RELAÇÕES COMERCIAIS DO BRASIL. OS TRATADOS DE 1810 – D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

Oliveira Lima – D. João VI no Brasil

CAPÍTULO IX

RELAÇÕES COMERCIAIS DO
BRASIL. OS TRATADOS DE 1810

Com a mudança da corte e a conseqüente abertura dos
portos brasi
leiros
ao comércio universal, é evidente que variaram por completo as con
dições mercantis da colônia.
Antes, no regime de monopólio da metrópole, os negociantes portugueses, em
livre concorrência ou por estancos, fi
xavam a seu talante o preço dos gêneros ultramarinos e
pagavam-nos com
artigos
europeus pelo preço que eles próprios, únicos intermediários, igual
mente determinavam. Era um
contrato em que uma das partes carregava
com
todos os ônus e a outra com todas as vantagens.

No Brasil, aliás, se vivia economicamente muito como na
China, pro
duzindo a
terra tudo de que carecia a população. Excetuavam-se, todavia, os braços e as
manufaturas de luxo. Importavam-se os primeiros da África e as segundas, as
poucas que permitiam a concepção geral de conforto
e os meios do comum dos
consumidores, do reino. Nem para Portugal
residia o valor das colônias no gasto das suas
manufaturas ou no emprego
da sua navegação e dos seus braços supérfluos, como o aconselharia uma sã economia política. Os
trabalhadores não superabundavam em Portu
gal, sendo todos os do Brasil negros escravos; a
navegação era nacional,
isto é, portuguesa, mas só até à metrópole, aí baldeando-se os gêneros coloniais para navios
estrangeiros, geralmente ingleses, que os conduziam
ao seu final destino; as
manufaturas que as colônias compravam e usa
vam, longe de serem produto da indústria do reino,
vinham de ordinário
na
mesma forma do estrangeiro, do norte da Europa para Lisboa, onde
eram reexportadas.

O lucro que Portugal tirava das possessões estava, pois, todo nos direitos
cobrados pela metrópole sobre as exportações para as colônias e as
importações destas colônias,
muito mais do que nos proventos industrial e marítimo. Era uma exploração
econômica, em vez de ser uma remune
ração financeira que aproveitasse a todos os elementos
da organização mer
cantil.
Os impostos diretos pagos pelo comércio brasileiro, ou melhor, o
comércio estabelecido no Brasil,
e que indiretamente recaíam sobre os con
sumidores nacionais, como não podia deixar de acontecer
pela falta de
concorrentes
nas transações coloniais, subiam a 150% no cálculo feito por
Luccock, que foi negociante dá
praça do Rio depois da franquia dos por
tos. Quer isto simplesmente dizer que Portugal recebia
250 libras por cada 100 libras mandadas sob a forma de material de escambo ou
antes de ven
da e
de trabalho, além dos ganhos apurados nos fretes, juros do capital
empregado, monopólios e estancos etc.

Como todo e qualquer produtor, o Brasil precisava de vender para poder comprar: mais do que
qualquer outro, porém, visto ser essa sua única
riqueza, colher para logo exportar, em lugar de
produzir para ir acumu
lando. Ainda hoje assim acontece, porque viemos do excesso imediato da nossa produção agrícola e
extrativa. D. João
VI pôde abrir
as portas ao
tráfico
geral, promover portanto a riqueza, mas não lhe assistia o poder
de criar milagrosamente uma fortuna pública.

O Brasil entrou a negociar diretamente, posto que não negociasse com seus próprios capitais nem
empregasse seus próprios navios mercantes, que
uns e outros faleciam. Apenas, quando a navegação
deixou de ser exclusi
va,
deixou a pauta de ser proibitiva, como o era num país muito embora sem qualquer
indústria. Por efeito do decreto de 1808 passaram os 48%
percebidos nas alfândegas nas
importações a 24%, e mesmo depois de 1810
a 15% para os ingleses, mais favorecidos de fato do que
os portugueses,
os
quais, além de muito menos aparelhados para os negócios e sem instrumentos de
transporte, pagaram até 1818 16% sobre as suas importa
ções no Brasil.

O Rio de Janeiro tornou-se naturalmente, na transformação da existência mercantil da colônia, o
grande entreposto brasileiro. Aí afluíram
as mais variadas mercadorias para consumo local,
distribuição pela cos
ta,
sobretudo entre Bahia e Montevidéu, mas mesmo para o norte, e colocação nos
sertões mais remotos, num grande desenvolvimento do comer
cio que anteriormente existia a par de muito
contrabando.

Em 1817 e 1818, quando Spix e Martius recolhiam suas impressões o Rio estava sendo mais do que
Lisboa teatro de especulações e campo
de atividade comercial. De Portugal lhe chegavam vinhos,
azeites, farinha:
de
trigo, sal, vinagres, bacalhau, azeitonas, lãs, presuntos e paios, frutas
secas, chapéus, algodões,
sapatos, pólvora,240 cordame etc; da Índia e
China, diretamente, porcelanas,
musselinas, sedas, chá, canela, cânfora
 etc; do Reino Unido, fazendas, metais, gêneros alimentícios e mesmo vinhos espanhóis por via de
Gibraltar; da França, artigos de luxo, quinqui
lharias, móveis, livros e gravuras, sedas,
manteiga, licores, velas, drogas;
da Holanda, cerveja, vidros, linho e genebra; da Áustria,
que comercialmente abrangia o norte da Itália e o sul da Alemanha, relógios,
pianos,
fazendas de
linho e seda, veludos, ferragens, produtos químicos; do resto da Alemanha,
vidros da Boêmia, brinquedos de Nuremberg, utensílios de
ferro e latão; da Rússia e
Suécia, utensílios de ferro, aço e cobre, couro,
alcatrão, breu, vigas; da Costa da África, isto
é, tanto de Angola como
de Moçambique, negros (20.000 no ano de 1817), ouro em pó, marfim,
pimenta, ébano, cera — de que as igrejas consumiam carregamentos —
azeite de dendê, goma arábica; de Cabo Verde, sal e
enxofre.

Para as colônias africanas e asiáticas de Portugal, o Rio
de Janeiro representou durante o reinado americano de Dom João
VI o que antes representava Lisboa. O comércio
português com a Índia e a China
localizou-se na praça do Rio, de onde se faziam as
reexportações para Lis
boa e outros pontos europeus, e também para o resto da América, pois
que, por causa das dificuldades da situação política no Prata, o próprio
tráfico para Buenos Aires e
Montevidéu se operou algum tempo pela ca
pital
brasileira.

O comércio brasileiro com a Ásia era, contudo, por si
mesmo valioso. Segundo as estatísticas do Correio Braziliense, as
importações da Ba
hia,
por exemplo, foram no ano de 1808, no tocante à Europa, inclusive
Portugal e fábricas
privilegiadas, da importância de 1.000 contos, e no
tocante à Ásia da importância de
373 contos. No ano imediato elevaram-
se as primeiras importações a 2.000 contos e as segundas
a 443.241

As principais exportações do Rio, as que lhe eram
peculiares, com
preendiam
açúcar, cultivado nas baixadas perto do mar, mormente à roda da capital e nos
distritos de Cabo Frio e Campos, e de que se exportaram, no ano típico de 1817,
680.000 arrobas; café, cultivado mais para o inte
rior, na zona acidentada, e cuja
produção progredia muito, exportando-
se em 1817, 9.567.960 libras e em 1820, 14.733.540
libras; algodão, que
muito
dele vinha, contudo, de Minas Gerais, e fumo, que em parte vinha
do Espírito Santo.

Para consumo e reexportação para dentro e fora do país desembarcavam
entretanto no porto do Rio de Janeiro couros, chifres, charque, sebo,
toucinho, cebolas, arroz, feijão,
queijos, farinha de trigo e de mandioca,
algodão, açúcar e aguardente do Rio Grande do Sul e de
São Paulo; sola,
cebolas,
alhos, peixe seco e louça de barro de Santa Catarina; legumes,
peixe, produtos florestais,
lenha e carvão, pau-brasil, cocos, tabaco dos
.pequenos portos ao norte do Rio — São João do
Paraíba, Macaé, Caravelas, Vitória etc; tonéis de gameleira e cal de Cabo
Frio; cal e louça de
barro
da Ilha Grande; fumo, tucum e escravos da Bahia; sal, salitre e arti
gos europeus de Pernambuco;
peles, couros, charque, farinha de trigo —
o mesmo que do Rio Grande do Sul — de Buenos Aires e de
Montevidéu.
Fazia-se
essa navegação costeira em embarcações de um ou dois mastros, construídas nos
estaleiros dos portos maiores, de cujos arsenais saíam até
fragatas de guerra.

Por
terra não era o tráfico da capital com as capitanias da costa e do interior
menos extenso e remunerador, vindo do Rio Grande do Sul e de São Paulo gado em pé, vacum, cavalar e muar; de Minas algodão em rama, café, fumo,242 pedras
preciosas, queijos, rapadura e tecidos mui
to baratos de algodão; de Goiás e Mato Grosso ouro em pó e em barras e
diamantes.

Para o interior do Brasil as principais exportações do Rio eram panos, ferragens, sal, vinhos e
cocos; para as possessões africanas fazendas,
açúcar, aguardente, fumo, arroz e farinha; para a
índia parte do numerário em barras de ouro e piastras espanholas, que em
poucos anos se ele
vou a perto de 800.000
libras esterlinas.

A superioridade das exportações sobre as importações
determinava
a entrada
de dinheiro da Europa, mas a procura do ouro na Europa du
rante a série de guerras
continentais e depois a procura do metal no Extremo Oriente, segundo rezam os
fastos financeiros, ocasionaram-lhe subida
no valor, chegando o prêmio a 16 e 17%. Com esta
drenagem, o esgota
mento
das minas, o desenvolvimento das relações mercantis e o acréscimo
da riqueza pública e particular,
não mais bastava para o meio circulante do Brasil e Portugal o quinto do ouro
extraído em Minas Gerais, que era
outrora suficiente. A grande contração resultante na
circulação monetária
fez
por vezes subir o juro das letras a 20 e 22%, sendo de 12% o juro usual
para contas abertas entre
negociantes. Devido à carência de numerário
acharam então entrada no Brasil muitas piastras mexicanas,
que valiam
750 réis,
e o Tesouro comprava para recunhar e emitir a taxa de 960 réis
(um peso), que as fez
artificialmente subirem a 915 réis. Destarte pagava o Tesouro por 22 — valor
intrínseco do ouro — o que não lhe renderia
mais
do que 17.243

Pelo tempo em que viajavam Spix e Martius e de acordo com o mapa por eles deixado relativo ao ano
de 1817, o total das exportações do Rio
de Janeiro subia em valor a 5.400 contos, produzindo de
direitos para o
 Tesouro não longe de 150 contos, porque, além dos 2°7o cobrados
sobre
todo produto
exportado e calculados sobre o preço do mesmo no mercado, existiam as taxas
especiais, de 160 réis pela caixa de açúcar, 80 réis
por arroba de café, 100 réis por bala de algodão, 20
réis pelo couro e 20 réis pelo rolo de
fumo. A exportação do algodão somava 320.000
arrobas em 40.000 balas ou fardos, representando em 1817 o valor de
2.560 contos; a de couros valia no mesmo ano 614 contos, equivalentes
a
512.000 peças, e a de fumo 360 contos, equivalentes a 18.000 rolos ou pacotes.

