram a liberdade de consciência (1), sem restrição; e nunca mais se ofereceu nova ocasião de guerra entre as duas potências que se tinham combatido durante um século.

Deixaremos agora o país que consolidava a sua liberdade, e voltaremos àquele què a tirava aos outros e perdia também a sua. Querendo introduzir a Inquisição, Filipe II provocou a sublevação dos mouriscos, que em outra parte contamos, assim como produziu a perda dos Países-Baixos, e, fundando-se sobre suas expedições contra os turcos, que igualmente já contamos, pareceu-lhe ter direito ao título de defensor da cristandade, que êle assumia também contra os inimigos internos. Se este monarca era o maior inimigo dos reformados, Elisabete, da Inglaterra, que era a protetora geral deles, prestava auxílio ou pelo menos incitava os Países-Baixos, e mandava insultar, por ódio àquele príncipe, as colônias espanholas da América e pôrto mesmo de Cadiz. Filipe, que, no tempo em que era esposo de Maria, a Católica, rainha da Inglaterra, se tinha declarado protetor da jovem Elisabete, esperava impacientemente a ocasião de punir a sua ingratidão; ao passo que era a seus olhos ato meritório destruir o foco da heresia. Sixto V a isso o excitou, conferindo-lhe o reino da Inglaterra como tendo caído em poder dos hereges, e oferecendo-lhe um milhão de coroas para o conquistar.

(1) Há hoje em Amsterdã dezesseis igrejas para os católicos, treze para os reformados, três para os luteranos, duas para os anabatistas, uma para os presbiterianos, uma para os anglicanos, uma para os representantes, uma para os arminianos e uma para os gregos, além disso, uma sinagoga para, os judeus portugueses e outra para os da Alemanha.

Filipe equipou portanto uma frota no maior segredo. A Espanha, que não tinha tido mais de três caravelas para dar a Colombo, viu então armar, à custa de cento e cinqüenta milhões de escudos, cento e cinqüenta navios muito maiores do que de costume, e conduzindo duas mil seiscentas e cinqüenta peças de grosso calibre, vinte mil soldados, oito mil marinheiros e mil voluntários de famílias ilustres. Vinte e um navios eram denominados pelos diferentes nomes da Virgem, e doze pelos dos Apóstolos; cem frades foram embarcados nessa armada sujeitos a Martinho de Alençon, vigário-geral do Santo Ofício, portador das bulas que desligavam os ingleses do juramento de fidelidade. Além disso, o duque de Parma reunia nos Países-Baixos trinta mil homens de pé e quatro mil cavalos com barcos de transporte; era êle quem devia comandar o desembarque do exército. Afonso de Gusmão, duque de Medina Sidónia, era o almirante general da frota, e Lope de la Vega fazia parte da expedição1, para imortalizar com seus cantos as vítimas que se esperavam.

Esta Invencível Armada chegou à vista de Dunquerque, inquietada pelos ingleses, cujos ligeiros vasos manobravam mais rapidamente; aí foi assaltada por uma tormenta espantosa, que tragou ou despedaçou esses enormes preparativos, Quando o duque de Medina se apresentou a Filipe, anunciando-lhe que tinha perdido trinta navios de alto bordo e dez mil homens, e que o resto da frota não estava em estado de afrontar o mar: Duque, disse-lhe o rei, mandei-vos combater os homens, não os elementos. Seja feita a vontade de Deus! E continuou a escrever uma carta.

É impossível não admirar semelhante firmeza (1), mesmo num tirano; e a longanimidade nas circunstâncias desgraçadas é verdadeiramente o caráter de Filipe II. De semblante carregado, severo, gostando da solidão, trabalhador infatigável, de extrema habilidade, êle via tudo em pessoa, e escolhia seus generais e seus ministros com uma sagacidade notável. Durante os quarenta anos do seu reinado, foi centro de toda a política européia, e causou maior dano a seus inimigos com suas intrigas do que com suas armas. Ninguém lhe falava senão de joelhos, e raras vezes tinha relações com os grandes, ao passo que recebia mesmo as pessoas mais vulgares, e cortejava o menor rústico que encontrava. De uma devoção exagerada, porém conscienciosa, êle se julgava destinado pela Providência para extirpar a heresia, e nisso consumiu toda a sua vida: êle pôde mesmo lisonjear-se de ter alcançado o fim de seus desejos depois de ter vencido os turcos em Lepanto, dado cabo dos mouriscos nas Alpuxarras, dos holandeses com a espada do duque d’Alba e dos protestantes franceses, empregando os assassinos de São Bartolomeu.

