Oliveira Lima
UM PAISAGISTA PERNAMBUCANO (Teles Júnior)
Visitando um dia a pequena mas escolhida coleção de quadros de Belarmino Carneiro, lembro-me que demorei o olhar sobre duas paisagens de um aspecto risonho na sua tonalidade verde-escura, e observei convencidamente: Isto é pernambucano! — Pois sc são paisagens de Teles Júnior, replicou-me Belarmino.
Si estivesse então mais acostumado a ver trabalhos do paizagista pernambucano, teria reconhecido o pintor como imediatamente reconheci a terra, circunstancia na qual reside, penso, o seu melhor elogio. Não conheço de facto artista que no Brasil possua em mais elevado grao o sentimento local.
Êle não é um artista brasileiro: um artista essencialmente pernambucano; mais do que isto, é pintor da mata, não o pintor do sertão.
Por vezes o seduzem trechos de litoral de praias brancas e flora em grande parte importada, coqueiros flexíveis, de coroas buliçosas; mangueiras frondosas, de verde quase negro, cajueiros esgalhados, projetando sobre a areia uma sombra rala; mangabeiras baixas de folhagem miúda, a zona litoral emenda logo com a das matas, permanecendo, entretanto, o coqueiro como acessório tão importante e característico tão saliente da primeira que, desde Franz Post, não há paisagem daquela região que a esbelta árvore não domine com a sua arte esguia e o seu diadema de palmas.
A mata, porém, com o seu bafejo perfumado, a sua atmosfera de calor úmido, o seu estremecimento de fecundação e a sua pulsação de crescimento, é o que particularmente fascina aquela palheta vibrante. Êle nunca se sente mais à vontade do que refletindo e fixando as ladeiras de barro vermelho sobre o qual as rodas dos carros de bois deixam sulcos profundos nas porções mais enxutas, entre as poças escuras; as túmidas várzeas de massapé cobertas de canas, tão apertadas as plantas que não têm quase espaço para agitar as suas folhas laminadas, de que emergem como penachos’as frechas pardacentas; as capoeiras emaranhadas em que a vegetação brota irregularmente, alguma mais viçosa, outra mais vagarosa, toda ela de um tom verde-claro de esperança; mais que tudo, as matas propriamente, com suas árvores linheiras, a procurarem por um natural instinto os raios do sol, erguendo os troncos enlaçados pelos cipós sobre um chão forrado de folhas secas e limpo de garranchos que não logram medrar na sombra eterna.
São estas árvores elegantes e frondentes que Teles Júnior decididamente prefere às árvores menos alterosas, tortuosas e pouco densas da catinga ou do sertão. As manchas das suas telas, de um impressionismo moderado e atraente, relevam o pau-d’arco, cujos ramos, quando despidos de folhas, se cobrem de flores d’ouro; os troncos nus e seculares do pau-ferro; as sapucaias crivadas de botões dourados; os grandes pés de amarelo com suas folhas pequenas; as flôrezinhas roxas do angelim, ou as da sicupira que, abrindo em pencas em dezembro, se assemelham a enormes ramalhetes de violetas; os contornos maciços de urucuba e do páu-carga; a ramada sacada do visgueiro e da oiticica.
Isolado no vasto cercado verde c montanhoso, desse acidentado constante mas nunca colossal que é distintivo da região pernambucana levanta-se um formoso cajàzeiro, cujos galhos se distendem quase simetricamente no alto em feitio de umbela, ou uma gameleira sombria que, nascida nos gravatas de ramagem estranha, desce pelo madeiro até o solo e aí fincando as suas raízes sem fim, sufoca a árvore primitiva. *
São estes os espetáculos da natureza tropical, natureza já assenhoreada pelo homem e defendendo a custo a sua integridade selvagem e as suas opulências florestais, que o temperamento de Teles Júnior sente e o seu pincel reproduz de acordo com tais impressões numa maneira e numa técnica eloqüentes que fazem pensar em certos paisagistas holandeses. Será a única recordação atávica, uma recordação por felicidade genuinamente artística, por que hoje se traduzirá a passada influência batava. O fato é que no seu atelier telas vi cuja exuberância, aliás, sempre comedida, me fêz logo externar a lembrança de Ruysdael.
Teles Júnior, êle mesmo, parece um holandês com seu rosto gordo e corado, suas finas barbas louras, seus óculos, pelos quais se coa um olhar cheio de bonomia, o seu todo respirando simpatia, que se estende à natureza viva.
Os animais figuram pouco nas telas, o homem mais raramente ainda. A terra ofereceu-lhe sugestões e encantos bastantes e também o mar, porque Teles Júnior, a par de paisagens, faz marinhas de bela execução, em que as águas verdes do nosso mar se balançam, toucadas de branco, ao sopro dos ventos brandos ou se encapelam em ondas revoltas, despedaçando-se entre os recifes, com movimento tão vivo como o que o pintor soube imprimir aos coqueiros batidos do temporal numa paisagem que faz parte da coleção amorosamente organizada pelo Sr. Dr. Barreto Sampaio e na qual o artista pernambucano figura largamente.
A luz na pintura é, em certo sentido, tudo. É ela que empresta, com seus efeitos de claro-escuro, um tão poderoso relevo às composições de Rembrandt e, por uma igual distribuição, inunda de tanta suavidade as paisagens de Cláudio Lorrin. Dotar as telas da luz própria da luz local representa um considerável resultado artístico que Teles Júnior me parece haver alcançado.
Aquém do sertão, o céu pernambucano só é eternamente azul em poesia: na realidade não oferece o tom uno e metálico do céu do* Egito. Escondem-no com freqüência nuvens cinzentas e grossas de chuvas que os fogos do sol poente tingem de rubro, dando-lhes aspectos de gigantesco brasido, e através dos quais o sol zénite se filtra numa claridade que não chega a ser turva mas que é raramente deslumbrante, diluindo-a, a umidade do ar. Quando nuvens dessas não interceptam os raios dardejantes do sol, outras há, muito altas, muito leves, como que desfiadas, que põem manchas nacaradas no azul, geralmente desmaiado do horizonte.
É assim que se esforça para tratar, e logra reproduzir o céu desta limitada região brasileira, o pincel do paisagista que ela há encontrado mais fiel e mais harmônico com a sua própria harmonia, que a arte é impotente para traduzir na plenitude de sua perfeição, mas de que consegue transmitir a sensação mais ou menos verdadeira, ou antes a sensação pessoal.
Os amadores de dados mais positivos e os que não perdoam pormenor biográfico estimarão saber que Teles Júnior é natural de Pernambuco, que desenvolveu suas aptidões precocemente manifestadas, para a pintura na Academia de Bclas-Artcs do Rio, que, num meio provinciano, ainda mais refratário no geral que o da Capital às emoções estéticas dessa ordem, não lhe tem corrido num leito de ouro a existência, sendo forçado para ajudar o resultado da venda das suas telas aos moradores, poucos, com quanto entusiastas do seu talento, converter a arte em ofício c ocupar-se em retocar quadros velhos, ensinar e fazer retratos a óleo; que, finalmente, uma das formas por que se traduz a sua bonomia é pelo uso do seu dever de conservador genial c atraente.
Pernambuco, fevereiro de 1905
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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