Quanto a preços, o médio do açúcar, entre o branco fino e o mascavado, era de 200 réis por arroba;
a arroba de café custava 2$400 réis; 8$
a de algodão; 1$200 o couro de boi e 6$ os 50 quilos de
tabaco. Natural
mente
os preços oscilavam conforme a maior ou menor procura do gêne
ro, e a procura dava-se maior
quando ocorriam certas circunstâncias ex
traordinárias. A guerra de 1812, por exemplo, entre a
Inglaterra e os Esta
dos
Unidos, foi de grande proveito para o Brasil, como o seria depois a
guerra civil de 1861-1865,
impedindo a regular exportação do algodão ame
ricano para o mercado britânico.

Em ambas as ocasiões o nosso algodão subiu consideravelmente, podendo dizer-se que durante o
reinado de Dom João
VI constituiu,
graças aos compradores ingleses, o principal artigo da exportação brasileira, o
que melhor
correspondia aos esforços empregados pelo governo para pro
teger o comércio nacional,
refletidos na Junta criada em 1808 e reforma
da em 1816. Foi também este o ano em que o rei
mandou estudar, em con
ferências de peritos presididas pelo conde da Barca ou pelo marquês de Aguiar, os meios de estabelecer
um completo sistema de relações comerciais que já funcionava de fato, mas era
conveniente fomentar entre os di
ferentes domínios portugueses, tendo por núcleo o Rio de
Janeiro. Era
por
outro lado idéia privativa de Macau fazer no Brasil o entreposto das
mercadorias da China,
encontrando os estrangeiros no Rio aquilo que cos
tumavam ir buscar a Cantão.

Num sentido não ajudavam os produtores brasileiros e vendedores portugueses os beneméritos esforços
do governo, e é que, para ganharem umas
patacas a mais, adulteravam com freqüência os gêneros,
misturando areia
com
açúcar, sementes com o algodão, outras substâncias estranhas com
arroz.244 Estava-se na
infância da arte da falsificação; era o empirismo da
velhacaria; não passava de um
efeito de trapaçaria e ao mesmo tempo de
ignorância, mas em todo caso prejudicava altamente o
renome da expor
tação nacional.

Igualmente se deram
alguns abusos de confiança ao introduzir-se o regime de crédito mercantil,
anteriormente desconhecido na prática. Nos tempos coloniais quase não se fazia
negócio algum a crédito, nem se punha comumente dinheiro a juros no Brasil:
entesourava-se no pé de meia e vendia-se contado. Nem se formava idéia exata do
valor e influência do capital, ou se emprestava sobre cauções, ou se
descontavam letras. Somente em 1810 foi levantada a proibição para todo o
comércio marítimo de dar dinheiros ou outros fundos a risco pelo prêmio que
pudessem ajustar os seguradores. Existiam, naturalmente, em todo o tempo
dívidas; davam-se declarações de obrigações por contratos e sujeições a
penhoras ou execuções; o que, porém, não havia era operação alguma comercial
baseada propriamente sobre o crédito. Diz Luccock que o fiador de um contrato
ou de uma obrigação só era forçado a pagar depois de declarado insolvente o
devedor, e que algumas, não raras vezes no seu conhecimento, escapavam os bens
de ambos a todo e qualquer rigor da lei.

Do tempo de Dom João VI data a fundação do principal estabelecimento de crédito
brasileiro, o qual com fortuna vária tem atravessado o nosso século de vida
autônoma prestando serviços à economia nacional, posto que nem sempre isenta a
sua administração de abusos e malversações. O Banco do Brasil foi enchido de
mimos pelo governo que o organizou. Para aumentar os favores de todo gênero
que lhe foram dispensados, de fato para tornar mais sólida a instituição, ordenou
o príncipe regente que o dinheiro dos órfãos, das ordens terceiras e das
irmandades, o qual antes se punha a render nas mãos de particulares, fosse de

então em diante entregue ao Banco, passando-se mesmo logo para a sua caixa
aquele que na ocasião estivesse com particulares. O Banco pagaria os capitais
nos prazos convencionados e os juros nos do costume, ficando para garantia
dessas quantias sob hipoteca os fundos da caixa de reserva do estabelecimento.

Mais se dispôs que fosse de nenhum efeito
toda penhora, ou execução fiscal, ou cível, feita nas ações do Banco, e que os
seus bilhetes se recebessem como dinheiro nos pagamentos realizados à fazenda
real e os distribuísse da mesma forma o Erário Régio nos pagamentos das despesas
do Estado. Em 1812, pelo alvará de 20 de outubro, era o Banco do Brasil
favorecido com cem contos anuais de imposições adrede criadas por espaço de dez
anos sobre seges, lojas, armazéns, oficinas e navios. A realfazenda deste modo
entrava como acionista para auxiliar o estabelecimento montado debaixo de
tantas esperanças; mas das entradas realizadas nos cinco primeiros anos não
queria receber lucro algum, destinando tudo quanto lhe pudesse caber para
proveito dos acionistas particulares.

 Chegou o Banco a inspirar grande confiança. Conta
Tollenare245
que os
ingleses do Recife, com o fim de experimentarem a sua solidez, juntaram três
milhões de cruzados em notas e apresentaram-nas a troco, sendo
imediatamente satisfeitos, o que
robusteceu muito no momento o crédito
do estabelecimento. Tollenare, como esperto negociante,
divisava, porém,
o defeito capital da
instituição.

"Não se deve esquecer, pondera ele nas suas
reflexões semanais, que
os bancos só alcançavam tantos privilégios dos governos porque se comprometem, pelo menos
tacitamente, a conceder-lhes grande crédito." E, com
efeito, o próprio governo acabou
por quase arruinar o Banco do Brasil, cu
ja gerência estava, aliás, longe de ser um modelo de
regularidade e probidade.

É sabido que para o regresso da família real para
Portugal foi o Ban
co
posto a saque. Pouco antes de embarcar, a 23 de março de 1821, tinha
o rei de mandar considerar
dívidas nacionais os desembolsos do Banco
nas suas transações com os cofres públicos, ou
adiantamentos efetuados
para suprir as urgências do Estado, declarando responsáveis para com essas
dívidas as rendas do Reino do Brasil e outros rendimentos, e mandan
do entrar para a caixa do Banco
os brilhantes lapidados que se achassem no Erário. Quase naufragou então o
estabelecimento, levado a pique pe
los
próprios que tanto o tinham favoneado.

A honestidade não era, como já houve ensejo de recordar,
um traço
característico
da sociedade brasileira em tempo d’el-rei Dom João
VI. Indivíduos honestos, e no máximo grau, certamente se
encontravam, mas
nãõ
com a desejável freqüência. No Tesouro refere Luccock ser tamanha
a falta de escrúpulos que
correntemente se deduziam prêmios — uma vez
chegou a forçada redução a 17% do total — sobre as
quantias pagas ou
sacadas.
Note-se que tais prêmios não eram exigidos pelo fisco, mas ex-torquidos pelos
empregados para darem andamento a um expediente que
se tornara sumamente moroso e
complicado sob essa comandita de fun
cionários infiéis. Verdade é que, ao passo que as
prodigalidades da ucha
ria
se pagavam pontualmente, esses funcionários da nação andavam com
atraso de nove a doze meses nos
seus salários, sendo muitos assim compe
lidos a dependerem da fraude para a sua subsistência.246

Para os fornecimentos era preferido quem mais desse de luvas. Nos anos imediatamente anteriores à
partida da corte para Lisboa, as coisas
sob este aspecto pioraram muito no dizer do mencionado
negociante in
glês.
Eram notórios os escândalos, freqüentes às concussões, e a advoca
cia administrativa pululava,
trabalhando sem rebuço os agentes ou corretores, que nos negócios em que o
Estado tinha parte se interpunham com
o
fim de receberem comissões.

No domínio comercial o ato mais
importante e de mais graves conse
qüências do reinado americano de Dom João VI foi o tratado de 1810, arrancado à condescendência
anglófila de D. Rodrigo de Souza Coutinho
ao cabo de dois anos de laboriosas conversações e
tenazes esforços por
parte
do representante britânico. Era lord Strangford um desses diplomatas do tipo
de lord Strafford de Redcliffe, sir Robert Morier e lord Cromer, que a
Inglaterra costuma exportar para certos países; que têm mais
de protetores do que de
negociadores, e que impõem com mais brutalida
de do que persuasão o reconhecimento egoísta dos
interesses dos seus con
cidadãos e da sua
nação.

Nem fazia ele mais do que obedecer à política do seu governo. O Reino Unido deixara de ocultar seus
fins, que já se podiam qualificar de francamente imperialistas. Num discurso
famoso, pronunciado na Câmara dos
Comuns, desvendara o grande Pitt o fito capital da
expansão britânica,
fazendo-se
o Pedro o Eremita da nova cruzada que visava, em vez de con
quistar aos infiéis o sepulcro do
Cristo, a conquistar sobre os restantes
fiéis a supremacia mercantil do globo. Strangford era de
têmpera a participar da campanha: estava perfeitamente talhado para o seu
posto e possuía a consciência da sua força, derivada do próprio valor e do
valor das circunstâncias portuguesas. Dele escrevia o ministro americano
Sumter, com eloqüente laconismo, que era "pessoalmente odiado,
politicamente
temido, respeitado e
obedecido".247

Do príncipe regente dizia o representante dos Estados
Unidos, na mes
ma
ocasião, que era pessoa de boas intenções e que não descurava aquilo
que se julgava ser o interesse
nacional, mas que o seu espírito dútil e opor
tunista transbordava de confiança pela
Inglaterra. Não era, contudo, tan
ta a confiança que o fizesse abdicar da sua personalidade
de opiniões. Com
mais
exatidão descrevia Sumter o estado d’alma do ministro Linhares, c
qual pelos mesmos racionais
motivos pensava de igual maneira. "É um
homem de inteligência, com vistas profundas no
que diz respeito a interesses, política e recursos do seu país; percebendo,
porém, que este não
pode
sustentar-se isolado e concebendo uma justa idéia de ascendência britânica, ao
mesmo tempo reconhecendo que outro qualquer no seu lu
gar não faria melhor e poderia
fazer pior, estabeleceu uma transação en
tre
o seu patriotismo e a sua ambição, e nesta posição se conserva."