(1) Mahmoud não soube com menos apatia a destruição da sua frota de Navarino,

Mas, por combater as novas idéias, êle arruinou o seu voto. Os navios ingleses, ensoberbecidos pela vitória, roubavam os navios que voltavam da América, e devastavam as colônias, as costas mesmo da Espanha. Os holandeses faziam-lhe ainda pior; e as colônias, estorvadas em seu comércio, compravam por contrabando os objetos de que tinham precisão, com grande vantagem dos inimigos. Dificilmente os tesouros do México, quando chegavam ao porto, podiam bastar para o pagamento dos prêmios de uma dívida de cento e quarenta milhões de ducados. Filipe foi portanto obrigado a empenhar todos os rendimentos a banqueiros; porém revogou as cessões que tinha concedido, fali-mento vergonhoso que arruinou grande número de casas de banco na Itália, na Alemanha, nos Países-Baixos. Êle chegou a ponto de se ver na necessidade de mandar eclesiásticos a pedir de porta em porta.

A aquisição de Portugal foi também para êle uma causa de ruína. Este pequeno reino tinha chegado a um grande poderio, admirável no tempo de João II. Não falando do descobrimento das índias Orientais, este príncipe ocupou-se de remediar, no interior, os abusos dos reinados precedentes, e de libertar o poder real tirando a jurisdição criminal à nobreza, para a confiar a juízes escolhidos entre os jurisconsultos. Os nobres, descontentes de suas reformas (1483), conspiraram, sob a direção do duque de Bragança, cunhado do rei; mas a conspiração foi descoberta, e o duque decapitado; o duque de Vizeu, que reatou os fios da conjuração, foi apunhalado pela mão do próprio rei.

Dom Manuel, que lhe sucedeu (1495), foi apelidado o Afortunado, por alusão ao bom êxito de suas expedições marítimas, e fêz obter a Portugal o mais glorioso reinado. Êle amou as ciências, afagou a nobreza, fêz leis acertadas; e, ao mesmo tempo que pedia ao papa a reforma do clero, excitava a Alemanha a se pôr em guarda contra Lutero.

João III, seu filho, viu as descobertas alargarem-se e, reconhecido ao bem que os jesuítas tinham feito na Índia, introduziu-os em seu reino com grande autoridade e força (1521). Êle mesmo se fez filiar em sua ordem, sem por isso abdicar a coroa, e estabeleceu a Inquisição (1534) contra os judeus, que, saídos da Kspanha em grande número, tinham vindo refugiar-se cm seus Estados, fingindo serem cristãos.

D. Sebastião, filho póstumo do príncipe João, filho de João III, lhe sucedeu na idade de três anos (1557): os jesuítas, que o educaram, inspiraram-lhe uma obediência cega para com a corte de Roma, e um ódio profundo contra os infiéis; eles o amestraram também nos exercícios do corpo, porém não no manejo dos negócios. Tendo horror às mulheres, não quis casar-se. Fêz leis contra o luxo, e mesmo contra todos os objetos que o comércio trazia a Portugal. A inaptidão econômica deste príncipe não pôde ser nele corrigida pelo cardeal dom Henrique, seu tio, regente do reino, arcebispo de Lisboa e grão-mestre de todas as ordens; porque, apesar de suas excelentes qualidades, êle não tinha experiência alguma dos negócios públicos.

Tendo tomado posse do governo aos catorze anos, dom Sebastião, que associava aos prejuízos da sua educação o caráter cavalheiresco comum ao seu país e que as suas leituras tinham exaltado, concebeu a idéia de uma expedição contra os mouros da África. Este projeto, se tivesse sido bem sucedido, teria reunido as duas margens do Mediterrâneo, e obstado a que a civilização fosse retardada em sua marcha pelas correrias dos bar-harescos. Filipe II o excitou a empreeendê-la, menos talvez por zelo do que pela confiança de que êle lá morreria; e enviou-lhe mesmo a cota de armas e o capacete que Carlos V trazia por ocasião da sua entrada em Tunes.

