Gil Vicente, Auto de Mofina Mendes, representado ante elrei dom João III, nas matinas do Natal, na era do Senhor, 1534. Obras de Gil Vicente, dirigida pelo prof. Mendes dos Remédios, I, 13-14, Coimbra, 1907.
Gil Vicente, o primeiro folclorista de Portugal e o maior documentário vivo da etnografia portuguesa, retirou, naturalmente da tradição oral, o tema da Mofina o seu pote de azeite, 144 anos antes que La Fontaine (1678) divulgasse La laitière et le pot au lait. Sua universalidade, literária e popular, constituiu assunto de uma aula de Max Muller no Instituto Real, em 3 de Junho de 1870, Sur la migration ães fables, tradução francesa de Georges Perrot, Essais sur la Mythologie Comparée, Paris, 1874, 417-467. Da índia, com o Panchatantra, aparece o brâmane Svabhâvakripana partindo o pote de arroz na, suposição de castigar o filho hipotético, depois de enriquecer e casar-se magnificamente. Passa ao Hitopadexa, onde o brâmane Devaxar-man espatifa a escudela de farinha e mais os vasos do oleiro em cuja casa descansava, sonhando disciplinar suas quatro esposas, fabula VII, Sandhi, na versão portuguesa de mons. Sebastião Rodolfo Dalgado (Lisboa, 1897, 233). A mesma estória figura na tradução do "Panchatantra" que Barzúyeh fez do sânscrito para o pehlvi, denominando sua seleção de contos Kalila e Dimna, no século V. No século VIII Abdal-lah-ibn-Almokaffa verteu o Kalila e Dimna para o árabe. Continua um religioso a quebrar seu pote, desta vez cheio de óleo, querendo punir um problemático filhinho. Em 1250, o Kalila e Dimna, também chamado Fabulas de Bidpai. veio do árabe para o hebreu, por um judeu Joel. Desta tradução hebraica, nasceu o livro de outro judeu, João de Capua, de 1263 a 1278, Directo-rium humanae vitae alias Parabolae Antiquorum Sapientum, tornando familiar e querido aos leitores ilustres no correr do século XIII. É um eremita que rebenta a vasilha de mel, planr jando fortunas e desejando educar, à força do bastão, um filho recalcitrante: percutiam eum isto bacio et erecto báculo aã percutiendum per-cussit vas mellis et ipsum et defluxit mel super caput ejus. Não interessa, à espécie portuguesa e brasileira, a extensa bibliografia alemã, latina, francesa, italiana, toda irradiante dos volumes citados. Os castelhanos tiveram um Calila é Dymna em meiados do século XIII, feita ou mandada fazer por dom Afonso, o Sabio, em 1251. Outra versão castelhana é o Exemplaria contra los enganos y peligros dei mundo, Burgos, 1493, I vulgarizando o título para Cadyna Dyna, Dina, y Cadina, repetido nos versos do Cancioneiro de Baena. É dessa época o Livro do Conde Luca-nor, de dom João Manuel, coleção de 51 "enxem plos", a maioria tradução ou adaptação do Directorium humanae vitae e que figurava na livraria del-rei dom Duarte. No Conde Lucanor (VII) já o religioso é substituído por Dona Tru-hana, que vai vender um pote de mel e parte a bilha, vendo-se imaginariamente rica, poderosa, cercada de filhos e noras amáveis.
Ao lado dessa corrente cultural borbulhava a estória contada de geração a geração, na força impetuosa da oralidade, trazida por mil modos, traficantes, contrabandistas, cruzados, manuscritos desaparecidos, sermonários, etc. (CASCUDO
Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora.