REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA

Oliveira Lima

REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817 Discurso Oficial

Exmo. Sr. Governador do Estado, Minhas Senhoras, Senhores: Celebrando festivamente o primeiro centenário da revolução de 1817, o EstadAde Pernambuco e os Estados vizinhos em direção ao norte, porwide ela se propagou, a saber, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, perdendo de intensidade à medida que se afastava do seu centro de propulsão, prestam adequada e merecida justiça aos que lutaram, sofreram e morreram pelo seu ideal político, que foi um ideal de liberdade. Nem se pode acoimar de tardia essa justiça: os mártires de 1817 foram venerados desde o primeiro dia e os seus vultos crescendo sempre na tradição popular. O recuo de um século não é demasiado para dar a essas figuras as devidas proporções históricas, que entretanto as não privam do relevo adquirido.

O Estado de Pernambuco nomeadamente recorda e comemora por esta forma solene a sua iniciativa prática no movimento da Independência Brasileira, cuja data auspiciosa o Brasil inteiro se dispõe a saudar dentro em pouco. Tal iniciativa assentava aliás perfeitamente a gente que no século XVII defendera com singular desassombro a soberania portuguesa neste hemisfério e lograra conservar intacta a integridade da nação que se estava formando através de variadas peripécias, todas se cifrando na conquista, mediante a penetração pelos exploradores dos sertões, da imensidade territorial à qual já cabia o nome de Império antes que a esta denominação se recorresse para mostrar que o nosso país não constituía mais um reino pelo puro direito dinástico, mas uma nacionalidade regida por um governo de aclamação popular na forma monárquica e hereditária.

Estaria a capitania, que os democratas de 1817 pretenderam subtrair à autoridade real e ao domínio lusitano, em condições de constituir um Estado independente c uma comunidade republicana?

A pergunta impõe-se; impunha-se desde logo, mas entretanto só agora parece possível responder a ela ou pelo menos esboçar uma opinião a respeito.

O Padre João Ribeiro, a mais notável e a mais tocante das personagens da revolução, teve a pronta intuição de que era pouco viável a organização autônoma de tantas pequenas repúblicas. Elas deviam formar constelação, ligar-se por laços políticos indissolúveis e consagrar essa união erigindo uma capital geograficamente central.

O historiador da revolução, o Monsenhor Muniz Tavares, cujo trabalho o Instituto Arqueológico acaba de mui oportunamente reeditar, duvida mesmo, apesar dos seus sentimentos acendradamente democráticos, que a experiência fosse feliz, julgando-a antes têmpora. Êle não só chama a atenção, com agudo senso sociológico, para o perigo de transplantarem-se instituições estrangeiras sem levar em conta o espírito local que poderá achar-se ou não em situação capaz de perfilhá-las, e rende homenagem insuspeita à bondade do monarca que viera erguer seu trono sob o céu dos trópicos, como declara concordar com o mártir José Luís de Mendonça em que a mudança instantânea da escravidão à liberdade representa um salto mortal. Seria aliás possível conceber uma democracia associada à instituição servil?

A democracia americana tentou semelhante consórcio, por uma manifesta contradição, em virtude da qual o Sul conservava toda a gente de côr na escravidão ou no aviltamento, quando a Declaração da Independência, bebida por Thomas Jefferson na filosofia francesa do século XVIII, proclamara que todos os homens tinham sido criados iguais.

Um historiador americano escreve porém que os seus patrícios daquele tempo nem eram todos iguais, nem o queriam ser. Os nossos revolucionários quereriam bem sê-lo, mas não ousavam, medindo suas responsabilidades do momento. Eles acreditavam que

o Governo cabia aos capazes antes do que aos ricos e à gente bem nascida, e no íntimo de suas almas tanta repugnância havia à propriedade do ser humano que o cônsul de S. M. Britânica escrevia oficialmente, a 12 de março, que estava assente a abolição do tráfico negreiro (ii is given that the slave trade is to be abolished.)

O conceito expresso por José Luís de Mendonça sobre o perigo de uma brusca transição política podia tão pouco ser refutado pelos argumentos da razão, que Domingos José Martins quis, para combatê-lo, recorrer à violência, recurso de que de ordinário lançam mão precisamente os que não têm razão.