O tratado de 1810 foi franca e inequivocamente favorável à Grã-Bretanha, se bem que diga o
preâmbulo ter ele por fito "adotar um sister
liberal de comércio, fundado
sobre as bases da reciprocidade, e mútua con
veniência, que pela descontinuação de certas proibições,
e direitos proibi
tivos, pudesse procurar as mais
sólidas vantagens de ambas as partes, às
produções e indústrias nacionais, e dar ao mesmo tempo a
devida proteção tanto à renda pública, como aos interesses do comércio justo e
legal".

Não era empresa fácil a conclusão de um tratado equitativo entre o Brasil e a Inglaterra pelo que
toca às relações mercantis. Interesses havia
que eram irreconciliáveis. Hipólito expôs
lucidamente as condições do ca
so. Em primeiro lugar alguns dos gêneros brasileiros, como o açúcar e o café, entravam em concorrência
com as produções das colônias inglesas
e por este fato estavam virtualmente excluídos do mercado
britânico; outros não encontravam na Inglaterra consumo considerável, o
contrário do
que
acontecia com os vinhos e azeites portugueses, cuja avultada exporta
ção carecia a metrópole de zelar.

Depois, pela sua situação geográfica, distância dos centros de intrigas políticas, magnitude
territorial, dispersão dos núcleos de povoação,
não era o Brasil um país que tivesse de recear
pela sua independência tan
to quanto acontecia com Portugal, sempre ameaçado de absorção pela vizinha Espanha: daí a dispensa
que lhe cabia de fazer favores comerciais por motivos políticos. Além de que,
quaisquer favores concedidos o se
riam em detrimento do futuro eventual das indústrias
brasileiras, pois, sen
do ainda muito pouco conhecidos no próprio Brasil os produtos naturais
da terra, impossível se tornava dizer se muitos deles não se prestariam a
fins industriais.

Finalmente o regime exclusivo outorgado às manufaturas da Grã-Bretanha arredava a contingência
de entabolarem-se outras ligações mer
cantis, com os Estados Unidos por exemplo, cujas
indústrias entravam por
esse tempo a florescer e porventura estariam no caso de alimentar o mercado brasileiro com alguns
artigos mais em conta ou mais apropriados
às
suas exigências.248

O ministro americano chegara com as melhores intenções para promover o desenvolvimento do comércio
do seu país, e logo de começo nu
tria certas esperanças, achando que o acolhimento cordial
que tivera na
primeira
hora provinha tanto da satisfação natural a uma corte de ver au
mentada a representação
diplomática nela acreditada como do interesse no alargamento do tráfico
nacional. "As circunstâncias e ligações atuais
acrescentava ele, devem fazer
quaisquer outras considerações afora estas
parecerem em demasia indistintas para exercerem muita
impressão sobre
um
governo que, como a maior parte dos outros nos nossos tempos, anda
obrigado a cogitar mais de
expedientes que de planos permanentes para
longínquas
vantagens."249


O tratado celebrado com lord
Strangford pronto veio porém ceifar
todas as esperanças americanas. Comentando-o,250
após remetê-lo numa
cópia impressa a 17
de outubro — nesta data ajuntando não poder dar conta do seu efeito sobre a opinião pública, porquanto todas as classes
da população tinham estado
entretidas durante os seis dias anteriores em
corridas de touros ao ponto de tudo esquecerem — ponderava Sumter judiciosamente:
"Tendes observado que o fito e efeito principais dos atuais
convênios são estender ao Brasil o antigo sistema
de conexão entre Portu
gal e
Inglaterra, e restabelecer os tratados abrogados pouco antes da trasl
adação
do príncipe."

O ministro dos Estados Unidos já então não desconhecia
circunstância alguma das que acompanharam essa trasladação. Soubera decerto
que
a intimação
napoleônica de divórcio da Inglaterra fora formulada aos 12
de agosto de 1807, e a resposta
de Portugal fora combinada com o gabine
te de Saint James por intermédio de D. Domingos de Souza
Coutinho.
Soubera
mais que o regente somente consentira em fechar os portos aos
ingleses a 22 de outubro —
quatro dias após o exército invasor francês
ter entrado na Espanha por via de Baiona — depois deles
liquidarem suas
propriedades
em Portugal, com prazo ilimitado para o pagamento dos di
reitos de saída, e ao mesmo tempo
que partia para Paris, carregado de
poderes e de diamantes, o marquês de Marialva, a quem ia
confiada a ta
refa
de aplacar a ira do terrível imperador, e de pedir para o príncipe real
Dom Pedro a mão de uma filha do
antigo estribeira Murat. Soubera fi
nalmente de quão longe datava e quão estreita se fizera a
relação estabele
cida entre Portugal e a
Grã-Bretanha.

Portugal, quando em
1640 se libertara da Espanha, concedera, para
as atrair, vantagens comerciais a outras nações
que aliás de qualquer mo
do o apoiariam, por estar no seu interesse a decadência da Espanha e portanto a independência do reino. A
ruína da indústria portuguesa pode dizer-
se
que data verdadeiramente, outras circunstâncias a ajudando, das exigências que uma tal política de concessões
provocou das partes contrárias. Tendo contudo a França, no afã de proteger as
suas Antilhas recen
temente adquiridas, excluído no ano de 1664 do
mercado nacional, em favor do próprio
monopólio, o açúcar e o fumo brasileiros, a corte de Lisboa
, onde então dominava o espírito vigoroso de
Castelo Melhor, retal
hou proibindo a entrada no reino de mercadorias
francesas.

Deu isto a que Gênova se apoderasse do mercado português para as suas
sedas, e que a Inglaterra visasse ao mesmo resultado no tocante às
lãs, ainda que com menos fortuna
visto em 1681 começarem os portugue
ses a utilizar industrialmente a lã dos seus carneiros.251
Sucessos políti
cos
vieram no entanto preparar a posição alvejada pelo comércio britâni
co. A subida de Felipe V, príncipe francês e fortemente
sustentado por Luiz
XIV, ao trono
da Espanha fez Portugal recear de novo pela sua
integridade com ver-se desamparado da França, e levou-o a lançar-se nos braços da Grã-Bretanha. O célebre tratado de
Methuen, em 1703,
que deu às
manufaturas inglesas de lã o monopólio do mercado português e matou no reino
esta indústria, foi o produto de semelhante fase
diplomática.

Como a Inglaterra pouco relativamente consumia dos
produtos agrí
colas
do reino, houve o saldo que ser pago com ouro do Brasil e assim
foi aquela nação
progressivamente açambarcando todo o tráfico com Por
tugal, para aí exportando seu
trigo, sua quinquilharia, munições, navios
e até capitais, os quais, tomados em Londres a 3 ou 3
1/2 por cento, eram emprestados em Lisboa a juro de 10 por cento. O
próprio comércio pas
sou
em boa parte para as casas da feitoria inglesa, com seus correspon
dentes nas várias províncias. O
ouro que saía não era somente para paga
mento do excedente das exportações inglesas sobre as
importações portu
guesas:
carregavam-no também os navios de guerra britânicos, por con
trabando, pois que tal exportação era legalmente
defesa.

Assim se foi acentuando, exceção feita do lampejo
pombalino, a de
cadência
econômica do reino, simultânea com a sua decadência política
e mesmo intelectual, e se
convertendo à Inglaterra na caixa e depois prati
camente na suserana de Portugal. Nunca todavia
ficou tão marcada esta
relação de dependência como no tratado de 1810, negociado no Rio de Janeiro e do qual escreveu
Palmela252 ter sido "na forma e na substância o mais lesivo e o
mais desigual que jamais se contraiu entre duas nações
independentes":253
a começar pelos motivos que imediatamente o deter
minaram e a findar nas conseqüências que nele se
originaram.

O motivo capital foi o grande prejuízo incorrido pelos negociantes ingleses que, depois da abertura
dos postos brasileiros, mal apreciando por
um lado as possibilidades do mercado que se lhes
oferecia, e por outro
lado
com as fábricas e armazéns repletos de mercadorias mercê das guerras
continuadas e da organização do bloqueio continental, remeteram pa
ra a América do Sul tudo quanto
podia constituir artigo de negócio, conta-
se que até patins. Não achando muitas das consignações
pronta coloca
ção,
baixaram seus preços de metade, ao passo que os gêneros brasileiros
alcançavam preços dobrados,
mesmo porque os navios empregados em tra
zer
as manufaturas britânicas careciam de fretes de torna viagem.

Como resultado, e ainda não
dos piores, deve-se registrar a grande devastação das matas do litoral por
efeito da permissão, dada aos ingleses no tratado, de nelas cortarem madeiras
de construção para as suas embarcações. A madeira carregada para a Inglaterra o
foi não somente para uso nos estaleiros, como para todas as aplicações
possíveis no país de destino e noutros países. Entraram a abundar em Londres os
móveis de jacarandá e de vinhá-tico "’e os navios da mesma nação, que em
outro tempo foram de pinho, e de outras madeiras fracas, e pouco duráveis, agora
já eram de vinhático, pau d’arco, e semelhantes madeiras muito fortes e
duradouras".254

Quando em 1808 o príncipe
franqueou os portos brasileiros às nações amigas, era outrossim um
privilégio que concedia à Inglaterra, não somente por ser a única então da
Europa em estado de manter e proteger uma possante marinha mercante, como pela
razão muito simples de estar quase todo o continente sob o jugo de Napoleão,
quer como protegido, quer como aliado, o que não passava de um equivalente do
primeiro termo. Mais tarde, por ocasião da grande pacificação presidida por
Metternich, é que os portos brasileiros foram realmente abertos a todo o comércio
internacional: o decreto de 18 de junho de 1814 já se não fundava sobre
restrições especiosas. Esses anos entre 1808 e 1814 foram portanto de
verdadeiro monopólio mercantil para a Grã-Bretanha e serviram-lhe para ocupar
suas posições estratégicas e conquistar o mercado. A princípio não tinha
concorrentes e, quando surgiu a possibilidade destes aparecerem, estava ela
armada de vantajoso tratado de 1810, tão hostil pelo seu exclusi-vismo às
outras nações e tão prejudicial à própria metrópole do Brasil.

