Silvio Romero sobre Manuel de Araújo Porto-alegre

Silvio Romero (Lagarto, 21 de abril de 1851 — 18 de junho de 1914) – História da Literatura Brasileira

Vol. III. Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Fonte: José Olympio / MEC.

TERCEIRA ÉPOCA OU PERÍODO DE TRANSFORMAÇÃO ROMÂNTICA — POESIA (1830-1870)

CAPITULO II – continuação

PRIMEIRA FASE DO ROMANTISMO: O EMANUELISMO DE GONÇALVES DE MAGALHÃES E SEU GRUPO

Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879). — Este escritor ainda não foi bem estudado. Coberto de exagerados elogios pela velha crítica do país, alçado ao sétimo céu por Fernandes Pinheiro e Wolf, não é diretamente conhecido pelo público. Sabe-se que foi autor de uma coleção de versos sob o título de Brasilianas e de um enorme poema em dous volumes sobre Colombo. Hoje a idéia geralmente aceita é a de ser esse homem a encarnação da poesia prosaica, empolada, campanuda. Entretanto, é preciso rever estes juízos e estudar o amorável rio-gran-dense com doçura e imparcialidade.

E um tal estudo não é fácil, como à primeira vista se pode supor.

Araújo Porto Alegre teve uma vida trabalhosa e exercida em mais de uma atividade. Foi pintor, arquiteto, poeta lírico, poeta épico, dramatista e crítico. Seus produtos de pintor e de arquiteto estão quase esquecidos.

Não são de uma grandeza que se imponha; o selo da mediania é neles irrecusável. Os principais dentre todos são: um Hércules na fogueira, um retrato de D. Pedro I, o quadro da fundação da Academia das Belas-Artes, a antiga decoração do teatro de S. Pedro de Alcântara, a galeria da Sagração de D. Pedro II, o plano da igreja de SanfAna e do Banco do Brasil. O desenho é bom; a pintura de pouca vida, e a arquitetura sem audácias e sem originalidade.

Os ensaios de Porto Alegre para o teatro são também de pequena monta. Não assim os produtos do lirista, do épico e do crítico.

Por eles é que o ilustre rio-grandense é um imortal para este país. É onde vai ser o centro de minhas apreciações. A biografia do autor do Colombo vem muito bem traçada em Fernando Wolf, sobre apontamentos fornecidos pelo próprio escritor. Darei uns ligeiríssimos toques.

Porto Alegre nasceu em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, em 1806; estudou Humanidades na capital da província. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1826. Estudou Pintura com João Batista Debret; viajou a Europa de 1831 a 37. De volta ao Brasil residiu no Rio de Janeiro até 1859.23 Neste ano abraçou a carreira consular na Europa, onde morreu, em 1879, vinte anos depois.

23. Le Brésil Littéraire, págs. 169 e segs.
24. Brasilianas, Viena, 1863, Observação.

 

Para bem compreender a vida intelectual de Porto Alegre e assistir à sua evolução íntima, é mister recorrer às datas de suas obras.

A pintura foi seu ponto de partida; a escola das Belas-Artes serviu-lhe de aprendizado (1826-1828). Seus primeiros quadros são de 1829 e 30. Isto foi passageiro; de 1835 em diante a poesia, a crítica, a literatura em geral, são a sua principal preocupação.

Em 1836 redige com Magalhães e Torres Homem a pequena revista Niterói em Paris; aí aparecem um estudo sobre a Música no Brasil, um artigo de viagem sobre os Contornos de Nápoles, e o Canto Sobre as Ruínas de Cumas.

O Prólogo Dramático é de 1837; os primeiros artigos sobre a escola fluminense da pintura de 1841; Angélica e Firmino de 1843; deste ano são O Voador e diversos artigos de crítica artística publicados na Minerva Brasiliense.

A Destruição das Florestas é de 1845; o Corcovado de 1847, a Estátua Amazônica de 1848.

Estas datas não vêm a esmo; servem bem para marcar o lugar do escritor em nossa literatura e determinar os degraus de sua evolução intelecto-emocional.

Geralmente se repete que Porto Alegre foi um discípulo subserviente de Magalhães, por um lado, e por outro, o pai intelectual de Gonçalves Dias. Erro e erro nocivíssimo. O próprio poeta era o primeiro a colocar-se assim por aquele modo incorretamente. No prólogo de suas Brasilianas declara ser discípulo e continuador de Magalhães e dá a entender que influiu noutros poetas: "O nome Brasilianas, que dei a este livrinho, provém das primeiras tentativas que se estamparam há vinte anos na Minerva Brasiliense, e da intenção que tive; a qual me pareceu não ter sido baldada, porque foi logo compreendida por alguns engenhos mais fecundos e superiores, que trilharam a mesma vereda.

