Continued from: Apologia de Sócrates, por Platão

XV

    Em realidade, cidadãos atenienses, para
demonstrar que não sou réu, segundo a acusação de Meleto, não me parece ser
necessária longa defesa, mas isso basta. Aquilo, pois, que eu dizia no
princípio, que há muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem sabeis que é
verdade. E isso é o que me vai perder, se [28 b] eu me perder… E não Meleto, ou
Anito, mas, a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão se perderam muitos
outros homens virtuosos, e outros ainda, creio, serão perdidos; não há perigo
que a série se feche comigo. Mas talvez pudesse alguém dizer: Não te
envergonhas, Sócrates, de te aplicardes a tais ocupações, pelas quais agora está
arriscado a morrer? A isso, porei justo raciocínio, e é o seguinte: não estás
falando bem, meu caro, se acreditas que um homem, de qualquer utilidade,
por  menor que seja, deve fazer caso dos riscos de viver ou morrer, e, ao
contrário, só deve considerar uma coisa: quando fizer o que quer que seja, deve
considerar se faz coisa justa ou injusta, se está agindo como homem virtuoso ou
desonesto. Porquanto, segundo a tua opinião, seriam desprezíveis todos aqueles semideuses
que morreram em Tróia. E, com [28 c] eles, o filho de Tétis, o qual, para não
sobreviver à vergonha, desprezou de tal modo o perigo que, desejoso de matar
Heitor, não deu ouvido à predição de sua mãe, que era uma deusa, e a qual lhe
deve ter dito mais ou menos isto: -Filho, se vingares a morte de teu amigo
Pátroclo e matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamente depois
de Heitor, o teu destino estará terminado
. – Ouviu tais palavras, não fez
nenhum caso da morte e dos perigos, [28 d] e, temendo muito mais o viver ignóbil e não
vingar os amigos, disse: Morra eu imediatamente depois de ter punido o culpado,
para que não permaneça aqui como objeto de riso, junto das minhas naus
recurvas
inútil fardo da terra. Crês que tenha feito caso dos
perigos e da morte? Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses: onde quer
que alguém tenha colocado, reputando o melhor posto, ou se for ali colocado
pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de ir firme ao encontro dos
perigos, sem se importar com a morte ou com coisa alguma, a não ser com as
torpezas.

XVI

    Gravíssimo erro deveria considerar, cidadãos
atenienses, quando os comandantes, por vós eleitos para me dirigirem, me
assinalaram um posto em Potidéia, em Anfípolo, em Délio, não ter ficado eu onde
me colocaram como qualquer [28 e] outro e correndo perigo de morte. Quando, pois, o
deus me ordenava, como penso e estou convencido, que eu devia viver filosofando
e examinando a mim mesmo e aos outros, então eu, se temendo a morte ou qualquer
outra coisa, tivesse abandonado  o meu posto, isso seria deveram intolerável.
Nesse caso, com razão [29 a] , alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e acusar-me de
não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e temendo a
morte, e reputando-me sábio sem o ser.

    Pois que, ó cidadãos, o temer a morte não é outra
coisa que parecer ter sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não
se sabe. Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos
os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se soubessem, com
certeza, [29 b] que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais
reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos,
talvez nisso seja diferente da maior parte dos homens, eu diria isto: não
sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça,
desobedecer a quem é melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem, isso
é que é mal e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por
acaso, são boas ou más. [29 c] Anito disse que, ou não se devia, desde o princípio,
trazer-me aqui, ou, uma vez que me trouxeram não é possível deixarem de me
condenar à morte, afirmando que, se eu me salvasse, imediatamente os vossos
filhos, seguindo os ensinamentos de Sócrates, estariam de fato corrompidos.
Mas, se me absolvêsseis, não cedendo a Anito, se me dissésseis: Sócrates, agora
não damos crédito a Anito, mas te absolveremos, contando que não te ocupes mais
dessas tais pesquisas e de filosofar, porque, se fores apanhado ainda a fazer
isso, [29 d] morrerás; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria:

    – Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos
amo, mas obedecerei aos deuses em vez de obedecer a vós, e enquanto eu respirar
e estiver na posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar e de vos
exortar ou de instruir cada um, quem quer que seja que vier à minha presença,
dizendo-lhe, como é meu costume: – Ótimo homem, tu que és cidadão de Atenas, da
cidade maior e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te envergonhas de fazer
caso das riquezas, para guardares quanto mais puderes e da glória e das
honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te importares de sabedoria, [29 e]da
verdade e da alma, para tê-la cada vez melhor?

