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CAPÍTULO XXXIX

Em que se declara quem são os tupiníquins e sua vida e
costumes.

Já fica dito como o gentio
tupiniquim senhoreou e possuiu a terra da costa do Brasil, ao longo do mar, do
rio de Camamu até o rio de Cricaré, o qual tem agora despovoado toda esta
comarca, fugindo dos tupinambás, seus contrários, que os apertaram por uma
banda, e aos aimorés, que os ofendiam por outra; pelo que se afastaram do mar,
e, fugindo ao mau tratamento que lhes alguns homens brancos faziam, por serem
pouco tementes a Deus. Pelo que não vivem agora junto do mar mais que os
cristãos de que já fizemos menção. Com êste gentio tiveram os primeiros
povoadores das capitanias dos Ilhéus e Porto Seguro e os do Espírito
Santo, nos primeiros anos, grandes guerras e trabalhos, de quem receberam
muitos danos; mas, pelo tempo adiante, vieram a fazer pazes, que se cumpriram e
guardaram bem de parte a parte, e de então para agora foram os tupiniquins
muito fiéis e verdadeiros aos portugueses. Êsle gentio, e os tupinaés,
descendem todos de um tronco, e não se têm por contrários verdadeiros, ainda
que muitas vezes tivessem diferenças e guerras, os quais tupinaés lhe ficavam
nas cabeceiras, pela banda do sertão, com quem a maior parte dos tupiniquins
agora estão misturados. Este gentio é da mesma côr baça e estatura que o outro
gentio de que falamos, o qual tem a linguagem, vida e costumes e gentilidades
dos tupinambás, ainda que são seus contrários, em cujo título se declarará mui
particularmente tudo o que se pode alcançar. E ainda que são contrários os
tupiniquins dos tupinambás, não há entre eles na língua e costumes mais diferença
da que têm os moradores de Lisboa dos da Beira; mas esse gentio é mais
doméstico e verdadeiro que todo outro da costa deste Estado. É gente de grande
trabalho e serviço, e sempre nas guerras ajudaram aos portugueses, contra os
aimorés, tapuias e tamoios, como ainda hoje fazem esses poucos que se deixaram
ficar junto ao mar e das nossas povoações, com quem vizinham muito bem, os
quais são grandes pescadores de linha, caçadores e marinheiros, são valentes
homens, caçam, pescam, cantam, bailam como os tupinambás e nas coisas de guerra
são mui industriosos, e homens para muito, de quem se faz muita conta a seu
modo entre o gentio.

CAPÍTULO XL

Em que se declara a costa de Cricaré
até o rio Doce, e do que se descobriu por êle acima, e pelo Aceci.

Do rio de Cricaré
até o rio Doce são dezessete léguas, as (piais se correm pela costa norte-sul;
o qual rio Doce está em altura de dezenove graus.

A terra deste rio,
ao longo do mar, é baixa e afastada da costa; por ela adentro tem arrumada uma
serra, que parece, a quem vem do mar em fora, que é a mesma costa. A boca deste
lio é esparcelada bem uma légua e meia ao mar, mas tem seu canal, por
onde entram navios de quarenta tonéis, o qual rio se navega pela terra adentro
algumas léguas, cuja terra ao longo do rio por ali acima é muito boa, que dá
todos os mantimentos acostumados muito bem, onde se darão muito bons canaviais
de açúcar, se os plantarem, e se podem fazer alguns engenhos, por ter ribeiras
mui acomodadas a eles. Este rio Doce vem de muito longe e corre até o mar quase
leste-oeste, pelo qual Sebastião Fernandes Tourinho, de quem falamos, fez uma
entrada navegando por êle acima, até onde o ajudou a maré, com certos
companheiros, e entrando por um braço acima, que se chama Mandi, onde
desembarcou, caminhou por terra obra de vinte léguas, com o rosto a
lés-sudoeste, e foi dar com uma lagoa, a que o gentio chama boca do mar, por
ser muito grande e funda da qual nasce um rio que se mete neste rio Doce, e
leva muita água. Esta lagoa cresce às vezes tanto, que faz grande enchente
nesse rio Doce. Dessa lagoa corre este rio a leste, e dela a quarenta léguas
tem uma cachoeira; e andando esta gente ao longo deste rio, que sai da lagoa
mais de trinta léguas, se detiveram ali alguns dias; tornando a caminhar,
andaram quarenta dias com o rosto a loeste; e no cabo deles chegaram aonde se
mete este rio no Doce, e andaram nestes quarenta dias setenta léguas pouco mais
ou menos. E como esta gente chegou a este rio Doce, e o acharam tão possante,
fizeram nele canoas de casca, em que se embarcaram, e foram por ali acima, até
onde se mete neste rio outro, a que
chamam Aceci, pelo qual entraram e foram quatro léguas, e no cabo delas
desembarcaram e foram por terra com o rosto ao noroeste onze dias, e
atravessaram o Aceci, e andaram cinquenta léguas ao longo dele da banda ao sul
trinta léguas. Aqui achou esta gente umas pedreiras, umas pedras verdoengas, e
tomam do azul que tem, que parece turquesas, e afirmou o gentio aqui vizinho
que no cimo deste monte se tiravam pedras muito azuis, e que havia outras que,
segundo sua informação, têm ouro muito descoberto. E quando esta gente passou o
Aceci a derradeira vez, dali cinco ou seis léguas da banda do norte, achou
Sebastião Fernandes uma pedreira de esmeraldas e outra de safiras, as quais
estão ao pé de uma serra cheia de arvoredo do tamanho de uma légua, e quando
esta gente ia do mar por este rio Doce acima sessenta ou sententa léguas da
barra, acharam uma serras ao longo do rio de Arvoredo, e quase todas de pedra,
em que também acharam pedras verdes; e indo mais acima quatro ou cinco léguas
da banda do sul, está outra serra, em que afirma o gentio haver pedras verdes e
vermelhas tão compridas como dedos, e outras azuis, todas mui resplandecentes.