"Assim, pois, esta pequena coleção não tem hoje outro merecimento além do de mostrar que também desejei seguir e acompanhar o Sr. Magalhães na reforma da arte, feita por ele em 1836, com a publicação dos Suspiros Poéticos, e completada em 1856 com o seu poema da Confederação dos Tamoios."24

Não há contestar uma tal ou qual influência de Magalhães no espírito de Porto Alegre, quanto às tendências gerais da poesia.

Uma influência oriunda das relações da amizade e nada mais.

Porto Alegre era talento muito diverso e muito mais bem dotado. Tinha mais objetividade intelectual, mais imaginação, maior profusão de linguagem, mais colorido, mais vida em suma.

Em Porto Alegre predominava o talento descritivo, em Magalhães um filosofismo impertinente que lhe inspirava declamatórias tiradas.

De resto, os dois amavam-se muito e citam-se nos respectivos poemas. Pode-se dizer que o poeta rio-gran-dense pertencia ao cenáculo de Magalhães, mas "entrava em perfeito pé de igualdade.

Quanto a haver influído no espírito de outros é certo; desse número, porém, não foi Gonçalves Dias.

Ele não o diz francamente; insinuou-o a Fernando Wolf, que escreveu isto: "II a eu beaucoup d’imitateurs, entre autres Antônio Gonçalves Dias, qui ne dissimule pas avoir reçu ses premieres inspirations des Brasilianas."25

Decididamente o talento das classificações literárias não era o forte do escritor de Viena.

Onde Gonçalves Dias fez semelhante confissão? Não pude ainda encontrar.

E demais a cousa é cronologicamente impossível. Os Primeiros Cantos de Gonçalves Dias são de 1846.

A mor porção das peças do volume o poeta maranhense trouxe-as de Coimbra, datadas de três e quatro anos antes. As únicas Brasilianas de Porto Alegre anteriores são O Voador de 1843, e a Destruição das Florestas de 1845. A primeira nada tem no assunto e no estilo que pudesse influir no espírito do poeta dos Timbiras. A outra, anterior de alguns meses apenas ao livro dos Primeiros Cantos, é verdadeiramente posterior à mor porção destes; e nem era apta para inspirar o indianismo do escritor maranhense. São duas intuições bem diversas, e isto é o principal. Estudemos o poeta lírico.

O lirismo de Porto Alegre não tem mimos, delicadezas, doçuras de forma, exuberância de idéias; não são as expansões ternas de uma alma amaviosa.

25. Op. cit., pág. 174.

Tem grandes quadros, belas pinturas, os sinais da força de uma alma enérgica.

Em todo o volume das Brasilianas não existe uma só amostra de poesia pessoal, íntima, psicológica. Tudo são cenas do mundo exterior, ou da história. Se Magalhães pode ser considerado uma espécie de precursor entre nós da poesia filosófica, o pintor rio-grandense é um anteci-pador da poesia histórica, de uma historicidade envolta e confusa com a natureza. Neste sentido é característico o poemeto escrito em 1835, o canto sobre as ruínas de Cumas, intitulado a Voz da Natureza.

É alguma coisa de semelhante aos pequenos poemas da Lenda dos Séculos de Vítor Hugo; mas muito anterior. O poeta dá a palavra ao Horizonte, ao Circeum, a Gaeta, ao Oceano, ao Tuberão, à Coluna Dórica, a um Rouxinol, a Pontia, a Pandataria, a uma Gaivota, ao Anfiteatro, a Pitecusa, a Rochita, a Cáprea, ao Vesúvio, a diversas Vozes, a um Pastor, desenvolvendo grandes quadros em que cada um entra com as suas recordações.

O efeito geral é belo; há certas tintas bem coloridas no meio de algumas sombras.

Estas são alguns fragmentos de prosa metrificada. Provém isto de um dos defeitos do talento do nosso poeta: é muito desigual. Em seus escritos ao lado de uma página boa, ou até admirável, há sempre algumas páginas más.

No poemeto citado são muitas as agradáveis, e eis uma delas, o canto do Pastor:

"Toca a hora; silêncio! A hora soa
Em que o globo inflamado,

Que o dia à terra mostra,
Do etéreo oceano ao fundo rola,
E das celestes vagas já levanta
As gotas luminosas que borrifam

O vasto firmamento.