    E, se algum de vós protestar e prometer cuidar,
não o deixarei já, nem irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o
convencerei, e, em qualquer momento que pareça que não possui virtude,
convencido de que a possuo, o reprovarei, porque faz pouquíssimo caso das
coisas de grandíssima importância e grande caso das parvoíces. [30 a] E isso o farei
com quem quer que seja que me apareça, seja jovem ou velho, forasteiro ou
cidadão, tanto mais com os cidadãos quanto mais me sejam vizinhos por
nascimento.

    Isso justamente é o que me manda o deus, e vós
o sabeis, e creio que nenhum bem maior tendes na cidade, maior que este meu
serviço do deus.

    Por toda parte eu vou persuadindo a todos,
jovens e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente,
com o corpo e com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela
seja quanto possível melhor,[30 b] e vou dizendo que a virtude não nasce da riqueza,
mas da virtude vem, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto
públicos como privados.

    Se, falando assim, eu corrompo os jovens, tais
raciocínios são prejudiciais; mas se alguém disser que digo outras coisas que
não essas, não diz a verdade. Por isso vos direi, cidadãos atenienses, que
secundado Anito ou [30 c] não, absolvendo-me ou não, não farei outra coisa, nem que
tenha de morrer muitas vezes.

XVII

    Não façais rumor, cidadãos atenienses, mas
perseverai no que vos estou dizendo, isto é, não vocifereis pelas coisas que
vos digo, mas ouvi-me; pois escutando-me, penso que tirareis proveito.

    Aqui estou para vos dizer algumas outras
coisas, e talvez, por isso, levantareis a voz, mas não o deveis fazer. Sabei-o
bem: se me condenais a morrer, a mim que sou tal como eu digo, não causareis
maior dano a mim que vós mesmos. E, de fato, nem Meleto, nem Anito me poderiam
fazer mal em coisa em alguma: isso jamais seria possível, [30 d] pois que não pode
acontecer que um homem melhor receba dano de um pior. É possível que me mandem
matar, ou me exilem, ou me tolham os direitos civis; mas provavelmente, eles ou
quaisquer outros reputam tais coisas como grandes males, ao passo que eu não
considero assim, e, ao contrário considero muito maior mal fazer o que agora
eles estão fazendo, procurando matar injustamente um homem.

    Ora, pois, cidadãos atenienses, estou bem longe
de me defender por amor a mim mesmo, como alguém poderia supor, mas por amor a
vós, para que, condenando-me, não tenhais de cometer o erro [30 e] de repelir o dom de
mim que vos fez o deus. Pois que, se me mandares matar, não encontrareis
facilmente outro igual, que (pode parecer ridículo dizê-lo)  tenha sido
adaptado pelo deus à cidade, do mesmo modo com a um cavalo grande e de 
pura raça, mas um pouco lerdo pela sua gordura, é aplicada a necessária
esporada para sacudi-lo. Assim justamente me parece que o deus me aplicou à
cidade, de maneira que, despertando cada um de vós e persuadindo-vos e
desaprovando-vos, não deixo de vos esporar os flancos, [31 a] por toda a parte,
durante todo o dia.

    E outro parecido, não tereis tão facilmente,
cidadãos. Mas, se me ouvísseis me pouparíeis. É possível que vós irritados como
aqueles que são despertados quando no melhor do dono, repelindo-me para
condescender com Anito, levianamente me condeneis à morte, para dormirdes o
resto da vida, se, entretanto, o deus, pensando em vós, não vos mandar algum
outro.