A política de isolamento
professada no reino era debaixo de certos pontos de vista atrasada e daninha,
mas ainda era o que amparava na sua decadência o comércio português. Hoje, com
as modificações impostas pelo espírito do século, denominamos protecionista tal
política, que nos Estados Unidos tem dado os resultados conhecidos. A abertura
dos portos e o tratado Linhares-Strangford deram àquele comércio um golpe fatal,
acentuando-se o seu deperecimento quando, em 1815, entrou o mundo culto a
gozar novamente benefícios da paz.

Em 1805 tinham entrado no porto
do Rio de Janeiro, sob o regime do velho monopólio, 810 navios portugueses; em
1806 entraram 642, em 1807 subiu o número a 777, sendo quase igual — 765 — em
1808, para atingir em 1810, sob o efeito combinado da liberdade mercantil e da
concentração na capital brasileira dos interesses econômicos do império, o algarismo
de 1.214. Pois dez anos mais tarde, em 1820, apenas 57 embarcações
portuguesas, procedentes de Lisboa e das quais 28 somente de três mastros, fundeavam na baía de Guanabara, elevando-se tal
número a 212
se ajuntarmos os navios sob
pavilhão português vindos da Índia, África e outros países da América do Sul.

São
óbvios os motivos de semelhante decadência. Ao passo que os gêneros coloniais
entraram a baixar depois da paz geral, mercê da cres
cente produção de Cuba e dos
Estados Unidos, fazendo as exportações
destas terras temível concorrência ao nosso algodão, ao
nosso açúcar e
ao
nosso fumo, e iniciando um estado de coisas que pode dizer-se até ho
je se prolonga, as pobres
manufaturas do reino viram-se afastadas em pro
veito das superiores manufaturas britânicas, pela
redução que às últimas
fora concedida. Igualmente exerceu essa redução pernicioso efeito sobre
certas indústrias e culturas incipientes no reino ultramarino, tais como da
seda, do anil, da cochonilha, do
cânhamo, do trigo, dos tecidos de algo
dão, dos curtumes e das salinas, que a metrópole
anteriormente impedira
e que à sombra da franquia de 1808 tinham começado a medrar sob bons auspícios.

Em vista por um lado das circunstâncias econômicas predominantes, e por
outro das condições políticas gerais em que se achavam as duas po
tências contratantes em relação
uma à outra — se bem que no momento
precisamente do início das negociações precisasse a
Inglaterra muito, por
motivo
do bloqueio continental, do mercado brasileiro, e grande número
de oficiais ingleses requeressem
ir servir em Portugal, tendo vários milita
res portugueses acompanhando a corte e sendo não poucos
dos que fica
ram
tachados de franceses — não podia o tratado com a Inglaterra deixar de
representar para Portugal uma capitulação e para o Brasil uma inferio
ridade. De fato assim sucedeu.

As condições exaradas no convênio de 1810 significavam a transplantação do protetorado britânico,
cuja situação privilegiada na metrópole
se consagrava na nossa esfera econômica e até se
consignava imprudente
mente
como perpétua. A falta de genuína reciprocidade era absoluta e dava-
se em todos os terrenos,
parecendo mesmo dificílima de estabelecer-se pe
la carência de artigos que se equilibrassem na necessidade
do consumo,
sendo
mais precisos no Brasil os artigos manufaturados ingleses do que
à Inglaterra as matérias primas
brasileiras. Dava-se ainda a desigualdade
na importância que respectivamente representavam suas
exportações para
os
países produtores, constituindo a Inglaterra o mercado quase único do Brasil,
ao passo que aquela nação dividia por muitos países os seus inte
resses mercantis; e dava-se
finalmente na natureza dos meios de transpor
te com que chegavam os gêneros aos mercados, não
podendo competir
um
fardo de algodão descido de Minas em costa de mula, com uma peça de tecido
carregado por excelente estrada de Manchester a Londres ou
Southamptom.255

Como,
deste modo, impor taxas proporcionais e equivalentes para ba
lançar a situação, isto é, os
favores aduaneiros que um tratado de justa
reciprocidade devia assegurar às duas partes? Hipólito
lembrava bem que
em
tudo levava vantagem o negociante inglês, na justiça e severidade com
que no seu país se fazia a
cobrança dos direitos, quando no Brasil estava a porta sempre aberta a todos os
abusos e malversações, prejudicando a uns a condescendência criminosa exibida
para com os outros; e também
na conquista real e efetiva que para aquele representavam proteção e a
to
lerância
exaradas no tratado para a sua pessoa e religião, quando tais re
galias eram comuns na Inglaterra
para todas as nacionalidades e credos
e nada introduziam de novo. O súdito português domiciliado
na Inglaterra gozava, exatamente como o nacional britânico, da "singular
excelência da constituição do país", mas o súdito inglês, que viesse
residir em Portu
gal
ou domínios, ficaria livre das arbitrariedades praticadas freqüentemente
pela administração e polícia e a que andavam sujeitos
os naturais.

Por último, como eram idênticos os direitos e
equivalentes os adicio
nais a impor, quer fossem os gêneros transportados em navios portugueses, quer em navios ingleses —
assim se considerando tanto os construí
dos nos dois países respectivos como os apresados e
legalmente condena
dos256
— lucrava evidentemente com semelhante disposição a marinha
mercante britânica, já
anteriormente e superiormente aparelhada para o
tráfego. As autoridades portuguesas eram, de
resto, as primeiras a pôr tro
peços à livre e franca navegação, das embarcações nacionais. Haja visto o caso do Tigre, navio
saído de Londres para o Maranhão em 1810 e que,
depois de carregado para a torna viagem, foi
detido pelo governador D. José Thomaz de Menezes por não poder o mestre do
barco satisfazer a
exigência
legal mandando viajar com capelão e cirurgião, pela simples razão de se não
encontrar eclesiástico ou facultativo na capitania ou dispos
to e empreender a travessia.257

Não paravam aí as flagrantes desigualdades do convênio.
Os vinhos
portugueses,
que constituíam a grande importação britânica, continua
ram a gozar do direito
diferencial quando transportado em embarcações
inglesas, oferecendo a Inglaterra como
equivalente a Portugal o tributar
este mais as lãs que não fossem transportadas em
embarcações portugue
sas,
o que estava bem longe de corresponder efetivamente a um favor recí
proco porque as lãs também eram
todas transportadas em navios britânicos.

 

Também na Ásia — e a esse tempo já vimos que não era
destituído
de
importância o intercâmbio entre Brasil, índia e China — a Inglaterra apenas
concedia a Portugal o tratamento da nação mais favorecida, enquanto Portugal
se obrigava a não fazer regulação alguma que pudesse
ser inconveniente ou prejudicial
ao comércio e navegação dos ingleses nos
portos, mares e domínios que pelo tratado lhes eram
franqueados. Nem era esta a mais palpável contradição em matéria de
reciprocidade, cuja
falta
nada teria contudo de estranhável se se reconhecesse desassombradamente que as
vantagens comerciais e outras atribuídas aos ingleses ti
nham por fim corresponder ao
apoio eficaz, sob a forma de socorros de tropas e de empréstimos de dinheiro,
que Portugal estava recebendo da
Grã-Bretanha para garantia e salvaguarda da sua
existência como nação
independente.

Sendo total a desigualdade, não era entretanto
aparentemente com
pleta.
Assim, podiam segundo o tratado estabelecer-se os ingleses em qual
quer ponto dos domínios
portugueses, possuir bens de raiz, abrir lojas de retalho ou de atacado e
viajar livremente, da mesma forma que os portugueses nos domínios britânicos;
ao passo que os outros estrangeiros só
podiam adquirir na Inglaterra, bens aforados por 99 anos
no máximo, não lhes era lícito abrirem lojas em Londres e, para desembarcarem,
estavam
sujeitos à
inspeção e dependentes desde a Revolução Francesa do Alien
Office, o qual possuía a
faculdade de negar licença sem processo legal.

Estas restrições administrativas, se bem que lhes fossem
igualmente
infensas
a letra e o espírito do tratado, e que por dez ingleses idos a
estabelecer-se no Brasil fosse um
português estabelecer-se na Inglaterra,
não foram todavia publicamente revogados, como seria mister
tratando-
se de
derrogação de leis e tratados. Em teoria, senão na prática, seguiram
os ônus recaindo sobre os
súditos portugueses sem maior reclamação da
legação ou embaixada em Londres, cuja recomendação se
fizera mesmo precisa para qualquer português obter da polícia inglesa licença
de residir
nos domínios britânicos.258

Por outro lado os navios portugueses que estavam, aqueles
que de
mandavam as
praias inglesas, na proporção de 20 para 200 navios britâni
cos que se dirigiam para o
Brasil, continuaram a pagar na Inglaterra di
reitos de scavage e outros somente pagos
pelos navios estrangeiros — ten
do eles no entanto sido em tudo equiparados aos nacionais
— sob pretexto de que eram direitos municipais, não podendo intervir nisso o
governo
britânico.
O odioso do fato estava mais que tudo em que as taxas somadas, pagas neste
capítulo pelos portugueses (tonelagem, pilotos, certidão
 de medida, faróis, diques etc.), eram de muito
superiores às que pagavam os ingleses no Brasil.

Para cúmulo, sendo tão mesquinha a
produção dos estaleiros do Reino e por contra fabricando os britânicos todas
as unidades das suas marinhas de guerra e mercante, não se consideravam navios
portugueses, com título portanto aos favores da reciprocidade, os que fossem de
construção estrangeira, embora constituindo a maior parte da marinha mercante
do Reino:’ ‘e isto até [comentava Hipólito] com efeito retrógrado, compreendendo
os que estavam já comprados, e naturalizados portugueses, segundo as leis de Portugal,
ao tempo que se fez o tratado".