Salve, estrelante noite,
Que do berço da aurora ressurgindo
De um manto adamantino te apavonas

Nas cerúleas campinas!
Vagai na imensidade, ardentes círios,
Que só a imensidade ora me encanta.
Mesquinha à mente a terra me parece.
Místicos sonhos, célica harmonia,

Adejai vossas asas,
Ressoai no infinito:
Sombras de amor, passai, passai ligeiras,
Dançai, e repeti em muda língua

O nome que idolatro.

Como rápida a mente rola e paira
Sobre o mar do silêncio!
Como brilha nas trevas
Do insólito esplendor o simulacro
Que da imaginação ardido surge

Em ideais eflúvios,
E mágico volteja, vai-se, e volta!
Mãe da contemplação, da paz, ó noite!
Ah! quão ditoso sinto o movimento
Que o coração agita a par dos quadros
Que desenrola a mão de alma saudade,
Do porvir áureos paços me franqueias,
Que o cinzel da esperança, a fantasia
Com místico artifício adorna, e doira!
Doce esperança, espectro luminoso,
Coroado de estrelas caroáveis,

Tu no peito me escreves

O nome que idolatro.

Tua imagem só vejo em toda parte:
Do límpido regato a nívea espuma
Na corrente descreve em alvas letras
Sobre um fundo de azul teu caro nome.
Dulçoroso murmúrio é o teu sorriso,
E o teu olhar um raio de ventura.
A flor que cede ao zéfiro, e balança,
Retrata o teu donaire gracioso;
E o perfume que exalam suas pétalas
Teus ditos inocentes assemelha.

A saudosa elegia
Que entoa o rouxinol entre mil flores,
É o hino de ternura da tua alma:
Tua image, anteposta à natureza,
Diviniza, embalsama-me a existência.
Do rio a crespa vaga que desliza,
Minha doce esperança representa,
Correndo de hora em hora ‘té que chegue
Ao mar delicioso em que vogando
Solte as velas da vida, e feliz frua
De teus lábios o hálito de rosas;

E abraçado me entregues…
Cessai, sonhos de amor! vinde a meus lábios
Em suspiros morrer misteriosos.

Fere, lira amorosa,
Entoa co meu canto em puro acordo

O nome que idolatro.

Invoquei, minha bela, a eternidade;
Entre os anjos pairar almejo agora.
Meu amor já desdenha a terra nossa,
Só posso refrescar a calma intensa

Entre os lúcidos astros,
Eflúvios, que levanta do universo

A evitema torrente.

A noite eu invoquei, para nas trevas
Do silêncio ocultar as divas cenas,
Que veemente paixão me volve n’aima.
Amor eu invoquei, silfos sidéreos,
Diáfanas visões, que em ronda aérea

Me envolvem de almos sonhos.
Invoquei-te, esperança, a ti me volvo,
Ente misterioso, já que longe…
Mas que digo? jamais longe não podes

Viver no teu amante.
Mais próxima que a luz e ar que respiro,
Eu te guardo no adito de minha alma!

Invoco ora saudoso
O anjo consolador, anjo do vate
, Que desdobra em minha alma as asas ígneas
Para escrever no céu entre as estrelas

O nome que idolatro."26

Não é este um fragmento de delicioso lirismo, como alguns se deparam ao leitor na literatura européia e até na literatura brasileira. Falta-lhe a música da palavra, produto do ritmo e da rima; faltam-lhe as ondulações de um estilo mimoso. Mas há aí alguma cousa da grande poesia, há esse vago, esse indeterminado, que abrem indefinidas perspectivas na leitura dos bons poetas.

A poesia, digna desse nome, disse Renan, nutre-se de mistério e obscuridade. Não era preciso que o lingüista e historiador francês o houvesse afirmado.

A poesia foi sempre um produto das regiões crepusculares d’alma humana, uma exalação dessa alguma cousa que em nós vive de sonhos e quimeras.

Além da Voz da Natureza há nas Brasilianas dous poemetos muito afamados: A Destruição das Florestas e O Corcovado.

São inferiores àquele em força e graças de pensamento e estilo; são superiores como tentativa de nacionalização da poesia.

Já tenho afirmado cinqüenta vezes que um caráter nacional não se decreta nem se fabrica, é produção espontânea. Já disse também trinta vezes que a simples escolha do assunto não é garantia da índole nacional na poesia.