Desta serra para a
banda de leste pouco mais de uma légua está uma serra, que e quase toda de
cristal muito fino, a qual cria em si muitas esmeraldas, e outras pedras
azuis. Com estas nformações que Sebastião Fernandes deu a Luís de Brito,
sendo governador, mandou Antônio Dias Adorno, como já fica dito atrás, o qual
achou ao pé desta serra, da banda do norte, as esmeraldas, e da de leste as
safiras. Umas e outras nascem no cristal, de onde trouxeram muitas e algumas
muito grandes, mas todas baixas; mas presume-se que debaixo da terra as deve de
haver finas, porque estas estavam à flor da terra. Em muitas partes achou esta
gente pedras desacostumadas, de grande peso, que afirmam terem ouro e prata, do
que não trouxeram amostras, por não poderem trazer mais que as primeiras e com
trabalho; a qual gente se tornou para o mar pelo rio Grande abaixo, como já
fica dito. E Antônio Dias Adorno, quando foi a estas pedras, as recolheu por
terra, atravessando pelos tupinaés e por entre os tupinambás, e com uns e
outros teve grandes encontros, e com muito trabalho e risco de sua pessoa
chegou à Bahia e fazenda de Gabriel Soares de Sousa.

CAPÍTULO XLI

Em que se declara a costa do rio Doce até a do Espírito
Santo.

Do rio Doce ao dos
Reis Magos são oito léguas; e faz a terra de um rio ao outro uma enseada grande,
o qual rio está em dezenove graus e meio, e corre-se a costa de um a outro
nordeste-sudoeste. Na boca deste rio dos Reis Magos estão três ilhas redondas,
por onde é bom de conhecer, no qual entram navios da costa, cuja terra é muito
fértil, e boa para se poder povoar, onde se podem fazer alguns engenhos de
açúcar, por ter ribeiras que nele se metem, mui acomodadas para isso. Navega-se
neste rio da barra para dentro quatro ou cinco léguas, no qual há grandes
pescarias e muito marisco; e no tempo que estava povoado de gentio, havia nele
muitos mantimentos, que aqui iam resgatar os moradores do Espírito Santo, o que
causava grande fertilidade.

Da terra dos Reis Magos ao
rio das Barreiras são oito léguas, do qual se faz pouca conta; do rio das
Barreiras à ponta do Tubarão são quatro léguas, sobre o qual está a serra do
Mestre Álvaro; da ponta do Tubarão à ponta do morro de João Moreno são duas
léguas, onde está a vila de Nossa Senhora da Vitória; entre uma ponta e outra
está o rio do Espírito Santo, o qual tem defronte da barra meia légua ao mar
uma lagoa, de que se ão de guardar. Em direito desta ponta da banda do norte,
duas léguas pela terra adentro, está a serra do Mestre Álvaro, que é grande e
redonda, a qual está afastada das outras serras; essa serra aparece, a quem vem
do mar em fora muito longe, que é por onde se conhece a barra; essa barra faz
uma enseada grande, a qual tem umas ilhas dentro, e entra-se nordeste-sudoeste.
A primeira ilha, que está nesta barra, se chama de D. Jorge, e mais para dentro
está outra, que se diz de Valentim Nunes. Desta ilha para a Vila Velha estão
quatro penedos grandes descobertos; e mais para cima está a ilha de Ana Vaz;
mais avante está o ilhéu da Viúva; e no cabo desta baía fica a ilha de Duarte
de Lemos, onde está assentada a vila do Espírito Santo, a qual se edificou no
tempo da guerra pelos goitacases, que apertaram muito com os povoadores da Vila
Velha. Defronte da vila do Espírito Santo, da banda da Vila Velha, está um
penedo mui alto a pique sobre o rio, ao pé do qual se não acha fundo; é capaz
este penedo para se edificar sobre êle uma fortaleza, o que se pode fazer com
pouca despesa, da qual se pode defender este rio ao poder do mundo todo. Este
rio do Espírito Santo está em altura de vinte graus e um terço.

CAPÍTULO XLII

Em que se declara como el-rei fez
mercê da capitania do Espírito Santo a Vasco Fernandes Coutinho, e como êle a
foi povoar em pessoa.

Razão tinha Vasco Fernandes
Coutinho de se contentar com os grandes e heróicos feitos que tinha com as
armas acabado nas partes da índia, onde nos primeiros tempos de sua conquista
se achou, no que gastou o melhor de sua idade; e passando-se para estes reinos
em busca do galardão de seus trabalhos, pediu em satisfação deles a S. A.
licença para entrar em outros maiores, pedindo que lhe fizesse mercê de uma
capitania na costa do Brasil, porque a queria ir povoar, e conquistar o sertão
dela, a cujo requerimento el-rei D. João III de Portugal satisfez fazendo-lhe mercê de cinquenta léguas de terra ao
longo da costa no dito Estado, com toda a terra para o sertão, que coubesse na
sua demarcação, começando onde acabasse Pedro do Campo, capitão de Porto
Seguro. Contente este fidalgo com a mercê que pediu, para satisfazer à
grandeza de seus pensamentos, ordenou à sua custa uma frota de navios mui
provida de moradores e das munições de guerra necessárias, com tudo o que mais
convinha à esta empresa, na qual se embarcaram, entre fidalgos e criados
del-rei, sessenta pessoas, entre as quais foi D. Jorge de Menezes, o de Maluco,
e D. Simão de Castelo Branco, que por mandado de S. A. iam cumprir suas
penitências a estas partes. Embarcado este valoroso capitão com sua gente na
frota que estava prestes, partiu do porto de Lisboa com bom tempo, e fêz sua
viagem para o Brasil, onde chegou a salvamento, à sua capitania, na qual
desembarcou e povoou a vila de Nossa Senhora da Vitória, a que agora chamam a
Vila Velha, onde se logo fortificou, a qual em breve tempo se fêz uma nobre
vila para aquelas partes. De redor desta vila se fizeram logo quatro engenhos
de açúcar mui bem providos e acabados, os quais começaram de lavrar açúcar,
como tiveram canas para isso, que se na terra deram muito bem. Nestes primeiros
tempos teve Vasco Fernandes Coutinho algumas escaramuças com o gentio seu vizinho,
com a qual se houve de feição que, entendendo estes índios que não podiam ficar
bem do partido, se afastaram da vizinhança do mar por aquela parte, por
escusarem brigas que da vizinhança se seguiam. A este gentio chamam goitacases,
de quem diremos adiante.