Em todo movimento político se desenham estas duas correntes — a dos moderados e a dos exaltados; em toda revolução se contrapõem os audazes aos timoratos. José Luís de Mendonça era destes; Domingos José Martins pertencia ao número daqueles, que são habitualmente os que levam a melhor. Os jacobinos da Revolução Francesa destruíram * os girondinos — Lamartine narrou esta patética história em termos que fizeram o deleite das nossas leituras juvenis —; os convencionais sobrepuseram-se aos constitucionais pelo processo radical da eliminação, até que tiveram de dobrar a cerviz sob a férrea mão de um general que era ao mesmo tempo um estadista e restituiu à França deliqüescente a reorganização vigorosa de que ela carecia.

Entre nós a violência não chegou na prática a substituir a brandura: não tivemos um sistema de terror. Eram revolucionários um tanto originais esses que conservaram nos seus postos os funcionários públicos do regímen colonial; que não se deram ao luxo de fuzilar nem enforcar adversário algum; que respeitaram escrupulosamente os cofres do Estado, deixando-os intactos aos inimigos, tendo os membros do Governo começado por declarar que abriam mão de todo vencimento. Não há dúvida que tal governo provisório pecava pela excentricidade!

A insurreição de 6 de março, que tem sido tratada de imprevista mas que na verdade o não foi, pois que a antecedeu longo preparo no seio de sociedades secretas, viu-se levada de vencida e apagada sua modalidade republicana, não tanto porque faltasse ao povo — como de fato faltava — educação para compreendê-la e defendê-la conscientemente, como porque provaram ser fracos os recursos próprios cora que se afoitaram seus dirigentes e provou ser grande o desamparo que se lhes deparou de fora. Faltaram-lhe os que, dentro mesmo do Jfcís, se achavam comprometidos numa solidariedade que se esfarelou quando se malogrou o levante concertado, e faltaram-lhe os que no estrangeiro, melhor dito, no resto da América, andavam pelejando por idênticos anelos ou já os tinham realizado.

Se não havia ainda no Brasil um sentimento nacional, que só anos depois aprenderia a formar-se, não admira que não existisse a garanti-lo um sentimento continental. Pouco importa entretanto para a celebração do grande acontecimento histórico — o maior no seu gênero dos fastos brasileiros — a circunstância da repúbli-

ca não haver então vingado, ou mesmo que não estivesse em grau de vingar. O gesto foi belo, e já houve quem dissesse que o gesto é tudo. Nem careceria neste caso que assim fosse.

O movimento de 1817 continha mais do que um gesto: tinha em si a essência dos movimentos regeneradores. Paixões decerto as encerrava, visto que a paixão e o interesse são inseparáveis das criações humanas, mas purifica-o destas faltas a rajada de idealismo que o sacudiu. Elementos antagônicos chocaram-se nessa ocasião: as forças conservadoras e as forças liberais pugnaram entre si e naturalmente acusaram-se de sombrios intentos.

Na verdade, nem as listas de proscritos, que o capitão-general encheu ao tocar o seu auge a conspiração a que êle fechara os olhos por longanimidade e de cálculo, eram vastas como o quiseram fazer crer as proclamações dos rebeldes, nem estes, ao pegarem em armas, se mostraram movidos pelo ódio que se não sacia com pouco sangue, e apenas pelo vivíssimo desejo de converterem numa realidade o seu sonho de governo autônomo e responsável exercido em nome da soberania popular.

A mudança que quase podemos capitular de evolutiva, da capitania dependente para Estado independente, custou muito menos vidas e sobretudo muito menos barbaridades do que motins promovidos pelo tempo adiante sem um ideal que os justificasse, sem um programa tão compreensivo, tão levantado, tão construtivo, tão próprio de homens à altura da direção de um Estado como esse que consta da Lei Orgânica ou conjunto de disposições constitucionais, oferecido ao exame e discussão das câmaras municipais.

É difícil saber exatamente quantas vítimas causou o 6 de março. Nunca se chega a apurar essas coisas. O cálculo orça entre 16 e meio cento. A legação inglesa podia mandar dizer para Londres com justiça, conforme consta da sua correspondência, que a revolução procedera com a maior moderação e compostura, poderia até ter acrescentado com a maior honestidade e clemência. Este será aliás seu título máximo e perene de glória.