O nacionalismo não é uma questão exterior, é um fato psicológico ; nem é uma questão de idéias, é uma formação demorada e gradual dos sentimentos.

26. Brasilianas, págs. 236 e seg.

A evolução das emoções é muito mais lenta do que a das idéias; é por isso que um caráter nacional, que é uma espécie de expoente da alma de um povo,- é um produto do tempo, um produto da história.

Conquanto partissem de uma noção crítica inexata, os tentâmens de Porto Alegre e outros tiveram mérito, como resposta ao apelo do romantismo, quando este era uma volta às tradições populares.

A resposta de Porto Alegre foi pintar algumas de nossas cenas naturais, como a ascensão ao Corcovado, ou culturais, mas de uma cultura semibárbara, como a Destruição das Florestas.

A resposta de Gonçalves Dias foi descrever o viver do caboclo. E nisto julgaram consistir toda a vida nacional!…

Os estudos de etnografia e demografia brasileira não existiam ainda quando escreveram aqueles notáveis românticos. Nem a nossa história estava bem construída.

Mais tarde é que as influência^ étnicas da população foram estudadas e um olhar lançado sobre os cantos, os contos, as superstições, os costumes populares.27

A Destruição das Florestas tem três cantos, a Derribada, a Queimada e a Meditação. O último é medíocre; o mais valente é o segundo; o primeiro ocupa uma posição intermédia quanto ao merecimento.

Eis um trecho para compreensão exata do estilo do poeta rio-grandense:

"Na mão do escravo acicalado ferro Brilha, reflete do africano vulto Sorriso delator de interno gozo! E sôfrego acudindo à voz do íncola, Que na córnea buzina o madrugara, Antes que a aurora os montes contornasse, Na frondente floresta se aprofunda. Brada contente a parceiral caterva, Pronta agitando as foices e os machados Que no ar lampejam, qual sinistros raios, Mede coa vista os seculares troncos, Desses gigantes que laceram nuvens; Que tantas estações, e tantas eras, Os céus e a terra em porfiada lide Donosos empregaram na estrutura Que tem por coração cerne de ferro, Onde verazes os anais do mundo Em multíplices rolos se recatam.

27. Vide: Estudos Sobre a Poesia Popular Brasileira, Cantos Populares do Brasil, Contos Populares do Brasil — pelo autor.

Prorrompe o capataz com gesto fero,
Afras canções do peito borbotando,
Que alentam do machado o golpe; troa
O hino devastador, que em curta quadra

Lança por terra mil possantes troncos,
Timbre dos evos, pompa da natura.
Nos largos botaréus, que a base escoram,
E no solo se entranham tripartidos,

Como ingentes jibóias no profundo,
Talha o machado a corpulenta crosta.
Treme o chão, treme o ar, geme e se es folha

A cúp’la verde-gai do amplo madeiro,
E convulso largando os verdes frutos,
Graniza o bosque com medonho estrondo,
Que as aves manda ao céu, e à toca as feras;
Rija celeuma de confusas vozes
Aplaude a queda dos pujantes lenhos.
Como uma anta feroz, sibilo agudo
Arma cos dedos os sovados lábios
O ledo capataz, e açula a turba,
Com novo metro e variado modo,
A de um golpe extinguir o parque excelso,
Que incólume surgiu do cataclismo!

As foices e os machados manobrando,
Vão amputando o peristilo umbroso
Da verde tenda, monumento inculto,
Que de indómitas feras fora asilo,
E os acentos canoros de mil aves
Nas perfumadas folhas embebera;
E onde em bárbaro coro a símia astuta
Outrora se embalava, até que a frecha
Do certeiro Tamoio, o ar fendendo,
Coa ponta ervada lhe enfiasse a morte.

Como colunas de arruinados templos
Jazem prostradas em confuso enleio
As grossas hastes, desmedidas, fortes,
Dessas umbelas, que subindo aos astros
No regaço do sol fruíam ávidas
Os puros raios de vital conforto!
A prenhe sombra de fragrância e fresco,
Que cem plantas mimosas protegia,
Não mais amparará bolhão ruidoso,

Que a estiva sede dissipava às feras.