Po esta época Mulcy Mohamel, rei de Marrocos, tinha determinado que o trono, por sua morte, passasse alternadamente a seus filhos, com exclusão de seus netos. Por conseqüência, Abdala, seu sucessor, nada teve de mais urgente do que exterminar todos os seus irmãos. Muley Mohamet II, seu filho, que lhe sucedeu, mandou matar seus irmãos. Porém Abd-el-Maleck, tio deste príncipe, que tinha escapado ao morticínio dos seus, tendo ganho a estima do sultão Solimão combatendo com os turcos contra os cristãos, obteve dele socorros para destronar seu sobrinho. Muley recorreu a dom Sebastião (1578), que, encantado da ocasião que se lhe oferecia passou à África com um exército que foi abençoado por Gregório XIII, como para uma Cruzada.

O entusiasmo não basta para vencer. As tropas cristãs, vindas da Espanha, da Itália e da Alemanha, não sabiam estar em harmonia nem obedecer, e o clima da África apertava sobre elas com um rigor contra o qual a intrepidez do rei era impotente. Uma sanguinolenta batalha teve lugar em Alcácer-Quibir (1578), e dom Sebastião foi feito prisioneiro; como os soldados disputavam a sua posse com as armas na mão: Pois que! exclamou um oficial, quando Deus vos concede uma tal vitória, matai-vos por causa de um prisioneiro! e estendeu-o a seus pés. Abd-el-Maleck morreu de febre durante a peleja, e Muley Mohamet afogou-se fugindo. Três reis morreram assim na mesma batalha.

Não restava então na dinastia portuguesa senão o cardeal dom Henrique, com sessenta e sete anos de idade, e êle subiu ao trono. Dom Henrique fundou a Universidade de Évora, assim como alguns colégios em Lisboa e em Coimbra; determinou o padre Maffeir de Bérgamo a escrever a história das índias, e reformou os costumes do clero; mas, alheio ao manejo dos negócios, êle se confiava nesse ponto aos jesuítas. No intuito de evitar acontecimentos funestos, êle convidou todo aquele que se julgasse com direito ao trono para se fazer conhecer, ç apresentaram-se cinco competidores, todos descendentes de dom Manuel. Porém, Filipe II, filho mais velho deste príncipe, empregou o ouro e os jesuítas, e mandou um forte exército, para prevalecer apesar do clero e da nação, que se julgava no direito, pela extinção da linha direta, de eleger o soberano.

Por morte do rei cardeal, Filipe ocupou o país, e prometeu em geral não fazer ofensa a direito algum, e não nomear estrangeiros para os empregos. Porém dom Antônio, prior do Crato, nascido do casamento secreto de Luís de Beja, sobrinho de dom Manuel, fêz-se proclamar. O país dividiu-se por casuistas e doutores, que coisa alguma se opunha a que êle sustentasse por meio da força a justiça da sua causa. Êle tornou a chamar o duque d’Alba, desterrado havia dois anos no castelo de Uzeda, e mandou-o vencer por êle. Os antoninos consideraram esta guerra como sagrada, mas foram batidos em toda parte: dom Antônio, vencido e errante, não foi traído, apesar dos dez mil ducados prometidos a quem apresentasse a sua cabeça; êle foi pedir à França e à Inglaterra socorros que obteve, mas inutilmente, e voltou a morrer em França, asilo dos príncipes infelizes, onde nomeou seu herdeiro Henrique IV.

Filipe prometeu perdão a seus adversários, e nem por isso deixou de mandar supliciar cinqüenta pessoas, entre nobres e sacerdotes. Êle prometeu também de residir em Portugal tanto tempo quanto lhe fosse possível, e não fêz caso algum de tal promessa. Se tivesse tido no mesmo ponto a arte de conservar como a paixão de adquirir, a península teria podido dever-lhe novos destinos. O engenheiro Antonelli demonstrou a possibilidade de pôr em comunicação todos os rios dos dois reinos; e as cidades populosas, colocadas sobre o oceano e exercitadas no comércio, teriam sobrepujado as suas antipatias nacionais para se fundirem num reino poderoso. Pelo contrário, o tirano só cuidou em esgotar o país, para o ter em sujeição; êle lhe proibiu de comerciar com os holandeses, tirou-lhe trezentos navios com mais mil ducados para aí sustentar guarnições.