Como Vasco Fernandes viu o
gentio quieto, e a sua capitania tanto avante, e em termos de florescer de bem
em melhor, ordenou de vir para Portugal a se fazer prestes do necessário (para
ir conquistando a terra pelo sertão, até descobrir ouro e prata) e a outros
negócios que lhe convinham; e concertando suas coisas, como relevava, se
partiu, e deixou a D. Jorge de Menezes para em sua ausência a governar, ao qual
os tupiniquins, de uma banda, e os goitacases, da outra, fizeram tão crua
guerra que lhe queimaram os engenhos e muitas fazendas, o desbarataram e
mataram a flechadas; o que também fizeram depois a D. Simão de Castelo Branco,
que lhe sucedeu na capitania, e a outra muita gente, e puseram a vila em cerco
e em tal aperto que, não podendo os moradores dela resistir ao poder do gentio,
a despovoaram de todo e se passaram à ilha de Duarte de Lemos, onde ainda
estão; a qual ilha se afasta da terra firme um tiro de berço.

Esta vila se povoou
de novo com título do Espírito Santo, e muitos dos moradores, não se havendo
ali por seguros do gentio, se passaram a outras capitanias. E tornando-se Vasco
Fernandes para a sua capitania, vendo-a tão desbaratada, trabalhou todo o
possível por tomar satisfação deste gentio, o que não foi em sua mão, por estar
impossibilitado de gente e munições de guerra, e o gentio mui soberbo com as vitórias que tinha alcançado;
antes viveu
muitos anos afrontado dele naquela ilha, onde, a seu requerimento, o mandou
socorrer Mem de Sá, que naquele tempo governava este Estado; o qual ordenou na
Bahia uma armada bem fornecida de gente e armas, que era de navios da costa,
mareáveis, da qual mandou por capitão a seu filho Fernão de Sá, que com ela foi
entrar no rio de Cricaré, onde ajuntou com êle a gente do Espírito Santo, que
lhe mandou Vasco Fernandes Coutinho; e sendo a gente toda junta, desembarcou
Fernão de Sá em terra, e deu sobre o gentio de maneira, que o pôs logo em
desbarate nos primeiros encontros, o qual gentio se reformou e ajuntou logo, e
apertou com Fernão de Sá, de maneira que o fêz recolher para o mar, o que fêz
com tamanha desordem dos seus que, antes de poder chegar às embarcações,
mataram a Fernão de Sá, com muita da sua gente, ao embarcar; mas, já agora,
esta capitania está reformada, com duas vilas, numa das quais está um mosteiro
dos padres da companhia, e tem seus engenhos de açúcar e outras muitas
fazendas. No povoar desta capitania gastou Vasco Fernandes Coutinho muitos mil
cruzados, que adquiriu na índia, e todo o património que tinha em Portugal, que
todo para isso vendeu, o qual acabou nela tão pobremente, que chegou a
darem-lhe de comer por amor de Deus, e não sei se teve um lençol seu, em que o
amortalhassem. E seu filho, do mesmo nome, vive hoje na mesma capitania, tão
necessitado que não tem mais de seu que o título de capitão e governador dela.

CAPÍTULO XLIII

Em que se vai declarando a costa do Espírito Santo até
o cabo de São Tomé.

Do rio do Espírito Santo ao
Guarapari são oito léguas; e faz-se entre um e outro rio uma enseada. Chegando
a este rio de Guarapari estão as serras, que dizem de Porocão, e corre-se a
costa do mono de João Moreno até este rio, norte-sul; e defronte do morro de
João Moreno está a ilha Escalvada. Do rio de Guarapari à ponta de Leritibe são
sete léguas; e corre-se a costa nordeste-sudoeste, cuja terra é muito alta;
essa ponta tem, da banda do norte, três ilhas, obra de duas léguas ao mar e a
primeira está meia légua da terra firme, as quais têm bom surgidouro; e estão
essas ilhas defronte do rio Guarapari. A terra deste rio até Leritibe é muito
grossa e boa para povoar como a melhor do Brasil, a qual foi povoada
dos goitacases. Esta ponta de Leritibe tem um arrecife ao mar, que boja bem uma
légua e meia, a qual ponta é de terra baixa, ao longo do mar. De Leritibe até
Tapemirim são quatro ou cinco léguas, cuja costa se corre nordeste-sudoeste, a
qual está em vinte graus e três quartos. De Tapemirim a Managé são cinco
léguas, a qual está em vinte e um graus; de Managé ao rio de Paraíba são cinco
léguas, e corre-se a costa nordeste-sudoeste, e toma da quarta ao norte-sul, o
qual rio de Paraíba está em vinte e um graus e dois terços. Êste rio de Paraíba
tem barra e fundo por onde entram navios de honesto porte, o qual se pode
tornar a povoar, por derredor dele e ao longo do mar. Da Paraíba ao cabo de São
Tomé são sete léguas, cuja costa se corre nordeste-sudoeste, o qual cabo está
em vinte e dois graus. Pelo nome deste cabo o tomou a capitania também de São
Tomé, até onde corre o limite dos goitacases, de quem diremos em seu lugar.

CAPÍTULO XLIV

Em que se trata de como Pedro de
Góis foi povoar a sua capitania de Paraíba ou de São Tomé.