Oh! que espetác’lo grandioso e triste
Meus olhos, abarcando, contemplaram!
O ferro iconoclasta retalhando
A verdejante clâmide da terra,
O seu manto sem par, e cuidadoso
Poupar avaro inúteis esqueletos
De eivados troncos, carcomidos galhos,
Aonde a viridente primavera
Em vão tentara, em contumazes lustros,
Nos podres garfos de raiz anosa

Seu insuflo vital verter benigna!
Ruínas sacras, que eu lastimo e adoro
Das aves trono, e odéon harmonioso!
Hoje achanado teu sublime porte
Rola na terra os prostilões soberbos
De odoros acrotérios, onde a arara,
O brilho apavonando de seri manto
Como uma flor alada resplendia."26

Os trechos citados são capazes de definir o talento lírico de Porto Alegre no que ele tinha de mais significativo.

Não seria difícil agora apontar pedaços duros, prosaicos, sem o mínimo valor poético. Prefiro mostrar os belos fragmentos, as passagens em que o talento, como espírito alado, desferiu grandes e harmoniosos vôos. Este livro não quero que seja uma galeria de estátuas decepadas; desejo antes que pareça uma assembléia de almas vivas que se movam e agitem em animada e deleitosa convivência.

O merecimento capital do poeta rio-grandense era a habilidade em desenhar em seus versos uma série de quadros e cenas exteriores. O colorido não é sempre dos mais brilhantes; mas o desenho é correto e amplo.

Porto Alegre era entusiasta e um pouco fanfarrão na sua conversação; o mesmo em sua poesia; sopra em cima de seu leitor de vez em quando alguns termos empolados, campanudos, capazes de tonteá-lo.

Seu lirismo não tem doçuras, delicadezas, mimos de idéia e de forma. Abre perspectivas, tem paisagens, mostra desenhos e algumas belas cores por vezes.

Seus méritos e defeitos acham-se acumulados no seu, por uns tão encarecido, por outros tão escarnecido, e por todos tão mal estudado, poema — Colombo.

Nenhum outro poema da língua portuguesa é tão longo, tão maçante em alguns pontos e eriçado de um maravilhoso tão deslocado e extravagante; nenhum outro, porém, possui de longe em longe versos tão sonoros, tão vigorosos, tão valentes, e tantas passagens tão nutridas, tão elevadas, tão fortes, tão eloqüentes.

Colombo é uma galeria, uma pinacoteca cheia de belíssimos quadros perdidos, prejudicados no meio de telas mal dispostas e mal-acabadas. A viagem do observador é atordoada por dificuldades e tropeços; mas compensada pela beleza de muitas cenas que se lhe deparam ante os olhos.

28. Brasilianas, Viena, 1863, págs. 45 e segs.

 

O poeta revela grande imaginação, grande vigor de traços, grande destreza de desenho, muita leitura, muita instrução. Falta de proporções de medida, pouca habilidade em tecer um enredo, raros dotes dramáticos, nenhuma síntese poética, nenhum quadro definitivo e justo do caráter do seu herói, eis os defeitos do livro.

Nenhum outro há na língua portuguesa de leitura tão desigual. A parte maravilhosa é decididamente a mais fraca. Há pedaços falados por Pamórfio que são verdadeiras estopadas. O caráter de Colombo não é também muito nítido.

Não é uma figura audaz e iluminada de navegador e de gênio. É uma espécie de beato, cheio de amuletos, um mata-mouros armado de uma cruz contra o demônio, que lhe aparece não se sabe bem por que motivo em caminho.

Porto Alegre, educado no regímen do pseudoclassi-cismo, julgava-se ainda obrigado a escrever um poema à antiga, cheio de aparições diabólicas, de encantamentos, de infernos e o mais… Era não ter uma bem clara intuição das feições e do caráter da poesia moderna.

Livre-me Deus da mania de querer fornecer preceitos a poetas. Mas um homem do nosso tempo de lutas burguesas, de trabalhos mecânicos, de criações industriais, querendo pintar um iluminado do Renascimento, um temerário do tempo das grandes navegações e das grandes descobertas, em sua monomania por descobrir um Novo Mundo, e lançando-se para isto ao meio das solidões imensas do oceano desconhecido, um homem de nosso tempo, diante de um tal espetáculo, tem n’aima desse audacioso e no cenário imenso em que ela se agitava os elementos indispensáveis ao seu poema. Não há mister da intervenção de Pamórfio nenhum. Sem sair da realidade tem a trama inesgotável da epopéia moderna. É por isso que toda a mitologia malfazeja, toda a demonologia do Colombo é árida, estéril e de leitura penosa; é por isso ainda que todas as cenas reais, todas as pinturas da vida positiva, as lutas de bordo, os levantes, as nostalgias da pátria, as peripécias da navegação, as descrições de tempestades, os panoramas da natureza são de uma execução valente e, por vezes, admirável. Os exemplos borbulham por toda a parte. É só procurá-los, o que é um pouco enfadonho, atenta a grande extensão do poema.