Devemos à eqüidade ajuntar que tampouco existia deliberada e cruel tirania, por mais desumana que possa depois ter sido a repressão brutal e descaroável. As faltas, os atrasos, os abusos, as prepotências mesmo que se notavam eram o fruto da autoridade exercida sem o contrapeso ou antes o freio da sanção popular. Escusado é portanto procurar ódios irreconciliáveis que não lavravam, porque não ouso qualificar de tais antipatias por mais alvoroçadas que chegassem a ser, entre gente da terra e gente de fora, entre o elemento nacional, que se apresentava a reivindicar seus direitos de maioridade, e o elemento europeu, quer dizer português, que pretendia conservar o outro numa dependência que este julgava prejudicial, sob uma tutela considerada humilhante.

A revolução de 1817 foi, bem examinada, muito mais do que um movimento local: foi um movimento nacional. Geograficamente circunscrita, amplia-se sociologicamente. .Nacional era o seu pessoal: promoveram-na e ampararam-na os fatores da inteligência, da atividade e da riqueza do reino brasileiro — padres, oficiais e agricultores. Combateram-na e venceram-na fatores também da riqueza, de atividade e de inteligência — comerciantes, generais e magistrados — mas todos estes impregnados de um espírito que já era estranho ao corpo que pretendia animar, um espírito de exclusivismo, de predomínio e conseguintemente de compressão.

As crueldades da reação, que por longo tempo eivaram de ressentimento o coração pernambucano, foram a manifestação do desespero da causa para sempre batida, de cujo fim se suspeitava e que por isso mesmo se apegava à última tábua de salvação, que é sempre a do extermínio. Os homens são assim feitos que se persuadem que levam a melhor quando calcam o adversário aos pés; pelo contrário, muito mais proveito derivariam de congraçar-se com êle, de juntos cooperarem para a felicidade humana.

Se a revolução tivesse vingado e houvesse estabelecido um governo permanente, os interesses conservadores ter-se-iam deslocado e passado a celebrar novos acordos: assim os agricultores eram pela manutenção da escravidão, que aos idealistas logicamente repugnava. O Padre João Ribeiro, como José Bonifácio, achava iníqua e imoral a instituição servil; mas a crença geral era que a exploração do solo dependia absolutamente do trabalho escravo, e que a abolição seria a ruína econômica do Brasil. A revolução contemporizou; nem espanta que assim houvesse procedido, porquanto agir diversamente seria cavar desde logo sua ruína.

Quanto deveria isto ter custado ao Padre João Ribeiro, não teve êle desgraçadamente tempo de no-lo deixar dito; mas podemos imaginá-lo com precisão porque no seu cérebro se aninhara, abrira as asas e voejava uma só idéia — a idéia do progresso humano indefinido, com que sonhara Condorcet. Iluminado, chamou ao nosso patrício o observador francês a quem devemos, por um feliz acaso, que o fêz estacionar entre nós no ano de 1817, a crônica vivida do movimento que estamos recordando. Vidente, êle na verdade o foi e o futuro apenas poderá dizer quanto havia de previsão e acerto nos seus devaneios filosóficos, em que a grandeza da pátria se combinava com o bem-estar individual dos que a compõem.

A igualdade estava bastante nos hábitos, mas não estava ainda nos espíritos, ou por outra a igualdade aparecia como o resultado natural da fusão das raças a que o colonizador português se entregara com tanto amor quanta repugnância ou hipocrisia nisso punha o colonizador saxão. Que igualdade mais completa do que a de formar descendência de todas as cores! Completá-la nos códigos; torná-la civil e politicamente perfeita seria apenas o seguimento de uma tarefa muito bem iniciada.

A república de 1817 foi coerente nos seus métodos, instituindo o vós: não se atreveu porém a ir até o tu da Revolução Francesa. As fórmulas cerimoniosas da linguagem portuguesa repeliram transição tão brusca, e as excelências e senhorias voltaram a prosperar sob este céu ameno, tão favorável à sua pujança.