O Brasil e as colônias portuguesas da África e das índias reconheceram o novo soberano, ao passo que as ilhas dos Açores continuavam a resistir a favor de dom Antônio; mas em breve os holandeses atacaram as novas possessões do seu inimigo, e Portugal, despojado do que tinha adquirido com tanta glória e felicidade, achou-se reduzido ao último recurso dos oprimidos, às conspirações e à rebelião.

Grande número de portugueses emigraram e obtiveram, como sempre, dos inimigos da Espanha uma hospitalidade benévola, subsídios mesquinhos e esperanças enganadoras. Três impostores se deram pelo rei D. Sebastião; quanto ao quarto, a história hesita em o proclamar tal. Reconhecido em Veneza por alguns portugueses, declarou que era o rei. Preso por ordem do senhorio, contou que tinha escapado vivo depois da batalha de Alcácer e alcançado os Algarves, onde se curara de seus ferimentos. A vergonha da sua derrota o impediu de se dar a conhecer, e viajou na Abissínia, na Pérsia, na Geórgia, até o momento em que, roubado de quanto possuía, se tinha refugiado em Veneza. Os Dez interrogaram-no vinte e oito vezes, e, sem declararem que ele mentia, o retiveram preso três anos. Nesta época, foi reclamado pelos emigrados portugueses, e por Henrique IV; o senado pô-lo então em liberdade, determinando-lhe de sair do seu território no prazo de oito dias. Êle passou a Livorno, disfarçado em frade; porém foi reconhecido, e Fernando, grão-duque da Toscana, entregou-o aos espanhóis, que o conduziram a Nápoles. Ali êle recordou ao vice-rei Fernando Rodrigues de Castro particularidades ignoradas de qualquer outra pessoa; apesar disso, foi condenado aos ferros, e nunca mais se ouviu falar dele.

A guerra contra a França tinha sido menos bem sucedida para Filipe II, apesar de todos os meios que êle tinha posto em ação para usurpar a coroa, ou para perturbar em sua posse aquele a quem ela tinha cabido. Todavia, adquiriu Cambraia, pela paz de Vervins.

D. Maria de Portugal, com quem êle tinha casado, morreu dando à luz um filho, que recebeu o nome de Carlos. Este jovem príncipe, que tinha ficado imbecil de uma queda que dera na idade de dezessete anos, divertia-se a matar os animais com crueldade. Cioso de toda gente, quando o duque d’Alba veio despedir-se dele para ir para os Países-Baixos, puxou da espada para o ferir. Êle meditou mesmo matar seu pai, e dirigiu-se a diversos confessores para obter de ser absolvido do assassinato que êle queria cometer na pessoa de um altíssimo personagem; porém nenhum anuiu a semelhante coisa. Pensou depois em fazer, às ocultas de seu pai, uma viagem à Flandres, onde o lisonjeavam com a esperança de o fazerem rei, sob condição de deixar o culto livre. D. João, seu tio, a quem êle confiou 0 seu segredo, revelou-o a Filipe, que o mandou prender (18 de janeiro de 1568), e pôr sob a guarda do duque de Feria. Êle foi julgado pelo cardeal Diogo Spinosa, não na qualidade de inquisidor-geral, mas como presidente do conselho de Castela, assistido do príncipe d’Eboli, preceptor de D. Carlos, e de um conselheiro de Castela, sob a presidência do rei. Em vez de o tratarem como alienado, eles o acusaram do crime de lesa-majestade e pronunciaram contra êle a pena de morte, emitindo contudo a opinião de que o rei poderia declarar que as leis não se entendiam com os primogênitos do soberano. D. Carlos, transportado de cólera, teimou em não tomar alimento. Porém, quando seu pai foi visitá-lo para o consolar, comeu com demasiada ânsia, depois de uma longa abstinência, e foi atacado por uma febre maligna; depois, como definhasse a pouco e pouco, encarregou o seu confessor de pedir o seu perdão ao rei, que lho concedeu; e morreu logo depois (23 de julho de 1568).