Colombo é em dous volumes com quarenta cantos e um prólogo de 70 páginas. O todo do livro é de 950 páginas, contendo muitos milhares de versos.

No canto X aparece em cena Pamórfio e só deixa de importunar a gente com suas diabruras no canto XXIV. É a porção mais maçante do livro; entretanto é aquela onde se lêem boas páginas sobre as teogonias e civilizações do México e Peru.

Pamórfio mostrara estas regiões em espírito ao nauta. Porto Alegre patenteia aí grande erudição; bem se conhece quanto se preparou para escrever o seu poema.

O Colombo é, como disse, cheio de páginas agradáveis, especialmente em descrições.

Eis aqui uma:

"Curveteia o corcel; no reste a lança,
O ibero pujante aguarda o êmulo.
De um tranco volve o Cavaleiro negro
O tudesco ginete, e no borneio
Gruda a manopla, e espera, qual de bronze
Estátua eqüestre, que na trompa soe
O terrível sinal. Lavra o silêncio;
O fôlego suspende a corte e o povo:
Quase se ouvia sob os peitos de aço
Bater o coração dos lidadores.
Os férvidos clarins abrem a lide.
Das hostes justadoras se arremetem
Os cabos triunfantes, e no encontro
As lanças estalaram. Pavorosos,
Nitrindo de furor em pé recuam
Os ardentes cavalos. Bradam todos:
Boa lança, Marquês! Alçam-se as damas
E, flores rociando, a Cádix honram.
Somente entregue a si, e ao seu destino,
Não colhe uma ovação o forasteiro.
Retomam novas armas, e se investem
Com dobrado vigor: ambos tocados,
Cavo som suas armas restrugiram.
Varados os broquéis, as rijas lanças
Nas couraças sulcando se inflamaram.
Palmas crepitam na dourada teia,
Alegres as donzelas no ar agitam
Níveos lenços e charpas multicores:
Assim na estiva pompa, em grato asilo,
Mimosas rolas no festim netário,
Ao sibilo feroz de anta membruda,
A plumagem batendo, se alçam tímidas
Pelos átrios odoros da floresta.
Não cedem no valor; de novo ao prélio
As infrangívei8 lanças correm, cruzam,
Batem, ressoam, vergam como a lâmina
De agudo estoque num marmóreo peito.
No ríspido encontrão ambos tremeram.
Dormente o braço cede, e no chão rola
Do marquês o broquel qual disco helênio
Que em olímpico jogo mede o estádio.

O negro cavaleiro então recua,
Recua o espanhol; ganham seus postos.
De novo. embraça o valeroso Cádix
Um áureo escudo, e o contrário envida.
Visam, em regra ferem; ressupino
Cai o marquês nas ancas do ginete:
Do elmo cede o engaste: nua a fronte,
Seu rosto radiou mavórcio brilho.
Um súbito palor obumbra a festa;

Soluçam as donzelas, e nas turmas
Sinistro burburinho se propaga.
Mas Cádix reganhando o prumo, investe
Como um tigre furente; de um só golpe
As negras brafoneiras despedaça;
E a lança revirando abola e fende
O elmo cor da noite! Estrondam bravos.

Renasce em toda a liça alma esperança:
Castela vai vencer. Oh! como é grande
A explosão que fervendo amor da pátria,
Sem querer pelos lábios se despede.
Dão de rédea aos alípedes cavalos,
E na volta, entre vivas, grita e bravos,
Num choque extremo e horrendo as fortes lanças
Pelo ar em mil farpas voltijaram!
Desnudam as espadas, cruzam talhos,
Qual em noite calmosa, em selva escura,
Abrasados de amor o círio acendem
Errantes vaga-lumes, tais os ferros
Retalhando o arnês revezam fogos."29

Com alguma ironia diziam os contemporâneos ser Porto Alegre o primeiro pintor entre os poetas e o primeiro poeta entre os pintores no Brasil.

A sátira é evidente. Com Porto Alegre a cousa não há de ser assim; teve mérito em ambas as esferas, e, quanto ao seu estilo de poeta, no que ele tinha de mais eminente, era a junção do talento do pintor ao talento do escritor: sua faculte maitresse era a descrição.