Segundo o tratado os monopólios — afora os
da coroa que eram os do marfim, pau-brasil, urzela, diamantes, ouro em pó,
pólvora e tabaco manufaturado — não teriam mais valor para os ingleses, isto é,
os não obrigariam mais daí por diante, existindo para eles, e para eles
somente, perfeita liberdade de comércio, não consentindo Portugal em companhia
alguma que lhes restringisse ou embaraçasse a faculdade de mercadejarem, e
cessando no seu interesse todos os privilégios, mesmo os da Companhia de
Vinhos do Alto Douro, criação de Pombal com que se reanimara no reino a cultura
da vinha.

Poucos anos depois do convênio
entrar em vigor, observava o negociante Tollenare259 que a franquia
dos portos — deveria também dizer o acordo de 1810 — prejudicara muito a
Companhia, sendo igualmente possível que não fosse exemplar a sua
administração. Os importadores tinham encontrado vantagem em mandarem vir
vinhos da Espanha e outros lugares, de preferência os do Porto, de sorte que
nos depósitos se acumulavam ruinosamente as colheitas. Em 1816 Tollenare viu
nos armazéns, sem venda, mais de 80.000 pipas.

Conservara a Companhia o privilégio
da exportação portuguesa para o Brasil, mas cessara o monopólio da importação
brasileira com a liberdade de tráfico, e com a abolição dos favores exclusivos
por efeito d: tratado desapareceram outras regalias. A Companhia, que adiantava
dinheiro aos lavradores a uma taxa moderada, antes comprava as colheitas pelo
preço que ela mesma fixava e tinha sozinha o direito de fabrico e venda dos
vinhos chamados de feitoria. O lucro do Estado residia especialmente na
manutenção das boas qualidades dos produtos, livres das adulterações a que
poderiam sujeitá-los os lavradores isoladamente, conservando-se portanto alto o
crédito da exportação nacional, que à poderosa Companhia convinha zelar.

.

As causas e processos dos ingleses corriam por juízo privativo, de nomeação dos interessados, como já
acontecia no reino e hoje ocorre na Chi
na, estipulando o artigo X do tratado com manifesta ironia, senão de intenção pelo menos de efeito, que em
compensação desse direito de exterritoria
lidade se observariam escrupulosamente as leis pelas
quais eram assegura
das
e protegidas as pessoas e propriedades dos vassalos portugueses residentes
nos domínios do rei da
Grã-Bretanha "e das quais eles (em comum com to
dos os estrangeiros) gozam do
benefício pela reconhecida eqüidade da ju
risprudência britânica, e pela singular excelência da sua
Constituição".260

O artigo XIV do
tratado referia-se à proibição de engajamento numa nação, de desertores da
outra nação, devendo os magistrados locais assis
tir na apreensão dos moços e marinheiros
desertores de navios eventual
mente ancorados no porto estrangeiro. Simultaneamente versava sobre extradição de criminosos, fixando
como de índole a determinarem semelhante
medida internacional a alta traição, falsidade e
"outros crimes de uma na
tureza odiosa” — expressão, comentava Hipólito nas suas excelentes considerações a respeito, muito vaga
e sem realidade de significação pois que,
se na Inglaterra estatuiria sobre o caso e em perfeita
independência um
tribunal
de justiça, em Portugal estaria tal interpretação à mercê do arbí
trio de um secretário de Estado,
sobre o qual exerceria o representante in
glês sua poderosa pressão. Na Grã-Bretanha o governo não
se sentia su
perior
às leis, enquanto que no Brasil um aviso ministerial tinha o privilé
gio de destruir na prática toda e qualquer legislação.

Por isso mais uma vez era sensível a desigualdade do convênio. Também no capítulo da tolerância
religiosa e da liberdade de consciência, que igualdade poderia estabelecer-se
entre os ingleses, que obtinham a facul
dade de erigir suas capelas, sem forma exterior de
templos nem sinos muito embora, e proceder livremente as cerimônias do seu
culto ou cultos sem serem inquietados ou percebidos, e os portugueses aos
quais, concedendo
aquela
tolerância e liberdade em matéria espiritual, nenhum favor novo
outorgava o governo britânico?

A disparidade mais flagrante consistia sobretudo no fato
da Ingla
terra
somente garantir comercialmente a Portugal o tratamento todo platônico da
nação mais favorecida, quando os produtos ingleses iam gozar nos portos
portugueses, se importados por ingleses, de um favor singular
e exclusivo. Após o tratado,
pelo regime de virtual privilégio do comércio
britânico, ficou sendo o seguinte o estado legal
das relações mercantis do
Brasil: livres, as mercadorias estrangeiras que já tivessem pago
direitos em
Portugal,
e bem assim os produtos da maior parte das colônias portugue
sas; sujeitas à taxa de 24% ad valorem as
mercadorias estrangeiras direta
mente transportadas em navios estrangeiros; sujeitas à
taxa de 16% as mer
cadorias
portuguesas, e também as estrangeiras, importadas sob pavilhão
português; sujeitas à taxa de 15%
as mercadorias britânicas importadas
sob pavilhão britânico, ou português. Esta última
disposição ainda foi pos
terior ao tratado, tomada por decreto de 18 de outubro de 1810 (o
tratado
de comércio
e navegação era de 19 de fevereiro e igual data trazia o de
paz e amizade) para não
prejudicar mais a navegação mercante do reino,
contra a qual todavia se atentava gravemente pela disposição anterior.

Serviriam
de base principal à pauta as faturas juradas dos gêneros e os seus preços correntes no país importador.
Impusera lord Strangford
como
condição sine qua non — mais depressa, declarava Linhares na me
mória apresentada ao príncipe regente sobre a
conveniência e vantagens
do tratado,
rompendo todas as negociações do que cedendo coisa alguma
nesse ponto — a admissão nos domínios portugueses
de todas as manufa
turas inglesas
indiscriminadamente, com manifesto prejuízo das fabricas
privilegiadas do reino e portanto da indústria
portuguesa. Gozavam, é ver
dade,
tais fábricas e continuariam gozando no Brasil da isenção de direi
tos de entrada e em Portugal da franquia de
matérias primeiras, mas em
quantos
casos poderiam elas competir, em qualidade e preço do produto,
com as excelentes e vastas fábricas inglesas?
Entretanto, apesar daquela
franquia
indistinta, ficava pelo artigo
XX do tratado vedado introduzirem-se na Inglaterra — a não ser para
reexportação e sujeitos a encargos
de armazenagem, dique, medições e peso, tanto na chegada
como no des
pacho
para fora — produtos dos mais importantes do Brasil, o açúcar e
o café entre outros.

A par de tantas desigualdades havia, à guisa de
compensação, dispo
sições
de uma reciprocidade cômica, como a do artigo
XXI, que dava gravemente ao príncipe regente de
Portugal a faculdade de impor direitos proi
bitivos sobre o açúcar, café e outros gêneros coloniais a
serem importa""
das possessões britânicas, formulando-se assim a hipótese um tanto extraordinária
de entrarem em concorrência com os nacionais semelhantes
artigos estrangeiros, de que no
Brasil existia superabundância para o con
sumo
local.

Também no tratado simultâneo de paz e amizade se
continha como
disposição
muito liberal e proveitosa que a Inquisição nunca seria intro
duzida no Brasil, onde até então
não fora criada, conforme aconteça
em
Goa, indo os judeus brasileiros dar pasto e abrilhantar os autos de fé de Lisboa. Em 1810, porém, já essa instituição
do século
XVI estava praticamente extinta, mesmo em Portugal, onde não
tardaria a desaparecer de todo como uma das primeiras medidas da revolução
triunfante de
1820,
não conseguindo galvanizá-la a reação ulterior.

Deixava,
pois, de ser positiva para aparecer irrisória semelhante van
tagem, encerrada no meio de um
convênio pelo qual a corte emigrada renovava em sua nova sede os tratados da
aliança que desde quatro séculos
existia entre as duas nações, desmanchada apenas um
momento debaixo
da
pressão napoleônica, mas logo reatada, obrigando-se mesmo Portugal pelo artigo
IV do tratado de paz e amizade
"a inteirar as perdas e defalca
ções de propriedade, sofridas pelos vassalos do rei da
Grã-Bretanha em
conseqüência
das medidas que a coroa de Portugal fora constrangida a
tomar no mês de novembro de 1807".

Como
de tudo quanto faz no domínio internacional, costuma a In
glaterra avisadamente tirar
cabedal, não contente com as muitas conces
sões do tratado de comércio, foi naquele outro tratado de
paz — convênio
político
e não mercantil — que lord Strangford arranjou maneira de inserir uma cláusula
facultando à Inglaterra, em recompensa dos grandes ser
viços prestados à família real
portuguesa pela marinha real inglesa, o referido privilégio de "fazer
comprar, e cortar madeiras para a construção
dos seus navios de guerra, nos bosques, florestas
e matas do Brasil (exce
tuando nas florestas reais, que são designadas para uso da marinha portuguesa), juntamente com
permissão de poder fazer construir, prover ou
reparar navios de guerra nos portos e baías
daquele império".261

Os restantes artigos do tratado de comércio e navegação
diziam respeito à nomeação e aprovação dos cônsules; reciprocidade no
tratamento
e honras
dispensadas aos embaixadores e ministros dos dois países; esta
belecimento de paquetes para
fomento das relações mercantis;262 privilégio estendido aos
negociantes ingleses de serem assinantes para os direitos
que tinham de pagar nas
alfândegas portuguesas, sem reciprocidade por
que nas alfândegas inglesas não era conhecido
semelhante favor, nem mes
mo para os nacionais; enumeração do que, consoante o direito das gentes e a interpretação acordada,
constituía contrabando de guerra; restituição
dos salvados, assunto em que a velha legislação
portuguesa era mais libe
ral e humana do que a inglesa, a qual ainda em certos casos reconhecia direitos reais e territoriais,
isto é, dos donatários das terras, aos bens nau
fragados; punição de piratas; finalmente direito
às partes contratantes de
revisão do
tratado ao cabo de 15 anos.

Até terminar a nova discussão, nesse caso de apelo à revisão, ficaria
suspensa qualquer cláusula a que se fizesse objeção e de que se desejasse
 alteração. Isto não abolia contudo a perpetuidade das obrigações e não
ex
tinguia portanto
expressamente* as vantagens de que se encontrasse de pos
se a parte aquinhoada ou julgada
tal pela outra, podendo aquela com boa
razão pedir equivalência pela sua desistência ou renúncia
de favor. E esta
compensação
seria fatalmente concedida porque, como Hipólito escrevia ao rematar seus
judiciosos comentários ao tratado,263 uma nação fraca e
dependente como Portugal,
negociando com a poderosa Inglaterra, sua pro
tetora pela força das circunstâncias, não lograria
escapar ao jugo pelo sub
terfúgio da suspeição indefinida da cláusula posta em debate.