O gênio do nosso idioma ficou sem esse desvio e os clássicos podem decididamente dormir em paz, que a república de 1889 fêz todos cidadãos sem os obrigar a intimidade de tratamento.

Havia de resto um quê de convencional, de artifical nessas adaptações de fórmulas estrangeiras que tão mal condiziam com as tradições nacionais: de fórmulas e também de instituições. É verdade que se se fosse a respeitar religiosamente as tradições, nunca se alteraria coisa alguma, e a condição do progresso não é por certo a imobilidade. Os homens de 1817 só não queriam caminhar com demasiada precipitação. Nutriam-se eles pela maior parte de teorias, mas queriam conceder algum tempo à sua aplicação, à sua transformação prática. Por isso sua obra de algumas semanas pouco pôde ultrapassar a fase negativa: o que houve de positivo quase que não passou da preocupação primordial da defesa. A organização constitucional mal podia verificar-se em plena agitação militar, a qual teria por termo a inócua ditadura de Domingos Teotónio, após dissolver-se a pentarquia, em que Domingos José Martins foi o espírito de ação, a mola real, o Padre João Ribeiro o fanal projetando sua concepção democrática sobre a marcha a seguir, e Correia de Araújo o elemento resignado, antes passivo, que em todas as revoluções forma a massa flutuante, pronta sempre a saudar a reação.

Houve contudo um esboço de organização política, baseada na liberdade de cada cidadão; pode assim dizer-se que houve um ensaio de democracia, a qual pressupõe tal liberdade. E esta doutrinariamente chegou a estender-se ao negro: não se limitou ao branco. Uma das proclamações do governo provisório ousava afirmar que a suspeita de abolicionismo era uma suspeita que honrava esse governo, o qual não queria enganar pessoa alguma e não trepidava em descobrir que o coração se lhe sangrava ao ver tão longínqua uma época tão interessante. Não a queria porém prepóstera — estou repetindo suas palavras —, e por mais horror que lhe inspirasse o cancro da escravidão — uma locução que o abolicionismo retomou dezenas de anos depois —, como o seu senso político lhe aconselhava prudência e habilidade, a junta patriótica de 1817 traçou ao Brasil futuro o programa da emancipação "lenta, regular e legal".

Foi assim que o Brasil imperial a compreendeu e a praticou, dando ao mundo um exemplo de tino administrativo. A república de 1817 foi entretanto quem indicou o caminho, e no dizer do seu cronista Muniz Tavares, bastaria esse seu ato para fazer-lhe perdoar seus erros. Quantos são realmente os governos que como esse, na expressão do referido historiador, "não se valeu de subterfúgios no anúncio da verdade"?

Conspirava aliás contra a liberdade dos brancos o status político existente, já porque o orientava a idéia então comum de autocracia, já porque uma fração da comunidade se considerava privilegiada com relação à outra e era a que, oriunda do Velho Mundo, sujeitara o Mundo Novo e deste fizera campo de exploração, julgando-se com mais direitos, com títulos aos proventos e às posições, superiores aos dos que tinham visto a luz nesse meio assenhoreado.

A rivalidade entre filhos da metrópole e filhos da colônia, que é o remate usual desses prolongamentos de nacionalidade, tornava cem vezes mais pesadas as contribuições a satisfazer e levava os motivos econômicos a figurarem entre as causas da revolução. Não foram contudo os decisivos porque só os motivos morais são capazes de fornecer pasto ao sacrifício. A fome pode ser conselheira de levante, mas não é inspiradora de martírio. O déspota venezuelano Castro, com quem tive o prazer de tratar, opinava até que convinha manter o povo indigente, porque os esfomeados não possuem fibra para revoltar-se, ou pelo menos para sustentar uma revolução.

Nós estamos acostumados a pensar literariamente de modo diverso, que o desespero da fome não conhece obstáculo, mas há que tomar em consideração opiniões de um especialista c acatar-lhe a teoria.