29. Colombo, 1." vol., Prólogo, págs. 62 e segs.

O talento de descrever tem atravessado fases diversas, também tem passado pela lei da evolução. A aplicação desta noção à estética e à crítica literária é capaz de renovar todo o antigo processo de análise intelectual. Tudo obedece a um desenvolvimento constante; mas isto não é só verdade das criações exteriores da humanidade: a política, o direito, a ciência, a arte… É também certo das qualidades internas do espírito ; as aptidões da inteligência têm-se desenvolvido, novas forças mentais têm despontado. Os próprios sentidos exteriores hão progredido. Retomando o centro do assunto, notarei que a descrição hoje na literatura não é já a relação mais ou menos exata de um fato, de um fenômeno qualquer. Quer-se mais, quer-se que a palavra pinte diretamente as cousas. Os franceses têm levado isto ao supremo requinte. A prosa de Michelet, de Vítor Hugo, de Teófilo Gautier, de Paul de Saint-Victor, esses grandes pinturistas, foi a prosa que havia tirado todos os recursos e abusado de todas as riquezas do vocabulário. E não foram somente esses românticos os mestres proclamados da linguagem; os modernos escritores caminharam no mesmíssimo terreno. Taine, os Goncourt, Flaubert, Leconte de Lisle, Daudet, Banville seguiram essa trilha.

Thierry, Sainte-Beuve, Scherer e Renan eram pro-saístas de outro gosto, escritores mais sóbrios, mais finos, mais delicados, menos ricos, porém mais deliciosos.

Porto Alegre acha-se sem dúvida mal colocado entre tão grande companhia. Como prosador era medíocre. Mas foi um dos nossos mais destros descritores em versos. Seus quadros são seguros, são animados, são vivazes.

Não é ainda a descrição à moderna, a palavra como tinta, dando cores, como os escritores recentes exageram sem conseguir o almejado intento. É a descrição à antiga, meio retórica por vezes; mas valente e lúcida.

O artista poeta não quis abusar do seu savoir-faire de pintor para não cair na requintada maneira dos seus contemporâneos.

Nisto andou, sem o saber, de perfeito acordo com Eugênio Fromentin, escritor e pintor como ele. Este celebrado chefe da escola africana da pintura francesa foi ao mesmo tempo um dos primeiros prosadores de seu país.

Nunca li em língua nenhuma livros mais atraentes pelo estilo do que Une année dans le Sahel, Un été dans le Sahara, Dominique, e Les Maîtres d’autrefois, do ilustre filho da Rochela.

O insigne pintor, sem ser sectário do antigo modo de descrever, não achava regular o gênero moderno.

Eis como ele próprio, depois de belíssimas páginas, caracteriza, sintetizando, seu modo de julgar a questão: "É incontestável que a plástica tem suas leis, seus limites, suas condições de existência, aquilo que, em uma palavra, constitui o seu domínio.

"Eu percebia iguais motivos para a literatura conservar e preservar o seu. Uma idéia pode ser expressa ao mesmo tempo de duas maneiras diferentes, com a condição de prestar-se a essas duas maneiras.

"Escolhida, porém, sua forma, e refiro-me à sua forma literária, não via que ela exigisse nem melhor, nem mais do que pode comportar a linguagem escrita.

"Há formas para o espírito, como existem formas para os olhos; a língua que fala à vista não é a mesma que fala à alma. E o livro existe, não para repetir a obra do pintor, senão para exprimir tudo o que ela não pode dizer. Na prática a demonstração de tal verdade me apaziguou; eu a tirava duma experiência muito segura e decisiva,

"Concluí daí, com o mais intenso prazer, que tinha na mão dous instrumentos diferentes; podia-se perfeitamente separar o que convinha a um, do que era conveniente a outro.

"E eu o fiz. A parte do pintor era necessariamente tão limitada, que a do escritor se me antolhava imensa. Tive apenas o cuidado de não me iludir com o instrumento mudando de ofício."30

Esta questão das relações entre a pintura, a plástica e a poesia, bem antes de Fromentin, fora magistralmente discutida por Lessing no belo livro do Laocoonte, publicado em 1763. Já nesse tempo o ilustre prógono alemão tinha esgotado o debate.

Porto Alegre não tinha grandes recursos de estilo, nem forcejava por fazer a língua pintar.

Não tirava os recursos, todos os recursos que podem ser tirados do vocabulário português. Neste ponto ele tinha, é verdade, uma certa monomania: a posse de um determinado número de termos desusados, esquecidos. Era uma doença que tinha em comum com Odorico Mendes.