É sobre esse fato que o príncipe de Orange e os outros revoltosos compuseram o romance bem conhecido dos amores de dom Carlos com Isabel de França, antes de ela ser casada com seu pai. Ora, basta fazer observar que Filipe tinha trinta e um anos quando esposou esta princesa, e dom Carlos catorze, e que a rainha de Espanha morreu não envenenada, mas de um móvito (23 de outubro de 1568).

Acusaram também Filipe II de ter encarregado Antônio Perez, secretário de Estado, de assassinar João de Escovedo, confidente de D. João da Áustria: isto porém são acusações sem provas, ao passo que é coisa certa ter êle derramado sangue a torrentes. Contudo êle acreditava que procedia bem, a tal ponto que se sentiu remorsos em sua velhice, não foi das perseguições que tinha ordenado, todos estavam habituados a elas no seu século; porém parecia-lhe ser atormentado pelos espectros de D. Carlos (1), de D. João e do seu D. Sebastião.

Êle suportou com coragem e resignação a horrível moléstia pedicular, no decurso da qual recebeu catorze vezes os Sacramentos. Na hora extrema (13 de novembro de 1598), recomendou aos assistentes o infante, alegria de seu coração e delícias de seus olhos, e mandou soltar alguns presos de Estado.

Cs pequenos reinos da Península tinham tido diversas capitais: os francos tinham estabelecido a sua em Barcelona e em Pamplona; os árabes em Saragoça, em Valença e em Granada; os príncipes godos em Oviedo e em Lião; os condes de Castela, em Burgos, e feitos reis, nas cidades que tiravam aos mouros, à medida que iam ganhando terreno aos infiéis. Isabel quis ter o seu túmulo em Granada, onde Fernando, o Católico, foi também sepultado. Logo que o reino foi trazido à unidade, capital teve de ser uma também, para sopitar os ciúmes entre Burgos e Saragoça. Em conseqüência disso, começou-se no governo de Ximenes, e mais ainda no tempo de Filipe II, a considerar como tal Madri. Esta cidade, todavia, situada sobre um platõ deserto, estava em posição muito menos favorável que Sevilha, edificada em meio das mais ricas províncias, na margem do maior rio da Península e suscetível de vir a ser o centro das comunicações com a África, a América e a Itália. Filipe II mandou construir, na vizinhança de Madri, o Escurial, cuja planta, em conseqüência de uma promessa que êle tinha feito na batalha de São Quintino, devia imitar as grelhas de São Lourenço. Despendeu nessa obra uma soma de cinco milhões de ducados, e empregou os artistas de maior nomeada.

(1) Vide Nota B no fim deste livro (Nota do Revisor).

Este príncipe mostrou-se verdadeiramente grande em todos os seus projetos, sem todavia os medir com seus recursos. Tendo achado a política da Espanha trazida à unidade, quis estabelecê-lo também na Europa; e, dirigindo durante quarenta e dois anos todos os gabinetes, teria podido ser o herói da sua época, ao passo que pareceu ser o seu gênio mau. Êle fêz curvar debaixo do mesmo despotismo os americanos, os castelhanos, os aragoneses, os sicilianos, os napolitanos, os belgas, os lombardos. Tendo a justiça de Aragão defendido Perez, ministro que caíra em seu desagrado, e havendo-se revoltado Saragoça em seu favor, êle reprimiu a audácia de seus habitantes, e mandou decapitar com a mesma sorte todo aquele que ousasse lutar contra o rei. Depois de ter desse modo abolido aquela temível dignidade, convocou as cortes em meio do terror geral, e alterou a constituição, tornando-as dependentes do rei.