Se não foram as causas econômicas as predominantes, foram-no então as morais, e de fato o ensaio geral de autonomia que o país estava tendo dera-lhe, juntamente com a tendência geral das idéias políticas e com o exemplo dos Estados Unidos, a consciência da sua independência. O governo de Dom João VI aparelhara o Brasil para a vida pública na modalidade nacional; a república completaria condignamente essa obra — assim pensavam os que conspiravam e tramavam a libertação. O progresso humano é feito de forma que todos cooperam para êle, voluntária ou instintivamente, c até contra a vontade.

Este resultado é seguro: a terminologia política pouco faz ao caso, contanto que o Governo seja representativo no nome. As eleições sem base popular, se tivessem sido introduzidas cm 1817 — o que era fatal, se a revolução houvesse vingado —, seriam as mesmas que foram posteriormente, com o intervalo da experiência honesta da eleição direta, e que continuam pela maior parte a ser, indiferentes ao regímen, seja este monárquico ou republicano.

A revolução de 1817 foi a obra de uma minoria decerto: todos os movimentos dessa natureza o são. Mas na minoria em questão figuravam em largas proporções o elemento especulativo e o elemento ativo. A revolução que celebramos não se pode talvez dizer que fosse levada a cabo pelo clero e pelo Exército; foi porém uma revolução de padres e de oficiais seduzidos por uma miragem.

É sempre possível encontrar em todo levantamento motivos de interesse pessoal, a serem contados entre as razões do estômago; mas as razões do cérebro ou porventura do coração foram sem dúvida aí mais poderosas e mais eficazes. Questões de patentes e de dízimos poderiam contribuir, mas nunca seriam bastantes para levar tantas pessoas a jogarem suas vidas. Seu influxo foi deveras diminuto, e o contágio que se estabeleceu foi o contágio da liberdade, que é o que torna este movimento altamente sugestivo e o fará sempre relembrar com desvanecimento pela terra que lhe serviu de teatro.

Os que o dirigiram compreendiam e mediam todo o seu alcance, apesar de em parte obedecerem a instintos menos generosos tais como os produzidos pelo ressentimento. Na verdade mais o impedia a feição ideal do que a feição positiva. Aqueles dirigentes eram sem exceção sonhadores de uma democracia sem jaça: militares, civis e religiosos, algumas dezenas de padres e frades de vida pouco canónica, esquecidos do celibato, afeitos aos conchegos de família, dividindo entre Marília e a pátria o seu ardor espiritual. O encarregado de Negócios da França, que era um reacionário bourbônico, trata num dos seus ofícios o Padre Roma de celerado, por ter filhos; a expressão é forte e não a merecem absolutamente sacerdotes que não esqueciam em todo caso os preceitos evangélicos e praticavam a caridade, dando o exemplo da sobriedade, da cordura e da abnegação.

Não é mister ser mui velho para se ter conhecido exemplares dessa raça de clérigos políticos cuja fama se estendera mesmo além-mar, pois que a propósito de um deles, letrado de reputação, me perguntou um dia, assustado, o grande folhetinista português Júlio César Machado, se realmente o padre fora, como lhe tinham contado, bandido. Respondi-lhe que não, a menos que lhe pudesse valer tal designação sua participação ativa cm lutas políticas, no decorrer de uma das quais corria o rumor que o aludido sacerdote fora visto abandonando a galope de cavalo uma vila saqueada e carregando na garupa uma moça que raptara. Júlio César Machado concordou comigo que furtar moça não constituía requisito bastante para ser bandido.

A revolução de 1817 mostrou duas coisas ainda: a vaidade, que pelo tempo adiante se tornaria quase mórbida, dos inesgotáveis recursos brasileiros, para utilizar os quais é entretanto preciso muito esforço e muito trabalho — os chefes do movimento proclamavam, como os do Risorgimento italiano, que o Brasil fará da sé — e certo espírito de organização civil que não teve infelizmente tempo para acentuar-se, mas que aflorou de dentro da insurreição militar com a representação das classes na junta, de um modo prometedor para o futuro da administração autônoma que, sob a Regência e o Império, afastou a preponderância que o 7 de Abril — não tanto o 7 de Setembro — tinha dado ao elemento militar no Governo.