    Que eu seja um homem cuja qualidade é a de ser
um dom feito pelo deus à cidade podereis deduzir do seguinte: não é, na
verdade, do homem, [31 b] eu ter descuidado das minhas coisas, resignando-me por
tantos anos a me descuidar dos negócios domésticos para acudir sempre aos
vossos, aproximando-me sempre de cada um de vós em particular como um pai ou
irmão mais velho, persuadindo-vos a vos preocupardes com a virtude? Se, em
verdade, disto eu obtivesse qualquer coisa e recebesse compensação de tais
advertências, teria uma razão. Mas agora vós mesmos vedes que os acusadores,
tendo acusado a mim, com tanta imprudência, de tantas outras coisas, não foram
capazes de apresentar uma testemunha de que eu tenha contratado ou pedido
alguma recompensa. [31 c]

    Pois bem; apresento um testemunho suficiente do
que digo: a minha pobreza.

XVIII

    Mas, poderia talvez parecer estranho que eu,
andando daqui para lá, me cansasse dando em particular esses conselhos, e
depois, em público, não ousasse, subindo diante do vosso povo aconselhar a
cidade. [31 d] A causa disso é a que em várias circunstâncias, eu vos disse muitas
vezes: a mim me acontece qualquer coisa de divino e demoníaco; isso justamente
Meleto escreveu também no ato da acusação, zombando de mim. E tal fato começou
comigo em criança. Ouço uma voz, e toda vez que isso acontece ela me desvia do
que estou a pique de fazer, mas nunca me leva à ação. Ora, é isso que me impede
de me ocupar dos negócios do Estado. E até me parece que muito a propósito mo
impede, porquanto, sabei-o bem, cidadãos atenienses, se eu, há muito tempo,
tivesse empreendido ocupar-me com os negócios do Estado [31 e] há muito tempo 
já estaria morto, e não teria sido útil em nada, nem a vós, nem a mim
mesmo.

    E não vos encolerizeis comigo, porque digo a
verdade; não há nenhum homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a
vós ou a qualquer outro povo, e impedir que muito ato contrário à justiça e às
leis se pratique na cidade. E não há outro caminho: [32 a] quem combate
verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum tempo, deve viver
a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos.

    Disso vos poderei dar grandes provas, não
palavras, mas o que prezei: fatos. Ouvi, pois, de minha boca, o que me
aconteceu, para que não saibais que não há ninguém a quem eu tenha feito
concessões com desprezo da justiça e por medo da morte; e que, ao mesmo tempo,
por essa recusa de toda concessão deverei morrer. Dir-vos-ei talvez coisas
comuns e pedantescas, mas verdadeiras. [32 b]De fato, cidadãos atenienses, não tenho
mais nenhum cargo público na cidade, mas fui senador, e, à  nossa
Antiquóida coube por sorte a Pritânia, quando quisestes que aqueles dez
estrategistas, que não haviam recolhidos os mortos e os náufragos da batalha
naval, fossem julgados coletivamente, contra a lei, no que todos vós conviestes.
Então somente eu, dos pritanos,  me opus a vós, não querendo agir em
oposição à lei, e votei contra. E, embora os oradores estivessem prontos a me
acusar e me prender, e vós os encorajásseis vociferando, mesmo assim, [32 c] achei que
me convinha mais correr perigo com a lei e com o que era justo, do que, por
medo do cárcere e da morte, estar convosco, vós que deliberáveis o injusto.

    Isso acontecia quando a cidade era ainda
governada pela democracia. Quando veio a oligarquia, os Trinta, novamente tendo-me
chamado, em quinto lugar, ao Tolo, ordenaram-me que fosse à Salamina buscar o
Leão Salamínio, para que fosse morto. Muitos fatos desse gênero tinham sido
ordenados a muitos outros, com o fim de cobrir de infâmia quanto pudessem.
Também naquele momento, não com palavras, mas com fatos, demonstrei de novo que
a morte [32 d] não me importava, ou me importava menos que um figo, eu diria se não
fosse indelicado dizê-lo. Mas não fazer nada de injusto e de ímpio isso sim, me
importa acima de tudo. Pois aquele governo, embora tão violento, não me
intimidou, para que fizesse alguma injustiça; mas quando saímos de tolo, os
outros quatros foram a Salaminas e trouxeram Leão, e eu, ao contrário,
afastei-me deles e fui para casa. Naquela ocasião, eu teria sido morto, [32 e] se o governo
não fosse derrubado pouco depois. E disso tendes testemunhas em grande número

XIX

    Ora, julgais que eu teria vivido tantos anos,
se me tivesse aplicado aos negócios públicos, e procedendo como homem de bem,
tivesse defendido as coisas justas, e, como deve ser, tivesse dado a isso maior
importância? Muito longe disso, cidadãos atenienses; na verdade, também nenhum
outro se teria salvo! [33 a] Eu, porém, durante toda a minha vida, se fiz alguma
coisa, em público ou em particular, vos apareço sempre o mesmo, não tendo
jamais concedido coisa alguma contra a justiça nem aos outros nem a algum
daqueles que meus caluniadores chamam de meus discípulos.