As antigas instituições desapareceram, portanto, e os grandes da Espanha sucederam aos ricos hombtes. Carlos V ofendeu-se do direito conferido aos primeiros de se conservarem cobertos na presença do rei e eles consentiram em não se cobrirem senão por sua ordem, pelo que êle nomeou grandes com esta simples forma: Cobri-vos; posteriormente, como esse ato ofendesse os senhores alemães que êle tinha trazido à Espanha por ocasião da sua coroação, aboliu-o inteiramente. Filipe III, que empregou habilmente os corpos judiciários em reprimir a nobreza sem elevar a burguesia, tirou mesmo a esta o direito de velar pela tranqüilidade pública, e resolveu os nobres das diferentes províncias a se aliarem por casamentos, a fim de extinguir as antigas rivalidades. Êle criou grandes de primeira e de segunda classe, o que precisou de cartas patentes para o certificar. Os da primeira classe tinham a honra de serem tratados por tu pelo rei, mas ficavam igualmente excluídos de toda a influência nos negócios políticos.

Um vão fausto substituiu assim as severas virtudes espanholas, e a vontade do rei dava a nobreza, que, precedentemente, não devia seus títulos senão ao sangue derramado na defesa da religião e da pátria. O país, contudo, o único talvez na Europa que não sentia então nem o choque das armas estrangeiras, nem os abalos da guerra civil, marchava para a sua ruína; Filipe II deixou-o pobre, e, o que é pior, despovoado e sem indústria.

O boato exagerado dos tesouros da América atraiu para lá dos mares uma aluvião de indivíduos, na esperança de se enriquecerem de repente. Resultou daí que o solo ficou inculto, as minas indígenas inexploradas, c que as idéias relativas à origem das riquezas se acharam fora da boa razão. A nobreza vivia isolada em seus castelos, tão inútil como faustosa. Os arsenais estavam vazios, cs habitantes acharam-se reduzidos de vinte milhões a dez; mas existiam nos Estados espanhóis trezentos e doze mil sacerdotes seculares, duzentos mil eclesiásticos da ordem intermediária, e mais de quatrocentos mil religiosos.

Os proprietários de carneiros apropriaram-se do uso dos terrenos atravessados pelas estradas reais, e do direito de por aí pastar seus rebanhos, que eles conduziam de país em país, segundo as estações; foi assim que lhes foram reservadas para pastagens quarenta toesas de cada lado das estradas, mediante o pagamento de um fraco direito chamado a mesta. Os campos, já despovoados pela peste negra e pela expulsão dos mouros, ainda ficaram por isso mais desertos. Porém a indústria teve mais a sofrer ainda pelo banimento das famílias mouriscas, únicas que a exerciam, e que levaram consigo. Como o fisco não queria perder coisa alguma do que recebia delas, sobrecarregou os que ficavam, e obriqou-os a fuqir também; de sorte que deixou de haver fábricas de seda em Valença, manufaturas de lã na Andaluzia e em Castela. Para animar á)S cultivadores, davam-lhes nobreza, mas ao mesmo .empo arrasavam o solo com impostos. Exaqeravam-se também os direitos de alfândega, que continuavam a subsistir nas fronteiras dos antigos reinos já então reunidos, o que interrompeu as comunicações de um para outro, e fêz cessar a manutenção das estradas e das pontes.

A Inquisição salvou a Espanha das guerras civis, mas comprimiu ali o pensamento, a ponto que as idéias e os progressos das outras nações foram ali considerados como uma heresia. A administração tornou-se corrupta; uma vez aniquilada a marinha, os barbarescos pilharam audaciosamente as costas, a ponto que foi preciso fretar barcos estrangeiros para fazer o serviço de correio entre a Espanha, a América e as Canárias. A dívida pública, já enorme por morte de Carlos V, absorvia em 1588 todos os, rendimentos para o pagamento dos prêmios. Foi portanto preciso fazer bancarrota. A arrecadação das diversas taxas estava nas mãos dos rendeiros, que, feito déspotas pela necessidade que havia deles, por suas riquezas e pela posse de todas as terras, tiranizavam o povo; e como tinham seus oficiais e tribunais particulares, escapavam à jurisdição civil. Do mesmo modo que em um navio naufragado, cada um só trata de apanhar o que pode do que resta, governadores, administradores subalternos, todos roubavam, todos vendiam em concorrência.

Teria sido preciso prontidão e autoridade para reanimar, reger as partes tão distantes desta vasta dominação, e, pelo contrário, tudo caminhava lentamente, passando por infinitas fieiras. Se rebentava a guerra, era preciso assoldadar estrangeiros; e como os recursos públicos se consumiam em pagar espiões, traidores e cargos inúteis, sem contar as malversações dos oficiais, os bisogni (como se chamavam na Itália essas tropas mercenárias) pagavam-se as mais das vezes saqueando as províncias que os mandavam proteger.

