Continued from: História da Filosofia Medieval - século XIII

ARTIGO I – FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

§ 1.° — Escola franciscana anterior a S. Tomás

73. Sob este título reunimos os filósofos que estabelecem a transição entre a escolástica do período anterior e o tomismo. No ponto de vista doutrinal, três pontos principais os caracterizam e distinguem de S. Tomás: 1) a afirmação da existência de uma matéria primitiva ou princípio passivo na essência de todas as criaturas. Para os franciscanos, a forma não pôde subsistir sem a matéria. Segundo S. Tomás, os anjos são formas subsistentes isentas de qualquer princípio material; 2) a tese da pluralidade das formas substanciais. S. Tomás admite uma única forma substancial em cada ser; unius perfectibilis una est perfectio; 3) a introdução, na cosmologia das rationes séminales. S. Tomás explica as alterações dos corpos por meio duma matéria passiva e duma causa eficiente em ato. Para a escola franciscana, a matéria não é puramente passiva, encerra em estado incompleto as formas substanciais que deverá revestir. Estes princípios criados, estes como germes latentes, depostos na matéria e que cooperam ativamente com a causa eficiente são chamados rationes séminales. É uma herança de S. Agostinho.

Os principais representantes desta escola são Alexandre de Hales e S. Boaventura.

74. ALEXANDRE DE HALES (m. 1245), Doctor irrefragablis, de origem inglesa, foi o primeiro franciscano que ensinou na Universidade de Paris. Dispondo de todas as obras de Aristóteles, tenta, sobre esta nova base, construir uma síntese filosófica, mas não consegue desprender-se, de todo, dos elementos tradicionais que se não fundem com as novas doutrinas. É o autor de uma Summa Theologica, vasta enciclopédia científica, cujo plano foi imitado por todos os trabalhos congêneres posteriores. Nesta obra, aperfeiçoa notavelmente o método didático, iniciado por Abelardo, dividindo tricotômicamente o estudo das questões em argumentos pró e contra, solução e resposta às objeções.

Alexandre gozou de muita estima, entre os filósofos do see. XIII, não excluindo S. Tomás, que o teve sempre em grande consideração.

Mais tarde, porém, foi o seu sistema eclipsado pelos de seus sur cessores. Entre os franciscanos, S. Boaventura e Scoto tomaram–lhe a dianteira.

SIMÃO BOAVENTURA

75. S. BOAVENTURA (1221-1274), Doctor seraphicus, estudou em Paris sob o magistério de Alexandre de Hales, recebeu juntamente com S. Tomás o título de Mestre, foi mais tarde Geral de sua Ordem e finalmente cardeal de Albano, falecendo durante o concilio de Lião em que tomara parte. Suas obras mais importantes no ponto de vista filosófico são: os Comentários a Pedro Lom-bardo, as Quaestiones disputatae, o Itinerarium mentis ad Deum e De reductione artium ad theologiam.

S. Boaventura é mais profundo, mais claro e mais preciso de que seu mestre Alexandre, mas, como êle, conserva-se fiel à tradição que respeita e aperfeiçoa: "non enim intendo novas opiniones adversare sed communes et approbatas retexere". O ilustre fran-ciscano conheceu tôdas as inovações de S. Tomás a quem o ligavam estreitos laços de amizade (67), mas, sem as combater abertamente (exceto na questão da possibilidade da criação eterna), preferiu ater-se às antigas doutrinas da escola franciscana.

S. Boaventura assinala-se ainda pela feição mística de seu caráter. Sem deixar de ser grande especulativo, nele predomina a parte afetiva. S. Tomás é mais frio e mais raciocinador. Se pudéramos comparar os grandes homens, diríamos que S. Boaventura mais se aproxima de Platão e de S. Agostinho, S. Tomás, de Aristóteles .

Nesta tendência à contemplação e união com Deus, inspiram-se algumas frases de que se serviram modernamente os ontólogos para lhe invocarem a autoridade em abono das próprias doutrinas. S. Boaventura, porém, nunca foi ontólogo. Atestam-no irrefragàvel-mente muitos textos explícitos: "cognoscere Deum per creaturas hoc est proprium viatorum" (In I Sent. Dist. III, P. I, Q. III). Ο doutor seráfico foi sempre o verdadeiro modelo dos místicos ortodoxos, e, dele, com razão, disse Gerson, "in docendo, solidus est et se-curus, pius et Justus et devotus".

76. DISCÍPULOS DE S. BOAVENTURA — S. Boaventura foi chefe de escola. Até o aparecimento de Scoto seguiram-no quase todos os franciscanos. Alguns dos seus discípulos, não imitando nisto a reserva prudente do mestre, constituíram depois um núcleo de resistência à expansão das idéias tomistas. Entre os mais célebres mencionam-se:

Matheus de Aquasparta (1235-1302), claro, sóbrio e profundo, eleito mais tarde cardeal; J. Peckham (m. 1292), arcebispo de Can-tuária, que fomentou em Oxford a reação antitomista; Pedro João Olivi (1247-1298), que, além da pluralidade das formas, ensinou também não ser a alma intelectiva forma imediata do corpo; Ricardo de Mediavila (c. 1249-1308), Doctor solidus, estimado pelos contemporâneos como um dos mais abalizados do seu tempo. Em alguns pontos — teoria aristotélica do conhecimento, negação das razões seminais — admite as inovações de S. Tomás, mas na orientação geral do seu pensamento predomina a inspiração de S. Boaven-tura. O primado da vontade, a pluralidade das formas, a possibilidade de uma matéria espiritual, a repugnância da criação ab -aeterno e outras teses mostram que Ricardo navegava ainda na corrente augustinista da escola franciscana.

Entre os seus Quodlibeta encontra-se um estudo notável sobre o hipnotismo. Nele analisa o autor, com admirável sagacidade, os fenômenos de auto-sugestão, lucidez no sono e telepatia, explican-do-os cientificamente por meio das causas naturais (68).

(67) Nas lutas travadas em Paris a propósito das cátedras universitárias concedidas aos religiosos, s. Boaventura, Alberto Magno e s. Tomás foram os principais paladinos da causa dos reguläres contra a intransigência dos seculares representados pelo turbulento Guilherme S., Amor.

BIBLIOGRAFIA

Prosper de Martigné, La scolastique et les traditions franciscaines. Paris, 1888; — F. Picavet, Abèlard et Alex, de Halès créateurs de la méthode scolastique, Paris, 1896; — H. Felder, Geschichte der wissenschaftlichen Studien im Franziskanerorden, Freib. i. B. 1904.

S. Bonaventurae, Opera omnia, 10 vols., Quaracchi, 1882-1902, ótima edição critica. H. Lemmens, Der hl. Bonaventura, Kardinal und Kirchenlehrer, Kempten u. München, 1909 (biografia) ; — G. Palhoriès, Saint Bonaventure, Paris, 1913; — E. Gilson, La philosophie de Saint Bonaven-ture, Paris, 1924; — E. Hocedez, Richard de Middletown. Sa vie, ses oeuvres, sa doctrine, Louvain, 1925 (obra exaustiva).

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