    Mas nunca fui mestre de ninguém: se, pois,
alguém mostrou desejoso da minha presença quando eu falava, e acudiam à minha
procura jovens e velhos, [33 b] nunca me recusei a ninguém. Nunca, ao menos, falei de
dinheiro; mas igualmente me presto a me interrogar os ricos e os pobres, quando
alguém, respondendo, quer ouvir o que digo. e se algum deles se torna melhor,
ou não se torna não posso ser responsável, pois que não prometi, nem dei, nesse
sentido, nenhum ensinamento. E, se alguém afirmar que aprendeu ou ouviu de mim,
em particular, qualquer coisa de diverso do que disse a todos os outros, sabei
bem que não diz a verdade.

XX

    Entretanto, como pode acontecer que alguns se comprazem
em passar muito tempo comigo? [33 c] Já ouvistes, cidadãos atenienses, eu já vos disse
toda a verdade: é porque tomam gosto em ouvir examinar aqueles que acreditam
ser sábio e não o são; não é de fato coisa desagradável. E, como disse, foi o
deus que me ordenou a fazê-lo, com oráculos, com sonhos, e com outros meios,
pelos quais algumas vezes a divina a vontade ordena a um homem que faça o que
quer que seja.

    Tudo isso, cidadãos atenienses, é verdade e
fácil de provar. Com efeito, suponhamos que, entre os jovens, há alguns que
estou corrompendo e outros que já corrompi: [33 d] seria aparentemente inevitável que
alguns destes, quando tiveram mais idade, compreendessem que eu lhes tinha
alguma vez aconselhado uma ação má – e hoje deveriam estar aqui para me acusar
e vingar-se de mim. Suponhamos ainda, que eles não teriam querido vir
pessoalmente: mesmo assim, alguns de seus parentes, pais, irmãos ou pessoas de
família, se algum dia receberam danos de minha parte, agora deveriam recordar e
tirar vingança.

    Mas eis que vejo aqui presentes muitos desses:
[33 e] primeiro Críton, meu contemporâneo e do mesmo demos, pai de Critóbulo;
depois Lisânias Sfécio, pai de Epígenes, além destes outros cujos irmãos
estiveram comigo na intimidade: Nicostrato, filho de Teozóides e irmão de
Teodoto (e Teodoto, que já é falecido, não poderia impedir Nicostrato de falar
contra mim). E há ainda, Paralo de Demócodo, irmão de Teageto, do qual é irmão
Platão, e [34 a] Ajantádoro, de que é irmão Apolodoro. E muitos outros eu poderia
citar, alguns dos quais especialmente deveriam ter sido apresentados por meleto
como testemunhas, no seu discurso. Mas, se agora se esquivam, aos presentes
aqui eu lhes permito dizerem se há qualquer coisa dessa natureza. Mas vós, ó
juízes, sois de parecer contrário, achareis que todos estão prontos a me
ajudar; [34 b] mas incorruptíveis homens já de idade avançada, parentes daqueles, que
razão teriam para me ajudar senão aquela, reta e justa, convencidos de que
Meleto mente e que eu digo a verdade?