Pedro de Góis foi um
fidalgo muito honrado, cavaleiro e experimentado, o qual andou na costa do
Brasil com Pedro Lopes de Sousa, e se perdeu com êle no Rio da Prata; e pela
afeição que tomou deste tempo à terra do Brasil, pediu a el-rei D. João, quando
repartiu as capitanias, que lhe fizesse mercê de uma, da qual S. A. lhe fêz
mercê, dando-lhe trinta léguas de terra ao longo da costa, que se começariam
onde se acabava a capitania de Vasco Fernandes Coutinho, e daí até onde acaba
Martim Afonso de Sousa, e que, não as havendo entre uma capitania e outra, que
lhe dava somente o que houvesse, o que não passaria dos baixos dos Pargos. Da
qual capitania foi tomar posse numa frota de navios, que à sua custa para isso
fêz, que proveu de moradores, armas e o mais necessário para tal empresa, com a
qual frota se partiu do porto de Lisboa, e fêz sua viagem com próspero tempo, e
foi tomar terra e porto na sua capitania, e desembarcou no rio Paraíba, onde se
fortificou, e fêz uma povoação em que esteve pacificamente os primeiros dois
anos, com os gentios goitacases seus vizinhos, com quem teve depois guerra
cinco ou seis anos, dos quais se defendeu com muito trabalho e risco de sua
pessoa, por lhearmarem cada dia mil traições, fazendo pazes, que lhe logo
quebravam, com o que lhe foram matando muita gente, assim nestas traições como
em cercos, que lhe puseram, mui prolongados, com o que padeceu cruéis fomes, o
que não podendo os moradores sofrer apertaram com Pedro de Góis rijamente, que
a despovoasse, no que êle se determinou obrigado destes requerimentos e das
necessidades em que o tinham posto os trabalhos, e ver que não era socorrido do
reino como devera. E vendo-se já sem remédio, foi forçado a despejar a terra, e
passar-se com toda a gente para a capitania do Espírito Santo, onde estava a
esse tempo Vasco Fernandes Coutinho, que lhe mandou para isso algumas
embarcações. E como Pedro de Góis teve embarcação, se tornou para estes reinos
mui desbaratado, dos quais voltou a ir ao Brasil por capitão-mor do mar com
Tomé de Sousa, que neste Estado foi o primeiro governador-geral, com quem
ajudou a povoar e fortificar a cidade do Salvador, na baía de Todos os Santos.

Nesta povoação que Pedro
Góis fêz na sua capitania gastou toda a sua fazenda que tinha no reino, e
muitos mil cruzados de Martim Ferreira, que o favoreceu muito com pretensão de
fazerem por conta da companhia grandes engenhos, o que não houve efeito pelos
respeitos declarados neste capítulo.

CAPÍTULO XLV

Em que se diz quem são os goitacascs, sua vida e
costumes.

Pois que temos declarado
quase toda a costa que senhoreavam os goitacascs, não é bem que nos despeçamos
dela passando por eles, pois temos dito parte dos danos que fizeram aos
povoadores do Espírito Santo e aos da Paraíba, os quais antigamente partiam
pela costa do mar da banda do sul com os tamoios, e de norte com os papanases,
que viviam entre eles, e os tupiniquins, e como eram seus contrários, vieram a
ter com eles tão cruel guerra que os fizeram despejar a ribeira do mar, e
irem-se para o sertão, com o que ficaram senhores da costa até confinar com os
tupiniquins, cujos contrários também são, e se matam e comem uns aos outros,
entre os quais estava por marco o rio de Cricaré.

Este gentio foi o que fêz
despovoar a Pedro de Góis, e que deu tantos trabalhos a
Vasco Fernandes Coutinho. Esse gentio tem a côr mais branca que os que
dissemos atrás, e tem diferente linguagem; é muito bárbaro; o qual não granjeia
muita lavoura de mantimentos: plantam somente legumes, de que se mantêm, e a
caça, que matam às flechadas, porque são grandes flecheiros. Não costuma esta
gente pelejar no mato, mas em campo descoberto, nem são muito amigos de comer
carne humana, como o gentio atrás; não dormem em redes, mas no chão, com folhas
debaixo de si. Costumavam estes bárbaros, por não terem outro remédio, andarem
no mar nadando, esperando os tubarões com um pau muito agudo na mão, e, em
remetendo o tubarão a eles, lhe davam com o pau, que lhe metiam pela garganta
com tanta força que o afogavam, e matavam, e o traziam à terra, não para o
comerem para o que se não punham em tamanho perigo, senão para lhes tirar os
dentes, para os engastarem nas pontas das flechas. Tem esse gentio muita parte
dos costumes dos tupinambás, assim no cantar, no bailar, tingir-se de jenipapo,
na feição do cabelo da cabeça e no arrancar os mais cabelos do corpo e outras
gentilidades muitas que, por escusar prolixidade, as guardamos para se dizerem
uma só vez.

CAPÍTULO XLVI

Em que se declara, cm suma, quem são os papanases e
seus costumes.

Parece conveniente
êste lugar para brevemente se dizer quem são os papanases, de quem atrás
fizemos menção, e porque passamos o limite de sua vivenda nos tempos antigos,
não é bem que os guardemos para mais longe.

Êste gentio, como fica
dito, viveu ao longo do mar entre a capitania de Porto Seguro e a do Espírito
Santo, donde foi lançado, pelos tupiniquins, seus contrários, e pelos
goitacases, que também o eram, e são hoje, seus inimigos, e uns e outros lhe
fizeram tão cruel guerra que os fizeram sair para o sertão, onde agora têm sua
vivenda, cuja linguagem entendem os tupiniquins e goitacases, ainda que mal.
Êste gentio dorme no chão, sobre folhas, como os goitacases; também não se
ocupa em grandes lavouras; mantêm-se estes selvagens de caça e peixe do rio,
que matam; os quais são grandes flecheiros e pelejam com arcos e flechas, andam
nus como o mais gentio, não consentem cabelos nenhuns no corpo, senão os da
cabeça, pintam-se e enfeitam-se com penas de cores dos pássaros; cantam e
bailam; têm muitas gôntilidades, das que usam os tupinambás; mas, entre si, têm
um costume que não é tão bárbaro, como todos os outros que todo o gentio
costuma, que é, se um índio destes mata outro da mesma geração em alguma briga,
ou por desastre, são obrigados os parentes do matador a entregá-lo aos parentes
do morto, que logo o afogam e o enterram, estando uns e outros presentes, e
todos neste ajuntamento fazem grande pranto, comendo e bebendo todos juntos por
muitos dias, e assim ficam todos amigos; e sendo o caso que o matador fuja, de
maneira que os parentes não o possam tomar, lhe tomam um filho ou filha, se o
tem, ou irmão, e se não tem nem um nem outro, entregam pelo matador o parente
mais chegado, ao qual não matam, mas fica cativo do mais próximo parente do
morto, e com isso ficam todos contentes e amigos como o eram antes do
acontecimento do morto.