Os
efeitos imediatos do tratado, não obstante sua palpável injustiça
foram benéficos para o Brasil no
sentido que aí fizeram baixar o preç:
da vida. Por isso ponderava o ministro Thomas Sumter264
que "em resu
mo
e tudo considerado, portugueses e ingleses julgavam [ele próprio concordando]
ser o tratado favorável ao Brasil". A 21 de maio explicava por
que, noutra comunicação. O
comércio do Brasil com a Inglaterra estava.
sendo, nas circunstâncias predominantes, muito lucrativo
para a primeira
parte,
achando-se os portos brasileiros inundados de mercadorias britâni
cas que eram vendidas muito
baratas, por atacado segundo o sistema de
venda inglês, e pagando-se os produtos exportados do país
por preços mesmo
superiores
aos que devia permitir a tabela vigente no Reino Unido,
simplesmente pelo fato dos
negociantes ingleses no Brasil, geralmente ligados com casas de comissões e
armadores, zelarem os lucros destes sócios em detrimento dos seus
consignatários. Chegava o representante dos
Estados Unidos a afirmar que a Inglaterra não derivava
um lucro positivo
do seu tráfico
comercial com o Brasil.

No
entanto, o tratado entregou aos ingleses o exclusivo de tais relações mercantis.
Tollenare, malgrado o seu faro do ofício, menciona nas
suas observações que, a não ser
para alguma modista, costureira, seleiro,
fabricante de carros, destilador e armeiro-serralheiro, e
talvez para algum
professor
de línguas, de música ou de desenho, não descobria no Recife
oportunidades de vida para franceses; a não ser também
que, dispondo de um pequeno capital para a compra da terra e dos negros,
quisessem ir plantar algodão a trinta
léguas para o interior. Os engenhos de açúcar
requeriam grande capital, e no comércio existia, para empregados, grande
dificuldade de colocação porque o
serviço se fazia sem caixeiros, com um
homem de confiança e alguns
trabalhadores braçais, e para lojistas, um futuro
muito problemático, visto os armazéns preferirem todas as mercadorias inglesas,
já conhecidas e demais favorecidas pela tarifa, e os expor
tadores ingleses já terem seus consignatários
habituais.

 

Eram estas as naturais conseqüências da posição
conquistada pelos in
gleses,
constituindo além disso "o tratado de 1810 um obstáculo a aperta
rem-se quaisquer laços comerciais
com outros países. Um dos fins da missão Luxemburgo em 1816 foi precisamente
buscar os meio de promover o
tráfico entre a França e o Reino Unido de Portugal e Brasil, nada
logrando
obter o
duque embaixador porque Barca logo lhe declarou que o governo
português pretendia, antes de
pensar em conceder novos favores, regular so
bre um plano uniforme as relações mercantis das
diferentes partes da monarquia entre si. Só depois se poderiam regular essas
relações com as po
tências
européias por meios de tratados de comércio, queixando-se a tal pro
pósito o ministro de Dom João VI de que o convênio de 1810,
"imposto
pela
Inglaterra", impossibilitara o comércio do Brasil com o resto da Euro
pa, colocando-a inteiramente nas
mãos dos ingleses.265

Consolava-se
o embaixador de Luiz
XVIII do seu mau êxito teórico com o anterior e maior malogro dos ingleses na
prática, repetindo o que
já sabemos ser verdade sobre não haver correspondido o Brasil, como mercado para manufaturas européias,
as esperanças nele depositadas com a abertura do portos e a trasladação da
corte, sendo no geral pouco felizes as limitadas especulações tentadas.
"Os pormenores que a este respeito
recolhi colocarão V. Ex. em posição de julgar se não será prudente
entra
var esse impulso da nossa indústria
e dirigi-lo num sentido em que ela se ache
menos exposta às perdas que aguardam os negociantes indiscretos
que a avidez arrastará ao Brasil sem terem
previamente tomado as infor
mações e os conselhos da experiência."266

Por
um lado, pois, não era tão grande mal que as vantagens de trata
mento a que a indústria francesa
aspirava lhe fossem regateadas, ou melhor, recusadas. "Por outro lado,
ajuntava Luxemburgo, o sistema adua
neiro em vigor é por forma tão odioso, e vexatório, que a
fortuna dos ne
gociantes
andará sempre comprometida enquanto não forem dados aos
cônsules nos tratados os meios
de protegê-los contra semelhantes abusos.
Este ponto é porventura mais importante do que o da
diminuição dos di
reitos;
a avaliação legal das mercadorias modificou tanto a enormidade
das taxas, que o lucro ainda
seria imenso se não tivessem os negociantes
que lutar contra os privilégios dos ingleses, os quais alcançaram
ser melhor aquinhoados do que os próprios portugueses. Resultou desta última
circunstância uma espécie de
animosidade que poderá ser-nos muito van
tajosa quando possuirmos um bom tratado de comércio e
que um minis-
lério
menos indolente e mais esclarecido imprima uma melhor direção aos
negócios do Brasil."

 

O momento, todavia, não era dos piores, pois que
estava Barca com os negócios estrangeiros, tendo deixado as" três pastas
de reduzir o velho
Aguiar "que nem a
rã esmagada com a pata de boi", e não se havendo ainda recorrido ao
"estuporado" J. Paulo Bezerra.267

É
fato que a avaliação, segundo notava Luxemburgo, alterava extraor
dinariamente o rigor da tarifa, o
qual podia converter-se em lenidade se
fosse baixa aquela avaliação. Ao ocupar-se com os novos
tratados de Portugal com a Inglaterra, observava Palmela268 que
"a experiência tinha demonstrado, enquanto vigorou o tratado de 1810, o
inconveniente que para nós resultava de um método, que dava lugar a fraudes incessantes
na fatu
ra dos
gêneros, fraudes em virtude das quais o direito de 15% ficava sen
do nominal e não se percebia de fato dele mais que a
metade ou ainda menos. Quando nas nossas
alfândegas se queria obviar a tais fraudes, isso
dava logo lugar a reclamações
diplomáticas".

Também, como os 15% cobrados aos ingleses eram orçados de acordo com os preços estipulados na
pauta e não tanto conforme o valor cor
rente dos gêneros, do declínio dos preços poderia às
vezes resultar que os direitos aduaneiros representassem realmente 25%. Por
isso tinha havido
desde
as negociações uma troca de concessões. A Inglaterra abolira as ta
xas sobre mercadorias
armazenadas nos seus portos para reexportação, c
o Brasil diminuíra consideravelmente a avaliação
segundo a qual se arre
cadavam nas suas alfândegas os direitos sobre as importações inglesas.

Dos artigos exportados pela França muitos não se achavam naturalmente
na pauta vigente, a qual era defeituosa, de sorte que eram avalia
dos pelos peritos. Estes,
desdenhando as faturas e tomando por base c
preço da venda a retalhos nas lojas do Rio, sem se
quererem recordar de que tais preços já ocasionalmente estavam sobrecarregados
em 48%, pe
las
próprias avaliações anteriores, assim se cobrando uma taxa sobre a ta
xa mesma, tributavam aqueles
artigos em 40% algumas vezes, e outras.
vezes em quantia até superior ao valor real da
mercadoria.269 Nem assist
ia aos franceses a faculdade, alcançada pelos ingleses no
tratado de 1810,
de
em casos tais abandonarem as suas importações à alfândega pelos pre
ços por esta arbitrados.

Dir-se-ia que o tratado não esquecera pormenor algum vantajoso a: comércio inglês; e, contudo, um
tanto desiludido dos ganhos previstos pel
a sua diplomacia e especulando com a proteção que aos interesses
pola
cos da
monarquia portuguesa andava dispensando, pretendeu o governo britânico nos anos
imediatos e por intermédio da legação do Rio, obter com a abolição da Companhia
Geral da Agricultura das Vinhas do Alto
Douro, extremamente defendida por Dom João VI, a liberdade absoluta e incondicional — livre e
irrestrita permissão como dizia a versão oficial
— para os súditos ingleses de negociarem,
exportarem e fabricarem vinhos,
vinagres
e aguardentes.

Ao
governo português não convinha absolutamente a caducidade da sua concessão. Os
processos da Companhia eram talvez vexatórios bastante para o produtor,
cerceando-lhe a concorrência no dispor do seu artigo, mas com eles lucrava,
como ficou dito, o renome do produto, bene
ficiando-se assim indiretamente tanto a lavoura como o
comércio. Demo
lir
a criação do marquês de Pombal seria pelo menos abrir francamente
o campo às adulterações.

Lord
Strangford argumentou sofisticamente com a letra do tratado
de 1810, conforme a qual nenhum
monopólio ou privilégio devia embaraçar o tráfico futuro entre os dois países
acordantes. O governo do Rio pre
textava, porém, que justamente ali se tratava do futuro,
não tendo a dis
posição
aplicação ao presente, aos contratos já existentes ao tempo da ce
lebração do convênio; nem por
outro lado referência a causas agrícolas
e tão somente a franquias comerciais.270 Esta
foi, muito poucos dias an
tes da sua morte, a linguagem de Galvêas e, dois anos atrás, a 3 de
dezem
bro de 1811,
fizera Linhares ao ministro britânico declarações peremptórias com relação à
Companhia do Alto Douro, negando que jamais tives
se o príncipe regente tido
intenção de aquiescer à exigência britânica e le
vando Strangford a confessar que, no decurso das
negociações para o tra
tado, se não aventurara a querer incluir expressamente a Companhia
entre
as abolições
porque sabia que semelhante pretensão seria formalmente
rebatida.

É de notar que os negociantes ingleses podiam comprar
quanto vi
nho quisessem à Companhia,
"até mais barato do que os portugueses", e que na Inglaterra, sendo o tratado baseado na letra, quando não no espirito,
sobre uma perfeita reciprocidade, tinham continuado a vigorar a
conhecida Companhia da índia e outras que
funcionavam anteriormente a
os ajustes de 1810.