30. Un été dans le Sahara, par Eugène Fromentin, 7e édition, Paris, 1882. pâg. XV, do magnifico prefàcio.

Não é de tais recursos que lançam mão os pinturistas da linguagem; não hão mister de mergulhar pelo mundo soterrado das palavras arcaicas e abandonadas. Sem sair das regiões da vida, imprimem esquisito e fulgurante colorido às suas idéias.

Antes de despedir-me de Porto Alegre, como poeta, fora ainda possível dizer qualquer cousa acerca de alguns trabalhos satíricos que deixou. Deste número são os versos debicatórios da antiga colônia portuguesa do Rio de Janeiro sobre a decantada nau Vasco da Gama, a grande e maravilhosa nau, diziam eles, que aí vinha impor admiração e respeito aos brasis, e, antes de entrar neste porto, encalhou lá fora, avariando-se e sendo rebocada por um pequeno vaso de guerra nacional. É também desse número a introdução ao poema O Ganhador movido contra o jornalista Justiniano José da Rocha em 1844.

O poeta rio-grandense é desconhecido por este lado e justamente desconhecido.

Não possuía a vis cômica e nem a satírica. Os versos são medíocres.

Duas palavras ainda sobre o crítico para concluir este perfil. Porto Alegre deixou, além das obras de que tenho falado, diversos artigos e discursos de índole literária. Os artigos versam especialmente sobre as artes no Brasil, com particularidade a pintura.

Os principais referem-se à antiga escola fluminense e à descrição de diversas exposições realizadas na Academia das Belas-Artes. Estes artigos andam dispersos na Revista do Instituto Histórico, em a Minerva Brasiliense e noutras publicações periódicas.

Os discursos foram pronunciados no Instituto em sessões anuais comemorativas dos sócios falecidos, durante o tempo em que o poeta foi o orador oficial daquela associação.

Porto Alegre não era um crítico por índole e temperamento literário; não era também um orador consumado e correto. Era um homem sensato, instruído, investigador e sério, capaz de sair-se airosamente daquilo de que se deixava encarregar.

Para a glória e a perfeita compreensão da personalidade literária do afamado rio-grandense é indispensável que alguém lhe publique em volume acessível ao grande público esses escritos que ele deixou soterrados nos jornais e revistas. O jornal garante leitura mais numerosa; mas é somente no dia de sua aparição. O livro assegura uma apreciação mais duradoura.

Em definitivo, Porto Alegre foi um bom desenhista, um poeta lírico de grande talento descritivo, um poeta épico sem proporções, mas onde o lirista aparecia para salvá-lo repetidas vezes; um crítico amorável e inteligente. Seu poema, segundo o dito de uma célebre personagem, que o lesse até o fim só achou o revisor e a dita personagem, a quem o livro era dedicado.

Mas os bons trechos, que ali se encontram, seriam sofregamente lidos pelos mais exigentes espíritos, se alguém se lembrasse de os colher e enfeixar num pequeno volume.

Passo a outros.

No decênio de 1840 a 1850 apareceram as primeiras obras de Teixeira e Sousa, Norberto Silva, Dutra e Melo, Manuel de Macedo e Gonçalves Dias.

Dividi o movimento romântico em diversas épocas.

A primeira foi inaugurada por Magalhães; giram em torno dele Porto Alegre, Teixeira e Sousa, Norberto Silva e Dutra e Melo.

Macedo vai figurar especialmente no romance e no teatro. Gonçalves Dias abre uma outra fase à nossa romântica. O critério para grupar as escolas é a natureza intrínseca de cada uma delas. O critério para grupar os epígonos em torno dos chefes é a cronologia, não tanto dos indivíduos como das obras. Porto Alegre é de 1806, mas seus primeiros ensaios são posteriores aos de Magalhães, nascido em 1811.

Segue-se depois Teixeira e Sousa, de 1812, cuja primeira obra é de 1840; vem após Norberto Silva, de 1820, tendo a primeira obra em 1840 ou 41.

Ao movimento iniciado por Magalhães, prendem-se, além dos poetas citados, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, João Cardoso de Meneses e Sousa, Joaquim José Teixeira, Manuel Pessoa da Silva, Antônio Rangel Torres Bandeira, Augusto Colin, Padre Correia de Almeida, e Sinfrônio Olímpio Álvares Coelho. A essa tendência obedeceram também Antônio Félix Martins e José Maria Velho da Silva, em quem já tive ocasião de falar.

Vejam-se os principais dentre tantos escritores e poetas.

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