CAPÍTULO XLVII

Em que se torna a dizer
de como corre a costa do cabo de São Tomé até o cabo Frio.

Do cabo de São Tomé
à ilha de Santa Ana são oito léguas, e corre-se a costa nordeste-sudoeste. A
terra firme desta CQSta é muito fértil e boa. Esta ilha de Santa Ana fica em
vinte e dois graus e um terço, a qual está afastada da terra firma duas léguas
para o mar, e tem dois ilhéus junto de si. E quem vem do mar em fora parece-lhe
tudo uma coisa. Tem esta ilha da banda da costa um bom surgidouro e abrigada
por ser limpo tudo, onde tem de fundo cinco e seis braças; e na terra firme
defronte da ilha tem boa aguada, e na mesma ilha há boa água de uma lagoa. Por
aqui não há de que guardar senão do que virem sobre a água.

E quem vem do mar em fora,
para saber se está tanto avante como esta ilha, olhe para a terra firme, e verá
em meio das serras um pico, que parece frade com capelo sobre as costas, o qual
demora a loeste-noroeste, e podem os navios entrar por qualquer das bandas da
ilha como lhe mais servir o vento, e ancorar defronte entre ela e a terra
firme.

Da ilha de Santa Ana
à baía do Salvador são três léguas e dessa baía à baía Formosa são sete léguas;
da baía Formosa ao cabo Frio são duas léguas. E corre-se a costa norte-sul. Até
essa baía Formosa corriam os goitacases no seu tempo, mas vivem já mais
afastados do mar, pelo que não há que arrecear para se povoar qualquer parte desta
costa do Espírito Santo até o cabo Frio.

CAPÍTULO XLVIII

Em que se explicam, os recôncavos do cabo Frio.

O cabo Frio está em vinte
três graus; o qual parece, a quem vem do mar em fora, ilha redonda com uma
forcada no meio, porque a terra, que está entre o cabo e as serras, é muito
baixa, e quando se vem chegando a êle aparece uma rocha com riscos brancos, por
onde é muito bom de conhecer. E, ainda que, pelo que se julga do mar, a terra
do cabo parece ilha, e o não seja, por onde o parece, na verdade o cabo é ilha,
porque o corta o mar por onde se não enxerga de fora, mas é de maneira que pode
passar um navio por entre êle e a terra firme à vontade. E tem um baixo neste
canal, bem no meio, de duas braças de fundo; o mais é alto, que basta para passar
uma nau.

Perto do cabo estão umas
ilhas, no meio das quais é limpo e bom porto para surgirem naus de todo porte,
e não há senão guardar do que virem. Duas léguas do cabo, da banda do norte,
está a baía Formosa, e defronte dela ficam as ilhas, e entre essa baía e as
ilhas há bom surgidouro. No fim dessa baía para o norte está a Casa da Pedra,
perto da qual está um rio pequeno, que tem de fora bom surgidouro, e de dez até
quinze braças de fundo, afastado um pouco de uma ilha que está na boca da baía.
E perto dessa ilha é alto para ancorar naus, mas perigoso, porque se venta
sudoestes e oeste, faz aqui dano no primeiro ímpeto, porque vem com muita
fúria, como trovoada de Guiné, a qual trovoada é de vento seco e claro.
Costumavam os franceses entrar por este rio pequeno e carregar pau-brasil, que
traziam para as naus que estavam surtas na baía, ao abrigo das ilhas. Por essa
baía entra a maré muito pela terra adentro, que é muito baixa, onde de 20 de
janeiro até todo o fevereiro se coalha a água muito depressa, e sem haver
marinhas, tiram os índios o sal coalhado e duro, muito alvo, às mãos
cheias, de baixo da água, chegando-lhe sempre a maré, sem ficar nunca em seco.

CAPÍTULO XLIX

Em que se declara a terra que há do cabo Frio até o Rio
de Janeiro.

Do Cabo Frio ao Rio
de Janeiro são dezoito léguas, que se repartem desta maneira: do Cabo Frio até
ao rio de Sacorema são oito léguas; de Sacorema às ilhas de Maricá são quatro
léguas, e de Maricá ao Rio de Janeiro são seis léguas, cuja costa se corre
leste-oeste; o qual Rio está em vinte e três graus, e tem sobre si umas serras
mui altas, que se vêem de muito longe, vindo do mar em fora, a que chamam os
órgãos, e uma destas serras parece do mar gávea de nau, por onde se conhece bem
a terra. Este Rio tem de boca, de ponta a ponta, perto de meia légua, e na de
lés-sudoeste tem um pico de pedra muito alto e mui a pique sobre a barra. Na
outra ponta tem outro padrasto, mas não é tão alto nem tão áspero, e de um ao
outro se defenderá a barra valorosamente. No meio dessa barra, entre ponta e
ponta, criou a natureza uma lájea de cinquenta braças de comprido e vinte e
cinco de largo, onde se pode fazer uma fortaleza, que seja uma das melhores do
mundo, o que se fará com pouca despesa, com o que se defenderá êste Rio a todo o
poder que o quiser entrar; porque o fundo da barra é, por junto dessa lájea, a
tiro de espingarda dela, e forçado as naus que quiserem entrar dentro hão de ir
à fala dela, e não lhe ficará outro padrasto mais que o do pico de pedra, donde
lhe podem chegar com artilharia grossa; mas é esse pico tão áspero que parece
impossível poder-se levar artilharia grossa acima, e segurando-se êste pico
ficará a fortaleza da lájea inexpugnável. E uma coisa e outra se pode
fortificar com pouca despesa, pela muita pedra que para isso tem ao longo do
mar, bem defronte, assim para cantaria como para alvenaria, e grande aparelho
para se fazer muita cal de ostras, de que neste Rio há infinidade.

C A P Í T U L O L

Em que se declara a entrada do Rio de Janeiro e
as ilhas que tem defronte.