Os países sujeitos, caídos em deplorável marasmo, ão rendiam ao tesouro o que eles custavam. Os ren-imentos dos Países-Baixos cheqavam apenas para a ustentação das guarnições; o Franco-Condado não endia coisa alguma; o Milanês, o reino de Nápoles e a Sardenha eram passivos; os deputados do Aragão, de Valença, da Catalunha, do Roussillon, de Navarra e das ilhas Baleares proporcionavam com parcimônia os subsídios, assim como a sua afeição, e faltavam nas maiores necessidades do Estado.

Filipe III tinha sido educado de maneira a evitar nele os pensamentos ambiciosos de dom Carlos. Por isso, fraco de caráter, indolente e beato, não tendo nem os vícios, nem as qualidades de seu pai, êle se confiou plenamente de Francisco das Rochas de Sandoval, ao qual depois criou duque de Lerma, ordenando às autoridades públicas de lhe obedecerem como a êle mesmo. Porém este ministro era, pela sua parte, influenciado por dom Rodrigo de Calderon, que êle fêz conde de Oliva, com cem mil ducados de provisão; homem de talento, enfim, mas que se fêz arroaante l atito quanto o duque de Lerma era brando e afável. Estes deis personagens (porque a contar de Filipe II os ministros são os verdadeiros reis) concluíram uma trégua com as Províncias Unidas e fizeram a paz com a Inglaterra. Mas, ou porque ignorassem de onde provinham os males do país, ou porque não soubessem como lhes remediar, eles ocultaram ao rei a penúria das finanças, cercando-o de festas suntuosas. Julgou-se animar os cultivadores com a criação de uma ordem destinada àqueles que mais se distinguissem, mas apenas eles a obtinham, renunciavam à enxada e ao arado. A fim de excitar a indústria, isentaram os artífices do serviço militar e tornou-se impossível recrutar os exércitos.

A introdução dos familiares do Santo Ofício, pessoas das primeiras classes, que se punham por devoção ao serviço deste tribunal, deu em resultado reviver a perseguição contra os mouriscos, e aumentar a depravação do país. Um edito real elevou (1603) o valor nominal da moeda de cobre quase a par do da prata, tão raro era esse dinheiro e tão absurdos os ministros! O jesuíta Mariana clamou fortemente contra uma tal desordem, e as alusões a que se atreveu contra os atos arbitrários do duque de Lerma e a indolência do rei lhe renderam ser preso.

Finalmente os queixumes gerais produziram a destituição do duque de Lerma, ao qual sucedeu o filho do duque de Uzeda. Oli^a foi perseguido, e mandado matar por crimes que não tinha cometido.

Um dia em que o rei dava audiência, um braseiro cheio de carvões, próximo do lugar onde ele estava assentado, o incomodava muito, porém a etiqueta não permitia nem a êíe de se queixar, nem os cortesãos de notarem o seu incômodo e afastar a causa dele, para não invadirem as funções reservadas ao grande camarista. Enquanto se andava à procura deste personagem, o rei continuou a padecer, a tal ponto que o mal se tornou mortal e que êle desmaiou (1): cercaram-no então de tudo quanto havia de relíquias no palácio, e êle expirou beijando a cruz (1621). A cidade de Madri pôs-se toda em movimento para a pompa fúnebre, depois recaiu na sua sonolência habitual, e Filipe IV, subindo ao trono, inspirou-se em quem havia um século dirigia a política espanhola.

Êle se deixou dirigir por Gaspar de Gusmão, duque de Olivares, que repôs o governo em caminho um pouco melhor; porém, como queria que seu amo sustentasse o título de Grande que êle lhe tinha feito tomar, empenhou-o em empresas desproporcionadas a suas forças. No entanto, a guerra prosseguia lentamente na Holanda; os castelhanos sublevaram-se porque se desconheceu o seu direito de não fazerem serviço militar fora da sua pátria, e Portugal recuperou a sua independência.

 Fonte: Edameris

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