Caracterizou além disso o movimento um escrúpulo, perfumou-o uma honestidade que nem sempre depois distinguiu a gestão dos negócios públicos. Os membros do governo provisório logo de começo declararam, conforme vimos, que não receberiam vencimentos: bastava-lhes a consciência do dever cívico, cumprido por isso mesmo com tanto maior ufania. A democracia não era para eles uma palavra vã — mesmo porque democracia não quer dizer o governo da plebe (este é demagogia) e sim o governo para o povo e pelo povo, a saber, dos que o representam e o guiam.

Juntamente com essa probidade, os homens de 1817 foram notáveis pela tolerância, também nem sempre posteriormente praticada. Eles próprios foram as vítimas interessantes e lastimáveis de crudelíssima repressão. Mal mereciam todavia alguns deles que neste antigo campo do Erário, depois Campo da Honra e hoje Praça da República — onde se ergue o teatro em que nos reunimos para festejar-lhes a obra imorredoura evocando suas figuras patéticas — seus corpos se tivessem balouçado na forca antes de serem mutilados e arrastados à cauda de cavalo para a vala dos supliciados ou para a escuridão das catacumbas.

O Brasil não conta caracteres mais elevados nem espíritos mais atraentes: a humanidade não conta mártires mais dignos de piedade c de veneração. Seu sangue generoso cimentou nossas tradições, às quais a luta contra os holandeses outorgara foros de reivindicação patriótica, e deu-lhes uma consistência e uma vibração que não mais se poderão extinguir.

A reação imediata foi assinalada por uma dureza, uma selva-geria, um delírio de punição, què não mereceriam indulgência, se o tempo se não encarregasse de abrandar todos os sentimentos c ainda mais os de ódio que os de admiração. Quem hoje verbera as ambições de César quanto as de Napeleão? Quem hoje abomina as crueldades de Nero quanto as de Luís do Rêgo, com quem os patriotas costumavam compará-lo? Nero poderia vir passear entre nós que apenas causaria sensação pelo seu monóculo de esmeralda, ao passo que Luís do Rego não andaria muito seguro de não encontrar um novo João Souto Maior.

A indulgência há de porém vir para os algozes de 1817, dessa revolução quase única na História que, ho dizer do mais filósofo dos nossos historiadores da atualidade, o Sr. João Ribeiro, não concedeu lugar conspícuo a nenhum desacreditado, não tendo contado um só dirigente que mentisse às suas convições, por baixo interesse, ou que infamasse o seu nome por sórdida conveniência — revolução em que as ambições foram quase nenhumas c o amor da pátria foi quase tudo.

Responsabilizar-se-á então a época e suas ruins paixões para desculpar um tanto aqueles que num dado momento encarnaram as piores dentre estas. Se seus crimes não saírem justificados da prova, ficarão pelo menos atenuados. O que há de entretanto ir sempre crescendo é a nossa veneração pelos mártires de há um século, o culto desses apóstolos do amor da pátria, cuja memória viverá para sempre em Pernambuco e em todo o Brasil pela elevação moral de que eles deram mostra na adversidade. Suas frases lapidares na ocasião do suplício — sejam tais frases rigorosamente autênticas ou tivessem sido sujeitas a um arranjo póstumo que lhes não altera a substância — constituirão versículos de um evangelho de liberdade c de paz — evangelho ensopado no seu sangue, sangue derramado, não numa luta inglória por primazias do poder, mas numa luta fecunda pelo triunfo da dignidade humana, por tudo quanto enobrece o cidadão e o torna apto para a vida numa democracia.

Família e terra natal eram as duas grandes preocupações daqueles espíritos de poucos refolhos e muita sinceridade. O mais calculista deles, Domingos José Martins, horas antes de marchar para a execução, compunha no cárcere estes versos que dão toda a psicologia da geração heróica de 1817:

— Meus ternos pensamentos, que sagrados Me fôstes quase a par da liberdade. Em vós não tem poder a iniqüidade: À esposas voai, narrai meus fados! Dizei-lhe que nos transes apertados, Ao passar desta vida à eternidade, Ela nalma reinava na metade. E com a Pátria partia-lhe os cuidados. A Pátria foi o meu númen primeiro, A esposa depois o mais querido Objeto de desvelo verdadeiro. E na morte, entre ambas repartido, Será de uma o suspiro derradeiro Será de outra e último gemido.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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