Defronte da barra do
Rio de Janeiro, ao sul dela quatro ou cinco léguas, estão duas ilhas baixas, e
ao noroeste delas está um porto de areia bem chegado à terra, onde há abrigada
ao vento sul, sueste, leste e noroeste, e como fôr outro vento convém fugir na
volta de leste ou do norte, que serve para quem vem para o reino; e quem houver
de ancorar aqui, pode-se chegar à terra até quatro ou cinco braças de fundo
para ficar bem; e quem houver de entrar no Rio, dando-lhe o vento lugar, entre
pela banda do leste, e sendo o vento oeste, vá pela barra de oeste, pelo meio
do canal que está entre a ponta de Cara de Cão e a lájea; mas a barra de leste
é melhor, por ser mais larga; e por cada uma delas tem fundo oito até doze
braças até a ilha de Viragalham; e quanto mais forem a loeste, tanto
menos fundo acharão, depois que passarem a ilha, e para a banda de leste
acharão mais fundo em passando a ilha de Viragalham, que se chama assim, por
ser este o nome do capitão francês, que esteve com uma fortaleza nesta ilha,
que é a que Mem de Sá tomou e arrasou.

Defronte da barra deste Rio
ao mar dela, está uma ilha, a que chamam ilha Redonda; e afastado dela para a
banda de leste, está outra ilha, a que chamam a ilha Rasa; e defronte desta
ilha e a ponta da lagoa, estão três ilhas no meio, e chegando à terra está
outro ilhote, a que chamam Jeribatuba, em derredor da qual estão quatro
ilhotes.

CAPÍTULO LI

Em que particularmente se explica a
baía do Rio de Janeiro da ponta do Pão de Açúcar para dentro.

Ê tamanha coisa o
Rio de Janeiro da boca para dentro, que nos obriga a gastar o tempo em o
declarar neste lugar, para que se veja como é capaz de se fazer mais conta dele
do que se faz. E comecemos do Pão de Açúcar, que está da banda de fora da
barra, que é um pico de pedra mui alto, da feição do nome que tem, do qual, à
ponta da barra, que se diz de Gaia de Cão, há pouco espaço; e a terra, que fica
entre esta ponta e o Pão de Açúcar, é baixa e chã; e virando-se desta ponta
para dentro da barra se chama Cidade Velha, onde se ela fundou primeiro. Aqui
se faz uma enseada, cm que podem surgir navios, se quiserem, porque o fundo é
de vasa, e tem cinco, seis e até sete braças. Esta enseada se chama de
Francisco Velho, por ter aqui sua vivenda e granjearia, a qual é afeiçoada, em
compasso até outra ponta adiante, que se chama da Carioca, junto da qual entra
uma ribeira, que se chama do mesmo nome, donde bebe a cidade. Da ponta da Cara
de Cão à cidade pode ser meia légua; esta ponta de Cara de Cão fica quase em padrasto
da lájea, mas não é muito grande por ela não ser muito alta.

A cidade se chama
São Sebastião, a qual edificou Mem de Sá, num alto, numa ponta de serra que
está defronte da ilha de Viragalham, a qual está lançada deste alto por uma
ladeira abaixo; e tem em cima, no alto, um nobre mosteiro e colégio de padres
da companhia, e ao pé dela uma estância com artilharia para uma banda e para
outra, um modo de fortaleza numa ponta, que defende o porto, mas não a barra,
por lá não chegar bem a artilharia.

Ao pé desta cidade,
defronte da ponta do arrecife dela, tem bom surgidouro, que tem de fundo cinco
e seis braças, e che-gando-se mais à terra tem três e quatro braças, onde os
navios têm abrigo para os ventos gerais do inverno, que são sul e su-sueste. E
quem quiser ir para dentro há de passar por um banco, que tem de preamar até
vinte palmos de água; e passando este banco, virando para detrás da ponta da
cidade, acharão bom fundo, onde os navios estão seguros de todo tempo, por a
terra fazer aqui uma enseada. E quando os navios quiserem sair deste porto
carregados, hão de botar fora por entre a ilha e a ponta da terra firme, pela
banda do norte, e hão de rodear a ilha em redondo para tornarem a surgir
defronte da cidade, e surgirem junto da ilha de Viragalham, entre ela e a
cidade; no qual lugar acharão de fundo três braças, e três e meia, onde tem
porto morto e defronte desse porto é o desembarcadouro da cidade, onde se diz
as casas de Manuel de Brito.

CAPITULO LII

Em que se explica a terra da baía do
Rio de Janeiro da ponta da cidade para dentro até tornar à barra.