XXI

    Assim seja, ó cidadãos: é mais ou menos isso
que eu poderei dizer em minha defesa ou qualquer coisa semelhante.
[34 c] Provavelmente, porém, algum de vós poderá ficar encolerizado, recordando-se de
si mesmo. Se sustentou uma contenda embora em menor proporções do que essa
minha, pediu e suplicou aos juízes, com muitas lágrimas, trazendo aqui os
filhos, e muitos outros parentes e amigos, a fim de mover a piedade ao seu
favor. Eu não farei certamente nada disso, embora vá ao encontro, como se pode
acreditar, do extremo perigo. É possível que qualquer um, considerando isso,
pudesse irritar-se contra mim, e, encolerizado por isso mesmo, desse o voto com
ira.[34 d] Se, de fato, algum de vós está em está em tal estado de alma, a mim me
parece que poderei dizer-lhe o seguinte: Também eu, meu caro, tenho uma
família, e bem posso, como em Homero, dizer que não nasci: "de um carvalho
nem de um rochedo", pois eu também tenho parentes e filhinhos, ó cidadãos
atenienses: três, um já jovenzinho e duas meninas; mas, contudo, não farei vir
aqui nenhum deles para vos rogar a minha absolvição.

    Porque razão não farei nada disso? Não é por
soberbia, ó atenienses, nem por desprezo [34 e] que eu tenha por vós, mas que eu seja
corajoso ao menos defronte a morte, isto é outra coisa. Tratando-se de honra,
não me parece belo, nem para mim nem para vós, para toda cidade, que eu faça
tal, na idade em que estou, e com este nome de sábio que me dão, seja ele
merecido ou não. O fato é que me foi criada a fama de ser este Sócrates [35 a] em quem
há alguma coisa pela qual se tona superior à maioria dos homens. Ora, se
aqueles que entre nós, tem a reputação de ser superiores aos demais, pela
sabedoria, pela coragem, ou por qualquer outro mérito procedessem de tal modo,
seria bem feito.

    Freqüentemente já notei essa atitude, quando
são elas julgadas, em pessoas que, malgrado a reputação de homens de valor que
tem, se entregam a extraordinárias manifestações, inspiradas pela idéia de que
será coisa terrível ter de morrer: como se, no caso em que vós não o mandásseis [35 b]
à morte, devessem eles ser imortais. São esses homens que, a meu ver, cobrem a
cidade de vergonha, e que poderiam suscitar entre os estrangeiros a convicção
de aqueles que os próprios atenienses escolheram, de preferência, para serem os
seus magistrados e para as demais dignidades, não se diferenciem das mulheres!

    É um procedimento, atenienses, que não deverá
ser o vosso, quando possuirdes reputação em qualquer gênero de valor que seja;
e que não deveis permitir seja o meu, caso eu tenha alguma reputação, pois o
que deveis fazer é justamente que se compreenda isto: que aquele que se
apresenta no tribunal representando estes dramas lamentáveis será mais
certamente condenado por vós do que o que permanece tranqüilo.

XXII

    Mas mesmo não fazendo caso da reputação, ó
cidadãos, não me parece também justo suplicar aos juízes e [35 c] evitar a condenação
com rogos, mas iluminá-los e persuadi-los. Que o juiz não ceda já por isso, não
dispense sentença a favor, mas a pronuncie retamente e jure condescender com
quem lhe agrada, mas proceder segundo as leis. Por isso, nem nós devemos
habituar-vos a proceder contra o vosso juramento, nem vós deveis permitir que
nos habituemos a fazê-lo.

    Não espereis, cidadãos atenienses, que eu seja
constrangido a fazer, diante de vós, coisas tais que não considero nem belas,
nem justas, nem santas, especialmente agora, por Zeus, que sou acusado de
impiedade [35 d] por Meleto.

    É evidente que, se com todo vosso juramento, eu
vos persuadisse e com palavras vos forçasse, eu vos ensinaria a considerar que
não existem deuses, e assim, enquanto me defendo, em realidade me acusaria, só
pelo fato de não crer nos deuses.

    Mas a coisa está bem longe de ser assim;
porquanto, cidadãos atenienses, creio neles, como nenhum dos meus acusadores, e
encarrego a vós e ao deus de julgar a mim, do modo que puder ser o melhor para
mim e para vós.

Segunda Parte – Sócrates é condenado e sugere
sua sentença

XXIII

    [35 e] A minha impassibilidade, cidadãos atenienses, diante
da minha condenação, entre muitas razões, [36 a] deriva também desta: eu contava com
isto, e até, antes me espanto do número dos dois partidos. Por mim, não
acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas de muitos, pois, se
somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo (nota: dos 501
juízes, 280 a favor e 220 contra
).

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