Outrossim
reclamou a Legação Britânica, recorrendo-se dos mesmos a
rgumentos, a abolição dos
contratos reais do sabão, das cartas de jogar e da aguardente de cana,
replicando-lhe o conde das Galvêas que o primeiro
andava desde 1766 anexado ao
contrato do tabaco, e este explicitam
ente excetuado no tratado de 1810; que o uso das cartas
de jogar estava defeso pelas Ordenações do Reino, só se excluindo da proibição
as manufaturadas por estanco real, e que o terceiro se não podia qualificar de
mo
nopólio de compra e venda, apenas de arrecadação
de rendas reais produ
zidas
pelos impostos e subsídios, estabelecidos sobre o referido gênero.

Um tratado de comércio como este, tão extenso, variado e
inovador,
bolia com
tantos interesses e alterava tantas coisas, que se podia bem es
perar que suscitassem
dificuldades e despertassem discussões quase todos os seus artigos. Choveram
com efeito as reclamações, que pejam os livros de correspondência com a legação
de Londres, provenientes tanto dos ne
gociantes portugueses em Inglaterra, como do comércio do
reino, como
dos próprios negociantes
ingleses.

É contudo de ver que, pedindo muito e pedindo sempre,
pela voz do
seu
representante oficial ou pela dos particulares interessados, se não pres
tava a Inglaterra do seu lado a
corresponder com boa vontade às reclama
ções portuguesas, invariavelmente entendendo a seu jeito
a reciprocidade. Assim, havendo o Alien Bill sido outra vez votado por
dois anos em 1816,
como
medida de conservação contra as doutrinas revolucionárias e de se
gurança contra os estrangeiros
perturbadores de ordem, somente "deixando
aos lesados queixosos de procedimentos vexatórios
e injustos o recurso ao
Conselho Privado Britânico", nada logrou novamente obter em favor
dos aliados da Grã-Bretanha a Legação Portuguesa em Londres. Cipriano Ri
beiro Freire
é quem dirigia ao marquês de Aguiar as seguintes palavras:
"… as maiores instâncias e
diligências que fiz, para que os nacionais por
tugueses fossem excetuados das regulações desta
lei foram sem efeito, co
mo não sendo possível nem praticável fazer exceção de potência alguma
sem ofensa das outras, em uma medida de preservação própria, primeira
das leis naturais e sociais".271

Logo depois de divulgados e postos em execução os tratados de 1810. vários tópicos dos comerciais
tinham entretanto sido prontamente julga
dos inconvenientes, abrindo-se, para os modificar, novas
negociações pro
movidas
pela corte portuguesa, desta vez em Londres. O governo do Rio não esperou porém o resultado dos esforços diplomáticos do seu embai
xador Funchal para publicar, aos
26 de maio de 1812,272 um alvará com
força de lei em retaliação dos direitos de scavage
e outros que continuaram pagando na Inglaterra os navios portugueses,
apesar de equiparados
pelo convênio aos
nacionais, sobre que não recaíam tais taxas.

O citado alvará estabelecia direitos de saída de 4%, além do aluguel do armazém e despesas do guarda,
sobre os gêneros britânicos reexporta
dos: os direitos seriam mesmo de 5% para os produtos que
não fossem
britânicos,
ou pertencentes a negociantes britânicos, o que prolongava o
regime de favor até na
retaliação. No alvará também se fixava o tempo da
armazenagem e se criavam penas
para as embarcações que extraviassem
mercadorias
constantes do livro de carga ou de portaló.

A resolução tomada pelo gabinete português produziu no assunto salutar efeito, pois que no acordo
relativo a pontos de importância, verdade é que secundaria ao lado das mais
evidentes contradições de reciprocida
de, a que chegaram em Londres os comissários portugueses
e ingleses no
fim de
1812 — e no qual aliás mais se agravou em algumas matérias a fal
ta de reciprocidade — ficou
estipulado que os direitos chamados munici
pais
e os pagos à corporação dos pilotos (Trinity House) continuariam a ser cobrados, restituindo-se, porém, a
diferença quando se verificasse
haver
o negociante português desembolsado mais do que o britânico. Em
correspondência o governo do Rio suspendia o
alvará de 26 de maio de
1812 na
parte referente à cobrança do novo direito de reexportação, fican
do em
execução a prática anterior, a saber, os 4% sobre a baldeação.

Compensação nacional para as desvantagens de um tratado que tanto
favorecia o comércio de uma nação estrangeira, julgou o governo de Dom João
VI achá-la na liberdade de comércio
estendida a todos os do
mínios portugueses da África e da Ásia,273 abrindo-se os seus
portos ao
tráfico
direto com os outros portos da monarquia, não só com a metró
pole, "para que, por este
vasto e geral sistema de comércio, se reproduz
am novos meios de correspondência e relação entre
os meus vassalos, resi
dentes
nos importantes e preciosos domínios que possuo nas mais feli
zes e ricas paragens do globo".

"A posição geográfica do Brasil por si mesma —
ajuntava o alvará, já referendado por Galvêas quando, após a interinidade de
Aguiar, subs
tituiu Anadia na pasta do
Ultramar a que andavam juntos os negócios do
Brasil —, a mais favorável e apropriada para se constituir o empório
ao comércio de entreposto entre a Europa e
Ásia." De fato, porém, tinham-s
e
descurado os melhores interesses
do comércio nacional e a ligação prá
tica,
não somente teórica, das várias seções da monarquia num apertado quase mercantil,
nem se conservando para os vinhos portugueses o merca-o exclusivo do Brasil,
nem facilitando e garantindo, por meio de regulamentos
adequados, ao açúcar brasileiro o mercado
exclusivo de Portugal,
sano para consumo como para reexportação livre de
vexames.

Noutros artigos
notava um periodista da época uma disparidade cla
morosa e funesta: nos chapéus, por exemplo, indústria já muito portuguesa,
gravada na saída do reino com direitos de consulado no valor de 15% e a taxa sobre fábricas de 3% e não podendo
portanto competir com a
inglesa, e da mesma forma nas chitas, que pagavam em
direitos da Casa das Índias,
. manufatura
e consulado ou saída, 7% mais do que as inglesas.

Antes do tratado de 1810, logo que foram abertos ao comércio estrangeiro os portos, os vinhos,
licores espirituosos e azeites eram tributa
dos em 48% em vez de 24%, mas todas as mercadorias
transportadas em
navios
portugueses por conta de súditos portugueses pagavam um terço menos de
direitos. Não admira portanto que o convênio com a Inglaterra fosse
nacionalmente considerado um desastre pelos espíritos imparciais,
e que outras nações que contavam
tirar grande partido do comércio livre,
o mirassem de soslaio como envolvendo um prejuízo
positivo.

Ainda as nações européias andavam todas por esse tempo
muito ocu
padas com
as guerras continentais: os Estados Unidos, porém, que, assim que o príncipe
regente chegou ao Brasil, mandaram ao Rio um bri
gue de guerra com o cônsul nomeado para a Bahia,
Mr. Henry Hill, en
carregado
de saudá-lo em nome do presidente americano por ter posto
pé no continente ocidental que
lhes era comum, se não podiam reconci
liar
com a idéia que as primitivas trocas de amabilidades e expressões de simpatia não conduzissem a um tratado, pelo
menos sobre a base da
nação mais favorecida.

Nem
as exigências da situação comercial eram de natureza a justifi
car os favores exclusivos
concedidos à Grã-Bretanha. O açúcar brasileiro
podia bem encontrar nos Estados Unidos um mercado
amplo e seguro,
que
insuflaria nova vida à sua produção à custa do açúcar das índias Oci
dentais Inglesas, e por outro
lado as regalias de ordem moral e alcance
civilizador facultadas pela Grã-Bretanha, constituíam
lei vigente na Amé
rica
do Norte. "Entre outras circunstâncias que não escaparam a vossa
notícia, rezava um despacho do
secretário de estado ao ministro Sum
ter,274 descrevereis a liberdade de
residência e de tráfico existente nos nos
sos portos de mar e no interior do país; a eqüidade das
nossas leis municipais; a universal tolerância que entre nós prevalece em
matérias religiosas;
a
barateza, extensão e espírito de empreendimento da nossa navegação; a
importância de cedo se assegurar a amizade de uma nação numerosa,
crescente e industriosa,
habitando o mesmo continente; a total improbabilidade de futura aparição de
interesses em conflito, com relação ao in
tercurso
com outra qualquer parte do mundo."

Preso à Inglaterra pelas disposições leoninas do tratado de 1810, e não achando modo de eximir-se
dessas obrigações, procurou o governo
português ressarcir suas perdas acentuando em sua
legislação aduaneira
a
tendência protecionista, da produção e do transporte, que estava sendo
comum a todas as nações cultas.
Pelo decreto de 2 de maio de 1818 foi
a imposição dos direitos aduaneiros ampliada a todas as
importações sem
 exceção, mesmo pertencentes à família real, sendo declarados suspensos
por 20 anos todos os privilégios e isenções. Os vinhos estrangeiros foram
tardiamente onerados no triplo
dos portugueses; a aguardente estrangeira em duas e meia vezes mais. Cada
arroba de carne seca exportada em na
vio estrangeiro passou a pagar 600 réis; em navio
português 300 réis. Os
direitos sobre todas as mercadorias portuguesas baixaram de 16 para
15%,
ficando assim
equiparadas às inglesas e até entraram as manufaturas da
metrópole a gozar para a sua
importação no Brasil de uma redução de
5% a título de prêmio, decretando-se igual favor para os
gêneros estran
geiros
importados em navios portugueses. As produções asiáticas passa
ram a pagar 3 em vez de de 8%. Estabeleceu-se uma taxa
de 2% sobre a exportação de artigos de ouro
e prata, diamantes polidos e outras pedras preciosas, e bem assim, sobre todos
os artigos de comércio que até
então
não pagavam direito fixo, regulando-se embora diferentemente este
direito segundo as pautas dos vários portos. Era
tal taxa um equivalente dos direitos de consulado que semelhantes artigos
pagavam nas alfândegas portuguesas e que foram então abolidos, sendo ao mesmo
tempo de
clarada livre a
reexportação dos portos do velho reino. No Brasil os escra
vos e mercadorias de todo o gênero importadas e
depois reexportadas pa
gariam antes um direito de consumo.

Tudo isto significa indubitavelmente um começo de libertação do comércio nacional da tirania
inglesa e uma tentativa séria de proteção ao
sistema mercantil luso-brasileiro.275
De resto, se os efeitos imediatos do
tratado que tamanha celeuma levantou, tantas imprecações
valeu a Linhares
e
ficou na história diplomática como um modelo de convenção leonina,
foram em grande parte vantajosos
ao Brasil pelos motivos indicados, seus
resultados permanentes sabemos também que não foram
afinal tão vanta
josos para a Inglaterra
como se podia ou queria imaginar.