Na ponta desta cidade o
ancoradouro dos navios, que está detrás da cidade, está uma ilheta que se diz a
da Madeira, por se tirar dela muita, a qual serve aos navios que aqui se
recolhem de consertar as velas. E desta ponta a uma légua está outra ponta,
fazendo a terra em meio uma enseada, onde está o porto, que se diz de Martim
Afonso, onde entra nesta baía um riacho, que se diz Iabubiracica; defronte
deste porto de Martim Afonso estão espalhados seis ilhéus de arvoredo. E desta
ponta por diante se torna a terra a recolher, à maneira de enseada, e dali a
meia légua faz outra ponta, e antes dela entra outro riacho no salgado, que se
chama Unhaúma; e à ponta se chama Braço pequeno. Dessa ponta que se diz Braço
pequeno por diante, foge a terra para trás muito, onde se faz um esteiro, por
onde entra a maré três léguas; e fica a terra na boca deste esteiro de ponta a
ponta, um tiro de berço, donde começa a terra a fazer enseada, que de ponta a
ponta são duas léguas, a qual terra é alta até a ponta. Defronte desta enseada
está a ilha de Salvador Correia, que se chama Parnapicu, que tem três léguas de
comprido, e uma de largo, na qual está um engenho de açúcar, que lavra com
bois, que êle fêz. Atravessando esta ilha por mar à cidade são duas léguas, a
qual ilha tem em redor de si oito ou nove ilhas, que dão pau-brasil. Do cabo
desta enseada grande e da ponta da terra alta, se faz outra enseada apertada na
boca, na qual se mete um rio, que nasce ao pé da serra dos Órgãos, que está
cinco léguas pela terra adentro, o qual se chama Magipe, e mais adiante légua e
meia entra outro riacho nesta baía, que se chama Sururuí. Deste rio Sururuí a
duas léguas, entra outro nesta baía, que se chama Macucu, que se navega pela
terra adentro quatro léguas, no qual se mete outro rio, que se chama dos
Goitacases, que vem de muito longe. Defronte do rio Macucu está uma ilha, que
se chama Caiaíba, e desta ilha a uma está outra, que se chama Pacata; e desta à
Salvador Correia é légua e meia; e estão estas ilhas todas três em direito leste-oeste umas das outras. E dessa
ilha Pacata direito ao sul estão seis ilhéus, e para o sueste estão cinco, em
duas carreiras. Da ponta do rio Macucu para a banda de leste se recolhe a terra
e faz uma enseada até outra ponta da terra saída ao mar, em que entra um
riacho, que se chama Baxindiba, e da ponta deste riacho à de Macucu é légua e
meia. Defronte de Baxindiba, está outra ilha, cheia de arvoredo; de Baxindiba
se torna a afastar a terra para dentro, fazendo outra enseada, com muitos
mangues no meio, na qual se mete outro rio, que se diz Suaçuna, e haverá de
ponta a ponta duas léguas. E no meio, bem em direito das pontas, está outra
ilha cheia de arvoredo, e a outra ponta desta enseada se diz Mutungabo. Da
ponta de Mutungabo se esconde a terra jmra dentro bem dois terços de légua,
onde se mete um rio, que se chama Pau Doce, e faz uma volta, tornando a terra a
sair para fora bem meia légua, onde faz outra ponta, que se chama Urumaré.
Dessa ponta à de Mutungabo é uma légua, e, bem em direito destas pontas, em
meio desta enseada está outra ilha de arvoredo. Desta ponta de Mutungabo à de
Macucu são quatro léguas; da ponta de Urumaré a dois terços de légua está outra
ponta, onde se começam as barreiras vermelhas, que ficam defronte da cidade,
onde bate o mar da baía; e defronte dessa ponta, para o norte está uma ilha,
que se diz de João Fernandes, diante da qual está outra mais pequena. Das
barreiras vermelhas se vai afeiçoando a terra ao longo da água, como cabeça de
cajado, onde se faz uma enseada que se chama de Piralininga, e a ponta e língua
da terra dele vêm quase em direito de Viragalham, a qual ponta se chama de
Lery, e o cotovelo desta língua de terra faz uma ponta defronte da de Cara de
Cão, que fica em padrasto sobre a lájea da barra, na qual ponta está outra
lájea, que o salgado aparta de terra qualquer coisa, a qual fica ao pé do pico
do padrasto, que está sobre a barra. Entram por esta barra do Rio de Janeiro
naus de todo o porte, as quais podem estar neste rio seguras, como fica dito,
de maneira que terá esta baía do Rio de Janeiro, em redondo, da ponta de Cara
de Cão, andando por dentro até o mar, à outra ponta da lájea, vinte léguas
pouco mais ou menos, que se navega em barcos, e pelo mais largo haverá de terra
a terra seis léguas.

CAPÍTULO LIII

Que trata como o governador Mem de Sá foi ao Rio de
Janeiro.

Não é bem que passemos
avante sem primeiro se dar conta da muita que os anos passados se teve com o
Rio de Janeiro. E como el-rei D. João III, de Portugal, fosse informado como os
franceses tinham feito neste Rio uma fortaleza na ilha de Vira-galham, que foi
o capitão que nela residia, que se assim chamava, mandou a D. Duarte da Costa,
que neste tempo era governador deste Estado, que D. Duarte fêz com muita
diligência, e avisou disso a S. A. a tempo, que tinha eleito para
governador-geral deste Estado a Mem de Sá, a quem encomendou particularmente
que trabalhasse por pôr esta ladroeira fora deste Rio. E falecendo el-rei neste
conflito, sucedendo no governo a rainha D. Catarina, sua mulher, que está em
glória, sabendo da vontade de S. A., escreveu ao mesmo Mem de Sá, que com a
brevidade possível fosse a êste Rio e lançasse os franceses dele, ao que,
obedecendo o governador, fêz prestes a armada, que do reino para isso lhe fora,
de que ia por capilão-mor Bartolomeu de Vasconcelos; à qual ajuntou outros
navios de el-rei, que na Bahia havia, e dez ou doze caravelões; e feita a frota
prestes, mandou embarcar nela as armas e munições de guerra e os mantimentos
necessários, na qual se embarcou a maior parte da gente nobre da Bahia, e os
homens de armas que se puderam juntar, com muitos escravos e índios forros. E
indo o governador com esta armada correndo a costa, de todas as capitanias
levou gente que por sua vontade o quiseram acompanhar nesta empresa; e,
seguindo sua viagem, chegou ao Rio de Janeiro com toda a armada junta, onde o
vieram ajudar muitos moradores de São Vicente. E foi recebido da fortaleza de
Viragalham, que neste tempo era ido à França, com muitas bombardadas, o que não
foi bastante para Mem de Sá deixar de se chegar à fortaleza com os navios de
maior porte a varejar com artilharia grossa; e com os navios pequenos mandou
desembarcar a gente numa ponta da ilha, onde mandou assestar anilharia, donde
bateram a fortaleza rijamente. E como os franceses se viram apertados,
despejaram o castelo e fortaleza uma noite, e lançaram-se na terra firme com o
gentio tamoio, que os favorecia muito; e entrada a fortaleza, mandou o
governador recolher a artilharia e munições de guerra, que nela
havia; e mandou-a desfazer e arrasar por terfà, e avisou logo do sucedido à
Rainha, numa nau francesa, que neste Rio tomou, e como houve monção se recolheu
o governador para a Bahia (visitando as capitanias todas) aonde chegou a
salvamento. Mas não alcançou esta vitória tanto a seu salvo, que lhe não
custasse primeiro a vicia de muitos portugueses e índios tupinambás, que lhe os
franceses mataram às bombardadas e espingardarias; mas, como a Rainha soube
desta vitória, e entendendo quanto convinha à coroa de Portugal povoar-se e
fortificar-se o Rio de Janeiro, estranhou muito a Mem de Sá o arrasar a
fortaleza que tomou aos franceses, e não deixar gente nela que a guardasse e
defendesse, para se povoar este Rio (o que êle não fez por não ter gente que
bastasse para poder defender esta fortaleza); e que logo se fizesse prestes e
fosse povoar este Rio, e o fortificasse, edificando nele uma cidade, que se
chamasse de São Sebastião; e para que isto pudesse fazer com mais facilidade,
lhe mandou uma armada de três galeões, de que ia por capitão-mor Cristóvão de
Barros, com a qual, e com dois navios del-rei que andavam na costa, e outros
seis caravelões, se partiu o governador da Bahia com muitos moradores dela, que
levavam muitos escravos consigo, e partiu-se para o Rio de Janeiro, onde lhe
sucedeu o que neste capítulo se segue.

CAPITULO LIV

Que trata de como Mem de Sá foi
povoar o Rio de Janeiro.

Partindo
Mem de Sá para o Rio de Janeiro, foi visitando a capitania dos Ilhéus, Porto
Seguro e a do Espírito Santo, das quais levou muitos moradores, que como
aventureiros os foram acompanhando com seus escravos, nesta jornada; e como
chegou ao Rio de Janeiro viu que lhe havia de custar mais do que cuidava, como
lhe custou; porque o achou fortificado dos franceses na terra firme, onde
tinham feito cercas mui grandes e forces de madeira, com seus baluartes e
artilharia, que lhes umas naus que ali foram carregar de pau deixaram, com
muitas espingardas. Nestas cercas estavam recolhidos com os franceses os índios
tamoios, que estavam já tão adestrados deles, que pelejavam muito bem com suas
espingardas, para o que não lhes faltava pólvora nem o necessário, por de tudo
estarem bem providos das naus acima ditas. Desembarcando o governador em
terra, tiveram os portugueses grandes
escaramuças com os franceses e tamoios; mas uns e outros se recolheram contra
sua vontade para as suas cercas, que logo foram cercadas e postas em grande
aperto; mas, primeiro que fossem entradas, custou a vida a Estácio de Sá,
sobrinho do governador, e a Gaspar Barbosa, pessoa de muito principal estima, e
a outros muitos homens e escravos, e, contudo, foram as cercas entradas, e muitos
dos contrários mortos
e os mais cativos. E como os tamoios não
tiveram entre si franceses, se recolheram pela terra adentro, donde vinham
muitas vezes fazer seus saltos, do que nunca saíram bem. E como Mem de Sá viu
que tinha lançado os inimigos da porta, ordenou de fortificar .este Rio,
fazendo-lhe uma estância ao longo da água para defender a barra, a qual depois
reedificou Cristóvão de Barros, sendo capitão deste Rio; e assentou a cidade,
que murou com muros de taipas com suas torres, em que pôs artilharia
necessária, onde edificou algumas igrejas, com sua casa de Misericórdia e
hospital, e um mosteiro de padres da companhia, que agora é colégio, cm que os
padres ensinam latim, para o que lhe faz S. A. mercê cada ano de dois mil
cruzados. E acabada de fortificar e povoar essa cidade, ordenou o governador de
se tornar para a Bahia, deixando nela por capitão a seu sobrinho Salvador
Correia de Sá, com muitos moradores e oficiais de justiça e de fazenda,
convenientes ao serviço del-rei e ao bem da terra, o qual Salvador Correia defendeu
esta cidade alguns anos mui valorosamente, fazendo guerra ao gentio, de que
alcançou grandes vitórias, e dos franceses, que do Cabo Frio os vinham ajudar e
favorecer, aos quais foi tomar, dentro do Cabo Frio, uma nau que passava de
duzentos tonéis, com canoas que levou do Rio de Janeiro, com as quais a
abalroou e tomou à força de armas. A esta cidade mandou depois el-rei D.
Sebastião por capitão e governador Cristóvão de Barros, que a acrescentou,
fazendo nela em seu tempo muitos serviços a S. A., que se não podem
particularizar em tão pequeno espaço.

CAPÍTULO LV

Em que se trata de como foi governador do Rio de
Janeiro Antônio Salema.

Informado el-rei D.
Sebastião, que glória haja, do Rio de Janeiro, e do muito para que estava
disposto, ordenou de partir dite Estado do Brasil cm duas governanças, e deu
uma delas ao
Dr. Antônio Salema, que estava na capitania de Pernambuco por
Blindado de S. A., com alçada, a qual repartição se estendia da capitania de Porto Seguro até São Vicente.
Essa repartição se fez no ano de
1572; começava no limite em que partem as duas capitanias dos Ilhéus e do Porto Seguro, e dali tudo para o sul; e a
outra, do dito limite até tudo que há para o norte, deu a Luís de Brito
de Almeida. E era cabeça desta governança a cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro, onde o governador assistiu; e Começou -um engenho, que lhe S.
A. mandou fazer, para o que lhe mandou dar quatro mil cruzados, o qual se não
acabou, sendo mui necessário para os moradores fazerem suas casas, e para a
terra ir em grande crescimento. No tempo que Antônio Salema governou o Rio de
Janeiro, iam cada ano naus francesas resgatar com o gentio ao Cabo Frio, onde
ancoravam com suas naus na baía que atrás fica declarado, e carregavam de pau
de tinta à sua vontade; e vendo Antônio Salema tamanho desaforo, determinou de
tirar essa ladroeira desse lugar, e fêz-se prestes para ir fazer guerra ao
gentio de Cabo Frio, para o que ajuntou quatrocentos homens brancos e
setecentos índios, com os quais, por conselho de Cristóvão de Barros, foram
ambos em pessoa ao Cabo Frio, que está dezoito léguas do Rio, onde adiaram os
tamoios com cercas muito fortes, recolhidos nelas com alguns franceses dentro,
onde uns e outros se defenderam valorosamente às espingardadas e frechadas; e,
não podendo os franceses sofrer o aperto em que estavam, se lançaram com o
governador, que lhes desse a vida, com que os tamoios foram entrados, mortos
infinitos, e cativos oito ou dez mil almas. E com essa vitória, que os
portugueses alcançaram, ficaram os tamoios tão atemorizados, que despejaram a
ribeira do mar, e se foram para o sertão, pelo que não tornaram mais naus
francesas a Cabo Frio a resgatar. E porque deste sucesso fez Antônio Salema um
tratado, havemos por escusado tratar mais deste caso neste capítulo.

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