O comércio britânico ganhou individualmente em alguns casos, fazendo-se fortunas à sombra dos
favores outorgados de nação a nação, mas
perdeu consideravelmente em outros casos. Coletivamente
não lucrou bas
tante,
já por causa de especulações intentadas e que se baseavam na re
pentina abertura de um mercado
novo, erroneamente antecipado mais im
portante do que efetivamente resultou; já por causa dos
prejuízos experimentados na venda dos oscilantes produtos recebidos do Brasil
em troca
das
importações inglesas; já pelas perdas ocasionadas pelos créditos a prazo
imito extenso concedidos pelos
comissários ingleses, e que atrasavam as
operações mercantis, favorecendo também as especulações
dos mercadorias
a
varejo com os retalhistas. Em 1820, ano que precedeu o regresso da
corte, existiam no Rio de Janeiro
uns sessenta estabelecimentos ingleses
e muito naturalmente a concorrência entre eles
determinava maiores pra
zos para os créditos, chegando alguns a dezoito meses.276

Se ajuntarmos àquelas circunstâncias particulares a da
geral e pro
gressiva
depressão comercial que se verificou na Inglaterra depois da paz,
quando começou o escoamento das
mercadorias acumuladas durante o
bloqueio continental, sem que pudesse por isso mesmo
manter-se uma pro
dução
igual à anterior, resultando de semelhante estado de coisas muitas
falências, motins provocados
pelos operários sem emprego despedidos das
inúmeras fábricas, uma situação em resumo de
descontentamento, misé
ria e desordens em vez do sonhado reinado da abundância, ficaremos bem persuadidos de que o mercado
brasileiro não constituiu para o capital bri
tânico uma mina copiosa de juros.

Além disso, por mais desigual que lhes corresse o
tratamento, não
deixaram
os franceses de aparecer como rivais. "De alguns dos portos da França —
escrevia Marrocos à irmã277 — têm aqui chegado alguns na
vios, com muitas modas, enfeites
e bugiarias, mais baratas que as inglesas, de que estes desesperam, pois
queriam só para si o interesse; e ainda esta semana aqui tive em minha casa
três vestidos de seda, bordados de palheta de prata, para ajustar, mas achei
muito caro o preço de cada ura,
que era de cinco doblas. É provável que aí tenha
aparecido o mesmo com
igual
abundância. Já vão aparecendo aqui muitos franceses, que são co
nhecidos pelo tope branco; mas eu
não sei pelo que, ainda lhes conservo tal aversão, que não posso olhar direito
para eles; e para mim ficou sendo
nação
detestável."

Calculava Henderson que no referido ano de 1820 não menos
de
200.000 libras
de propriedade britânica se achavam empatadas nos forne
cimentos a crédito, e
eventualmente sujeitas a demandas sempre demora
das e as mais das vezes ruinosas, complicadas,
como não deixava de ocor
rer, com embargos, vendas fictícias e o moroso andamento de uma justiça
dúbia. Afora esta
paralisação de capitais, envolvendo sérios riscos, não
raros eram os abusos graves que
se davam com a pauta aduaneira que de
via regular os direitos de importação ad valorem, apesar
das precauções
tomadas.

A
pauta em vigor marcava para certos artigos taxas fixas, quando eram
flutuantes seus preços: com a
tendência geral para a baixa predominar::
nos centros fabris ingleses, artigos havia que na
realidade estavam pagado no Brasil, em vez do direito de favor do tratado, 25
e 3097o. Outras  e
zes
era o caso que a pauta não atendia suficientemente às diversas qualidades de um
dado gênero, como por exemplo madapolões ou cambraias,
cobrando-se taxa igual sobre a
qualidade fina e sobre a ordinária, o que
fazia
com que esta chegasse a pagar efetivamente 40% de direitos.

Diriam os numerosos descontentes que ainda eram fracas
tais ate
nuantes
para a falta absoluta da reciprocidade que deveria caracterizar um tratado que
sobre ela se proclamava baseado. Se abusos como os apontados se davam do lado
português, em compensação outros piores
se
praticavam do lado inglês. Assim, os navios portugueses pagavam por tonelada na Inglaterra cerca de 2,200 réis,
quando os navios ingleses
pagavam
uma bagatela de taxas em alguns portos portugueses e em ou
tros coisa
alguma.

Os vinhos portugueses, que pelo tratado de Methuen
gozavam do fa
vor
de um terço sobre os direitos pagos pelos vinhos franceses, tinham che
gado a ser onerados por pipa, de
11 libras que tanto era o imposto adua
neiro percebido logo depois do convênio de 1703, com 54
libras que tanto
viera
a ser o imposto cobrado em 1814; ao passo que as lãs inglesas tinham entrado
para o regime comum dos 15%, lançados depois de 1810
sobre as importações britânicas.
Entretanto Portugal possuía pelas cláu
sulas do referido tratado de Methuen a faculdade de até
proibir a introdução de semelhantes fazendas, no caso de se alterar alguma
coisa no exis
tente que redundasse em
prejuízo dos seus vinhos.

O auction duty ou taxa de leilão era um direito adicional de 5%
lançado sobre as fazendas estrangeiras vendidas na Inglaterra em almoeda. Do
seu pagamento estavam excluídas apenas, antes da guerra de 1812-13,
as fazendas americanas, não as
portuguesas, não obstante a cláusula da nação mais favorecida de que desfrutava
Portugal e de não ser cobrado tributo análogo nas alfândegas de Portugal e
Brasil.278

O redator do Português calculava em milhões de
cruzados a diferença que se poderia obter de lucros com o restabelecimento de
uma verdadeira reciprocidade, desvirtuada e apregoada por tão manifestas
desigual
dades.
Mediante essa diferença se poderia robustecer o erário público, va
zio ao ponto acerbamente
comentado pelo citado periódico, de oficiais
da marinha real terem que mendigar por não
receberem seus soldos, e de funcionários civis buscarem na desonestidade o que
lhes escasseava em adequada remuneração. Os abusos, porém, tinham-se criado à
sombra do
regime e
a sua extirpação radical significaria a morte do mesmo regime.
A corrupção medrava escandalosa
e tanto contribuía para aumentar as de
spesas, como contribuía o contrabando para diminuir as
rendas. No velh
o reino acoutavam-se nos
palácios da fidalguia ninhos de contraban
distas, que eram os próprios criados da casa, por vezes
partilhando os amos
dos
seus ganhos ilícitos. Foi a prevaricação, que era a essência mesma da
administração portuguesa, que
adulterou os fins da função do Banco do
Brasil nessa época, fazendo do estabelecimento uma
simples sucursal do
Tesouro
para emissão das notas com que cobrir as necessidades do Erá
rio, quando fora destinado a
facilitar as transações comerciais que a aber
tura dos portos devia alargar, organizar o crédito
bancário com a multiplicação dos escassos capitais, e dar incremento à
agricultura brasileira.

No tocante ao convênio com a Inglaterra, o modus
faciendi
é que foi
censurável, não a idéia em si de um tratado de comércio que tinha de
fazer-
se porque era
até necessário habilitar o Brasil, que não possuía fábricas, a receber as
manufaturas exigidas para seu consumo, as quais que anta
lhe chegavam pelos portos de
Lisboa e Porto, então fechados ou quase ao comércio marítimo do norte. Não
menos necessário era promover a
exportação dos produtos agrícolas do Brasil, sendo
forçoso encontrar pa
ra
eles mercado direto, na falta das praças intermediárias e mesmo do mer
cado da metrópole. A colônia não
podia ser sacrificada sem piedade, a
luz
mesmo dos interesses portugueses.

Considerada pois isoladamente da de Portugal, a situação
comerei
do Brasil
lucraria com qualquer acordo mercantil que se tornasse o com
plemento da profícua abertura
dos portos ao tráfico estrangeiro. À calô
nia egoistamente tanto importava que com tal tráfico
enriquecessem in
gleses
como portugueses da metrópole, e estes eram os que verdadeira
mente sofriam com a perda do
antigo monopólio, cuja conservação não
sem razão consideravam vital. Para o Brasil o essencial
era estabelecer relações comerciais diretas com outros países e ativá-las o
mais possível mel
hor
lhe resultando ainda assim de toda a falta de reciprocidade do convênio
Strangford-Linhares do que da decaída tutela nacional, que obstava
qualquer desafogo autonômico.

O fato
feria os próprios observadores do tempo mais interessado no
prolongar, se não perpetuar a
condição de vassalagem econômica da pos
sessão. Ao mencionar como uma medida altamente vantajosa
o decreto
emancipador da Bahia, de 28 de
janeiro de 1808, não pôde esquivar-se a admitir um cronista do tempo:
"Deste modo não intervindo os negociantes,
e as barras de Lisboa, e do Porto, chegavam as coisas de fora mais b
aratas,
e saíam as da terra mais caras, do que antigamente. Por outra parte com a chegada de muitos navios mercantes
não podia haver falta
dos artigos comerciais estranhos, e aumentando-se
com a esperança do maior lucro a Agricultura
do país, devia ser grande a abundância dos  gê
neros destes. Tudo assim logo
sucedeu. Foi mais o tabaco da Bahia, o café
do
Pará, e do Rio de Janeiro, o arroz do Maranhão, o algodão deste, e de Pernambuco, o açúcar deste, e da Bahia, e a
madeira, a courama das
capitanias marítimas."279

Voltando ao assunto, escreveu ainda o mesmo cronista
coevo: "Ora
disto
proveio ser o comércio com os estrangeiros muito grande por virem
logo muitos navios mercantes
carregados da Grã-Bretanha. Os portugue
ses do Brasil tiveram também logo o cuidado de aumentarem
o número
de navios
nacionais deste exercício, pelo modo, e com a presteza, que lhes
foi possível. Enfim chegaram a
pouco, e poucos navios de outras nações;
e se viram fazendas, e diversos panos, alguns muito
estimáveis, todos na
quela
abundância, em que antes não apareciam, e todos também por pre
ços mais cômodos, do que aqueles,
porque em outro tempo se vendiam.
O mesmo sucedeu com a manteiga, queijos, bacalhau e
outros gêneros."

A obra política do conde de Linhares foi portanto
benéfica ao Brasil,
mesmo
em seus aspectos menos defensáveis, por avessos à eqüidade de
um pacto internacional e aos
exclusivos postos que legítimos interesses da
metrópole.

269

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